30º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS De 24 a 28 de outubro de 2006 - Caxambu/MG Grupo Temático: Relações Raciais e etnicidade Autor: Fabricio dos Santos Mota Título do trabalho: MEMÓRIA MUSICAL, ETNICIDADE E REGGAE: Identidades negras mediadas pela música na Bahia contemporânea Salvador - Bahia, setembro de 2006 1 MEMÓRIA MUSICAL, ETNICIDADE E REGGAE: Identidades negras mediadas pela música na Bahia contemporânea Fabricio dos Santos Mota As idéias apresentadas neste texto são fruto de uma pesquisa em andamento do Curso de Mestrado do POSAFRO - Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia(UFBA). Desse modo, não serão apresentados resultados ou conclusões, tampouco um ensaio mais rebuscado. A intenção é apresentar basicamente alguns conteúdos, problemas e objetivos elencados no projeto que serve de base à investigação bem como tecer algumas conexões com os autores que tem servido de referência às atividades em curso. Este trabalho tem como objeto de estudo as práticas musicais urbanas da expressão musical Reggae na Bahia e sua identificação com múltiplas concepções de identidade negra. Pretende-se investigar a produção fonográfica do estilo Reggae na Bahia e seus laços com o processo de construção e legitimação de sentidos identitários de negritude e anti-racismo em interação com outros movimentos políticos e culturais. Visto aqui como uma das principais tradições inventadas de expressão musical dos negros na Diáspora, no contexto contemporâneo (Hall:2003; Gilroy:1995), constitui-se em um dos elos da polifônica cadeia de musicalidades insurgidas como contracultura no “Atlântico Negro”. Será focalizada a produção discográfica e os depoimentos orais de músicos de Reggae no contexto das cidades de Cachoeira, Feira de Santana e Salvador que são os principais nichos da contracultura Rasta-Reggae na Bahia e de onde surgiu grande parte das influências e artistas que definiram singularmente o estilo neste estado. A opção pela análise cronológica das fontes das últimas décadas do século XX -anos 80/90 até meados de 2003 - justifica-se por ser este o momento de afinidade e afirmação deste estilo no universo da música e Cultura Rasta-Reggae: a vida e morte do cantor e compositor jamaicano Robert Nesta Marley (1945-1981) impactou, decisivamente no calendário dos eventos do Movimento Negro baiano, e dos blocos afro; as décadas de 80/90 presenciaram a ascensão e êxtase do estilo entre grande parcela dos jovens das periferias aos bairros da classe dominante; os festivos carnavalescos dos 2 anos de 1997 e 1998 assistiram um novo capítulo das lutas negras na Bahia revestidas em um novo movimento musical cristalizado. INTRODUÇÃO “A história e prática da música negra apontam para outras possibilidades e geram outros modelos plausíveis(...) utilizo a analogia da música porque você pode viajar pelo mundo inteiro e ela ainda é negra” (Paul Gilroy) “...nessa dimensão mundializadora, na qual a música da Diáspora negra, desponta como referência crucial, não existe o centro nem as periferias e, sim um espaço sem fronteiras. (...) o Reggae estaria originalmente na Jamaica, e simultaneamente no Brasil e em todo lugar do mundo marcado pela disseminação pop-elétrica musical” (Antônio Jorge Godi) “Estes repertórios de práticas, são aqui entendidos como novas formas de organização e intervenção social, política e cultural dos grupos negros, gerando novos paradigmas de identificação e visibilidade das populações negras urbanas, num processo onde as práticas em torno da música são transpassadas pelas lutas sociais e políticas.” (“Salloma” Salomão da Silva) A cultura musical Rasta-Reggae1 é um fenômeno de “presença recente” no Brasil que passou a integrar as vozes negras de protesto. Urdido nas favelas urbanas da Jamaica, a partir dos anos 60, este estilo navegou o Atlântico e atracou nos guetos das sociedades industriais que vivenciavam as transformações do capitalismo contemporâneo (Davis&Simon:1983; White:1999). O impacto destas freqüências musicais deságuam na Bahia das últimas décadas do século XX, compondo a cena plural dos movimentos políticos e culturais em consonância com o posicionamento das militâncias negras urbanas. Repertório das lutas contra a exclusão e a invisibilidade social, as ondas de Kingston - capital jamaicana - reassumem novos caminhos, sonoridades, e referenciais de etnicidade, constituindo um resultado singular de afirmação dessa cultura conectiva que atraiu diferentes grupos “nacionais” e foi 1 Esta definição foi tomada de empréstimo de Antonio Jorge Godi (1997) 3 responsável por revisitar uma visão de mundo intercontinental, representando, logo, um exemplo genuíno de “estilo étnico de status global” (Cf. Gilroy: 1995). Tornou-se imprescindível à compreensão da ressonância nacional e mundial da música Reggae - uma das mais emblemáticas expressões da música negra na Diáspora - investigar sua existência idiossincrática na Bahia. As práticas Musicais, e em destaque o Reggae, no universo baiano incorporam outros aspectos locais que compõem nosso objeto de estudo. Uma nova cena sociocultural e política se montava dentro e fora do Brasil, configurada, entre outros elementos: pelo esgotamento do Regime totalitário-militar brasileiro; pelo impacto das lutas civis pela “ descolonização das mentes e dos povos da Diáspora Negra”, incluindo os movimentos nacionalistas insurgentes no continente africanos prol libertação do domínio europeu (Hall:2003); pela ascensão das ações do Movimento black-power norte-americano, cujos ecos ressoaram no Brasil pelas ondas da