29 MAI | 2012 REMIX ENSEMBLE CASA DA MÚSICA 21:00 SALA SUGGIA Emilio Pomàrico direcção musical Iris Oja soprano Victor Pereira clarinete 1ª Parte Emilio Pomàrico direcção musical Paul Hindemith Kammermusik, op. 24 nº 1 [1922; c.15min.] 1. Sehr schnell und wild 2. Mäßig schnell Halbe 3. Quartett: Sehr langsam und mit Ausdruck 4. Finale 1921: Lebhaft Maestro e compositor italiano, Emilio Pomàrico nasceu em Buenos Aires e estudou com Franco Ferrara (Siena, Itália) e Sergiu Celibidache (Munique, Alemanha). Desde o início da sua carreira internacional tem sido convidado regularmente para dirigir as orquestras europeias mais notáveis tais como a Orquestra Sinfónica da Rádio Bávara, Sinfónica wdr de Colónia, Orquestra da Accademia di Santa Cecilia em Roma, Filarmónica do Scala, Orquestra Filarmónica da Radio France, Sinfónica de Bamberg, Orquestra Sinfónica Escocesa da bbc, Sinfónicas das Rádios de Hamburgo (ndr), Estugarda (swr) e Viena (rso) e Filarmónica da Rádio Holandesa, e em teatros como Ópera de Paris, Teatro alla Scala de Milão, Ópera de Roma, La Fenice de Veneza, Teatro São Carlos de Lisboa, nye Opera de Bergen, Ópera de Oslo e Ópera de Graz. É convidado regularmente pelos festivais internacionais mais importantes, tais como o Festspiele de Salzburgo, Festival Internacional de Edimburgo, Festival d’Automne e Agora em Paris, Wiener Festwochen e Wien Modern em Viena, Berliner Festspiele, Musica Viva em Munique, La Biennale Musica em Veneza, Donaueschinger Musiktage, Musik der Zeit e Musik Triennale em Colónia, Musica em Estrasburgo, etc. Compromissos próximos levam-no à Sinfónica wdr de Colónia, Filarmónica da Rádio Alemã de Saarbrücken, Sinfónica da Rádio Bávara em Munique, Sinfónica swr de Baden-Baden e Freiburg, Filarmónica de Câmara da Rádio Holandesa e Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música. Sendo também compositor, Emilio Pomàrico dedica muitas das suas energias à interpretação de música contemporânea, colaborando com os principais ensembles europeus tais como o Asko|Schönberg, Ensemble intercontemporain, Klangforum Wien, Musikfabrik, Remix Ensemble, Ensemble Resonanz e ensemble recherche. Pascal Dusapin Aks, para voz e sete instrumentos [1987; c.9min.] Pascal Dusapin Aria, concerto para clarinete e pequena orquestra [1991; c.11min.] 2ª Parte Pascal Dusapin Comoedia, para voz e seis instrumentistas [1992; c.10min.] Igor Stravinski A História do Soldado [1918/1920; c.26min.] - Introdução – Marcha do Soldado - Ária na margem do rio - Pastoral - Marcha Real - Pequeno Concerto - Três Danças (Tango, Valsa, Ragtime) - Dança do Diabo - Grande Coral - Marcha Triunfal do Diabo portrait pascal dusapin v frança 2012 Notas ao programa disponíveis em www.casadamusica.com, na página do concerto ou no separador downloads. MECENAS CASA DA MÚSICA APOIO INSTITUCIONAL MECENAS PRINCIPAL CASA DA MÚSICA Iris Oja meio-soprano Victor Pereira clarinete Iris Oja é cantora e solista no Coro Filarmónico de Câmara da Estónia. Tem-se apresentado como solista em vários palcos da Ásia, Austrália e eua bem como na Europa. O seu repertório inclui obras corais-sinfónicas de Bach, Händel, Haydn, Mozart, Beethoven, R. Strauss, Stravinski e Pärt; árias de ópera de compositores de diferentes períodos (Purcell, Händel, Mascagni, Mozart, Rossini, Verdi, Stravinski); e um extenso repertório de música de câmara e canções a solo (R. Strauss, Liszt, Rachmaninoff, Tchaikovski, Chostakovitch, Crumb, Lachenmann etc.). Iris Oja tem cantado com muitas orquestras prestigiadas (Orquestra de Câmara de Tallinn, nyyd Ensemble, Orquestra Sinfónica