1 VALORES VERBAIS NÃO-CANÔNICOS SOB A PERSPECTIVA DA LINGÜÍSTICA COGNITIVA. Adriana Maria Tenuta Universidade Federal de Minas Gerais Brazil 1. Introdução Este artigo traz alguns resultados de uma pesquisa realizada com o intuito de se investigar valores não-canônicos expressos por certas formas verbais do português do Brasil. Está na base da investigação realizada nessa pesquisa a compreensão de que toda construção de significado humano está relacionada à forma como se conceptualiza uma situação da experiência, e que, por sua vez, as categorias e formas lingüísticas refletem essa conceptualização. Adotou-se um modelo teórico condizente com essa perspectiva, que se estende para visão de que a linguagem e demais habilidades cognitivas humanas estão inter-relacionadas e que a atuação do indivíduo no mundo, que envolve aspectos de sua corporeidade, estão na base desse sistema conceptual. Utilizou-se para o estudo aqui proposto um corpus composto de dados de língua portuguesa do Brasil, tanto orais (narrativas e diálogos espontâneos) quanto escritos (redações de vestibular)I. Nesse corpus, foram encontradas várias ocorrências de formas verbais com valores distintos daqueles expressos pelo rótulo dessas formas, rótulo esse que tem por base a definição tradicional para tempo verbal, em termos de uma relação estabelecida entre momento da fala e momento do evento. Foram os seguintes os valores não-canônicos encontrados: a) Presente do Indicativo com valor genérico ou habitual; b) Presente do Indicativo com valor passado (semelhante ao valor de PretéritoPerfeito), denominado, por vezes, Presente histórico; c) Presente do Indicativo com valor futuro (semelhante ao de Futuro do Presente); d) Presente do Indicativo com semelhante imperativo; e) Pretérito Perfeito do Indicativo com sentido contra-seqüencial (semelhante ao valor de Pretérito Mais-que-perfeito) e f) Pretérito Imperfeito do Indicativo com valor semelhante ao de Futuro do Pretérito. I A composição do corpus é a seguinte: Narrativas orais utilizadas em Tenuta (2006); transcrições de conversações, gentilmente cedidas pelo GREF (Grupo de Estudos Funcionalistas), pertencente ao NELU (Núcleo de Estudo da Língua em Uso - FALE/UFMG) - transcrições das fitas AVe MFA e dados de Matta (2005) - e redações de Vestibular da UNIPAC de 2006, também gentilmente cedidas pela Comissão de vestibular dessa Universidade para este estudo. 2 Certamente há mais valores não-canônicos de formas verbais se se considera essa definição de tempo verbal e os rótulos para os tempos verbais dela advindos. Assim, essa maneira como tradicionalmente tempo verbal tem sido definido não espelha a riqueza da realidade da expressão verbal. Valores variados, às vezes, estão relacionados a uma única forma. E esses valores podem ser revelados levando-se em conta seus contextos de ocorrência. Através deste estudo, buscou-se investigar a motivação cognitiva para a existência desses valores não-canônicos encontrados no corpus. Propôs-se que o estudo teria por base o quadro teórico da Lingüística Cognitiva, que apresenta algumas abordagens com potencial para subsidiar explicações referentes ao fenômeno, pela investigação da motivação cognitiva para tais alterações semânticas. Neste artigo, descrever-se-á as análises referentes aos itens (a), (c) e (d) acima listados, apresentando diagramações para o valor canônico do Presente do Indicativo, além da diagramação para o valor atemporal. A partir dessas diagramações, discutem-se os valores futuro e imperativo do Presente do Indicativo, que apresentam configurações de espaços mentais semelhantes à do presente atemporal. A Lingüística Cognitiva possibilita a visão da inter-relação entre a linguagem e a cognição humanas. De acordo com essa perspectiva teórica, nossa utilização da linguagem espelha processos cognitivos mais gerais e tem uma estreita relação com a percepção sensorial. Nesse sentido, a conceptualização é vista como um processo correlato