O 14.º Congresso Nacional do Partido Comunista da China e a Lei

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Administração, n.° 19/20, vol. VI, 1993-1.° e 2.°, 171-176
°
O 14. CONGRESSO DO PARTIDO
COMUNISTA DA CHINA E A LEI
BÁSICA NO CONTEXTO DO
PRINCÍPIO «UM PAÍS, DOIS
SISTEMAS»
Ho Kuong Choi *
Agora que encerrou o 14.° Congresso Nacional do Partido
Comunista da China (CNPCC), que recentemente atraiu as
atenções do mundo, podemos pôr a pergunta: com que olhos viram
este congresso os chineses do continente, de Macau, de Hong Kong
e de Taiwan? Com que olhos viu o resto do mundo este congresso?
Por muito diferentes que sejam as opiniões individuais, todas
podem ser reduzidas a um único denominador comum: a linha
política deste 14.° CNPCC, com as teses de Deng Xiaoping como
directriz e novas personagens na direcção do Comité Central do
PCC, vão influenciar de modo muito importante, não apenas o
continente neste século, mas igualmente o desenvolvimento futuro
de Taiwan, Hong Kong e Macau. As variáveis das influências que já
se fazem sentir serão em muitos casos desconhecidas, e não se pode
ignorar que a China é um gigante, do mesmo modo que se não pode
ignorar quem comanda o gigante — o PCC. No entanto, a
realidade é esta: os chineses, apesar do seu passado semeado de
escolhos e revezes, terão encontrado um novo curso para a sua
história, viável, um caminho sem tantos istmos, sem tantas cores,
mais harmonioso, mais abastado. Se assim for, à nossa Nação antiga
que atravessou já tantas vicissitudes, reservam-se honras e
felicidade insuspeitas. Mas, podemos nós esperar tanto? Neste
momento de fusão de realidades, esta pergunta põe-se, quando os
olhos do mundo estão virados para Pequim, neste Outono de 1992,
em que se aguarda com expectativa o despontar duma nova
forma de pensar.
* Professor do ensino secundário.
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AGARRAR A REALIDADE COM AS DUAS MÃOS — A TESE DE
DENG XIAOPING
Pode dizer-se que a nova forma de pensar existe já — é o
socialismo de características chinesas, formulado por Deng. Aquilo
a que se chama «características chinesas» é agarrar a realidade com
ambas as mãos: numa, a economia de mercado socialista; na outra,
a ditadura do proletariado.
O secretário-geral do PCC, Jiang Zimin, realçou no seu
relatório, quando se dirigiu ao 14.° CNPCC, que construir um
socialismo de características chinesas tem sido a linha básica de
actuação do partido desde a 3.a Sessão Plenária do 11." Comité
Central. O objectivo é o de mudar radicalmente o sistema
económico, o qual não permite o desenvolvimento das forças
produtivas do nosso país. Segundo Jiang, não se trata apenas de
aplicar uns quantos remendos ao sistema económico nacional
existente, mas sim duma mudança radical. O núcleo desta transformação consistirá em estabelecer e aperfeiçoar o sistema económico
de mercado socialista. O PCC, que de há mais de 40 anos domina o
continente, levantou hoje pela primeira vez a cabeça fora do buraco
dos moldes económicos de Estaline, ou seja, da economia planificada socialista. Trata-se de corrigir os erros do passado com base na
reflexão nas dolorosas lições e fracassos económicos do próprio
PCC e dos demais países comunistas do mundo, e das práticas das
últimas décadas. É uma questão de respeitar a objectividade das leis
económicas. Não importa como é que o PCC vai explicar a sua
«economia de mercado socialista». Os compatriotas chineses
aplaudem esta mudança. A verdade é que, impulsionada pela
economia mercantil, a economia do continente, com todos os
problemas acumulados nos últimos mais de dez anos, conseguiu
ainda assim subir um degrau na escada do desenvolvimento.