Ernest Read, Remix Ensemble, Orquestra de Câmara de Moscovo, Concerto Copenhagen, Israel Camerata de Jerusalém, entre outras) e maestros de renome (N. Järvi, P. Hillier, O. Elts, N. Aleksejev, T. Kaljuste, D. Reuss, E. Klas, A. Mustonen, etc.). Estreou composições novas de vários compositores contemporâneos e gravou música para filmes de animação. No início de 2008, a Harmonia Mundi Company produziu o seu primeiro álbum a solo com canções de Rachmaninoff e Chostakovitch. No início de 2009, a Da Capo Records editou um outro cd a solo, com a obra Moon-Pain do compositor dinamarquês Klaus Ib Jørgensen. O seu grupo de música contemporânea, Resonabilis, editou o seu primeiro cd em Março de 2009. Depois de estudar na Academia de Música de Castelo de Paiva, Victor Pereira continuou a sua formação na Escola Superior de Música e das Artes do Espectáculo do Instituto Politécnico do Porto, onde concluiu a Licenciatura na classe de António Saiote, tendo-lhe sido atribuído o Prémio “Fundação Eng. António de Almeida”. Detém ainda, desde 2006, o grau de Mestre em Performance Musical pela Universidade de Aveiro, onde trabalhou com Alain Damiens. Paralelamente, efectuou masterclasses com Perez Piquer, Michel Arrignon, Paul Meyer, Alain Damiens, Howard Klug, Phillipe Cupper, Guy Chadash e Guy Deplus. Foi premiado em vários concursos dos quais se destacam: o 1º Prémio no II Concurso Nacional de Jovens Clarinetistas (nível superior), organizado pela Associação Portuguesa do Clarinete; 3º Prémio no I Concurso Internacional de Clarinete do Porto, no qual lhe foi também atribuído o Prémio do Público, 3º Prémio no Concurso Jovens Músicos (nível superior) da rdp, 2º Prémio na categoria de música de câmara (nível superior) no Concurso Jovens Músicos da rdp e finalista no 3rd Osaka International Chamber Music Competition & Festa, no Japão. Victor Pereira é solista do Remix Ensemble Casa da Música e é professor de clarinete e música de câmara na Academia de Música de Castelo de Paiva e na Escola Profissional de Música de Espinho. remix ensemble casa da música Peter Rundel, maestro titular Violino Angel Gimeno José Pereira Clarinete Victor Pereira Ricardo Alves Percussão Mário Teixeira Manuel Campos Viola Trevor McTait Fagote Roberto Erculiani Piano Jonathan Ayerst Violoncelo Oliver Parr Trompa Nuno Vaz Acordeão Paulo Jorge Ferreira Contrabaixo António Augusto Aguiar Trompete Gary Farr António Silva Flauta Stephanie Wagner Oboé José F. Silva PATROCINADOR FRANÇA 2012 APOIO INSTITUCIONAL Trombone Vítor Faria Ricardo Pereira MECENAS PROGRAMAS DE SALA MECENAS EDIÇÕES CASA DA MÚSICA A CASA DA MÚSICA É MEMBRO DE Este concerto do Remix Ensemble é em grande parte dedicado à música de Pascal Dusapin, Compositor em Residência 2012 na Casa da Música. Autor de extensa obra em variadíssimos campos (música a solo, de câmara, orquestral, concertante, ópera), Dusapin é amplamente reconhecido pelos pares, crítica e público como uma das figuras mais importantes da composição actual. Inicialmente influenciado pela música de Xenakis e Varèse, rapidamente começou Dusapin a construir uma voz própria, numa concepção essencialmente linear (ou melhor, multilinear). Para ele, de facto, o elemento primordial da música é a linha melódica (ou melhor, a sobreposição de várias linhas, numa concepção polifónica ou contrapontística). Neste aspecto, distingue-se de boa parte da música francesa que lhe é contemporânea (especialmente da música espectral), geralmente mais orientada para a cor, som e harmonia, do que para a linha, melodia e contraponto. Neste contexto, Dusapin tem-se