ao da visualização (Langacker, 1987; 2008) e, portanto, a compreensão de como o ser humano trabalha sua atenção frente a uma cena visual pode revelar muito de como também construímos significado lingüístico. Inicialmente, no âmbito deste estudo, checou-se a possibilidade de investigarmos o fenômeno através de 3 abordagens do quadro a Lingüística Cognitiva: primeiro, a abordagem dos Espaços Mentais (Fauconnier, 1994; 1997); segundo, o modelo da Dinâmica de Forças de Talmy (1988) e, finalmente, a perspectiva que investiga a extensão semântica, metafórica, proposta por Tyler e Evans (2001, 2004). Todos esses modelos levam em conta a motivação cognitiva para a utilização das formas lingüísticas, ou seja, postulam uma estreita relação entre o sistema conceitual e o sistema semântico. Na perspectiva dos Espaços Mentais, tempo verbal refere-se principalmente à relação entre ponto de vista e foco (noções essas definidas dentro do próprio modelo); o modelo lida, então, com a questão temporal de forma diferente da tradicional; na perspectiva da Dinâmica de Forças, que é uma categoria semântica, considera-se que as entidades envolvidas numa interação pertencem a um campo no qual estão atuando forças dinamicamente distribuídas e redistribuídas em movimentos de se ‘exercer uma força’; se ‘resistir a essa força’; se ‘superar essa resistência’, se’ bloquear essa força’; se ‘superar esse bloqueio’; etc. e, na proposta da Extensão Metafórica, a existência de vários 3 sentidos ligados a uma única forma lingüística é preferencialmente vista como polissêmica, sendo muitas vezes possível perceberem-se elos motivados cognitivamente entre os diversos significados. Os estudos pilotos desenvolvidos com base nos modelos listados revelaram que a perspectiva dos Espaços Mentais foi a que de imediato se prestou à investigação do fenômeno lingüístico abordado e foi, então, a perspectiva adotada para a realização do mesmo. Primeiramente, o Modelo dos Espaços Mentais permite, através da noção mesma de espaços mentais, possibilita representar conceptualmente a distribuição de informação que acontece, com sua dinamicidade, no desenrolar de qualquer discurso. Além disso, as modelagens feitas dentro dessa proposta têm de ser trabalhadas com as noções discursivas de BASE, PONTO DE VISTA e FOCOII, que, além de evidenciarem aquela relação entre conceptualização e visualização mencionada, possibilitam uma nova visão de tempo verbal. 2. Tempo verbal visto tradicionalmente Na acepção tradicional, então, o tempo verbal Presente corresponde à situação em que o tempo de ocorrência do evento coincide com o tempo da fala; para o Passado, pensa-se numa assimetria na qual o tempo de ocorrência do evento antecede o tempo da fala e, para o futuro, considera-se a inversão dessa relação. Diversos autores compartilham dessa concepção, como, por exemplo, Cunha (1971); Nicela e Infante (1997); Rocha Lima (2003). Cunha (1971) define tempo verbal como: “a variação que indica o momento em que se dá o fato expresso pelo verbo. Os três tempos verbais naturais são o presente, o pretérito (ou passado) e o futuro, que designam, respectivamente, um fato ocorrido no momento em que se fala, antes do momento em que se fala e após o momento em que se fala” Cunha (1971: 256). Cunha e Cintra (2001:448), por sua vez, trabalham com a noção de que “(...) Tempo é a propriedade de localizar o processo verbal no momento de sua ocorrência, referindo-o seja à pessoa que fala, seja a outro fato em causa”. Encontram-se explicações, em várias gramáticas, para ocorrências de formas verbais que não correspondem àquela definição canônica. Nesses casos, recorre-se, em geral, a explicações localizadas, cunhadas ad hoc, que, sem deixar de revelar aspectos semânticos ou estilísticos da expressão ligados a tais formas, não revelam razões de ordem cognitiva subjacentes a essa expressão, nem tampouco possibilitam generalizações, que são observáveis se é adotada a perspectiva proposta pela Lingüística Cognitiva. II As noções discursivas e categorias tempo-aspectuais definidas dentro do Modelo dos Espaços Mentais aparecem, neste trabalho, como em Cutrer, 1994, em VERSALETE. 