Ética e filosofia na educação fundamental [...] Ética: considerações gerais. Todos os povos, independentemente da geografia ou da história, têm os seus costumes, hábitos, normas, leis, preceitos e regras de conduta. Tais valores são instituídos por razões das mais diversas tais como: econômicas, religiosas, políticas etc. Trata-se dos elementos que constituem a cultura deste ou daquele grupo ou comunidade. O processo de constituição do mundo humano se inicia no momento em que os condicionamentos puramente biológicos, condicionamentos estes voltados para os requisitos da sobrevivência, são enriquecidos pela justificação de agir desta ou daquela maneira, ou seja, é o início do processo de instituição de valores relacionados ao agir humano, isto é, aos conceitos bem, mal, justo, injusto, permitido, proibido, dever, certo, errado, censurável, elogiável etc. Estamos considerando que qualquer comunidade, povo, sociedade, inicia o seu processo de humanização na agregação de critérios de valor ao puramente biológico, assim sendo, podemos inferir que a ética é tão antiga como a existência humana. Neste ínterim, aspecto interessante da ética, é o fato da mesma não ser parte do humano como, por exemplo, um de seus órgãos. Obviamente que a vida seria bem mais simples se assim o fosse. No entanto cabe a pergunta, mas vida assim seria vida humana? Afinal o que substancialmente identifica a vida humana, em relação, por exemplo, aos outros mamíferos? Dos enunciados acima podemos levantar algumas questões interessantes: a- as origens da ética e sua configuração epistemológica. B- Se a ética são os valores do agir humano carregado de historicidade e geografia, podemos falar de valores válidos para todos os humanos? C- A ética não faz parte naturalmente do humano, mas é a condição para que exista o humano, portanto a mesma tem que ser possibilitada e desenvolvida, trata-se da educação ética? Levantaremos alguns questionamentos em torno das proposições a e b, e buscaremos construir algumas indicações em relação à questão c, ética na educação, que é o tema central de nossa reflexão. Tratando da questão da origem da ética numa perspectiva ocidental, há um consenso de que Sócrates (* 470 + 399) teria sido o seu iniciador. Acontece que este filosofo nada escreveu, tudo o que sabemos de sua filosofia é, principalmente, segundo a leitura de Platão. Nos diálogos chamados “socráticos”, Platão buscava registrar a filosofia do seu mestre. A idéia que Platão sugere é a de que Sócrates faz filosofia nas praças de Atenas, quer seja com os seus oponentes, os sofistas, quer seja com os seus discípulos ou concidadãos. A postura primeira daquele que é exaltado como o modelo do verdadeiro filosofo é resumida na famosa expressão: “só sei que nada sei” e por isso mesmo, pergunta. Como observaremos o campo sobre o qual versará as investigações socráticas, é o campo do agir humano, por isso perguntava: o que é a coragem? O que é a amizade? O que é o bem? O que é a justiça? O que é a fortaleza? Seus interlocutores respondiam dizendo serem virtudes? Sócrates voltava a perguntar? O que é a virtude? Respondiam os interlocutores: é agir de acordo com o bem. Ao que Sócrates perguntava: que é o bem? Segundo muitos autores com tal postura Sócrates está inaugurando a ética. Se assim o é, tal postura é indicadora de várias perspectivas para delimitação do campo próprio deste conhecimento. Vejamos: 1 A- em primeiro lugar a idéia de que ética não se confunde com nenhum tipo de crença ou dogma. Diante das crenças, valores instituídos, etos (costumes), preceitos, regras de conduta, a novidade inaugurada por Sócrates é perguntar sobre a validade dos mesmos e os colocar em questão. O procedimento socrático tem o intuito de buscar as razões que os justifiquem. É interessante que crenças, valores, costumes, normas, regras, não brotam do nada, em geral têm suas razões, sejam elas de ordem religiosa, econômica, política etc. O que Sócrates está nos