Podemos afirmar que, com o aumento posterior que se vier a
registar no plano da economia de mercado, a China só virá a
beneficiar. Com o melhorar das condições económicas, vão
registar--se alterações no plano ideológico também. A nova
geração vai assistir ao estabelecimento de um melhor modelo social
que será, esperemos, aceite por todo o povo. Teremos no entanto
de esperar que tal passe do mero plano das conjecturas ao plano da
realidade. Embora esta economia socialista de mercado criada por
Deng Xiaoping, autoridade máxima dentro do PCC, nada tenha de
novo — há quem diga que se está a vender gato por lebre —
temos de enfrentar a realidade e admitir que, ainda assim, não se
trata dum pequeno passo, se tomarmos em consideração o facto de
que o PCC enfrenta uma séria situação nacional, de fortes
tendências esquer-distas no seio do partido. Esta decisão requer
assim, não apenas capacidade para respeitar realidades objectivas,
mas também máxima autoridade e grande coragem. Podemos
afirmar que Deng
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Xiaoping, nestes seus últimos anos, desde os incidentes do 4 de
Junho, tem vindo a jogar uma boa partida de xadrez. Não devemos
no entanto esquecer que entre as ideias de Deng continua a
defender-se o princípio de garantir a estabilidade da política
socialista, que deve manter-se inabalável. No seu discurso, ao
dirigir-se ao 14.° CNPCC, Jian Zimin realçou, de forma insofismável,
a intenção de se continuar a insistir nos «4 princípios», que
continuarão a ser a base da construção político-económica do país. O
sistema multipartidário e o sistema parlamentar ocidentais não têm,
segundo Jiang, cabimento na China. Nos órgãos do Estado,
aplica-se a concentração democrática; no controlo da sociedade,
continuar-se-á a fortalecer a ditadura democrática popular, insistindo na política de «um país, dois sistemas». A essência da tese de
Deng é firme em ambas as mãos que a suportam; basicamente,
«prevenir o esquerdismo no plano económico e evitar os princípios
direitistas no domínio político». As futuras políticas internas e
externas do PCC seguirão esta linha.
A DITADURA UNIPARTIDÁRIA E A CORRUPÇÃO
A ditadura unipartidária e a direcção que não tolera ser
desafiada têm sido as características do domínio do PCC durante os
seus mais de quarenta anos de governo. A autoridade partidária
suprema não apenas se manifesta em todos os aspectos da
organizaço do partido em si, como se estende aos membros que
integram individualmente o partido. Dado que se não tolera o
desafio partidário, o sistema não é controlado: os comunistas
concentram em torno de si os poderes do partido, do governo, do
exército e da economia, e surge inevitavelmente a corrupção, como
um facto nunca antes visto na história. Os casos de corrupção e de
actuação cega não são raros: «rectificação do estilo», «luta
antidireitista», «movimento das três bandeiras vermelhas», «movimento de depuração nos quatro terrenos (político, ideológico,
económico e orgânico)», «revolução cultural», casos de traficantes
em altos postos oficiais, o incidente do 4 de Junho... Estas foram
lições dolorosas que não serão facilmente apagadas da memória do
povo, embora seja necessário andar para a frente. Com o tempo, as
memórias tornam-se mais difusas, mas a questão está em que os
comunistas devem obter a confiança do povo através de acções
concretas.