4 Dentre os trabalhos acadêmicos relacionados ao estudo de formas verbais, um que apresenta uma explicação de caráter cognitivo é o artigo “A expressão verbal a serviço do efeito de sentido metafórico”, de Back (2007). Tal explicação é distinta sem deixar de ser compatível com aquela fornecida pelos resultados encontrados através desta pesquisa, que foram obtidos a partir da diagramação de trechos discursivos utilizando o Modelo dos Espaços Mentais. 3. O fenômeno investigado e o modelo teórico adotado A perspectiva dos Espaços Mentais, como mencionado, possibilita a visão da inter-relação entre a linguagem e os demais processos cognitivos do ser humano, como, por exemplo, nossas capacidades de categorização e esquematização. No âmbito desse modelo, considera-se que tempo verbal refere-se principalmente à relação entre PONTO DE VISTA e FOCO (Turner, 1996; Cutrer, 1994), relação essa que tem por base, a percepção cognitiva, muito nitidamente, a percepção visual. Os Espaços Mentais são um modelo descritivo que tem possibilitado esclarecimentos e generalizações sobre fenômenos da linguagem e do pensamento. A aplicação consistente desse modelo às ocorrências de formas verbais com valores não-canônicos encontradas no corpus levou a resultados significativos referentes à análise desses valores. Foram realizadas diagramações de trechos dos textos selecionados utilizando as noções discursivas de FOCO, PONTO DE VISTA, BASE e EVENTO PRESENTE, PASSADO, FUTURO, PERFECTIVO, IMPERFECTIVO e as categorias tempo-aspectuais de e PROGRESSIVO, do referido modelo (Cutrer, 1994). Segundo Fauconnier (1994), (1997) e Cutrer (1994), parte do que ocorre cognitivamente ligado a qualquer manifestação de discurso pode ser representado por diagramas que se utilizam dessas noções e categorias. As diagramações são compostas por círculos, que são os espaços mentais, propriamente. Esses espaços, por sua vez, estruturam-se a partir de conteúdo lexical dos enunciados que especifica determinadas moldurasIII. Essas molduras são representadas pelos retângulos ao lado dos círculos IV. Nos círculos, aparecem letras, que representam os elementos que preenchem os papéis das molduras. Linhas ligam os espaços e ajudam a revelar as relações entre eles, relações essas que são determinadas pela informação gramatical contida nos enunciados. Assim, as expressões lingüísticas, com seu conteúdo lexical e gramatical, fornecem informação que atua estabelecendo os espaços e seus elementos, estruturando e interconectando esses espaços. Além disso, tempo e aspecto verbal, como informação gramatical, também indicam a movimentação de III Moldura é a tradução adotada nesta pesquisa para o termo frame, do inglês. FOCO no decorrer do discurso. 5 Os parênteses nos diagramas aparecem delimitando uma noção discursiva - (FOCO), por exemplo – indicando exatamente essa movimentação, ou seja, o espaço assim marcado foi FOCO num determinado momento do discurso, mas, a partir da inserção de novo enunciado, FOCO transferiu-se para outro espaço, do discursivo corrente. Dessa forma, o diagrama composto por todos esses elementos tem o potencial de representar o processo dinâmico vivenciado pelos usuários da língua, ao produzir ou interpretar discurso, dentro da concepção de que os valores semânticos se realizam contextualmente, ou seja, da concepção de que, para a construção adequada do significado, é necessário considerar o contexto lingüístico e/ou extra-lingüístico nos quais o enunciado se insere. Segundo Fauconnier (1997:72), as atividades humanas ligadas a pensamento, dentre elas as interações lingüísticas, envolvem configurações de espaços mentais. Quando falamos, à medida que o discurso se desenrola, os espaços vão sendo estruturados, interconectados e a marcação deles