A CIÊNCIA MEDIEVAL

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A CIÊNCIA MEDIEVAL1
1. A filosofia medieval
Com a queda do Império Romano (séc. V), a religião surge lentamente como elemento
agregador dos inúmeros reinos bárbaros formados após sucessivas invasões; seus chefes são
pouco a pouco convertidos ao cristianismo, e a Igreja se transforma em soberana absoluta da vida
espiritual do mundo ocidental.
A cultura greco-romana quase desaparece nos períodos mais turbulentos da implantação
do mundo feudal de produção, mas permanece latente, guardada nos mosteiros. São os monges
os únicos letrados em um mundo onde nem os servos nem os nobres sabem ler.
No entanto, não devemos considerar todo o período medieval (sécs. V a XV, portanto mil anos)
como sendo de obscuridade. Em vários momentos, há expressões diversas de produção cultural
às vezes tão heterogênea que se torna difícil reduzir o período àquilo que se poderia chamar
pensamento medieval. Uma constante se faz notar no pano de fundo desse pensamento: a
tentativa de conciliar a razão e a fé. A temática religiosa predomina na preocupação apologética,
isto é, na defesa da fé cristã e no trabalho de conversão dos não-cristãos. A máxima
predominante é “Crer para compreender, e compreender para crer”. A filosofia, embora se
distinguindo da teologia, é instrumento desta, é serva da teologia.
Apesar do risco de simplificação, dividimos a Idade Média em duas tendências
fundamentais: a filosofia patrística e a escolástica.
A filosofia patrística
A filosofia patrística inicia-se ainda no período decadente do Império Romano, no séc. III.
Essa filosofia auxilia a exposição racional da doutrina religiosa e se acha contida nos trabalhos
dos chamados Padres da Igreja, cujas principais preocupações são as relações entre fé e ciência,
a natureza de Deus e da alma e a vida moral.
A retomada da filosofia platônica, baseada na predileção pelo supra-sensível, contribui
para a fundamentação da necessidade de uma ética rigorosa, da abdicação do mundo, do
controle racional das paixões.
Alguns dos representantes da patrística foram Clemente de Alexandria, Orígenes e
Tertuliano. Mas a principal figura é Santo Agostinho (354-430), bispo de Hipona. Seguindo a
tradição platônica, que via sempre o Perfeito por trás de todo imperfeito e a Verdade absoluta por
trás de todas as verdades particulares, também Santo Agostinho pensa numa iluminação pela
qual a verdade é infundida no espírito humano por Deus.
A escolástica
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ARANHA, Maria Lúcia de Arruda, MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando. Introdução à Filosofia. São
Paulo: Moderna, 2001, cap. 13, pp. 142-146.
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A escolástica é a especulação filosófico-teológica que se desenvolve do séc. IX até o
Renascimento. Tem esse nome por ter sido dominante nas escolas que começaram a surgir
durante o Renascimento carolíngio.
Carlos Magno (séc. VIII), preocupado em incrementar a cultura, funda as escolas monacais
e catedrais (junto aos mosteiros e igrejas), contratando diversos sábios, como o inglês Alcuíno. O
ensino aí desenvolvido baseia-se sobretudo no trivium (gramática, retórica e dialética) e no
quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia).
A partir do séc. XI surgem as universidades (de Paris, Bologna, Oxford etc.), que,
espalhadas por toda a Europa, tornam-se locais de fecunda reflexão filosófica.
Já no séc. XII, aparecem traduções de obras de Arquimedes, Hero de Alexandria,
Euclides, Aristóteles e Ptolomeu. Muitas vezes o pensamento desses autores chegava deformado
à Europa, pois era traduzido do grego para o sírio, do sírio para o árabe, do árabe para o hebraico
e do hebraico para o latim medieval. Por isso, a Igreja condenou de início o pensamento
aristotélico, que na tradução árabe adquirira contornos panteístas.
Consultando a tradução feita diretamente do grego, Santo Tomás de Aquino recuperou o
pensamento original de Aristóteles. Mais que isso, fez as devidas adaptações à visão cristã e
escreveu uma obra monumental, a Suma teológica, onde, uma vez mais, as questões de fé são
abordadas pela “luz da razão” e a filosofia é o instrumento que auxilia o trabalho da teologia. É
com um Aristóteles cristianizado que surge então a filosofia aristotélico-tomista.