mídia televisiva e escrita, cujas imagens “uma vez, ressignificadas foram transformadas em símbolos e sinais de identificação dos jovens afrobrasileiros”; pela fundação dos blocos afros propondo uma nova política cultural à sociedade brasileira (SILVA, Salomão:2000, p. 54; RISÉRIO: 1981;). Além disso, a emergência de novos problemas e propostas pautadas na inclusão social incorporando estratégias de mobilização e reivindicação, inclusive buscando a afirmação do grupo étnico, marcaram definitivamente a história recente deste país.2 A história de luta dos blocos Afro e mais particularmente a fundação de diversas entidades carnavalescas a partir dos anos 70(como o Ilê Aiyê em 1974), reiteram as pautas das populações negras explicitando as desigualdades raciais da sociedade baiana. Nos anos 80 e 90 contínuas movimentações de artistas negros que dedicaram suas temáticas e atividades (Música, Dança, Teatro, Artes Plásticas...) ao resgate do passado ancestral de matrizes africanas, à luta contra a invisibilidade social, à afirmação de seu grupo étnico. A música, como parte destas manifestações portanto, constituiu-se num veículo eminente de luta, visibilidade e ascensão de negros e negras redimensionando os sentidos 2 Nesse contexto nasce em meados de 1978 o Movimento Negro Unificado (MNU), entidade institucional que pauta medidas reparativas para o povo negro e o fim das históricas desigualdades raciais 4 de pertencimento do “ser Negro” em Salvador e outras cidades baianas. É indispensável analisarmos os acontecimentos últimos anos da Era dos Extremos, como sugere o historiador britânico E. J. Hobsbawn(1995), levando em conta a relevância e múltiplas contribuições das populações negras às lutas pela cidadania e igualdade, pela inclusão social e contra o racismo no Brasil. Em outras palavras, os anos 80 parecem menos uma “década perdida”3 se vistos à luz dos movimentos políticos e culturais da população negra. Ao localizarmos as práticas musicais do mundo negro urbano no universo da contracultura contemporânea contribuímos para fortalecer outro parâmetro de análise dos movimentos sociais e seus desdobramentos nas últimas décadas do século XX aproximando-se da dimensão concreta da experiência de novos sujeitos sociais, novas estratégias de mobilização e intervenção na vida pública. Neste terreno a musicalidade perpassou(a) por diversos conflitos da cena urbana na Bahia pontuando as lutas contra o racismo e outras desigualdades sociais e estando presente como discurso e estética de movimentos sociais negros, ligados à música ou à pauta dos embates classistas e trabalhistas4. Portanto, a pesquisa que orienta as linhas deste trabalho pretende problematizar, à luz da pesquisa científica, o processo de legitimação da população negra, através da música tomando como referência os movimentos político-culturais negros na diáspora. O estudo contemporâneo das manifestações e práticas musicais – ou mesmo uma simples audição deste vasto material – enunciam que estas marcas sonoras cicatrizaram-se no plano sociocultural baiano formalizando-se tardiamente através do registro fonográfico. Portanto, investigando os discursos presentes nos discos de Reggae(ou afins), buscamos compreender quais propostas/alternativas tem sido apresentadas, ao lado dos muitos argumentos apelativos à afirmação identitária e à denúncia das segregações na sociedade baiana, inclusa nas estruturas da chamada “Babilônia”5 capitalista, enfim 3 sobre esse conceito Ver, GOHN, M. da Gloria. Movimentos sociais e educação. São Paulo, Cortez, 1994 4 Nos anos 80 e 90 diversas passeatas ou atividades de caráter público tomaram o Reggae como trilha sonora. Esteve, por outro lado, na pauta do cenário Reggae a interlocução com muitos destes movimentos sociais. 5 Como bem definiu Godi, a Babilônia é o termo usado pelos Rastas para se referir ao território transnacional do capitalismo contemporâneo (2001; nota de Rodapé) 5 desnudando as demarcações do racismo e desconstruindo o espectro da marginalidade a partir de uma práxis pacifista. Esta é uma proposta de trabalho motivada pelo diálogo interdisciplinar entre abordagens da História, Antropologia e outras áreas das Ciências Sociais, campos de estudo que tornam plenamente possíveis as reflexões e pretensões ora apresentadas. As orientações teórico-metodológicas, portanto, não constituem um posicionamento conclusivo deste estudo à revelia das fontes, ou seja, os caminhos da pesquisa estão se concretizando a partir da interlocução com os sujeitos envolvidos nesse cenário musical investigado e do contato constante como universo das fontes. Em suma, esta atividade está em consonância com os debates e as ações sociais que historicamente visam a inclusão das populações negras no direito à cidadania plena , seja pelo acesso à educação, seja pela ampliação de suas/nossas artes nos espaços públicos e privados, como o Carnaval de Salvador, a Micareta de cidades como Feira de Santana, a mídia radiofônica, televisiva e escrita, além de contribuir para ampliar os estudos sobre as práticas musicais negras associadas a estes “atores sociais”. Além disso, a existência de importantes estudos sobre música na Bahia – a exemplo da valiosa publicação de 1997 do projeto S.A.M.BA6 - aponta à necessidade de outras produções que abordem com este universo temático trazendo novas contribuições que relacionem música, identidade negra e cultura enquanto categorias dinâmicas e não-essenciais. Neste sentido tem sido pertinente, estudar as ‘sonoridades’ da vida cultural na Diáspora negra dialogando e problematizando a noção de Atlântico Negro (Gilroy, 1995) e suas reflexões sobre o repertório das práticas musicais no âmbito das “tradições populares” negras, como o faremos mais à frente. CONSIDERAÇÕES SOBRE TEORIA E MÉTODOS O silêncio em torno da presença negra nos processos políticos e culturais da sociedade brasileira vem ao longo dos anos sendo preenchido por uma crescente produção de diversos autores(as) - um sinal de engajamento 6 SANSONE/TELES: 1997. Obra citada. 