vai se alterando para que, atualizadamente, a configuração espelhe qual é a discurso, qual é o PONTO DE VISTA BASE na qual se ancora o assumido pelo falante e qual é o evento que está em FOCO. A informação lingüística, gramatical, é o meio através do qual os participantes da interação são guiados na percepção desse processamento. Assim, nas diagramações contendo qualquer configuração representando discurso, têm-se os seguintes espaços: a) BASE – espaço ao qual o discurso está ancorado; o ponto de partida; b) FOCO – espaço que é o foco de atenção; c) EVENTO – espaço no qual a estrutura do evento ou situação indicada pelo verbo é construída e d) VISTA PONTO DE – espaço a partir do qual outros espaços são acessados ou estruturados; ponto de referência para as categorias tempo-aspectuais. (Cutrer, 1994:22) Cutrer (1994) define cada uma das categorias tempo-aspectuais de FUTURO, PERFEITO, PROGRESSIVO, IMPERFECTIVO e PERFECTIVO PRESENTE, PASSADO, como categorias que servem de elos entre espaços, organizando a distribuição de BASE, FOCO, etc e determinando as relações temporais. Tais categorias, segundo a autora, não são “representações de formas semânticas, nem são categorias gramaticais específicas das línguas.” (Cutrer, 1994:94), mas atuam no nível cognitivo. Essas categorias são mapeáveis a categorias gramaticais das línguas, mas não são lingüísticas nesse sentido. A autora esclarece que as categorias tempo-aspectuais que adota têm por base o estudo trans-lingüístico de Bybee e Dahl (1989), segundo o qual cerca de 80% das línguas analisadas apresentaram seis tipos de marcação, por morfemas gramaticais, de conteúdo tempo-aspectual. A essas seis, a autora acrescenta a categoria de IV PRESENTE, que é, em geral, a forma não marcada nas A estrutura da moldura foi representada, dentro dos retângulos, de uma forma que espelhe mais diretamente a ordenação dos elementos na frase. Assim, ao invés de uma representação como [a b GOSTAR], temos [a GOSTAR b]. 6 línguas. (Cutrer, 1994:94) Ela define, então, cada uma dessas categorias em termos das noções discursivas. Com vistas a analisar valores distintos de formas do Presente do Indicativo, partiu-se da definição de PRESENTE proposta pela autora referida, para a realização das diagramações que são apresentadas, referentes a trechos de discurso contendo os elementos verbais sob investigação, extraídos do corpus. Define-se PRESENTE PONTO DE VISTA; FOCO, que é ele mesmo (ou seu ‘pai’) PONTO DE VISTA/BASE e ainda que tem os eventos e como um espaço que está em que é não-anterior a propriedades nele representados marcados como FATO. Cutrer (1994:89) Nessa abordagem dos Espaços Mentais, o evento PRESENTE não necessariamente coincide com o momento da fala porque essa categoria não representa um ponto no tempo, mas sim um período de tempo que pode ter qualquer extensão. 4. Diagramações e análises realizadas Foram diagramadas ocorrências de Presente com valor canônico, Presente com valor atemporal. A partir dessas diagramações, discutiu-se também o Presente com valor de futuro e Presente com valor imperativo. 4.A. Diagramação discursiva do Presente com valor canônico Considerou-se como expressando o valor canônico do Presente as situações nas quais há coincidência entre momento da fala e momento do evento.V Em termos dos Espaços Mentais, isso significa que as categorias BASE/PONTO DE VISTA (realidade do falante) e EVENTO são coincidentes, ou seja, marcam o mesmo espaço. São exemplos de valor canônico encontrados nos dados: (1) "O Brasil enfrenta atualmente, vários problemas como fome, desemprego, violência e má distribuição de renda"VI (2) "O que está faltando? A educação no Brasil precisa de inúmeras mudanças." VII V Cutrer (1994) define valor canônico através do Presente Simples, Imperfectivo. Redação Nº 000005 IPA03 (que corresponde ao número da redação e ao pacote no qual se encontra). VII Redação Nº 087759 IPA03 VI 7 Sem o advérbio de tempo (“atualmente”), a