Na 3.a Sessão Plenária do 11.° Congresso do Comité Central do
PCC, o partido abandonou a linha ultra-esquerdista, cujo motor era
a luta de classes, o que sem dúvida foi um marco na história. Porém,
até hoje, o verdadeiro mecanismo democrático ainda se não
estabeleceu, e a chamada «coexistência duradoura e supervisão
mútua» não são mais do que palavras vazias. O que o povo gosta de
ver não são «slogans» revolucionários em documentos com carac173
teres vermelhos, ou artigos dos órgãos de propaganda. Os carimbos
da burocracia e os vasos de flores a embelezar as fotografias de
líderes e as salas de reuniões do partido já não convencem o povo,
que está farto desde há muito destes adereços de palco que só
servem para manter as aparências. O que o povo quer é um partido
lúcido, prático, capaz de tudo fazer pela Pátria. Tal partido, se
aceitar as opiniões das massas populares, obterá, sem dúvida,
também o apoio do povo e as suas afeições. Semelhante partido não
precisará, de maneira nenhuma, duma direcção reforçada e muito
menos duma autoridade suprema acima de qualquer desafio. Ao
dirigir-se ao 14.° CNPCC, Jian Zimin referiu quão activamente se
está a processar a reforma do sistema político, para que a
democracia socialista e a construção jurídica possam desenvolver-se
ainda mais. No entanto, fora do partido, a impressão que se tem é
extremamente abstracta: se há alterações, elas são vagas e pouco
significativas. As experiências dos últimos quarenta anos vêm aliás
mostrar claramente que Jiang Zimin não se referia a pontos
essenciais que pesam no equilíbrio da balança dos assuntos
políticos. Não se percebe por que é que um partido que conta 50
milhões de militantes e concentra em torno de si todos os poderes
do país não pode enfrentar a população com maior benevolência.
Diz o adágio que «o poder corrompe e o poder absoluto corrompe
absolutamente». É uma lei histórica, e os comunistas chineses não
constituem a excepção à regra. Mesmo os grandes do partido, como
Mao Zedong e Deng Xiaoping, não conseguiram evitar esta
ratoeira. No discurso de Jiang Zimin, o apelo ao fortalecimento da
direcção do partido fez-se ouvir sonoramente. Quem se não lembra
das sombras das décadas de 60 e 70, quando se preconizava a
unificação da direcção do partido do proletariado? Nas últimas
décadas do poder da Nova China, a melodia política sempre foi
tocada alto e em bom tom quando se avizinhava um qualquer
desastre. É exactamente por esta razão que os compatriotas sentem
medo — como se estivessem sentados sobre um muro em vias de
se desmoronar. Se os comunistas no poder conseguissem sair da
gaiola política em que se fecharam e criassem um ambiente
democrático e harmonioso, estabelecessem um mecanismo eficaz
de controlo capaz de punir os que abusam do poder com intuitos
pessoais, desprezando a lei e a disciplina, então a corrupção poderia
ser controlada, e a economia socialista de mercado
desenvolver-se-ia normalmente.
TAIWAN, HONG E MACAU NA ERA PÓS-DENG XIAOPING E A
POLÍTICA «UM PAÍS, DOIS SISTEMAS»
Com o encerramento do 14.° CNPCC, ficou formada na
primeira sessão plenária um novo colectivo dirigente do partido.
Embora eleito na tradicional e pouco democrática forma do PCC,
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por levantamento da mão segundo a lista dos candidatos indicados,
o afastamento de uma série de velhos políticos mostra uma viragem
evidente na estrutura política na época pós-Deng. Este aspecto não
deixará de pesar nas situações políticas de Taiwan, Hong Kong e
Macau. A teoria marxista típica da negação, negação da negação,
fica patente nesta viragem? Toda a gente sabe que, se os velhos
políticos continuarem no poder central, a tese de Deng Xiaoping —
agarrar a realidade com as duas mãos — não será apenas a corrente
principal da política continental, como será também extensível às
regiões administrativas especiais de Taiwan, Hong Kong e Macau.
Aliás, só neste espaço a teoria «um país, dois sistemas» é viável.
«Um país, dois sistemas» é um princípio que demonstra a
benevolência de Deng Xiaoping, ou, pelo contrário, é um testemunho das suas artes de sedução? Creio que se podem dispensar os
comentários. Mas a Lei Básica — futuro projecto «um país, dois
sistemas» — e as leis-código nascem exactamente desta tese de
agarrar a realidade com as duas mãos. Tome-se para exemplo a Lei
Básica, cujo espírito geral é o de «politicamente um país,
economicamente dois sistemas».