6 com as lutas das populações oprimidas, dentre elas negros e indígenas - que contrapõem-se aos frios marcos da historiografia nacional e positivista. O músico, luthier e historiador “Salloma” (Silva, 2000) trata em seu trabalho A polifonia do protesto Negro: Movimentos culturais e musicalidades negras urbanas das estratégias adotadas pelas populações negras urbanas para a superação da invisibilidade de suas demandas históricas, utilizando a música como veículo de protesto. Sugere um concepção de estudo dos movimentos sociais identificando o fenômeno singular configurado pelas práticas culturais negras, a partir das canções gravadas entre os anos 70 e 80 nos espaços urbanos de Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro, e destaca outros parâmetros de análise para o processo político de democratização do país. Artistas da música, outrora silenciados, tem seu olhar sobre o mundo respeitados e seus cantos de protesto audíveis pelo autor, como ilustra a vasta produção discográfica pesquisada. A afinação entre nosso projeto e essa obra localiza-se, ainda, na valorização do papel desempenhado pelos sujeitos que compõem o “repertório das práticas musicais”, a que chamamos de musicalidade, possibilitando uma compreensão mais ampla deste fenômeno, suas redes de sociabilidade, seus laços de etnicidade. A partir deste trabalho, e de suas lacunas no que diz respeito à análise dos discos de Reggae, muitas reflexões de cunho teórico-metodológicos puderam ser articuladas tematizando a música Reggae como forma emblemática de protesto negro na contemporaneidade. Os comentários de Salomão Silva sobre a trajetória desta expressão musical e sua importância enfatizam a relevância do Pan-africanismo, na versão do intelectual jamaicano Marcus Garvey, à construção do Reggae como movimento político, filosófico e musical que, mais adiante, se constituiria no cântico-base do rastafarianismo.7 A dimensão transcontinental da cultura Rasta-Reggae confirma ser a música Reggae um vivo exemplo de articulação com outras sonoridades do protesto negro contemporâneo como assinalam alguns escritores e pesquisadores (Gilroy:2001;Godi:1997, 1998, 2001; Hall:2003; Silva:1995; Silva:2000). Em outras palavras, o discurso estético-musical do Reggae 7 Filosofia de vida dos “ Rastas” “reconhecidos visualmente pelas longas tranças, mediante a interpretação bíblica, pregam o amor à natureza, combatem ao consumo de álcool, adotam a ganja ( maconha) como elemento de meditação e transcendência, para se entrar em contato com Jah, o deus único” (Silva:1998, pp. 85-86) ver mais, Constant:1982, White:1999 7 registrado nas canções dos álbuns, afastam qualquer impressão de que esta seja uma música pura!8 Trata-se, na verdade, de uma “mixagem” que incorpora elementos do Rock, Rythm N’ Blues, e é incorporado na cena musical destes outros estilos de matrizes negras (Cardoso:1997; White:1999; Davis & Simon: 1983). Seus traços de identidade e etnicidade afirmam-se a partir de suas singularidades e não de uma expressão homogênea. O trabalho produzido por Carlos Benedito Silva - intitulado Da Terra das primaveras à ilha do amor: Reggae, lazer e identidade cultural - é bastante relevante uma vez que buscou traçar um panorama da presença Reggae no Maranhão capturando, a partir da observação do espaço público e dos depoimentos orais nas “festas de Reggae” de São Luís-Ma reveladas através do estudo sobre as formas de sociabilidade e legitimação social das populações negras excluídas(Silva:1995). A opção de Carlos B. Silva em apreender este significados a partir da análise de fontes orais, buscando compreender as respostas produzidas pelos negros da periferia urbana maranhense, influenciou decisivamente os caminhos do presente trabalho. Segundo esse autor, a ascensão de novas tecnologias de comunicação no Século XX amplificaram essas memórias musicais e aproximaram, de modo singular na história humana, as experiências de vida desses grupos sociais(Silva:1995, p. 129; ver também Godi:1998). Violentamente excluídos da cidadania negros e negras construíram sua história de modo diacrítico à revelia de modelos oficiais – resíduos do colonialismo – e tiveram na música um conectivo passado-presente mediador de seus anseios e visões de mundo. Trata-se de um “descentramento”, como atualizou conceitualmente Hall, que abre caminho para importantes estratégias de “intervenção no campo da cultura popular”(2003, p. 337). Conforme Paul Gilroy(2001) esses sujeitos que compõe o universo das práticas musicais podem ser entendidos como intelectuais orgânicos9 das tradições alternativas ‘inventadas’ na Diáspora, onde as expressões musicais constituem um veículo fundamental, de modo que a autenticidade de seus 8 Existem inúmeras variáveis do Reggae como o Ragga, Rocksteady, e Ska(Cf.Davis&Simon: 1983). 9 A acepção deste conceito é eminentemente gramsciana; Hall é o autor contemporâneo que percebeu a contribuição deste pensador italiano aos estudos culturais na dimensão da presença negra na diáspora.