Salvador - Bahia, setembro de 2006

Propaganda
30º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS
De 24 a 28 de outubro de 2006 - Caxambu/MG
Grupo Temático: Relações Raciais e etnicidade
Autor: Fabricio dos Santos Mota
Título do trabalho:
MEMÓRIA MUSICAL, ETNICIDADE E REGGAE:
Identidades negras mediadas pela música na Bahia contemporânea
Salvador - Bahia, setembro de 2006
1
MEMÓRIA MUSICAL, ETNICIDADE E REGGAE: Identidades negras
mediadas pela música na Bahia contemporânea
Fabricio dos Santos Mota
As idéias apresentadas neste texto são fruto de uma pesquisa em
andamento do Curso de Mestrado do POSAFRO - Programa Multidisciplinar de
Pós-graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da
Bahia(UFBA). Desse modo, não serão apresentados resultados ou conclusões,
tampouco um ensaio mais rebuscado. A intenção é apresentar basicamente
alguns conteúdos, problemas e objetivos elencados no projeto que serve de
base à investigação bem como tecer algumas conexões com os autores que
tem servido de referência às atividades em curso.
Este trabalho tem como objeto de estudo as práticas musicais urbanas
da expressão musical Reggae na Bahia e sua identificação com múltiplas
concepções
de
identidade
negra. Pretende-se
investigar
a produção
fonográfica do estilo Reggae na Bahia e seus laços com o processo de
construção e legitimação de sentidos identitários de negritude e anti-racismo
em interação com outros movimentos políticos e culturais. Visto aqui como uma
das principais tradições inventadas de expressão musical dos negros na
Diáspora, no contexto contemporâneo (Hall:2003; Gilroy:1995), constitui-se em
um dos elos da polifônica cadeia de musicalidades insurgidas como
contracultura no “Atlântico Negro”. Será focalizada a produção discográfica e
os depoimentos orais de músicos de Reggae no contexto das cidades de
Cachoeira, Feira de Santana e Salvador que são os principais nichos da
contracultura Rasta-Reggae na Bahia e de onde surgiu grande parte das
influências e artistas que definiram singularmente o estilo neste estado.
A opção pela análise cronológica das fontes das últimas décadas do
século XX -anos 80/90 até meados de 2003 -
justifica-se por ser este o
momento de afinidade e afirmação deste estilo no universo da música e Cultura
Rasta-Reggae: a vida e morte do cantor e compositor jamaicano Robert Nesta
Marley (1945-1981) impactou, decisivamente no calendário dos eventos do
Movimento Negro baiano, e dos blocos afro; as décadas de 80/90
presenciaram a ascensão e êxtase do estilo entre grande parcela dos jovens
das periferias aos bairros da classe dominante; os festivos carnavalescos dos
2
anos de 1997 e 1998 assistiram um novo capítulo das lutas negras na Bahia
revestidas em um novo movimento musical cristalizado.
INTRODUÇÃO
“A história e prática da música negra apontam para outras
possibilidades e geram outros modelos plausíveis(...) utilizo a
analogia da música porque você pode viajar pelo mundo
inteiro e ela ainda é negra”
(Paul Gilroy)
“...nessa dimensão mundializadora, na qual a música da
Diáspora negra, desponta como referência crucial, não existe o
centro nem as periferias e, sim um espaço sem fronteiras. (...) o
Reggae estaria originalmente na Jamaica, e simultaneamente
no Brasil e em todo lugar do mundo marcado pela
disseminação pop-elétrica musical”
(Antônio Jorge Godi)
“Estes repertórios de práticas, são aqui entendidos como novas
formas de organização e intervenção social, política e cultural
dos grupos negros, gerando novos paradigmas de identificação
e visibilidade das populações negras urbanas, num processo
onde as práticas em torno da música são transpassadas pelas
lutas sociais e políticas.”
(“Salloma” Salomão da Silva)
A cultura musical Rasta-Reggae1 é um fenômeno de “presença recente”
no Brasil que passou a integrar as vozes negras de protesto. Urdido nas
favelas urbanas da Jamaica, a partir dos anos 60, este estilo navegou o
Atlântico e atracou nos guetos das sociedades industriais que vivenciavam as
transformações
do
capitalismo
contemporâneo
(Davis&Simon:1983;
White:1999). O impacto destas freqüências musicais deságuam na Bahia das
últimas décadas do século XX, compondo a cena plural dos movimentos
políticos e culturais em consonância com o posicionamento das militâncias
negras urbanas. Repertório das lutas contra a exclusão e a invisibilidade social,
as ondas de Kingston - capital jamaicana - reassumem novos caminhos,
sonoridades, e referenciais de etnicidade, constituindo um resultado singular de
afirmação dessa cultura conectiva que atraiu diferentes grupos “nacionais” e foi
1
Esta definição foi tomada de empréstimo de Antonio Jorge Godi (1997)
3
responsável por revisitar uma visão de mundo intercontinental, representando,
logo, um exemplo genuíno de “estilo étnico de status global” (Cf. Gilroy: 1995).
Tornou-se imprescindível à compreensão da ressonância nacional e
mundial da música Reggae - uma das mais emblemáticas expressões da
música negra na Diáspora - investigar sua existência idiossincrática na Bahia.
As práticas Musicais, e em destaque o Reggae, no universo baiano incorporam
outros aspectos locais que compõem nosso objeto de estudo.
Uma nova cena sociocultural e política se montava dentro e fora do
Brasil, configurada, entre outros elementos: pelo esgotamento do Regime
totalitário-militar brasileiro; pelo impacto das lutas civis pela “ descolonização
das mentes e dos povos da Diáspora Negra”, incluindo os movimentos
nacionalistas insurgentes no continente africanos prol libertação do domínio
europeu (Hall:2003); pela ascensão das ações do Movimento black-power
norte-americano, cujos ecos ressoaram no Brasil pelas ondas da mídia
televisiva e
escrita, cujas
imagens
“uma
vez,
ressignificadas
foram
transformadas em símbolos e sinais de identificação dos jovens afrobrasileiros”; pela fundação dos blocos afros propondo uma nova política cultural
à sociedade brasileira (SILVA, Salomão:2000, p. 54; RISÉRIO: 1981;).
Além disso, a emergência de novos problemas e propostas pautadas na
inclusão social incorporando estratégias de mobilização e reivindicação,
inclusive buscando a afirmação do grupo étnico, marcaram definitivamente a
história recente deste país.2 A história de luta dos blocos Afro e mais
particularmente a fundação de diversas entidades carnavalescas a partir dos
anos 70(como o Ilê Aiyê em 1974), reiteram as pautas das populações negras
explicitando as desigualdades raciais da sociedade baiana.
Nos anos 80 e 90 contínuas movimentações de artistas negros que
dedicaram suas temáticas e atividades (Música, Dança, Teatro, Artes
Plásticas...) ao resgate do passado ancestral de matrizes africanas, à luta
contra a invisibilidade social, à afirmação de seu grupo étnico. A música, como
parte destas manifestações portanto, constituiu-se num veículo eminente de
luta, visibilidade e ascensão de negros e negras redimensionando os sentidos
2
Nesse contexto nasce em meados de 1978 o Movimento Negro Unificado (MNU), entidade
institucional que pauta medidas reparativas para o povo negro e o fim das históricas
desigualdades raciais
4
de pertencimento do “ser Negro” em Salvador e outras cidades baianas. É
indispensável analisarmos os acontecimentos últimos anos da Era dos
Extremos, como sugere o historiador britânico E. J. Hobsbawn(1995), levando
em conta a relevância e múltiplas contribuições das populações negras às lutas
pela cidadania e igualdade, pela inclusão social e contra o racismo no Brasil.
Em outras palavras, os anos 80 parecem menos uma “década perdida”3 se
vistos à luz dos movimentos políticos e culturais da população negra. Ao
localizarmos as práticas musicais do mundo negro urbano no universo da
contracultura contemporânea contribuímos para fortalecer outro parâmetro de
análise dos movimentos sociais e seus desdobramentos nas últimas décadas
do século XX aproximando-se da dimensão concreta da experiência de novos
sujeitos sociais, novas estratégias de mobilização e intervenção na vida
pública.
Neste terreno a musicalidade perpassou(a) por diversos conflitos da
cena urbana na Bahia pontuando as lutas contra o racismo e outras
desigualdades sociais e estando presente como discurso e estética de
movimentos sociais negros, ligados à música ou à pauta dos embates
classistas e trabalhistas4. Portanto, a pesquisa que orienta as linhas deste
trabalho pretende problematizar, à luz da pesquisa científica, o processo de
legitimação da população negra, através da música tomando como referência
os movimentos político-culturais negros na diáspora.
O estudo contemporâneo das manifestações e práticas musicais – ou
mesmo uma simples audição deste vasto material – enunciam que estas
marcas sonoras cicatrizaram-se no plano sociocultural baiano formalizando-se
tardiamente através do registro fonográfico. Portanto, investigando os discursos
presentes nos discos de Reggae(ou afins), buscamos compreender quais
propostas/alternativas tem sido apresentadas, ao lado dos muitos argumentos
apelativos à afirmação identitária e à denúncia das segregações na sociedade
baiana, inclusa nas estruturas da chamada “Babilônia”5 capitalista, enfim
3
sobre esse conceito Ver, GOHN, M. da Gloria. Movimentos sociais e educação. São Paulo,
Cortez, 1994
4
Nos anos 80 e 90 diversas passeatas ou atividades de caráter público tomaram o Reggae
como trilha sonora. Esteve, por outro lado, na pauta do cenário Reggae a interlocução com
muitos destes movimentos sociais.
5
Como bem definiu Godi, a Babilônia é o termo usado pelos Rastas para se referir ao território
transnacional do capitalismo contemporâneo (2001; nota de Rodapé)
5
desnudando as demarcações do racismo e desconstruindo o espectro da
marginalidade a partir de uma práxis pacifista.
Esta é uma proposta de trabalho motivada pelo diálogo interdisciplinar
entre abordagens da História, Antropologia e outras áreas das Ciências
Sociais, campos de estudo que tornam plenamente possíveis as reflexões e
pretensões ora apresentadas. As orientações teórico-metodológicas, portanto,
não constituem um posicionamento conclusivo deste estudo à revelia das
fontes, ou seja, os caminhos da pesquisa estão se concretizando a partir da
interlocução com os sujeitos envolvidos nesse cenário musical investigado e do
contato constante como universo das fontes. Em suma, esta atividade está em
consonância com os debates e as ações sociais que historicamente visam a
inclusão das populações negras no direito à cidadania plena , seja pelo acesso
à educação, seja pela ampliação de suas/nossas artes nos espaços públicos e
privados, como o Carnaval de Salvador, a Micareta de cidades como Feira de