especialmente interessado pela voz e pelo canto, recorrendo frequentemente a esses meios e usando-os também como modelos para a composição instrumental. Esses dois aspectos estão bem patentes nas peças que hoje ouvimos: Aks e Comoedia, obras para voz feminina e ensemble instrumental; Aria, um pequeno concerto para clarinete e orquestra de câmara, cujo título claramente evoca o sentido vocal. Enquadrando estas três peças, ouvimos dois clássicos da música da primeira metade do século XX: a primeira das Kammermusik de Hindemith (a abrir o concerto) e a suite de A História do Soldado de Stravinski (a encerra-lo). licado, ora terno e afectuoso (em especial nas partes reservadas às cordas), ora brincalhão. Começa com um carácter simples e gracioso, em andamento de marcha, que conduz a uma pontuação em tutti (ideia frequentemente repetida). Sucedem-se múltiplos episódios, gerando uma progressão crescente. O terceiro andamento, lírico e expressivo, despojado e contemplativo, adquire especial saliência num quadro global vivo e dinâmico. É uma sublime página de invenção melódica, num universo sonoro rarefeito: três instrumentos melódicos (clarinete, flauta e fagote) e um glockenspiel, que ocasionalmente faz delicadas pontuações, sempre com a mesma nota. Quando poderíamos esperar uma explosão de energia (contrastando com a música anterior), o quarto andamento começa, na verdade, em surdina. Trata-se de um fundo agitado dos violinos (quase um zumbido), sobre o qual, como que hesitando, o piano vai colocando algumas notas destacadas. A sonoridade vai ganhando corpo, sendo interrompida por um elemento enérgico em ritmo marcado (no piano, caixa e acordeão), que irá constituir um elemento recorrente, uma espécie de refrão. Ao longo do andamento assistimos a um gradual crescendo, como se a surdina inicial fosse progressivamente retirada. Pascal Dusapin nancy, 29 de maio de 1955 Aks, para voz de mezzo e 7 instrumentos (1987) Paul Hindemith hanau (hesse), 16 de novembro de 1895 frankfurt, 28 de dezembro de 1963 Kammermusik, op. 24 nº 1 (1922) Obra de juventude de Hindemith, esta Kammermusik (concluída em 1922) é bem representativa do seu estilo inicial, exuberante e anti-conformista, que contrasta com o estilo mais conservador (e sobretudo mais recatado) da maturidade. Composta para um ensemble de 12 solistas, esta obra é a primeira de um ciclo de oito peças intituladas Kammermusik, escritas entre 1921 e 1927. Apesar do título, quase todas envolvem efectivos mais numerosos do que os habitualmente se associam à música de câmara. Contudo, os instrumentos tendem a ser tratados como solistas e não como componentes de grandes massas orquestrais: é nesse sentido, sem dúvida, que devemos entender o título. Kammermusik nº1 estrutura-se em quatro andamentos, com caracteres expressivos próprios. O primeiro é memorável pelas alucinantes sonoridades, que sugerem uma nova sensação de velocidade e vitalidade mecânica, tão característica do tempo de composição da obra. Aí se destacam as cordas em movimento rápido com notas destacadas; uma melodia caprichosa no clarinete e flauta; um apelo enérgico nas trompetes; uma passagem exuberante nos xilofones; violentos ataques nos metais e percussão. O segundo andamento tem um sentimento mais de- Aks resulta de uma encomenda da Sociedade dos Amigos do Museu das Artes e Tradições Populares de Paris. A peça baseia-se em material popular providenciado a Dusapin pelo Departamento de Etnomusicologia do próprio Museu: trata-se de melodias populares cantadas em provençal, língua românica do sul de França, cujos textos