(Cf. HALL:2003) 8 discursos e ações não está restrita ao universo das normas da democracia burguesa e do mundo da escrita. Autores como Hall e Gilroy, além de outros, tem enfatizado a posição destes sujeitos na construção/legitimação dos repertórios da política cultural negra à revelia dos resíduos do colonialismo das “dispersões irreversíveis da diáspora” (Hall, 2003. p. 343); este processo tem na história musical um registro indelével, haja vista o impacto de expressões sonoras e estéticas de alcance transnacionais, a exemplo do Reggae e tantas outras como o Jazz, Blues, o Funk, o Rock e o Rap. Em outras palavras, estes músicos são considerados, na definição de Gilroy - em acordo com a perspectiva já apresentada por Hampatê-BÁ - como “...guardiães temporários de uma sensibilidade cultural distinta e entrincheirada que também tem operado como recurso político e filosófico.” (Gilroy, 2001; p. 164). Aproximando as idéias dos autores acima citados com nosso objeto de estudo, ratificamos a pertinência de novas pesquisas que contextualizem estes debates à luz da realidade que gira em torno dos cantos, cantores e canções da Bahia contemporânea. Uma vez que esta realidade (dinâmica e mutável) ganha novos contornos mediante a singularidade de condições históricas e culturais, é imprescindível compreender quais respostas/propostas sociais vem sendo produzida a partir das musicalidades negras locais. O universo, acercado aqui, dos músicos e suas canções é emblemático destas práticas discursivass que sedimentam noções de pertencimento e identidade. Por conta disso, a observação dos discos coletados além do trabalho com as demais fontes, tem como objetivo analisar e interpretar os discursos estético-musicais através da canção (melodias, letras, ritmos) e outros elementos iconográficos, à luz do contexto em que foram produzidos. Em outras palavras, a relação do sujeito com as formações discursivas é encarada como articulação entre a “posição-do-sujeito” e a “contingência que reativa o que é histórico” conforme Hall (2000, p. 103-136). Desse modo, a concepção de ‘discurso-estético musical’ utilizada aqui não destitui as posições do sujeito no interior do discurso e destaca, por outro lado, os motivos e/ou conflitos que levam os indivíduos a ocuparem certas posições, aproximando-se do pensamento de Sader ao afirmar que “o discurso que revela a ação também revela o sujeito [afinal] ...a linguagem faz parte das instituições culturais com que nos encontramos ao sermos socializados”(Sader:1988, p. 57). 9 Consequentemente, refuta-se a idéia de “corpo dócil” formulada por Foucault, haja vista que o discurso e estética “diaspórico” Rasta-Reggae tem historicamente incorporado um apelo identitário utilizando o corpo como espaço de transgressão e contestação - a exemplo, a assunção do Dreadlocks como marca inconfundível de negritude – apontando para estratégias alternativas à disciplinarização corporal. O caso-Reggae assinala para diversas alternativas à invisibilidade social de um ou mais grupos identificados por sentidos, valores e símbolos étnicos de negritude. Neste movimento, consituiu-se uma cultura musical de conteúdos críticos e estética contundente que tem afetado de maneira especial as dimensões identitárias e do pertencimento. Como assinalou Sansone, a identidade negra na Bahia tem uma lógica própria de representação pautada na inserção social de um grupo étnico que tem suas idiossincrasias oriundas de uma ascendência comum e multifacetada.(1997, 2004). Para além disso, vale lembrar que a construção de identidades “buscando” referências no passado pode produzir novas identidades(Woodward: 2000) o que serve-nos de prevenção à qualquer aproximação teórico-metodológica de teor mais ‘essencialista’ que possa trazer caminhos e resultados desastrossos e contraditórios. Em outras palavras, os(as) agentes-sujeitos que protagonizam os processos identitários estão envolvidos num processo demarcadamente dinâmico, em grande sentido situacional, e sobretudo historicamente situados. Portanto o que vem sendo chamado aqui de identidades negras não é um conjunto de características intrínsecas(ou naturais) aos negros e negras mas, engloba múltiplas noções de pertencimento construídas na tensão entre um processo histórico de marginalização do negro na sociedade brasileira e as inúmeras respostas, propostas e alternativas apresentadas por estas populações como as canções registradas nos discos de Reggae e outros estilos que compõem os repertórios da música negra produzida nas cidades que investigamos aqui. O local e o global na musica Rasta-Reggae da Bahia Podemos afirmar que, no bojo das expressões musicais de maior disseminação mundial a partir da segunda metade do século XX, o Reggae Reggae é um “estilo de Música negra que tem seu pertencimento em loci 10 variados do planeta”(Godi:1998, p. 275) que rompe as fronteiras lingüísticas e nacionais e serve para gerar outras laços de etnicidade sobre (e em torno da) produção artística e histórica do negro. Nestes ritmos fundiu-se uma visão mítica sobre África ancestral e contemporânea que levam em consideração a Diáspora como produto e desdobramento da escravidão e posiciona-se, acima de tudo, como laço transnacional entre sujeitos que tem em comum as mesmas raízes, diferentes origens e, um presente semelhante.