Santana, a mídia radiofônica, televisiva e escrita, além de contribuir para
ampliar os estudos sobre as práticas musicais negras associadas a estes
“atores sociais”.
Além disso, a existência de importantes estudos sobre música na Bahia
– a exemplo da valiosa publicação de 1997 do projeto S.A.M.BA6 - aponta à
necessidade de outras produções que abordem com este universo temático
trazendo novas contribuições que relacionem música, identidade negra e
cultura enquanto categorias dinâmicas e não-essenciais. Neste sentido tem
sido pertinente, estudar as ‘sonoridades’ da vida cultural na Diáspora negra
dialogando e problematizando a noção de Atlântico Negro (Gilroy, 1995) e suas
reflexões sobre o repertório das práticas musicais no âmbito das “tradições
populares” negras, como o faremos mais à frente.
CONSIDERAÇÕES SOBRE TEORIA E MÉTODOS
O silêncio em torno da presença negra nos processos políticos e
culturais da sociedade brasileira vem ao longo dos anos sendo preenchido por
uma crescente produção de diversos autores(as) - um sinal de engajamento
6
SANSONE/TELES: 1997. Obra citada.
6
com as lutas das populações oprimidas, dentre elas negros e indígenas - que
contrapõem-se aos frios marcos da historiografia nacional e positivista.
O músico, luthier e historiador “Salloma” (Silva, 2000) trata em seu
trabalho A polifonia do protesto Negro: Movimentos culturais e musicalidades
negras urbanas das estratégias adotadas pelas populações negras urbanas
para a superação da invisibilidade de suas demandas históricas, utilizando a
música como veículo de protesto. Sugere um concepção de estudo dos
movimentos sociais identificando o fenômeno singular configurado pelas
práticas culturais negras, a partir das canções gravadas entre os anos 70 e 80
nos espaços urbanos de Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro, e destaca
outros parâmetros de análise para o processo político de democratização do
país. Artistas da música, outrora silenciados, tem seu olhar sobre o mundo
respeitados e seus cantos de protesto audíveis pelo autor, como ilustra a vasta
produção discográfica pesquisada. A afinação entre nosso projeto e essa obra
localiza-se, ainda, na valorização do papel desempenhado pelos sujeitos que
compõem o “repertório das práticas musicais”, a que chamamos de
musicalidade, possibilitando uma compreensão mais ampla deste fenômeno,
suas redes de sociabilidade, seus laços de etnicidade.
A partir deste trabalho, e de suas lacunas no que diz respeito à análise
dos discos de Reggae, muitas reflexões de cunho teórico-metodológicos
puderam ser articuladas tematizando a música Reggae como forma
emblemática de protesto negro na contemporaneidade. Os comentários de
Salomão Silva sobre a trajetória desta expressão musical e sua importância
enfatizam a relevância do Pan-africanismo, na versão do intelectual jamaicano
Marcus Garvey, à construção do Reggae como movimento político, filosófico e
musical que, mais adiante, se constituiria no cântico-base do rastafarianismo.7
A dimensão transcontinental da cultura Rasta-Reggae confirma ser a
música Reggae um vivo exemplo de articulação com outras sonoridades do
protesto
negro
contemporâneo
como
assinalam
alguns
escritores
e
pesquisadores (Gilroy:2001;Godi:1997, 1998, 2001; Hall:2003; Silva:1995;
Silva:2000). Em outras palavras, o discurso estético-musical do Reggae
7
Filosofia de vida dos “ Rastas” “reconhecidos visualmente pelas longas tranças, mediante a
interpretação bíblica, pregam o amor à natureza, combatem ao consumo de álcool, adotam a
ganja ( maconha) como elemento de meditação e transcendência, para se entrar em contato
com Jah, o deus único” (Silva:1998, pp. 85-86) ver mais, Constant:1982, White:1999
7
registrado nas canções dos álbuns, afastam qualquer impressão de que esta
seja uma música pura!8 Trata-se, na verdade, de uma “mixagem” que incorpora
elementos do Rock, Rythm N’ Blues, e é incorporado na cena musical destes
outros estilos de matrizes negras (Cardoso:1997; White:1999; Davis & Simon:
1983). Seus traços de identidade e etnicidade afirmam-se a partir de suas
singularidades e não de uma expressão homogênea.
O trabalho produzido por Carlos Benedito Silva - intitulado Da Terra das
primaveras à ilha do amor: Reggae, lazer e identidade cultural - é bastante
relevante uma vez que buscou traçar um panorama da presença Reggae no
Maranhão capturando, a partir da observação do espaço público e dos
depoimentos orais nas “festas de Reggae” de São Luís-Ma reveladas através
do estudo sobre as formas de sociabilidade e legitimação social das
populações negras excluídas(Silva:1995). A opção de Carlos B. Silva em
apreender este significados a partir da análise de fontes orais, buscando
compreender
as respostas produzidas pelos negros da periferia urbana
maranhense, influenciou decisivamente os caminhos do presente trabalho.
Segundo esse autor, a ascensão de novas tecnologias de comunicação no
Século XX amplificaram essas memórias musicais e aproximaram, de modo
singular na história humana, as experiências de vida desses grupos
sociais(Silva:1995, p. 129; ver também Godi:1998). Violentamente excluídos da
cidadania negros e negras construíram sua história de modo diacrítico à revelia
de modelos oficiais – resíduos do colonialismo – e tiveram na música um
conectivo passado-presente mediador de seus anseios e visões de mundo.
Trata-se de um “descentramento”, como atualizou conceitualmente Hall, que
abre caminho para importantes estratégias de “intervenção no campo da
cultura popular”(2003, p. 337).
Conforme Paul Gilroy(2001) esses sujeitos que compõe o universo das
práticas musicais podem ser entendidos como intelectuais orgânicos9 das
tradições alternativas ‘inventadas’ na Diáspora, onde as expressões musicais
constituem um veículo fundamental, de modo que a autenticidade de seus
8
Existem inúmeras variáveis do Reggae como o Ragga, Rocksteady, e Ska(Cf.Davis&Simon:
1983).
9
A acepção deste conceito é eminentemente gramsciana; Hall é o autor contemporâneo que
percebeu a contribuição deste pensador italiano aos estudos culturais na dimensão da
presença negra na diáspora.(Cf. HALL:2003)
8
discursos e ações não está restrita ao universo das normas da democracia
burguesa e do mundo da escrita. Autores como Hall e Gilroy, além de outros,
tem enfatizado a posição destes sujeitos na construção/legitimação dos
repertórios da política cultural negra à revelia dos resíduos do colonialismo das
“dispersões irreversíveis da diáspora” (Hall, 2003. p. 343); este processo tem
na história musical um registro indelével, haja vista o impacto de expressões
sonoras e estéticas de alcance transnacionais, a exemplo do Reggae e tantas
outras como o Jazz, Blues, o Funk, o Rock e o Rap. Em outras palavras, estes
músicos são considerados, na definição de Gilroy - em acordo com a
perspectiva já apresentada por Hampatê-BÁ - como “...guardiães temporários
de uma sensibilidade cultural distinta e entrincheirada que também tem
operado como recurso político e filosófico.” (Gilroy, 2001; p. 164).
Aproximando as idéias dos autores acima citados com nosso objeto de
estudo, ratificamos a pertinência de novas pesquisas que contextualizem estes
debates à luz da realidade que gira em torno dos cantos, cantores e canções
da Bahia contemporânea. Uma vez que esta realidade (dinâmica e mutável)
ganha novos contornos mediante a singularidade de condições históricas e
culturais, é imprescindível compreender quais respostas/propostas sociais vem
sendo produzida a partir das musicalidades negras locais.
O universo, acercado aqui, dos músicos e suas canções é emblemático
destas práticas discursivass que sedimentam noções de pertencimento e
identidade. Por conta disso, a observação dos discos coletados além do
trabalho com as demais fontes, tem como objetivo analisar e interpretar os
discursos estético-musicais através da canção (melodias, letras, ritmos) e
outros elementos iconográficos, à luz do contexto em que foram produzidos.
Em outras palavras, a relação do sujeito com as formações discursivas é
encarada como articulação entre a “posição-do-sujeito” e a “contingência que
reativa o que é histórico” conforme Hall (2000, p. 103-136). Desse modo, a
concepção de ‘discurso-estético musical’ utilizada aqui não destitui as posições
do sujeito no interior do discurso e destaca, por outro lado, os motivos e/ou
conflitos que levam os indivíduos a ocuparem certas posições, aproximando-se
do pensamento de Sader ao afirmar que “o discurso que revela a ação também
revela o sujeito [afinal] ...a linguagem faz parte das instituições culturais com
que
nos
encontramos
ao
sermos
socializados”(Sader:1988,
p.
57).
9
Consequentemente, refuta-se a idéia de “corpo dócil” formulada por Foucault,
haja vista que o discurso e estética “diaspórico” Rasta-Reggae tem
historicamente incorporado um apelo identitário utilizando o corpo como espaço
de transgressão e contestação - a exemplo, a assunção do Dreadlocks como
marca inconfundível de negritude – apontando para estratégias alternativas à
disciplinarização corporal.
O caso-Reggae assinala para diversas alternativas à invisibilidade social
de um ou mais grupos identificados por sentidos, valores e símbolos étnicos de
negritude. Neste movimento, consituiu-se uma cultura musical de conteúdos
críticos e estética contundente que tem afetado de maneira especial as
dimensões identitárias e do pertencimento. Como assinalou Sansone, a
identidade negra na Bahia tem uma lógica própria de representação pautada
na inserção social de um grupo étnico que tem suas idiossincrasias oriundas
de uma ascendência comum e multifacetada.(1997, 2004). Para além disso,
vale lembrar que a construção de identidades “buscando” referências no
passado pode produzir novas identidades(Woodward: 2000) o que serve-nos
de prevenção à qualquer aproximação teórico-metodológica de teor mais
‘essencialista’ que possa trazer caminhos e resultados desastrossos e
contraditórios. Em outras palavras, os(as) agentes-sujeitos que protagonizam
os processos identitários estão
envolvidos num processo demarcadamente
dinâmico, em grande sentido situacional, e sobretudo historicamente situados.
Portanto o que vem sendo chamado aqui de identidades negras não é um
conjunto de características intrínsecas(ou naturais) aos negros e negras mas,
engloba múltiplas noções de pertencimento construídas na tensão entre um
processo histórico de marginalização do negro na sociedade brasileira e as
inúmeras respostas, propostas e alternativas apresentadas por estas
populações como as canções registradas nos discos de Reggae e outros
estilos que compõem os repertórios da música negra produzida nas cidades
que investigamos aqui.