relatam várias situações do dia-a-dia (do trabalho e do lazer, da labuta nos campos e da religião, da vida e da morte). As melodias originais são raramente utilizadas de modo literal e in extenso. É esse o caso, unicamente, da linha inicial do violoncelo; as mais vezes, pelo contrário, Dusapin transforma amplamente o material de base. Em relação ao texto, ele é cantado por uma voz de mezzo, no estilo bastante virtuosístico e irregular, pleno de múltiplas ornamentações mas ainda assim cantabile, que constitui um dos traços estilísticos do compositor. Na partitura, Dusapin especifica que a cantora deve procurar um carácter tímbrico popular, de sonoridade crua, sem vibrato sistemático (mais associado a uma formação erudita). Sobre a já referida melodia inicial no violoncelo, a mezzo começa por realizar um movimento irregular, quase caprichoso. Há depois um grande contraste, numa sonoridade muito mais densa em que todo o ensemble participa com dois elementos: articulações vincadas e desfasadas; melodias insolitamente dobradas à oitava (uma no canto e clarinete e outra no violoncelo e flautim). Segue-se um simples contraponto entre o canto e o violoncelo, no registo grave; e uma parte mais ligeira e luminosa, em que o clarinete baixo e a flauta se juntam ao violoncelo. 3 Está assim dado o mote para o percurso da peça, alternando secções mais agitadas e calmas, densas e rarefeitas, breves e longas, estáticas e dinâmicas. Em geral, é no meio da obra que há maiores rupturas e descontinuidades: tanto no início como no fim há um maior sentimento de continuidade. A última secção, começando com uma articulação em bloco dos vários instrumentos, de carácter vivo e exterior, contém um desenvolvimento bastante extenso, em que o efeito expressivo se torna cada vez mais intenso. Esta obra foi estreada no referido Museu das Artes e Tradições Populares, em 13 de Janeiro de 1987, com a mezzo Hélène Delavault e o Ensemble 2e2m, sob a direcção de Paul Mefano. Aks Quando o boieiro volta de lavrar Pranta em terra sua aguilhada, Encontra sua mulher ao pé do braseiro Triste, desconsolada. Tinha aberto a torneira E ficado emborrachada. Se estás doente, diz-mo: Far-te-emos um caldo Com um nabo e uma couve Com uma pequena cotovia. Quando morrer enterra-me Bem no fundo da cave Pés contra o muro cabeça debaixo da torneira. Os peregrinos que passarem hão de tomar água benta constituir solistas secundários), parece apelar particularmente ao sentido musical de Dusapin, que tende a privilegiar a escrita de linhas melódicas, de inspiração vocal. Essa inspiração vocal reflecte-se no próprio título, que remete para o termo italiano (melodia vocal acompanhada). Contudo, o título alude também ao termo francês, cujo sentido se aproxima da ideia de embaraço ou preocupação. Essa dupla conotação dá conta de dois traços da obra: o carácter cantabile, de inspiração vocal, visível não apenas na parte solista, mas também em múltiplas passagens do ensemble; a actividade musical frenética, sem repouso nem descontracção, que está quase sempre presente. A obra começa com uma sonoridade bastante densa, em que o clarinete, alternando notas longas e figuras rápidas, elabora progressivamente a sua linha, num carácter crescentemente virtuosístico. Por seu turno, a orquestra é bastante activa, nela se destacando o clarinete baixo (uma espécie de personagem secundária, sombra do solista principal). Ao fim de algum tempo, a música torna-se mais simples, num momento de grande beleza, em que uma linha expressiva e graciosa (que parece evocar uma espécie de dança no ar) é cantada num