(ibid:1997, 2001) Não se pode desprezar, entretanto, que o Reggae tem suas origens matriciais na Jamaica a partir dos anos 60, o que pode estar confirmado pela apropriação diplomática de símbolos nacionais daquele país por artistas e amantes do estilo no Brasil. Nesse sentido, é fundamental não perder de vista esses laços identitários (Brasil-Jamaica) tomando o território do “Atlântico Negro” como espaço de contemplação e mediação sem que estejam representadas insinuações de uma provável hierarquia musical; este tipo de percepção é ‘nota fora de nossa escala musical’ aproximando-se, por outro lado, da idéia de que: “...deslocadas de suas condições originais de existência, as trilhas sonoras dessa irradiação cultural africano-americana alimentaram uma nova metafísica da negritude ‘elaborada e instituída na Europa e em outros lugares’[grifo meu] dentro dos espaços clandestinos, alternativos e público constituídos em torno de uma cultura expressiva que era dominada pela música”(Gilroy, 2001) Nesse ritmo, a irradiação matricial do Reggae possui a Jamaica como farol, mas as formas que este estilo assume estão determinadas pelas condições sócio-históricas de seus sujeitos; os limites de sua “autenticidade” e seu alcance como canto negro de protesto não estão circunscritos ao mundo caribenho (talvez nem mais ao atlântico) nem podem ser vistos como obra acabada10. Em suma, incorporam novos sentidos de acordo com as diferentes formas de reprodução desta cultura em sintonia com “aspectos tenazmente locais” (Sansone:1997, p.221) e para além do mundo anglófono. Por conta disso, defende-se aqui investigar as contribuições do Reggae baiano à afirmação da musicalidade Reggae no “Atlântico Negro”. 10 O texto da canção One Love de Bob Marley é uma descrição mais competente que a minha tentativa! 11 A gama de artistas baianos de diferentes cidades da Bahia – como Nengo Vieira, Geraldo Cristal, Edson Gomes e Sine Calmon (Cachoeira); Dionorina, Jorge Radical e Gilsam (Feira de Santana), Zavam Liv, Artur Cardoso, Kamaphew Tawá (Salvador) e tantos outros - e o trânsito de suas obras entre alguns segmentos da sociedade baiana é uma constatação reveladora singularidade sociocultural. Ao lado destes porta-vozes dos guetos, reconhecidos ícones da cultura Reggae mundial como Bob Marley and the Waylers (B.M.W.) são ouvidos nas esquinas e encruzilhadas das cidades baianas fazendo parte da história social do reggae-roots11. São, portanto mais que meros intérpretes do Reggae anglófono da Jamaica... são arquitetos de uma música que renasce num novo contexto, também atlântico, e sob outras tensões e visões de mundo; ocupam o lugar de Pensadores(as), ativistas e sujeitos críticos que subverteram as expectativas “oficiais”, e ergueram-se dos escombros da marginalização social “fazendo a cabeça”(em diversos sentidos) de jovens e adultos que encontravam na variedade de temas das canções de Reggae construções narrativas de seu próprio cotidiano como escreveu o compositor e músico Artur Cardoso: “Apartheid disfarçado todo dia/ quando me olho não me vejo na TV/ quando me vejo estou sempre na cozinha ou na favela submissa ao poder(...) será que um dia eu serei a patroa? Sonho que um dia isso possa acontecer/ ficar na sala, não ir mais para a cozinha/ agora digo o que vejo na TV: um som negro, um Deus negro, um Adão negro, o negro no poder...” Entretanto, a utilização da música pela população negra, como veículo de expressão pública não se inicia a partir da disseminação de novas tecnologias de registro e reprodução da arte. Jocélio Teles, analisa a dialética e conflituosa relação entre os que os chamados “batuques”, disseminados sem regularidade prévia pelos cantos da província de Salvador no séc. XIX, e a repressão social, oficial e policial às manifestações.12 A incômoda presença dos instrumentos e seus músicos registrada nos jornais revela o universo de práticas musicais existentes em Salvador e aponta ao papel que estas 11 Refere-se a uma variante do Reggae inaugurada no início dos anos 70 pela banda Bob Marley & the Wailers caracteristica pela ascentuação rítmica um lenta e formação musical inspirada no rock e nas tradições dos tambores Burra da jamaica. Ver, Constant: 1982; Davis&Simon:1983, White:1999) 12 SANTOS, Jocélio Teles dos. “Divertimentos estrondosos: batuques e sambas no século XIX”. in: SANSONE/SANTOS(orgs.). obra citada p. 15-38 12 desempenhavam na legitimação dessas maiorias. Os conteúdos destas canções são apontamentos da História de Salvador e fornecem um registro das impressões destes homens e mulheres sobre o espaço urbano. Apreender os significados identitários e associados à etnicidade através das diversas sonoridades urbanas é um esforço valioso. Este fenômeno apresenta-se contextualizado na Salvador dos anos 80/90 e suas presença transforma o cenário lúdico num prisma fantástico de possibilidades de estudo multidisciplinares13. Como assinala SANSONE(1997), a utilização de símbolos étnicos pela juventude negra baiana, em articulação com a música no mundo globalizado, além de amplificar a inserção de um grupo “específico” em alguns setores da vida pública sinaliza para uma revisão dos fenômenos musicais, ao gosto das tradições e Histórias culturais locais. Nessa dimensão, o parâmetro conceitual de “etnicidade” nos oferece um referencial sugestivo de análise das identidades étnicas forjadas em relação às práticas musicais pois trata a questão em termos menos essencialistas (Poutignat & Streiff-Fenart:1997). Os debates e reflexões que se tem desenvolvido sobre a produção bibliográfica apresentam aspectos singulares, e tem contribuído de forma significativa na problematização da produção de música como fonte. As obras dos autores acima citados apresentam abordagens teóricas e metodológicas sobre temáticas inter-relacionadas a esse projeto, que são pensadas e discutidas ajudando a perceber a produção e participação de sujeitos sociais situados num tempo/espaço. Além do diálogo mais próximo com autores, temos utilizado outros registros/fontes orais como suporte metodológico para nossas reflexões, apostando na relevância das impressões dos sujeitos sobre um passado que lhe inclui e cujos impasses e desdobramentos persistem no presente. Nesse sentido, vale destacar as contribuições de Halbwachs, sobre o papel dos músicos na construção da “Memória coletiva” quando ele argumenta que a “lembrança” dos músicos são as únicas conservadas “numa memória coletiva que se estende, no espaço e no tempo, tão longe quanto sua 13 ver, PINHO: 1997; “ The Songs of Freedom: notas etnográficas sobre cultura negra global e práticas contraculturais locais” In: Ibid. obra citada; SILVA, Suylam Midlej e. “o lúdico e o etnico nofunk do Black Bahia” In: ibid. Obra itada. 