O local e o global na musica Rasta-Reggae da Bahia
Podemos afirmar que, no bojo das expressões musicais de maior
disseminação mundial a partir da segunda metade do século XX, o Reggae
Reggae é um “estilo de Música negra que tem seu pertencimento em loci
10
variados do planeta”(Godi:1998, p. 275) que rompe as fronteiras lingüísticas e
nacionais e serve para gerar outras laços de etnicidade sobre (e em torno da)
produção artística e histórica do negro. Nestes ritmos fundiu-se uma visão
mítica sobre África ancestral e contemporânea que levam em consideração a
Diáspora como produto e desdobramento da escravidão e posiciona-se, acima
de tudo, como laço transnacional entre
sujeitos que tem em comum as
mesmas raízes, diferentes origens e, um presente semelhante.(ibid:1997,
2001)
Não se pode desprezar, entretanto, que o Reggae tem suas origens
matriciais na Jamaica a partir dos anos 60, o que pode estar confirmado pela
apropriação diplomática de símbolos nacionais daquele país por artistas e
amantes do estilo no Brasil. Nesse sentido, é fundamental não perder de vista
esses laços identitários (Brasil-Jamaica) tomando o território do “Atlântico
Negro” como espaço de contemplação e mediação sem que estejam
representadas insinuações de uma provável hierarquia musical; este tipo de
percepção é ‘nota fora de nossa escala musical’ aproximando-se, por outro
lado, da idéia de que:
“...deslocadas de suas condições originais de existência, as trilhas
sonoras dessa irradiação cultural africano-americana alimentaram uma
nova metafísica da negritude ‘elaborada e instituída na Europa e em
outros lugares’[grifo meu] dentro dos espaços clandestinos, alternativos
e público constituídos em torno de uma cultura expressiva que era
dominada pela música”(Gilroy, 2001)
Nesse ritmo, a irradiação matricial do Reggae possui a Jamaica como
farol, mas as formas que este estilo assume estão determinadas pelas
condições sócio-históricas de seus sujeitos; os limites de sua “autenticidade” e
seu alcance como canto negro de protesto não estão circunscritos ao mundo
caribenho (talvez nem mais ao atlântico) nem podem ser vistos como obra
acabada10. Em suma, incorporam novos sentidos de acordo com as diferentes
formas de reprodução desta cultura em sintonia com “aspectos tenazmente
locais” (Sansone:1997, p.221) e para além do mundo anglófono. Por conta
disso, defende-se aqui
investigar as contribuições do Reggae baiano à
afirmação da musicalidade Reggae no “Atlântico Negro”.
10
O texto da canção One Love de Bob Marley é uma descrição mais competente que a minha
tentativa!
11
A gama de artistas baianos de diferentes cidades da Bahia – como
Nengo Vieira, Geraldo Cristal, Edson Gomes e Sine Calmon (Cachoeira);
Dionorina, Jorge Radical e Gilsam (Feira de Santana), Zavam Liv, Artur
Cardoso, Kamaphew Tawá (Salvador) e tantos outros - e o trânsito de suas
obras entre alguns segmentos da sociedade baiana é uma constatação
reveladora singularidade sociocultural. Ao lado destes porta-vozes dos guetos,
reconhecidos ícones da cultura Reggae mundial como Bob Marley and the
Waylers (B.M.W.) são ouvidos nas esquinas e encruzilhadas das cidades
baianas fazendo parte da história social do reggae-roots11. São, portanto mais
que meros intérpretes do Reggae anglófono da Jamaica... são arquitetos de
uma música que renasce num novo contexto, também atlântico, e sob outras
tensões e visões de mundo; ocupam o lugar de Pensadores(as), ativistas e
sujeitos críticos que subverteram as expectativas “oficiais”, e ergueram-se dos
escombros da marginalização social “fazendo a cabeça”(em diversos sentidos)
de jovens e adultos que encontravam na variedade de temas das canções de
Reggae construções narrativas de seu próprio cotidiano como escreveu o
compositor e músico Artur Cardoso:
“Apartheid disfarçado todo dia/ quando me olho não me vejo na
TV/ quando me vejo estou sempre na cozinha ou na favela
submissa ao poder(...) será que um dia eu serei a patroa? Sonho
que um dia isso possa acontecer/ ficar na sala, não ir mais para
a cozinha/ agora digo o que vejo na TV: um som negro, um Deus
negro, um Adão negro, o negro no poder...”
Entretanto, a utilização da música pela população negra, como veículo
de expressão pública
não se inicia a partir da disseminação de novas
tecnologias de registro e reprodução da arte. Jocélio Teles, analisa a dialética
e conflituosa relação entre os que os chamados “batuques”, disseminados sem
regularidade prévia pelos cantos da província de Salvador no séc. XIX, e a
repressão social, oficial e policial às manifestações.12 A incômoda presença
dos instrumentos e seus músicos registrada nos jornais revela o universo de
práticas musicais existentes em Salvador e aponta ao papel que estas
11
Refere-se a uma variante do Reggae inaugurada no início dos anos 70 pela banda Bob
Marley & the Wailers caracteristica pela ascentuação rítmica um lenta e formação musical
inspirada no rock e nas tradições dos tambores Burra da jamaica. Ver, Constant: 1982;
Davis&Simon:1983, White:1999)
12
SANTOS, Jocélio Teles dos. “Divertimentos estrondosos: batuques e sambas no século XIX”.
in: SANSONE/SANTOS(orgs.). obra citada p. 15-38
12
desempenhavam na legitimação dessas maiorias. Os conteúdos destas
canções são apontamentos da História de Salvador e fornecem um registro das
impressões destes homens e mulheres sobre o espaço urbano. Apreender os
significados identitários e associados à etnicidade através das diversas
sonoridades urbanas é um esforço valioso.
Este fenômeno apresenta-se contextualizado na Salvador dos anos
80/90 e suas presença transforma o cenário lúdico num prisma fantástico de
possibilidades de estudo multidisciplinares13. Como assinala SANSONE(1997),
a utilização de símbolos étnicos pela juventude negra baiana, em articulação
com a música no mundo globalizado, além de amplificar a inserção de um
grupo “específico” em alguns setores da vida pública sinaliza para uma revisão
dos fenômenos musicais, ao gosto das tradições e Histórias culturais locais.
Nessa dimensão, o parâmetro conceitual de “etnicidade” nos oferece um
referencial sugestivo de análise das identidades étnicas forjadas em relação às
práticas musicais pois trata a questão em termos menos essencialistas
(Poutignat & Streiff-Fenart:1997).
Os debates e reflexões que se tem desenvolvido sobre a produção
bibliográfica apresentam aspectos singulares, e tem contribuído de forma
significativa na problematização da produção de música como fonte. As obras
dos autores acima citados apresentam abordagens teóricas e metodológicas
sobre temáticas inter-relacionadas a esse projeto, que são pensadas e
discutidas ajudando a perceber a produção e participação de sujeitos sociais
situados num tempo/espaço. Além do diálogo mais próximo com autores,
temos utilizado outros registros/fontes orais como suporte metodológico para
nossas reflexões, apostando na relevância das impressões dos sujeitos sobre
um passado que lhe inclui e cujos impasses e desdobramentos persistem no
presente.
Nesse sentido, vale destacar as contribuições de Halbwachs, sobre o
papel dos músicos na construção da “Memória coletiva” quando ele argumenta
que a “lembrança” dos músicos são as únicas conservadas “numa memória
coletiva que se estende, no espaço e no tempo, tão longe quanto sua
13
ver, PINHO: 1997; “ The Songs of Freedom: notas etnográficas sobre cultura negra global e
práticas contraculturais locais” In: Ibid. obra citada; SILVA, Suylam Midlej e. “o lúdico e o etnico
nofunk do Black Bahia” In: ibid. Obra itada.
13
sociedade”(1990, p. 185). Entretanto, seu posicionamento representa, à luz de
novas reflexões, alguns limites de modo que considera todas as formas outras
de memória coletiva seccionadas do tempo histórico, logo, restringindo sua
herança ao tempo de vida dos indivíduos.
Estas tradições têm, contudo, raízes mais remotas como aponta o
valioso artigo A tradição viva, de Ahmed Hampatê-Bá, através de seus estudos
sobre as tradições e formas de organização social persistentes no continente
africano ancoradas na oralidade, onde as tradições orais/musicais tem papel
central na produção de conhecimentos, na organização social e na legitimação
das identidades e visões de mundo (Hampatê-Bá, 1982). Acompanhando esta
opinião destacamos que a oralidade aqui é compreendida em seu amplo papel
para o legado cultural e político de um ou mais grupos sociais. Portadores e
porta-vozes de um posicionamento social através da música, a contribuição e
crítica destes sujeitos são indispensáveis às análises ora apresentadas, bem
como aos caminhos futuros que serão delineados ao longo do processo de
investigação. Por conta disso, ao registrar e apreender suas “falas” pretende-se
estabelecer um diálogo onde estes sujeitos e suas interpretações sejam vistas
como memórias de uma tradição recente impulsionada pela música.
Acompanhando Hampatê-Bá, Salomão Silva apontou com pertinência os laços
históricos dessa relação em plena história recente do Brasil, ao afirmar que
“Os compositores retomaram as ligações com as práticas Griot ou
Doma, ... formas destinadas a preservação da memória na forma de
canções (...) O encontro dos compositores e militantes negros com a
história da África antiga e do Brasil colonial, gerou um estilo inédito de
canções urbanas, que se encontravam em sincronia com as
proposições de alguns grupos negros.” (2000, p. 80)