tendência seria interpretar "enfrenta", em (1), como habitual. Daí a importância de se observar todo o contexto lingüístico da frase e seu contexto discursivo mais amplo. Em termos do modelo adotado, marcadores como os adverbiais ajudam, então, no estabelecimento da relação entre PONTO DE VISTA e EVENTO. O Presente simples com valor canônico é raro no conjunto das ocorrências dos valores expressos por esse tempo verbal. O Presente perifrástico, como na pergunta em (2), é, na verdade, muito mais utilizado para expressão da simultaneidade entre momento do evento e momento da fala. Uma ocorrência de Presente simples com valor canônico é assim diagramada: (3) ... que eu tô na casa de minha tia e tal.VIII a: Eu b: casa de minha tia a ESTAR em b a. b. BASE PONTO DE VISTA FOCO EVENTO 4.B. Diagramação discursiva do Presente com valor atemporal Neste trabalho, considera-se valor atemporal todo valor que outros autores denominam distintamente como valores genérico e habitual. Segundo Cutrer, a distinção entre genérico e habitual se dá da seguinte forma: “Expressões genéricas atribuem uma propriedade a todos os membros de uma classe, ao invés de a um indivíduo específico ou a um grupo de indivíduos. ... Nos espaços genéricos, que representam noções cognitivas idealizadas sobre o mundo, classes de objetos têm propriedades. Os espaços genéricos operam muito como molduras; conhecimento, papeis, informação, etc... contidos no espaço genérico, podem ser importados para o espaço base por qualquer instanciação específica da classe.” (Cutrer, 1994: 143-144) Uma situação envolvendo um valor habitual é uma situação que se refere a um único indivíduo (ou a um grupo de indivíduos) que possui um determinado hábito (propriedade habitual). 8 Assim, essa situação envolve a repetição de um evento através do tempo. Lida-se, nesse modelo, com a expressão habitual da mesma forma com que se lida com a expressão genérica. Nesse sentido, também o espaço habitual pode operar como uma moldura (Cutrer, 1994:146-147). Essa similaridade de ambas as situações justifica a opção por não distinguir habitual e genérico, adotando-se a categoria atemporal. (4) e (5) são exemplos de Presente atemporal encontrados no corpus. Em (4), há ocorrência de sentido genérico e, em (5), de sentido habitual: (4) “o que ele pre o que ele poderia utilizar de GSM ele não utiliza nem um terço... porque esse negócio de mudar chi::p... não/não funciona pro brasileiro... ele é conservador e ele continua usando tecnologia TDMA”IX (5) L1 - éh:: porque eles não têm tempo... eu até observei uma aluna outro dia... (ela) ô Cíntia de que turma você mesmo? uma aluna do quarto perguntando pra uma aluna do segundo... quer dizer... L2 - sim... L1 - eles se encontram nos corredores mas não têm essa oportunidade de fazer uma atividade... né::?...X Segue a diagramação de um trecho de discurso que serve como um modelo para o Presente atemporal: (6) “..., visto que cada um ao longo de sua vida, imerso numa realidade sócio-cultural, singular enfrenta as situações e desafios da vida.” XI a: cada um b: situação e desafios da vida a ENFRENTAR b BASE PONTO DE VISTA .a .b FOCO EVENTO Não anterior à BASE É devido ao fato de o espaço PONTO DE VISTA/BASE não precisar ser necessariamente o espaço EVENTO na representação de PRESENTE, que o tempo verbal Presente pode ter valor genérico ou habitual. Esses valores não são expressão de uma instanciação específica do evento, mas sim, de VIII Narrativa 13 (252) (que corresponde ao número da Narrativa e ao evento na narrativa) Transcrição AV (que corresponde ao diálogo transcrito.) X Transcrição MFA XI Redação 87782 – IPA1 IX 9 uma seqüência de eventos (no caso do valor habitual) ou de uma repetição do evento relativo a todos os indivíduos de uma classe (no caso do valor genérico). No exemplo diagramado, a expressão “ao longo de sua vida” é um construtor de espaços XII, que suscita o estabelecimento de um espaço atemporal. Quando se trata de um