13 sociedade”(1990, p. 185). Entretanto, seu posicionamento representa, à luz de novas reflexões, alguns limites de modo que considera todas as formas outras de memória coletiva seccionadas do tempo histórico, logo, restringindo sua herança ao tempo de vida dos indivíduos. Estas tradições têm, contudo, raízes mais remotas como aponta o valioso artigo A tradição viva, de Ahmed Hampatê-Bá, através de seus estudos sobre as tradições e formas de organização social persistentes no continente africano ancoradas na oralidade, onde as tradições orais/musicais tem papel central na produção de conhecimentos, na organização social e na legitimação das identidades e visões de mundo (Hampatê-Bá, 1982). Acompanhando esta opinião destacamos que a oralidade aqui é compreendida em seu amplo papel para o legado cultural e político de um ou mais grupos sociais. Portadores e porta-vozes de um posicionamento social através da música, a contribuição e crítica destes sujeitos são indispensáveis às análises ora apresentadas, bem como aos caminhos futuros que serão delineados ao longo do processo de investigação. Por conta disso, ao registrar e apreender suas “falas” pretende-se estabelecer um diálogo onde estes sujeitos e suas interpretações sejam vistas como memórias de uma tradição recente impulsionada pela música. Acompanhando Hampatê-Bá, Salomão Silva apontou com pertinência os laços históricos dessa relação em plena história recente do Brasil, ao afirmar que “Os compositores retomaram as ligações com as práticas Griot ou Doma, ... formas destinadas a preservação da memória na forma de canções (...) O encontro dos compositores e militantes negros com a história da África antiga e do Brasil colonial, gerou um estilo inédito de canções urbanas, que se encontravam em sincronia com as proposições de alguns grupos negros.” (2000, p. 80) Registro sonoro como Fonte de pesquisa A ascensão das tecnologias de registro e profusão do som implicaram inevitavelmente no surgimento de novas sociabilidades mediadas pela música. Consequentemente o olhar sobre o papel da musicalidade nas relações sociais, vem se transformando paulatinamente desde o uso do aparelho fonógrafo inventado por Thomas Alva Edison(1877)14 como ferramenta de 14 “o fonógrafo [passa a ser] o principal recurso técnico do qual os pesquisadores norteamericanos e europeus dispõem para captar os mais diferentes estilos musicais, para registrar afinações desconhecidas, provenientes de todo o mundo”(Pinto, 2004.P.107). No Brasil os primeiros regirtros gravados no início do século XX foram realizados durante uma expedição de 14 trabalho do etnográfico e do nascimento dos primeiros acervos sonoros sediado nos grandes centros europeus – voltados, quase sempre à investigação da música não-ocidental(Pinto, 2004). Apesar de grandes avanços entre pesquisadores e pesquisadores de campos como a etnomusicologia, ou mesmo antropologia, os desafios para realizar um trabalho na área de História ou Sociologia da música persistem, sobretudo aqueles que tematizam as relações música, identidade, memória, pertencimento. José Geraldo de Moraes aponta que entre os obstáculos da investigação do “documento musical” encontram-se o peso das tradições da metodologia clássica que de modo reducionista desarticula os elementos estruturais da canção (melodia, ritmo, andamentos) da “realidade que gira em torno dela” (Moraes:2000, p. 215). Conforme o autor, o registro final aparentemente ‘aprisionado’ no disco é o resultado da interação entre variáveis internas (processo social de produção artística) e externas(relação com o contexto de seus agentes realizadores). Na medida que o disco15 é resultado e resultante da percepção do artista sobre o mundo, sua reprodutibilidade incorpora as condições materiais e históricas e são continuamente (re)construções impressas pelo público ouvinte.16 Em mão dupla os ouvintes- intérpretes ao fazer uma (re)leitura da obra podem incorporar novos sentidos, “às vezes trilhando caminhos inesperados para o criador”(Moraes:2000, p.211) Seguindo essa reflexão/desafio, tem sido feito o levantamento e análise da produção discográfica dos grupos de Reggae da Bahia entre as décadas de 80, 90 e aproximadamente o ano de 2003, o que constitui um dos materiais centrais desta pesquisa seguindo, portanto, um caminho apontado nos estudo citados anteriormente(Silva:2000; Moraes:2000). No trabalho com essas fontes são/serão analisados os elementos da linguagem musical utilizando fichas catalográficas contendo as variantes: ano de lançamento, gravadora, nome do(s) artista(s), título das canções, observações- comentários, textos adicionais pesquisa dirigida pelo austríaco Richard Wettstein em 1901 que registrou falas, cantosreligiosos e outras amostras acústicas do guarani e do português falado no Brasil(ibid. P. 117) 15 Disco refere-se a toda e qualquer obra musical, composta de até 04 canções – singles – ou mais que constam como registro no histórico de um artista ou um conjunto deles. coloquialmente associa-se esta definição restritamente ao disco de vinil. 