Registro sonoro como Fonte de pesquisa
A ascensão das tecnologias de registro e profusão do som implicaram
inevitavelmente no surgimento de novas sociabilidades mediadas pela música.
Consequentemente o olhar sobre o papel da musicalidade nas relações
sociais, vem se transformando paulatinamente desde o uso do aparelho
fonógrafo inventado por Thomas Alva Edison(1877)14 como ferramenta de
14
“o fonógrafo [passa a ser] o principal recurso técnico do qual os pesquisadores norteamericanos e europeus dispõem para captar os mais diferentes estilos musicais, para registrar
afinações desconhecidas, provenientes de todo o mundo”(Pinto, 2004.P.107). No Brasil os
primeiros regirtros gravados no início do século XX foram realizados durante uma expedição de
14
trabalho do etnográfico e do nascimento dos primeiros acervos sonoros
sediado nos grandes centros europeus – voltados, quase sempre à
investigação da música não-ocidental(Pinto, 2004). Apesar de grandes avanços
entre pesquisadores e pesquisadores de campos como a etnomusicologia, ou
mesmo antropologia, os desafios para realizar um trabalho na área de História
ou Sociologia da música persistem, sobretudo aqueles que tematizam as
relações música, identidade, memória, pertencimento. José Geraldo de Moraes
aponta que entre os obstáculos da investigação do “documento musical”
encontram-se o peso das tradições da metodologia clássica que de modo
reducionista desarticula os elementos estruturais da canção (melodia, ritmo,
andamentos) da “realidade que gira em torno dela” (Moraes:2000, p. 215).
Conforme o autor, o registro final aparentemente ‘aprisionado’ no disco é o
resultado da interação entre variáveis internas (processo social de produção
artística) e externas(relação com o contexto de seus agentes realizadores). Na
medida que o disco15 é resultado e resultante da percepção do artista sobre o
mundo, sua reprodutibilidade incorpora as condições materiais e históricas e
são continuamente (re)construções impressas pelo público ouvinte.16 Em mão
dupla os ouvintes- intérpretes ao fazer uma (re)leitura da obra podem
incorporar novos sentidos, “às vezes trilhando caminhos inesperados para o
criador”(Moraes:2000, p.211)
Seguindo essa reflexão/desafio, tem sido feito o levantamento e análise
da produção discográfica dos grupos de Reggae da Bahia entre as décadas de
80, 90 e aproximadamente o ano de 2003, o que constitui um dos materiais
centrais desta pesquisa seguindo, portanto, um caminho apontado nos estudo
citados anteriormente(Silva:2000; Moraes:2000). No trabalho com essas fontes
são/serão analisados os elementos da linguagem musical utilizando fichas
catalográficas contendo as variantes: ano de lançamento, gravadora, nome
do(s) artista(s), título das canções, observações- comentários, textos adicionais
pesquisa dirigida pelo austríaco Richard Wettstein em 1901 que registrou falas,
cantosreligiosos e outras amostras acústicas do guarani e do português falado no Brasil(ibid. P.
117)
15
Disco refere-se a toda e qualquer obra musical, composta de até 04 canções – singles – ou
mais que constam como registro no histórico de um artista ou um conjunto deles.
coloquialmente associa-se esta definição restritamente ao disco de vinil.
16
Sobre esse debate, o clássico artigo de Walter Benjamin “A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica” (BENJAMIN:1960) traz abstrações muito pontuais e seu alcance
reverbera neste ensaio, ainda que o foco do autor tenha sido as lentes cinematográficas.
15
(encarte e/ou contracapa), músicos participantes, arranjador e produtor e/ou
diretor musical e artístico, observações. Este produto fonográfico e suas partes
integrantes (capa, encarte, artes gráficas, textos adicionais) compõem,
portanto, um universo de livre expressão dos artistas redimensionando o
alcance do registro auditivo como afirma Salloma Silva(:2000).
Em tempos de deliberada desvalorização dos acervos de vinil, nosso
levantamento
conta
com contribuições
de
ricos
acervos
particulares
pertencentes a produtores de Rádio de Salvador e colecionadores. Entre os
espaços de utilização pública encontram-se o acervo do Café Literário A
Senzala, agremiação estudantil da Universidade Estadual de Feira de SantanaBahia está entre as prioridades da pesquisa. As dificuldades de localizar parte
de nossa “documentação sonora” nos acervos públicos tem ampliado o
trabalho de busca incessante de colecionadores e adimiradores do gênero.