uníssono cada vez mais espesso. A dado momento, quase todo o ensemble participa nessa linha. Sem qualquer corte, a música ganha rapidamente uma maior densidade, numa complexa rede de melodias que se parecem imitar umas às outras. Um pouco mais tarde, chegamos à expressiva cadência do solista, em que este é apenas acompanhado pelos tímpanos. Em seguida, os outros instrumentos entram gradualmente. No final, contudo, há uma secção mais rarefeita e introspectiva. Esta obra foi encomendada pela cidade de Estrasburgo (e pelo Festival Musica dessa cidade) para o bicentenário da morte de Mozart, cujo concerto de clarinete (geralmente reconhecido como a obra-prima do género) Dusapin parece aqui evocar (por algumas sonoridades instrumentais, pelo carácter cantabile da linha de clarinete). A estreia esteve a cargo do clarinetista Armand Angster, com solistas da Orquestra Filarmónica de Estrasburgo, a 4 de Fevereiro de 1992, no Mozarteum de Salzburgo. dizer um pater noster e um ave pela coitada da Bernarda … Comoedia, para soprano e seis instrumentistas (1992) que se foi direita pró céu, Lá encima mai-las suas cabras “Ámen, ámen” respondeu Bernardo, “que bem que te puseram” Tradução: Carlos Amador Aria, concerto para clarinete e pequena orquestra (1991) A música concertante ocupa um lugar substancial na obra Dusapin. Além desta Aria, é autor de concertos para flauta (1981 e 1998), trombone (1994), violino (1996), violoncelo (1996) e piano (2002). Esta configuração, em que um solista se articula com um ensemble instrumental mais ou menos numeroso (cujos elementos podem, eles próprios, Esta obra tem uma formação comparável à de Aks. Em qualquer dos casos, uma voz feminina vem acompanhada por um pequeno ensemble instrumental (septeto em Aks; sexteto em Comoedia), exclusivamente composto de instrumentos monódicos (ou seja, instrumentos que, regra geral, não tocam mais do que um som ao mesmo tempo). Ao contrário de Aks, a fonte do texto é aqui a mais erudita possível: trata-se de três excertos da “Divina Comédia” de Dante, dedicados ao Paraíso. Os três excertos são articulados musicalmente em três andamentos de sonoridades, caracteres e percursos formais bem diversos. O primeiro andamento é de sonoridade bastante densa e homogénea, sobrepondo linhas melódicas bastante independentes, ora mais expressivas, ora mais virtuosísticas. O segundo andamento é mais variado: se começa com uma parte instrumental, contém um momento em que o 4 canto fica só; se em algumas partes têm várias linhas independentes (como no andamento anterior), noutras os instrumentos funcionam em bloco. O terceiro andamento começa com um duo entre o canto e o oboé, de carácter expressivo, misterioso, distante, arcaico. Encontramos aqui as texturas menos densas da peça (em certas passagens o violino e clarinete tocam mesmo a solo). Aos poucos, contudo, a sonoridade tornase mais complexa. A obra foi estreada a 1 de Abril de 1992, em Toulouse, pelo Ensemble Ars Nova (sob a direcção de Philippe Nahon), com a soprano Françoise Kubler. Comœdia I (versos 1-9) A glória daquele que tudo move penetra o universo e resplandece numa parte mais e noutra menos. No céu onde mais aparece a sua luz estava eu, e vi coisas que dizer não sabe nem pode quem do alto desce; porque aproximando-se ao seu desejo, nosso intelecto se aprofunda tanto, que para lá da memória não pode ir. II (versos 127-138) É verdade, que muitas vezes a forma não condiz com o intento da arte, porque no responder a matéria é surda, assim deste trajecto se aparta por vezes a criatura, que tem poder de dobrar, impelida