16 Sobre esse debate, o clássico artigo de Walter Benjamin “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (BENJAMIN:1960) traz abstrações muito pontuais e seu alcance reverbera neste ensaio, ainda que o foco do autor tenha sido as lentes cinematográficas. 15 (encarte e/ou contracapa), músicos participantes, arranjador e produtor e/ou diretor musical e artístico, observações. Este produto fonográfico e suas partes integrantes (capa, encarte, artes gráficas, textos adicionais) compõem, portanto, um universo de livre expressão dos artistas redimensionando o alcance do registro auditivo como afirma Salloma Silva(:2000). Em tempos de deliberada desvalorização dos acervos de vinil, nosso levantamento conta com contribuições de ricos acervos particulares pertencentes a produtores de Rádio de Salvador e colecionadores. Entre os espaços de utilização pública encontram-se o acervo do Café Literário A Senzala, agremiação estudantil da Universidade Estadual de Feira de SantanaBahia está entre as prioridades da pesquisa. As dificuldades de localizar parte de nossa “documentação sonora” nos acervos públicos tem ampliado o trabalho de busca incessante de colecionadores e adimiradores do gênero. Referenciais cronológicos ... marcos em construção A presença sonora-musical do Caribe no cenário cultural baiano(e vice- versa) seguramente amplifica o contato entre estas duas regiões do Atlântico. Nesse sentido qualquer tentativa de demarcação ‘ cronológica’ da presença de ritmos como o Calypso, Mento, Merengue e logo em seguida Reggae requer uma certa flexibilidade uma vez que, até o momento não dispomos de informações que precisem estes fatos. Na verdade este é um ponto de menor importância ao presente estudo. Chama-nos mais a atenção algumas balizas já informadas e q serviram para a argumentação que segue. Se o espaço lúdico de Salvador já convivia com forte presença dos sons do Caribe, são os músicos da tropicália os primeiros a apresentarem registros do que podemos chamar a chegada do Reggae na Bahia e no Brasil. A gravação da Canção Nine out of tem, no álbum Transa, de Caetano Veloso(1972), é o primeiro destes sinais17. Entretanto, tem sido lugar comum considerar o fim dos anos 70 como marco introdutório do estilo no Brasil tomando por base a Gravação do álbum Realce(1979) de Gilberto Gil, que incluiu a versão da canção “No Woman, No Cry” de Bob Marley (Silva, 2000).18 17 Em 1972 Bob Marley and The Wailers lança o primeiro e antológico álbum, Catch a fire, produzido por Chris Blackwell. 18 Esta afimação é refutada no Artigo de Godi(2001), apontando, como já mencionado, que a presença do Calypso caribenho nos anos 60-70( forte estilo influenciador do Reggae) constituiu 16 No entanto, foi a morte de Marley em maio de 1981 que trouxe visíveis mudança de ventos para a promissora consolidação do estilo ‘definidamente’ Reggae na Bahia. A partir de então, o mês de maio passa a ser data de tributo ao Cantor e Compositor Bob Marley, em virtude de seu falecimento repentino. Este episódio marcaria definitivamente o calendário no Movimento Negro e suas políticas culturais(Godi, 2001). Outro exemplo sugestivo desta presença é a fundação do Bloco Afro Muzenza (fundado em 1981) como acentuam outros pesquisadores da música já citados (Silva, 2000; Godi: 2001, 1997). Destarte, o sociólogo Ericivaldo Veiga, no artigo O errante e apocalíptico Muzenza, aborda os caminhos desta entidade e sua singular dimensão político-cultural de defesa das tradições negras, observando o fenômeno musical então recente de matriz jamaicana (O Reggae). 19 A intrigante relação desta entidade com o estilo ora investigado está explícita no sobrenome do bloco – “o mestre do Reggae”20 -, revelando uma “chamada identitária” como afirma Veiga21. Vale ressaltar que ao longo dos anos 80 o surgimento de entidades carnavalescas com o Olodum que toma o Reggae como símbolo étnico-identitário. Visivelmente influenciados pela estética e ideais “Regueiros” o olodum passa a franquear espaços de discussão sobre a importancia da música e filosofias do Reggae à luta antiracista e à construção da auto-estima negra (ver Guerreiro, 2000). Nos anos seguintes iniciam-se sistemáticas comemorações-tributos a Bob Marley que, nos parece, serviram como fóruns de debates em torno da negritude e noções de pertencimento, ocupados por admiradores declarados do estilo, pesquisadores da cultura e história negras, artistas e entidades da sociedade civil22. Em meados dos anos 80 três cidades estão especialmente conectadas pelos fluxos da música Reggae: Salvador, Feira de Santana e Cachoeira, de onde saem os principais representantes do estilo(Godi:1997, 2001). Finalmente em 1988 o cantor/compositor Edson Gomes lança seu um agente fertilizador de sonoridades no terreno cultural e musical . ver, Godi: 2001. Não vamos, contudo, prolongar este debate por agora. 19 VEIGA:1997 In: SANSONE, Livio/SANTOS, Jocélio Teles dos(orgs.). Obra citada. pp. 123143 20 Cf. ata de fundação. Ver, Veiga: 1997, p. 134. Em 1988 o Bloco lança um LP entitulado “muzenza do Reggae”, um sinal maior de afinidade estética, política e musical. 21 ibid. p. 34 22 Jornal Folha do Reggae, Salvador-BA, 1997. estes eventos aconteceram simultaneamente em Salvador, Feira de Santana e Cachoeira como relata material deste periódico. 