Referenciais cronológicos ... marcos em construção
A presença sonora-musical do Caribe no cenário cultural baiano(e vice-
versa) seguramente amplifica o contato entre estas duas regiões do Atlântico.
Nesse sentido qualquer tentativa de demarcação ‘ cronológica’ da presença de
ritmos como o Calypso, Mento, Merengue e logo em seguida Reggae requer
uma certa flexibilidade uma vez que, até o momento não dispomos de
informações que precisem estes fatos. Na verdade este é um ponto de menor
importância ao presente estudo. Chama-nos mais a atenção algumas balizas já
informadas e q serviram para a argumentação que segue.
Se o espaço lúdico de Salvador já convivia com forte presença dos sons
do Caribe, são os músicos da tropicália os primeiros a apresentarem registros
do que podemos chamar a chegada do Reggae na Bahia e no Brasil. A
gravação da Canção Nine out of tem, no álbum Transa, de Caetano
Veloso(1972), é o primeiro destes sinais17. Entretanto, tem sido lugar comum
considerar o fim dos anos 70 como marco introdutório do estilo no Brasil
tomando por base a Gravação do álbum Realce(1979) de Gilberto Gil, que
incluiu a versão da canção “No Woman, No Cry” de Bob Marley (Silva, 2000).18
17
Em 1972 Bob Marley and The Wailers lança o primeiro e antológico álbum, Catch a fire,
produzido por Chris Blackwell.
18
Esta afimação é refutada no Artigo de Godi(2001), apontando, como já mencionado, que a
presença do Calypso caribenho nos anos 60-70( forte estilo influenciador do Reggae) constituiu
16
No entanto, foi a morte de Marley em maio de 1981 que trouxe visíveis
mudança de ventos para a promissora consolidação do estilo ‘definidamente’
Reggae na Bahia. A partir de então, o mês de maio passa a ser data de tributo
ao Cantor e Compositor Bob Marley, em virtude de seu falecimento repentino.
Este episódio marcaria definitivamente o calendário no Movimento Negro e
suas políticas culturais(Godi, 2001).
Outro exemplo sugestivo desta presença é a fundação do Bloco Afro
Muzenza (fundado em 1981) como acentuam outros pesquisadores da música
já citados (Silva, 2000; Godi: 2001, 1997). Destarte, o sociólogo Ericivaldo
Veiga, no artigo O errante e apocalíptico Muzenza, aborda os caminhos desta
entidade e sua singular dimensão político-cultural de defesa das tradições
negras, observando o fenômeno musical então recente de matriz jamaicana (O
Reggae).
19
A intrigante relação desta entidade com o estilo ora investigado
está explícita no sobrenome do bloco – “o mestre do Reggae”20 -, revelando
uma “chamada identitária” como afirma Veiga21. Vale ressaltar que ao longo
dos anos 80 o surgimento de entidades carnavalescas com o Olodum que toma
o Reggae como símbolo étnico-identitário. Visivelmente influenciados pela
estética e ideais “Regueiros” o olodum passa a
franquear espaços de
discussão sobre a importancia da música e filosofias do Reggae à luta antiracista e à construção da auto-estima negra (ver Guerreiro, 2000).
Nos anos seguintes iniciam-se sistemáticas comemorações-tributos a
Bob Marley que, nos parece, serviram como fóruns de debates em torno da
negritude e noções de pertencimento, ocupados por admiradores declarados
do estilo, pesquisadores da cultura e história negras, artistas e entidades da
sociedade civil22. Em meados dos anos 80 três cidades estão especialmente
conectadas pelos fluxos da música Reggae: Salvador, Feira de Santana e
Cachoeira, de onde saem os principais representantes do estilo(Godi:1997,
2001). Finalmente em 1988 o cantor/compositor Edson Gomes lança seu
um agente fertilizador de sonoridades no terreno cultural e musical . ver, Godi: 2001. Não
vamos, contudo, prolongar este debate por agora.
19
VEIGA:1997 In: SANSONE, Livio/SANTOS, Jocélio Teles dos(orgs.). Obra citada. pp. 123143
20
Cf. ata de fundação. Ver, Veiga: 1997, p. 134. Em 1988 o Bloco lança um LP entitulado
“muzenza do Reggae”, um sinal maior de afinidade estética, política e musical.
21
ibid. p. 34
22
Jornal Folha do Reggae, Salvador-BA, 1997. estes eventos aconteceram simultaneamente
em Salvador, Feira de Santana e Cachoeira como relata material deste periódico.
17
pioneiro álbum, “Reggae Resistência”, lançado pela Gravadora EMI-ODEON
que, seguindo Godi(2001) inaugura a referência “Reggae Nacional” nas
prateleiras de Disco das lojas e na História da música brasileira.
Os dez anos seguintes assistiram à ascensão desta expressão estéticomusical, até sua presença definitiva nos carnavais de 1997 e 1998 emplacando
as músicas mais executadas do circuito festivo, e desfilando com blocos como
Resistência Ativa e Ska Reggae para foliões exclusivamente “regueiros”23
Curiosamente, o Reggae sente os primeiros sintomas de estafa e crise, um
fenômeno ainda não explicado pelos pesquisadores contemporâneos. A
retórica provocativa, a tônica transformadora e o discurso propositivo haviam
incomodado as elites baianas a que níveis? A ofensiva policial reprimindo
artistas e público tiveram dimensões de conflito racial?24 A presença do
Reggae nos espaços de lazer da juventude estudantil e dos trabalhadores
confirma a parceria entre lutas classistas e pela igualdade racial? Como a
produção musical registrou estes acontecimentos? Estas e outras questões
vem sendo levantadas ao longo dos últimos meses de pesquisa.
Em suma, as informações disponíveis, e suas lacunas, nos levam à
busca de outros registros que possam referendar ou redimensionar esses
marcos e questões. Estes inusitados acontecimentos são sugestivos de que há
muito trabalho pela frente.
É importante destacar ainda que, o foco nas
Cidades de Cachoeira, Feira de Santana e Salvador explica-se devido à
particular efervescência cultural em torno do Reggae que as envolveu(e). seja
pela já constatada naturalidade de muitos dos músicos, seja pelas informações
levantadas até o presente. A observação preliminar dos discos e as préentrevistas apontam à relação obra-contexto tendo suas origens nestes lugares
– haja vista o conteúdo de algumas letras, por exemplo. Além disso, é possível
imaginar que nessas cidades se construiu o que pode ser chamado de escolas
musicais do Reggae baiano e brasileiro. Contudo, trata-se de um caminho
preliminar sujeito à revisão.
Além dos registros fonográficos e Fontes orais, os Jornais também
serviram de suporte contextual para as demais fontes. Serão analisados os
23
Jornal Folha do Reggae, Salvador-Ba, 1997
foi amplamente divulgado na mídia a perseguição da Delegacia de Tóxicos e Intorpecentes
ao cantor Sine Calmon sob acusação de apologia ao uso de drogas. Um posicionamento
politizado foi expresso no Jornal Folha do Reggae.
24
18
fragmentos de Jornais do período, disponibilizados por alguns produtores
culturais e músicos, além dos exemplares do Jornal Folha do Reggae, uma
publicação de poucos exemplares destinada ao público adepto e admirador do
estilo. O periódico incluía agenda de shows, entrevistas, informes publicitários,
textos diversos, traduções de canções(do inglês para o português) e outros
elementos voltados ao entretenimento e informação do leitor.