2. A ciência medieval
Pelo que podemos ver, a tradição grega, retomada na Idade Média, valoriza o
conhecimento teórico em detrimento das atividades práticas. Isso continua sendo possível porque
o modo de produção feudal, assentado no trabalho do servo da gleba, também despreza a
atividade manual, ao mesmo tempo que valoriza o nobre guerreiro, para o qual o ócio decorre de
seus privilégios.
Nesse panorama, a ciência continua voltada para a discussão racional e desligada da
técnica e da pesquisa empírica. Os instrumentos de trabalho são rudimentares: para conhecer os
corpos só se tem os olhos; para avaliar o frio e o quente, só se tem a pele.
Sabemos que geralmente as leis científicas necessitam de uma medida de tempo. Ora, até
o séc. XVI os relógios eram raros, e o próprio Galileu, já no séc. XVII, usou uma clepsidra (relógio
d’água) para medir o tempo que um corpo leva para descer no plano inclinado. Isso sem falar nas
unidades de medida. Mersenne, outro filósofo do séc. XVII, curiosamente, juntou o desenho do pé
do rei a um de seus livros sobre o assunto: esse desenho serviu como medida nas suas
experiências.
Se a ciência medieval não é experimental, tampouco se utiliza da matemática, o que
ocorrerá apenas na Idade Moderna. Por isso, a ciência permanece qualitativa, como na
Antigüidade, mesmo porque os recursos disponíveis da matemática ainda são incipientes para se
proceder à matematização. Por exemplo, alguns representantes da Escola de Oxford tentaram
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definir o conceito de velocidade, o que não foi possível devido à inexistência do cálculo
infinitesimal.
Aliás, as dificuldades existem inclusive no nível mais simples, por ex., o da notação dos
números. Embora conhecidos desde o séc. X, o uso dos algarismos arábicos não se acha
generalizado até o Renascimento, de modo que continuava sendo costume o recurso aos
algarismos romanos. Isso dificultava os cálculos, o que pode ser observado, por exemplo, na
divisão de MDCXXXII por IV, impossível de ser resolvida sem o auxílio do ábaco, uma prancheta
provida de bolas que existe até hoje.
Qual o lugar da ciência no mundo medieval?
Pelo que pudemos observar até aqui, há relutância ou impossibilidade em incorporar as
tentativas de experimentação e matematização das ciências da natureza. A preocupação com a
vida depois da morte faz prevalecer o interesse pelas discussões religiosas. Mesmo quando se
pede ajuda à razão filosofante, é ainda a revelação que surge como critério último da verdade na
produção do conhecimento.
A retomada do pensamento aristotélico traz de novo a física qualitativa e a astronomia
geocêntrica. As explicações de Aristóteles são completadas com o modelo de Ptolomeu (séc. II),
cuja obra famosa, Almagesto, torna-se a última palavra em astronomia até Copérnico, no séc.
XVI.
“Essa visão do universo em duas regiões, uma inferior, outra superior, uma sujeita à
mudança, outra não, iria tornar-se outra doutrina básica da filosofia e cosmologia medievais.
Oferecia uma segurança serena, cósmica, a um mundo amedrontado, afirmando a sua essencial
estabilidade e permanência, mas sem ir ao ponto de pretender que todas as mudanças fossem
meras ilusões, sem negar a realidade do crescimento e do declínio, da geração e da destruição.2
O modelo da astronomia medieval reproduz o desejo de permanência de uma ordem
estabelecida e hierarquizada. A hierarquia existe na superioridade dos Céus sobre a Terra, em
cujo centro se encontra o Inferno; também na própria estrutura da Igreja, constituída pelo papa,
cardeais, bispos etc. Da mesma forma, reproduz a divisão da sociedade em reis, suseranos,
vassalos e servos.
3. Exceções à tradição medieval
Apesar da predominância das questões religiosas que afastam os filósofos das discussões
referentes à natureza, são muitas as exceções a indicar pontos de ruptura que preparam de certa
forma a crise do modelo científico da tradição grega. Esse processo pode ser entendido a partir do
aparecimento das cidades e da expansão do comércio: a economia capitalista emergente
necessitará de um outro saber, mais prático e menos contemplativo.
2
A. Koestler, Os sonâmbulos, p. 32.
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É importante o papel desempenhado pelos franciscanos3, o trabalho dos alquimistas e a
mentalidade árabe.