17 pioneiro álbum, “Reggae Resistência”, lançado pela Gravadora EMI-ODEON que, seguindo Godi(2001) inaugura a referência “Reggae Nacional” nas prateleiras de Disco das lojas e na História da música brasileira. Os dez anos seguintes assistiram à ascensão desta expressão estéticomusical, até sua presença definitiva nos carnavais de 1997 e 1998 emplacando as músicas mais executadas do circuito festivo, e desfilando com blocos como Resistência Ativa e Ska Reggae para foliões exclusivamente “regueiros”23 Curiosamente, o Reggae sente os primeiros sintomas de estafa e crise, um fenômeno ainda não explicado pelos pesquisadores contemporâneos. A retórica provocativa, a tônica transformadora e o discurso propositivo haviam incomodado as elites baianas a que níveis? A ofensiva policial reprimindo artistas e público tiveram dimensões de conflito racial?24 A presença do Reggae nos espaços de lazer da juventude estudantil e dos trabalhadores confirma a parceria entre lutas classistas e pela igualdade racial? Como a produção musical registrou estes acontecimentos? Estas e outras questões vem sendo levantadas ao longo dos últimos meses de pesquisa. Em suma, as informações disponíveis, e suas lacunas, nos levam à busca de outros registros que possam referendar ou redimensionar esses marcos e questões. Estes inusitados acontecimentos são sugestivos de que há muito trabalho pela frente. É importante destacar ainda que, o foco nas Cidades de Cachoeira, Feira de Santana e Salvador explica-se devido à particular efervescência cultural em torno do Reggae que as envolveu(e). seja pela já constatada naturalidade de muitos dos músicos, seja pelas informações levantadas até o presente. A observação preliminar dos discos e as préentrevistas apontam à relação obra-contexto tendo suas origens nestes lugares – haja vista o conteúdo de algumas letras, por exemplo. Além disso, é possível imaginar que nessas cidades se construiu o que pode ser chamado de escolas musicais do Reggae baiano e brasileiro. Contudo, trata-se de um caminho preliminar sujeito à revisão. Além dos registros fonográficos e Fontes orais, os Jornais também serviram de suporte contextual para as demais fontes. Serão analisados os 23 Jornal Folha do Reggae, Salvador-Ba, 1997 foi amplamente divulgado na mídia a perseguição da Delegacia de Tóxicos e Intorpecentes ao cantor Sine Calmon sob acusação de apologia ao uso de drogas. Um posicionamento politizado foi expresso no Jornal Folha do Reggae. 24 18 fragmentos de Jornais do período, disponibilizados por alguns produtores culturais e músicos, além dos exemplares do Jornal Folha do Reggae, uma publicação de poucos exemplares destinada ao público adepto e admirador do estilo. O periódico incluía agenda de shows, entrevistas, informes publicitários, textos diversos, traduções de canções(do inglês para o português) e outros elementos voltados ao entretenimento e informação do leitor. Considerações finais(?) Em suma, a presente atividade surgiu de um esforço para preencher uma lacuna: A produção ainda rarefeita de estudos que focalizem o Reggae como expressão fundamental desta “contracultura” plural de negros e negras no mundo contemporâneo e sua trajetória singular no Brasil constitui o leit motiv da elaboração desta investigação. No que se refere ao universo baiano, a ausência de um estudo de maior profundidade sobre a musicalidade Reggae e suas contribuições ao universo plural da Diáspora negra ressaltam a relevância de concretizar estas problematizações através da pesquisa. No que diz respeito ao universo dos músicos e de seus registros nenhuma pesquisa foi construída, o que exige da pesquisa em curso uma atenção ainda maior com a análise, pioneira das fontes. A partir da sistematização de um catálogo discográfico, contendo informações sobre as obras (técnicos de gravação, direção musical, arranjadores, produtores, músicos, compositores, linguagens imagens, textos adicionais, ano, autores dentre outros) associadas ao Reggae baiano pode-se contribuir com a formação de uma base de dados que facilite/auxilie outras pesquisas sobre a música baiana, além de dar visibilidade e audibilidade no âmbito dos estudos recentes da cultura negra. Apesar do alcance dos resultados desta pesquisa estar em aberto podemos mensurá-lo uma vez que é uma de suas pretensões é ampliar os estudos sobre os movimentos político-culturais no Brasil das décadas de 80 e 90, privilegiando as concepções, estratégias, lutas e demandas da população negra nos centros urbanos. Além disso, Identificar, através da música registrada nos discos, aspectos da tradição oral/musical traz novas contribuições ao debate sobre a sobrevivência destas tradições recentes reinventadas na diáspora negra. 19 REFERÊNCIAS DISCOGRÁFICAS Adão Negro, Disco: Adão Negro, Adão Negro, Disco: Só diretoria, 1999 Adão Negro, Disco: vence tudo, 2003 Celso Bahia, Disco: 2 Neguinhos, Gravadora: Continental, 1988. Dionorina, Disco: Música das Ruas, Gravadora: Stalo Discos-BA,1994 _________, Disco: SACASÓ, Gravadora: Zero Bala-BA, 1998 Edson Gomes, Disco: Reggae Resistência, Gravadora: EMI-Odeon, 1988 ____________, Disco: Campo de Batalha, Gravadora: EMI-Odeon, 1990 ____________, Disco: Resgate Fatal, Gravadora: EMI-Odeon, 1995 ____________, Disco: Recôncavo, Gravadora: EMI-Odeon, 1990 ____________, Disco: Apocalipse, Gravadora: EMI-Odeon, 1998 Geraldo Cristal, Disco: Reggaessência, Gravadora: “Idependente”, 2002 Geronimo, Disco: Eu sou Negão, gravadora: Continetal, 1987. 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