Considerações finais(?)
Em suma, a presente atividade surgiu de um esforço para preencher
uma lacuna: A produção ainda rarefeita de estudos que focalizem o Reggae
como expressão fundamental desta “contracultura” plural de negros e negras
no mundo contemporâneo e sua trajetória singular no Brasil constitui o leit
motiv da elaboração desta investigação. No que se refere ao universo baiano, a
ausência de um estudo de maior profundidade sobre a musicalidade Reggae e
suas contribuições ao universo plural da Diáspora negra ressaltam a relevância
de concretizar estas problematizações através da pesquisa. No que diz
respeito ao universo dos músicos e de seus registros nenhuma pesquisa foi
construída, o que exige da pesquisa em curso uma atenção ainda maior com a
análise, pioneira das fontes.
A partir da sistematização de um catálogo discográfico, contendo
informações sobre as obras (técnicos de gravação, direção musical,
arranjadores, produtores, músicos, compositores, linguagens imagens, textos
adicionais, ano, autores dentre outros) associadas ao Reggae baiano pode-se
contribuir com a formação de uma base de dados que facilite/auxilie outras
pesquisas sobre a música baiana, além de dar visibilidade e audibilidade no
âmbito dos estudos recentes da cultura negra.
Apesar do alcance dos resultados desta pesquisa estar em aberto podemos
mensurá-lo uma vez que é uma de suas pretensões é ampliar os estudos sobre
os movimentos político-culturais no Brasil das décadas de 80 e 90,
privilegiando as concepções, estratégias, lutas e demandas da população
negra nos centros urbanos. Além disso, Identificar, através da música
registrada nos
discos, aspectos da tradição oral/musical traz novas
contribuições ao debate sobre a sobrevivência destas tradições recentes
reinventadas na diáspora negra.
19
REFERÊNCIAS DISCOGRÁFICAS