contudo, para outra parte; tal como se pode ver cair o raio da nuvem, se o primeiro ímpeto o abate sobre a terra por falsos prazeres. Não deves admirar-te, se bem compreendo, da tua subida, que tal como um ribeiro de alta montanha desce até ao vale. III (versos 85-93) E ela que via em mim tanto quanto eu, para acalmar o meu espírito agitado, antes que eu para perguntar, a boca abrisse, disse: “A ti mesmo te enganas com falsas ideias e, por isso, não vês coisas que verias, se as tivesses afastado. Tu não estás sobre a terra, como julgas; mas o raio, escapando do céu, não é tão veloz como tu que a ele regressas”. Tradução: Cristina Guimarães Igor Stravinski 5 oranienbaum (perto de são petersburgo), 17 de junho de 1882 | nova iorque, 6 de abril de 1971 Suite de “A História do Soldado” (1920) Esta suite parte da música que Stravinski compôs em 1918 para um espectáculo dramático de teatro ambulante. Stravinski encontrou a temática (de clara inspiração faustiana) num dos contos de Afanasiev sobre o Soldado e o Diabo. Resultou daí um esqueleto narrativo que foi elaborado por Charles-Ferdinand Ramuz. No enredo de Ramuz, um Soldado vende a sua alma (representada pelo violino) ao Diabo, em troca de um livro que lhe permite prever o futuro. Quando volta à sua cidade, o Soldado constata que, ao contrário do que lhe fora prometido pelo Diabo, não se tinham passado três dias, mas três anos: entretanto, fora esquecido pelos seus. Usando o seu livro mágico, o soldado torna-se então imensamente rico, para rapidamente ver que continua infeliz. Inebriando o Diabo num jogo de cartas, consegue reaver o violino e conquistar o coração de uma princesa. No entanto, a sua ambição cresce sempre, acabando por ceder à tentação do Diabo, dando-lhe a vitória final. A obra é escrita para um pequeno ensemble que contém duas madeiras (clarinete e fagote), dois metais (corneta de pistões e trombone), cordas (violino e contrabaixo) e percussão diversificada (que remete para o mundo das bandas de jazz ou da música de circo). Como o argumento sugere, o violino é a personagem principal. Contudo, não se trata da imagem tradicional de um violino lírico e expressivo; o seu conteúdo é mais rítmico do que melódico, num clima próximo do espírito do circo e dos músicos ambulantes. Nas raras ocasiões em que parece iniciar um sentimento lírico, apercebemo-nos quase imediatamente que se trata de uma caricatura. Em relação ao original, a suite (realizada em 1920) retira as intervenções do narrador, condensa alguns dos andamentos e elimina repetições. Divide-se em nove andamentos: Marcha do Soldado (marcada por uma figura obsessiva no contrabaixo e alternando episódios em tutti e pequenos conjuntos); Ária na margem do regato (protagonizada pelo violino, tocado pelo Soldado); Pastoral (número mais expressivo e sombrio, lançado por um canto descendente no clarinete); Marcha Real (fanfarra pomposa com destaque para o trombone e corneta); Pequeno Concerto (número muito vivo, com protagonismo do clarinete e violino); Três Danças – Tango, Valsa e Ragtime (todas elas apresentadas de modo caricatural); Dança do Diabo (dança infernal, de movimentos muito rápidos e sonoridades ásperas); Grande Coral (música majestosa, anunciando ironicamente que o soldado irá ultrapassar os limites e ceder novamente às tentações do Diabo); Marcha Triunfal do Diabo (dança obsessiva, de carácter rítmico extremamente pronunciando). No final, o violino desaparece, ficando isolada a percussão, em inexorável caminho rumo ao vazio: assim se assinala a definitiva perda da alma do Soldado. Daniel Moreira (2012)