Roger Bacon
Roger Bacon (séc. XIII), padre franciscano que pertencia à escola de Oxford, foi
perseguido em várias ocasiões devido às idéias pouco enquadradas no mundo escolástico. Além
de procurar aplicar o método matemático à ciência da natureza, fez diversas tentativas para tornála experimental, sobretudo no campo da óptica. Apesar de argumentar que “ver com seus próprios
olhos” não é incompatível com a fé, não conseguiu demover os medievais da desconfiança gerada
por qualquer tipo de experimentação.
A alquimia
A alquimia foi uma atividade prática em voga no séc. XIII e teve importância muito grande
na descoberta de novas substâncias químicas, como o processo para a extração de mercúrio, as
fórmulas p/ preparar vidro e esmalte, bem como o desenvolvimento de noções sobre ácidos e
seus derivados.
O saber oficial desdenhava essa atividade, por demais vinculada às práticas manuais.
Além disso, as técnicas descobertas eram com freqüência guardadas em segredo, e os
documentos, de difícil leitura, criavam uma série de superstições e uma aura mística que
prejudicavam a avaliação objetiva das reais descobertas da química nascente. A Igreja
denunciava o caráter herético de tais práticas, finalmente proibidas por bula papal em 1317. A
Inquisição controlava os infratores com freqüentes perseguições, muitas vezes com a condenação
à fogueira sob acusação de bruxaria.
Não se pode negar a importância da alquimia no desenvolvimento das técnicas de
laboratório, mas suas explicações teóricas eram antropomórficas, no sentido de que as
substâncias inorgânicas eram vistas como seres vivos, compostos de corpo e alma. Como se
acreditava que as características e propriedades de uma substância eram determinadas por seu
espírito, havia a crença na transmutação, ou transferência do espírito de um metal nobre para a
matéria de metais comuns. Surge, então, a ilusão da procura da “pedra filosofal” – com a qual
qualquer substância poderia ser transformada em ouro – ou ainda a busca do “elixir da longa
vida”.
Os árabes
Outra exceção na tradição científica medieval é a contribuição dos árabes que, no seu
movimento expansionista, conhecem a cultura grega e iniciam sua divulgação por meio de
traduções e da criação de centros de estudos. Pensadores fecundos como Al Kindi, Alfarabi,
Avicena e Averrois transmitem os conhecimentos dos antigos no campo das ciências em geral.
São os introdutores, no Ocidente, dos algarismos arábicos e os criadores da álgebra. Na alquimia,
pela sistematização dos fatos observados durante gerações e em trabalhos efetuados em
3
Ler a esse respeito o interessante romance de Umberto Eco, O Nome da Rosa, centrado nas contradições
do período. (Aproveitando a indicação das autoras, sugiro que o mesmo título seja visto em vídeo)
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laboratório, aceleram a passagem do ocultismo para o estudo racional. Na astronomia,
aperfeiçoam os métodos trigonométricos para o cálculo das órbitas dos planetas, chegando a
introduzir o conceito de seno. Na medicina, transmitem as obras de Hipócrates e Galeno, além de
organizarem um trabalho original de sistematização.
4. A decadência da escolástica
Do séc. XIV em diante, a escolástica sofre um processo de autoritarismo de nefastas
influências no pensamento filosófico e científico. Posturas dogmáticas, contrárias à reflexão,
obstruem as pesquisas e a livre investigação. O princípio da autoridade, ou seja, a aceitação cega
das afirmações contidas nos textos bíblicos e nos livros dos grandes pensadores, sobretudo
Aristóteles, impede qualquer inovação. É a obscura fase do magister dixit, “o mestre disse”...
O rigor do controle da Igreja se faz sentir nos julgamentos feitos pelo Santo Ofício
(Inquisição), órgão que examinava o caráter herético ou não das doutrinas. Conforme o caso, as
obras eram colocadas no Index, lista das obras proibidas. Se a leitura fosse permitida, a obra
recebia a chancela Nihil obstat (nada obsta), podendo ser divulgada. Quando consideravam o
caso muito grave, o próprio autor era julgado.
Foi trágico o desfecho do processo contra Giordano Bruno (séc. XVI), acusado de
panteísmo e queimado vivo por ter defendido com exaltação poética a doutrina da infinitude do
universo e por concebê-lo não como um sistema rígido de seres, articulados em uma ordem dada
desde a eternidade, mas como um conjunto que se transforma continuamente. Foi talvez a
lembrança ainda recente desse acontecimento que tenha levado Galileu a abjurar, temendo o
mesmo destino de Bruno.
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