Adão Negro, Disco: Adão Negro,

Adão Negro, Disco: Só diretoria, 1999

Adão Negro, Disco: vence tudo, 2003

Celso Bahia, Disco: 2 Neguinhos, Gravadora: Continental, 1988.

Dionorina, Disco: Música das Ruas, Gravadora: Stalo Discos-BA,1994

_________, Disco: SACASÓ, Gravadora: Zero Bala-BA, 1998

Edson Gomes, Disco: Reggae Resistência, Gravadora: EMI-Odeon, 1988

____________, Disco: Campo de Batalha, Gravadora: EMI-Odeon, 1990

____________, Disco: Resgate Fatal, Gravadora: EMI-Odeon, 1995

____________, Disco: Recôncavo, Gravadora: EMI-Odeon, 1990

____________, Disco: Apocalipse, Gravadora: EMI-Odeon, 1998

Geraldo Cristal, Disco: Reggaessência, Gravadora: “Idependente”, 2002

Geronimo, Disco: Eu sou Negão, gravadora: Continetal, 1987.

Gilberto Gil, Disco: Realce, Gravadora: Elektra, 1979.

__________, Disco: Luar, Gravadora: WEA, , 1981.

__________, Disco: Um Banda Um, Gravadora: WEA, 1982.

__________, Disco: Extra, Gravadora:WEA,1983.

__________, Disco: Raça Humana, Gravadora; WEA, 1984.

__________, Disco: O Eterno deus Mudança, Gravadora: WEA, 1989.

__________, Disco: Kaya N’ Gan Daya Gravadora: WEA, , 2002.

Gilsam e Banda Airiyê, Disco: Reggae para Todos. “Idependente”, 2002

Jorge de Angélica, Disco: Sopa de Papelão, “Idependente”, ano?

Muzenza, Disco: Muzenza do Reggae. Continental, Ed. Latino, 1988.

Olodum, Disco:Da Atlântida a Bahia, Gravadora: Continetal 1991

_______, Disco: Egito, Madagascar, Gravadora: Continental, 1987.

_______, Disco: Movimento, gravadora: Continental, 1989.

_______, Disco: Olodum Filhos do Sol, Gravadora: Continetal/Warner,
1994.

Paul Simon, Disco: The Rhytthm of The Saints, Gravadora: WBR, Editora:
WBR, 1990.

Reggae Vibrações, Disco: Reggae Vibraçoes - Vários artistas, Kansas,
1991.
20

Sine Calmon e Banda Morrão Fumegante, Disco: Fogo na Babilônia.
Gravadora: Atração Musical, 1997