valor atemporal, diagrama-se Presente com dois espaços. Há a criação de um espaço a partir da BASE, como se fosse uma extensão dela. Nas palavras de Cutrer, “hábitos no tempo Presente indicam, de alguma forma, que o hábito é parte da presente estrutura do mundo [representada na base], entretanto, uma ocorrência real do evento pode ser passada ou futura em relação ao ‘agora’”. (Cutrer, 1994:152). Como Presente não fala da relação entre PONTO DE VISTA e EVENTO, “uma ocorrência real do evento não coincide necessariamente com o ponto-zero temporal associado com o (Cutrer, 1994:147) PONTO DE VISTA coincidente com EVENTO PONTO DE VISTA.” ocorre somente em relação ao Presente canônico. Essa situação de estabelecimento de um outro espaço além do espaço configuração de PRESENTE BASE para também ocorre quando há um construtor de espaço do tipo geográfico - ou outro (o que estabelece a criação de um espaço geográfico – ou outro), onde fica o EVENTO. Considera-se que este outro espaço “representa uma sub-parte da concepção de realidade representada na BASE.” (Cutrer, 1994:143), como uma extensão dela.XIII Assim, os diagramas que representam estruturas contendo valores atemporais (genéricos ou habituais) respeitam a relação FOCO/PONTO DE VISTA definida para o PRESENTE, a saber, esse espaço ou seu ‘pai’ PONTO DE VISTA e ele está em FOCO. 4.C. Presente com valor semelhante ao de Futuro do Presente 4.C.1. Forma simples Seguem exemplos de utilização do Presente com valor semelhante ao de Futuro do Presente: XII Construtor de espaço é um termo que integra o Modelo dos Espaços Mentais. Um construtor de espaço é um elemento da cadeia lingüística (no caso de linguagem) que suscita a criação de um novo espaço ou a ativação de um espaço já criado no contexto do discurso. XIII Cutrer afirma que não é necessário postular a natureza aspectual para explicar o Presente genérico ou habitual: “nenhum processo imperfectivo de ordem superior precisa ser postulado” (Cutrer, 1994:152). A categoria aspectual IMPERFECTIVO é caracterizada pela autora através da coincidência de FOCO e PONTO DE VISTA. Em nossa diagramação, no entanto, uma vez que os espaços habitual e genérico (atemporais) são estruturados por molduras que também integram a estrutura do mundo representado na BASE/PONTO DE VISTA, esses valores podem, como o valor canônico, ser interpretados como imperfectivos. 10 (7) “eh::... para não haver nenhum tipo de PERda pode programar a exibição éh:: trocada... quer dizer... na segunda passa um filme um... e filme dois... pras turmas e depois inverte...” XIV (8) “então a gente já poderia comeÇAR... eu tinha pensado até conversei com a Cássia e o Eliezer... há pouco... e vê como que a gente podia articular isso aí ... já fazer as reservas dos televisores... e a gente começa trabalhar... essa semana...”XV Em (7) a forma “passa”, no contexto do enunciado, projeta para uma situação futura, assim como, em (8), a forma de Presente do auxiliar da perífrase aspectual “começa trabalhar” tem valor futuro. O tempo verbal Presente admite a interpretação futura, pois, na representação discursiva nos moldes dos Espaços Mentais, o espaço construído com o conteúdo da estrutura com valor futuro apresenta especificação temporal coincidente com especificação para o PRESENTE. Explicando, a única indicação temporal existente, tanto para a categoria tempo-aspectual PRESENTE, quanto para a expressão com valor futuro, o espaço que representa o evento é Não anterior à BASE à qual esse evento está ancoradoXVI. Lembrando que, nesta abordagem, os espaços PRESENTE, PASSADO ou FUTURO não representam um ponto no tempo, mas sim um período de tempo e, relativamente ao PRESENTE, BASE, a única exigência é que esse período de tempo seja Não anterior à situações posteriores ao agora podem ser marcadas por PRESENTE. (Cutrer, 1994:157). Diferentemente do presente atemporal, em que a ocorrência real do evento pode ser passada ou futura, neste caso a ocorrência é