«Politicamente um país» significa que as políticas vitais da
futura Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) serão
controladas pela mão do Comité Central do PCC. As autoridades
centrais da RPC não só controlarão os assuntos diplomáticos, a
defesa, e a nomeação do governador local, como controlarão os
altos funcionários da administração, membros do corpo legislativo,
juizes e procuradores que têm de prestar juramento de fidelidade ao
Comité Central quando assumem os seus cargos. Em caso de
emergência, o governo central pode ditar ordens sobre a aplicação
das leis nacionais concernentes à RAEM *. Estas estipulações,
pouco explícitas, constituem uma séria ameaça para as actividades
dos macaenses e para a sua liberdade de expressão política, sendo
desfavoráveis para o desenvolvimento do Território e do seu
estatuto internacional. No domínio da estrutura política, a nomeação
do chefe do executivo da RAEM e a formação dos órgãos legislativo
e judicial serão controlados principalmente pelas autoridades
centrais da RPC. O Comité Preparatório da RAEM, estabelecido
pela Assembleia Popular Nacional da RPC, está encarregado da
formação do primeiro governo de Macau e dos seus órgãos
legislativo e judicial. O Comité Preparatório é integrado por
membros do continente e de Macau (em número não inferior a
50%). O primeiro governador será eleito através de consultas locais
pela Comissão Eleitoral, ou por indicação desta comissão, após
informação prestada ao Governo Central, por consultas locais. Seja
* Leia-se o estipulado no Artigo 23.°, cap. 2, da Lei Básica.
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como for, o que se constata é que tudo se encontra sob o controlo
das autoridades centrais da RPC, encontrando-se a população de
Macau privada de direitos eleitorais. Para além disto, refira-se que o
direito de interpretação da Lei Básica pertence ao Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional. Que se entende então por
alto grau de autonomia e pela não aplicação do sistema e política
socialistas na RAEM? O que significa dizer que se manterão
inalterados, durante 50 anos, o modo de vida e sistema capitalista
existentes em Macau? A política da RAEM está, na sua totalidade,
controlada pelo Governo Central Socialista e a política partidária e
sistema de eleições capitalistas estão postos de lado — o que isto
significa é que, na sua essência, a política capitalista fica privada dos
seus valores. É neste aspecto, aliás, que se baseiam os violentos
ataques dirigidos ao PCC, no que respeita ao discurso político de
Chris Patten. Os princípios de meter ambas as mãos e segurar
firmemente a realidade com ambas as mãos, defendidos pelo PCC,
estão bem claros na política de «um país, dois sistemas». No
entanto, se observarmos verticalmente a actuação política do PCC
nas últimas décadas, damo-nos conta de que a «mão política» do
partido sempre foi uma mão extremamente dura.
As cláusulas da Lei Básica sobre a economia, cultura e modo de
vida expõem fundamentalmente a essência dos dois sistemas. Mas
que significa isto? Que os cavalos podem correr, que nos bailes se
pode dançar, que nos casinos se pode jogar, e que as fortunas se
podem ir fazendo como antes?... Que este sistema económico e
modo de vida macaense não se vão alterar durante 50 anos? Que,
neste aspecto, podem os macaenses dormir descansados? A verdade
é que no continente o modo de viver está também a tomar este
rumo...
Resumindo, pode afirmar-se que, no contexto da política «um
país, dois sistemas», o espaço de operacionalidade das políticas a
implementar estará estreitamente dependente do ambiente político
do continente chinês. Segundo a situação actual, o espaço de
operacionalidade política é extremamente limitado, e o efeito do
discurso de Chris Patten é disso exemplo, O espaço de operacionalidade económica, no entanto, é bastante mais amplo, pois há que
tomar em consideração a salvaguarda do bolso económico que as
futuras RAEMs constituem.
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