____________________, Disco: Rosa de Saron. Atração Musical, 1999

____________________, Disco: Eu vejo. Atração Musical, 2000

Ubaldo Warú, Disco: Reggae Man,
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADORNO, Theodor W. “O Fetichismo na Música e a Regressão da Audição”.
In: Os Pensadores. São Paulo: Abril, 1983, pp. 165-191.
ALCAZAR I GARRIDO, Joan Del. “as fontes orais na pesquisa histórica: uma
contribuição ao debate”. Revista Brasileira de História, 25/6, pp. 33-54.
AMADO, Janaína/ FERREIRA, Marieta de M. (orgs.) Usos & abusos da História
Oral. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1996.
APPIAH, Kwame Anthony. "A invenção da África". In: Na casa do meu pai: a
África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.
BENJAMIN, Walter. “A obra de Arte na Era da Reprodutibilidade técnica” In:
Coleção Os Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1998, pp. 29-56
CARDOSO, Marco Antonio(Org.). A Magia do Reggae. São Paulo, Martin
Claret, 1997.
CONNOR,
Steven.
Cultura
Pós-moderna:
introdução
às
teorias
do
contemporâneo. Tradução de Adail U. Sobral, Maria E. Gonçalves. São Paulo:
Edições Loyola, 1992
CONSTANT, Denis. Aux Sources du Reggae: Musique, Société et Politique en
Jamaïque. Marseille, Parentheses, 1982, pp. .
CUNHA, Manuela Carneiro da. "Etnicidade: da cultura residual mas irredutível"
In: Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo, Brasiliense,
1986.
DAVIS, Stephen/SIMON, Peter. Reggae: Musica e Cultura da Jamaica. Ed.
Centelha, Coimbra-Porto, 1983(coleção Rock On n.º 7).
FERREIRA NETO, Edgard. “História e Etnia” In: CARDOSO, Ciro F./VAINFAS,
Ronaldo.(orgs.). Domínios da História: ensaios de Teoria e metodologia. Rio de
Janeiro, Campus, 1997, pp. 313-328.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio: Editora Afiliada, 1989.
21
GUERREIRO, Goli. A trama dos Tambores: a música afro-pop de Salvador.
São Paulo, Editora 34, 2000.
GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Tradução
de Cid Knipel Moreira. São Paulo Editora 34; Universidade Cândido Mendes,
Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.
GODI, Antônio J.V.S. “Música afro-carnavalesca: das multidões para o sucesso
das massas elétricas” In: SANSONE, Lívio/TELES, Jocelio(orgs.). Ritmos em
trânsito: Sócio-Antropologia da Música Baiana. São Paulo, Salvador, Dynamis
Editorial, Programa a Cor da Bahia e projeto S.A.M.B.A., 1997, pp. 73-96.
__________.“Identidades e Legitimidades da musica negra contemporânea” In:
CAROSO, Carlos/BARCELAR, Jeferson. Brasil: um pais de negros? São Paulo,
Salvador, ed. Pallas/CEAO-UFBA, 1998, pp. 273-284.
__________. “Reggae in Bahia: a case of long-distance belonging”. In: DUNN,
Christopher/PERRONE, Charles A. Brazilian Popular Music & Globalization.
Florida, University Press of Florida, 2001, pp. 207-220
__________. “Rasta-Reggae, configuração e mundialização de um estilo
musical”. In: O Mal Estar no Fim do Século XX: Seminário interdisciplinar .
(Org.) CABEDA, Sonia & CARNEIRO, Nadia Virginia B. Feira de Santana,
Sagra/UEFS, 1997, pp. 81-87.
__________. “Por uma Epistemologia Plural: o “Negro” enquanto “objeto” de
pesquisa”. In: Revista CEPAIA: realidades Afro-indígenas. V 1, nº 1(dez. 2001).
Salvador: UNEB, 2001.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte,
Brasília: UFMG, UNESCO, 2003.
__________. “Quem precisa da Identidade?”. Tradução de Tomaz Tadeu da
Silva . In: SILVA, Tomaz Tadeu da(org.) Identidade e Diferença: a perspectiva
dos estudos culturais. Petrópolis, RJ, Vozes, 2000, pp. 103-136.
HAMPATÊ-BÁ, Ahmed. “A tradição viva”, in: KI-ZERBO, Joseph(Coord.)
História Geral da África – I. Metodologia e pré-história da África. São Paulo,
ática/UNESCO, 1982, pp. 181-218.
HALBWACHS, Maurice. “a memória coletiva nos músicos”. In: HALBWACHS,
Maurice. A memória Coletiva. São Paulo, Edições Vértice, 1990.
HOBSBAWN, Eric J. História social do Jazz - tradução Angela Noronha - Rio
de Janeiro, Paz e Terra , 1990.
22
__________. A Era dos Extremos: o breve século XX(1914-1991) – Tradução
Marcos Santarrita. São Paulo, Cia das Letras, 1995, pp. 382-503
KHOURY, Yara M. A./PEIXOTO, Maria do R./VIEIRA, Maria do Pilar de A. A
Pesquisa em História. São Paulo: Ática, 1989
LÜHNING, Ângela. “Métodos de trabalho na Etnomusicologia: Reflexões em
volta de experiências pessoais” In : Revista de Ciências Sociais. Fortaleza, Vol.
XVIII, N.ºs 1/2, 1991. Pp. 105-126.
MARCONDES FILHO, Ciro. Super Ciber: a civilização místico-tecnológica do
século 21- sobrevivências e ações possíveis. São Paulo, Ática Shopping
Cultural /ECA-USP: 1997
MNU. 1978-1988: 10 anos de luta contra o racismo. São Paulo, Confraria do
livro, 1988.
MORAES, José Geraldo Vinci de. “História e Música: canção popular e
conhecimento histórico” In Revista brasileira de História. Vol. 20, n.º 39 São
Paulo, ANPUH,2000
PINHO, Osmundo de A. “ The Songs of Freedom: notas etnográficas sobre
cultura negra global e práticas contraculturais locais” In: SANSONE,
Lívio/TELES, Jocelio(orgs.). Ritmos em trânsito: Sócio-Antropologia da Música
Baiana. São Paulo, Salvador, Dynamis Editorial, Programa a Cor da Bahia e
projeto S.A.M.B.A., 1997, pp. 181-200
PINTO, Tiago de Oliveira. “Cem anos de Etnomusicologia e a “Era Fonográfica”
da disciplina no Brasil” In: II Encontro brasileiro de Etnomusicologia(2004Salvador) Anais/ABET/CNPq/ Contexto, 2005.
POUTIGNAT, Philippe e STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade.
São Paulo, UNESP, 1997.
RISÉRIO, Antonio. Carnaval Ijexá: Notas sobre Afoxés e Blocos do Novo
Carnaval Afro-Baiano. Salvador: Corrupio, 1981.
SANSONE, Lívio. Negritude sem etni
cidade. Rio de Janeiro/Salvador:
Pallas/EDUFBA, 2004.
SANSONE, Lívio/SANTOS, Jocélio Teles dos(orgs.). Ritmos em trânsito: SócioAntropologia da Música Baiana. São Paulo, Salvador, Dynamis Editorial,
Programa a Cor da Bahia e projeto S.A.M.B.A., 1997.
SILVA, Carlos Benedito Rodrigues da. Da Terra das primaveras à ilha do amor:
Reggae, lazer e identidade cultural. São Luís: EDUFMA, 1995.
23
SILVA, “Salloma” Salomão Jovino da. A polifonia do protesto negro:
movimentos culturais e musicalidades negras urbanas (anos70/80)- Salvador,
São Paulo
e Rio de Janeiro. São Paulo, PUC-SP, 2002(dissertação de
mestrado).
TINHORÃO, J. Ramos, História da Música Popular Brasileira. São Paulo,
número 48, RCA\Abril Cultural, 1972.
VIANNA, Hermano. O mistério do Samba. Jorge Zahar, Editora UFRJ, Rio de
Janeiro, 1995.
WHITE, Timothy. Queimando Tudo: a biografia definitiva de Bob Marley.
tradução de Ricardo Silveira, Antônio Selvaggi. Rio de Janeiro, Record, 1999.
WOODWARD, Kathrin. “Identidade e diferença: uma questão teórica e
conceitual” In: SILVA, Tomaz Tadeu da(org.) Identidade e Diferença: a
perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ, Vozes, 2000, pp. 7-72.
Download