necessariamente futura. Encontram-se, ainda, como parte desse arsenal teórico, as noções marcação de um evento como FATO/PROGNÓSTICO distingue o FATO FUTURO e PROGNÓSTICO. “A das outras categorias de tempo e reflete um modelo cognitivo de mundo básico no qual o passado e o presente (em tempo real) [marcados como PROGNÓSTICO] FATO] são fixos e imutáveis, mas o futuro (em tempo real) [marcado como não o é.” (Cutrer, 1994:156) O falante ter escolhido, nos casos diagramados acima, expressar um evento futuro através de uma forma PRESENTE significa que ele concebe esse evento como FATO, antevendo sua ocorrência. Isto é, o falante concebe esse evento com uma maior possibilidade efetiva de realização. Uma diagramação desse valor também respeitaria a relação para o PRESENTE, 4.C.2. Forma Perifrástica XV Transcrição MFA Transcrição MFA definida o que não gera uma incompatibilidade no nível cognitivo, da conceptualização, entre essa situação e o valor canônico do Presente.. XIV FOCO/PONTO DE VISTA 11 As formas perifrásticas de Futuro são reconhecidas por gramáticos como um emprego relativo à língua falada. Cunha e Cintra (2001:461) reconhecem a perífrase construída com o verbo “ir” no Presente do Indicativo como referente a uma “ação futura mais imediata”. No âmbito desta pesquisa, observou-se que, muitas vezes, essa perífrase não expressa valor aspectual inceptivo, ou seja, de início de ação ou ação mais imediata. Trata-se simplesmente da expressão de ação futura. Essa ação futura, como foi discutido relativamente à forma simples, é marcada como portanto, é também FATO. PRESENTE, Tem-se, então, que também essa forma perifrástica expressa um valor futuro simultaneamente à expressão de uma maior possibilidade efetiva de realização. Isso significa uma opção assumida pelo falante de utilizar uma perífrase com verbo auxiliar no Presente, para a expressão de um evento de conteúdo futuro. Seguem dois exemplos da forma perifrástica com o verbo ‘ir’ no Presente do Indicativo, com valor futuro. (10) “O sucesso de cada pessoa vai depender do esforço que ela vai fazer. Seu for fazer minhas coisas bem feitas, dar o melhor de mim, tudo vai dar certo, se na minha frente haver muitos obstáculos, posso passar com um pouco de dificuldade mas eu vou conseguir se quiser.”XVII (11) “Ah, que que eu vô - que que eu vô fala”, né? XVIII Novamente, pode-se argumentar que tal expressão é possível, pois a indicação temporal existente para a categoria tempo-aspectual PRESENTE é condizente com a expressão com valor futuro através desse tipo de perífrase, ou seja, o espaço que representa o evento é Não anterior à BASE à qual está ancorado. 4.D. Presente com valor semelhante ao do Imperativo Cunha e Cintra (2001:450) reconhecem o Presente com valor imperativo como uma “forma delicada de linguagem, e denota intimidade entre pessoas.” Também comenta a respeito do emprego do verbo “querer” seguido do infinitivo do verbo principal para atenuar a rudeza do tom imperativo. Alguns de seus exemplos são: Você me resolve isto amanhã; Quer sentar-se, minha senhora?... (C. Castelo Branco, CC, 198); Quer me dar minha carteira? (C. Drummond de Andrade, OC, 921). XVI De forma semelhante, Luft (1987) reconhece que o Presente é definido como não-passado. Redação Nº 025517 - GB09 XVIII Narrativa 13 (173) XVII 12 4.D.1. Forma simples Seguem dois exemplos, encontrados no corpus, de Presente com valor imperativo: (12) Então ês falô assim “Ah, cê é bom de leitura, leia- lê aqui pra nós.” Né? Ele pegô o jornal, pegô o jornal de cabeça pra baixo, né? XIX (13) Eu desci correndo as escadas e ele meteu a mão no bolso e me tirou um livrinho e me deu. “Toma esse livrinho para você aprender”XX Como foi dito em relação à interpretação futura do tempo verbal Presente, a construção do espaço com interpretação imperativa também apresenta especificação temporal coincidente com aquela especificação para o PRESENTE (Não anterior à BASE, representando um período de tempo de qualquer extensão). Neste caso, também, o falante escolheu expressar o evento imperativo através de uma forma PRESENTE, o que significa que concebe esse evento como FATO, ou seja, com uma maior possibilidade efetiva de realização. Na distinção dos valores imperativo e futuro das formas de Presente é imprescindível levar em conta a entonação do enunciado e seu contexto lingüístico. Isso corrobora o que dizem Cunha e Cintra (2001:449) a respeito do Presente com futuro: um “caso em que, para impedir qualquer ambigüidade, se faz acompanhar geralmente de um adjunto adverbial”. 4.D.2. Forma Perifrástica A mesma forma perifrástica que tem valor temporal futuro (“ir” no Presente do Indicativo + V Infinitivo) apresenta, em alguns contextos, um valor modal imperativo. A situação, nesses casos, permanece a mesma: PONTO DE VISTA não coincidente com EVENTO. Seguem exemplos de Presente na forma perifrástica, com valor de Imperativo: (14) L1 - nossa senhora essa foto sua C. ... vô mandar ampliar essa... L2 – é... essa ficou boa né?... L1 – eu adorei essa... nossa e a cerveja heim? a cerveja tão gostosa... cerveja alemã... com foundee tava ótimo... L1 – vai acabando de ver aí que eu vou ligar a Internet tá? L2 – tá... L1 – pode? XIX XX Narrativa 12 (11-15) Narrativa 10 (30-35) 13 L2 – pode... lógico... MÃE... L3 – oi... L2 – vem cá pro cê ver as fotos da viagem... L1 – vô só olhando a Internet aqui ocês vão vendo dona L. ...XXI (15) Era aqueles prato de- leve. /UNHUM/ né? “Agora cê vai procurá o prato.” XXII 5. Conclusão Adotou-se o quadro teórico amplo da Lingüística Cognitiva para a análise dos valores verbais não canônicos desta pesquisa; mais especificamente, adotou-se o Modelo dos Espaços Mentais. Este modelo prestou-se de imediato à investigação da motivação cognitiva para a existência de valores semânticos diferenciados ligados a uma mesma forma verbal uma vez que as diagramações realizadas de acordo com os princípios e ferramentas teóricas do modelo representam a forma como os falantes conceptualizam as situações. Concentrou-se, na etapa da pesquisa aqui relatada, na investigação de valores expressos por formas do Presente do Indicativo, especificamente os valores atemporal, valor futuro e valor imperativo. A aplicação desse modelo aos dados extraídos do corpus utilizado na pesquisa proveu, como hipotetizado, uma explicação de caráter cognitivo para utilização de um mesmo tempo verbal com valores diversos. Em todos os casos de Presente investigados e relatados, o falante conceptualiza a situação com a relação FOCO/PONTO DE VISTA correspondente àquela que define PRESENTE. Mantendo-se essa relação, é possível a expressão de valores variados através dessa forma verbal. Isso significa, então, que, no nível cognitivo, da conceptualização da situação expressa pelo tempo verbal, não há uma restrição ou um impedimento que barre a utilização verbal desse tempo com esses valores nãocanônicos. Esta pesquisa, então, reforça o postulado da Lingüística Cognitiva, em geral, e do Modelo dos Espaços Mentais, em particular, em relação à vinculação da utilização da linguagem ao aparato cognitivo humano geral, ou seja, o postulado de que, na utilização da linguagem, o ser humano lança mão de recursos psicológicos e cognitivos mais gerais, que atuam em vários aspectos sua interação com o mundo. Na determinação dos valores apresentados pelas formas de Presente, foi importante a consideração do contexto lingüístico e pragmático-discursivo e de padrões entoacionais, o que reforça a importância de se realizar pesquisas sob a perspectiva do uso lingüístico. XXI XXII MATTA_03 (p 2) Narrativa 4 (28-29) 14 Os resultados aqui alcançados abrem caminho para maiores investigações de formas verbais com valores não-canônicos e da motivação cognitiva para a utilização delas. 5. Referências Bibliográficas: BACK, A. C. P. "A expressão verbal a serviço do efeito de sentido metafórico". 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