dizendo é que tais fundamentações não são suficientes para sustentar a ética. B-Sócrates busca construir conhecimento a respeito do agir humano relacionado ao bem, mal, justo e injusto. Construir conhecimento não é tarefa exclusiva da ciência? Afinal que tipo de conhecimento Sócrates buscava construir? Ou melhor, que tipo de conhecimento é a Ética? Se pressupormos a concepção reducionista imposta pelo positivismo de que ciência é um saber construído a partir de uma metodologia empírica estrita, mediante experimentos bem controlados sobre resultados estatísticos e formuláveis em proposições devidamente quantificáveis. Temos muitas evidências para afirmarmos que o saber que Sócrates buscava construir não respeitava tais requisitos, mesmo porque o iniciador da ética não os conhecia. Por outro lado acrescentamos que mesmo hoje, se tentássemos construir uma ética em tais perspectivas não seria possível, a não ser que renunciássemos aos elementos que parecem constituir o objeto próprio de estudo da ética: o agir humano em relação ao bem, justo, injusto etc., ou seja um tipo de saber que busca construir conhecimento de temas como: o que é o bem? O que é justiça? Imaginamos que a angústia Socrática em relação aos seus conterrâneos era decorrente do fato de aceitarem como verdades as normas, preceitos, regras de conduta, valores e princípios sem estarem devidamente fundamentados. A resposta de Sócrates foi a de tentar construir um conhecimento rigoroso, metodicamente organizado, fundamentado, onde cada aspecto do comportamento humano fosse relacionado com todos os demais, de forma que aproximasse o mais possível de um conhecimento englobante a respeito do agir humano. Trata-se de um conhecimento que pergunta pelo sentido. Não é isso filosofia? Em relação à questão b, se a ética são os valores do agir humano carregado de historicidade e geografia, podemos falar de valores válidos para todos os seres humanos? O tema é altamente polêmico e um dos grandes referencias para a sua discussão é Kant, segundo o qual o caminho para solucioná-lo é tirar toda a materialidade, isto é o conteúdo, da ética. Segundo o autor para contemplar tal intento o caminho mais propício é a construção de uma ética substancialmente fundamentada na razão, ou seja, é a razão que dará ao humano a própria lei. As ética materiais, segundo Kant, pelo fato de serem empíricas, conteúdos extraídos da experiência, não podem apresentar princípios universais. Uma ética universal não nos diz o que devemos fazer, indica, apenas, como devemos agir sempre, seja qual for a ação, e para o nosso filósofo, agimos moralmente quando agimos POR DEVER. Proposição interessante é a do filosofo Argentino Enrique Domingos Dussel na formulação de uma ética com pretensão de universalidade, e que, contrariamente à perspectiva Kantiana sua proposta não apenas defende a materialidade da ética, mas tal materialidade é a razão fundamental da mesma. Trata-se da ÈTICA DA LIBERTAÇÃO, cuja peculiaridade é tratar todos os temas das éticas filosóficas da perspectiva das vítimas da história. Nascida na década de 60 na América Latina, intenta integrar no presente os diversos processos de dominação, situando-os numa perspectiva mundial. Dussel desenvolve seis princípios buscando fundamentar tal proposição, considerando a amplitude dos mesmos, faremos 2 breves indicações apenas do primeiro princípio que tem o seguinte título: o momento material da ética. a verdade prática (DUSSEL. Enrique. Ética da Libertação. Petrópolis: Vozes. 2000. Págs. 95-168) Segundo Dussel as éticas grega e medieval são materiais (conteúdos teleológicos e eudemonistas) a objeção das morais formais contra estas éticas consiste em identificar que todo conteúdo material é sempre definido de maneira particular. Mas a ética da libertação necessita de uma ética material, seu ponto de partida são as vítimas, que sofrem na sua corporalidade a dor e a infelicidade, necessitam partir do conteúdo da ética. Para isso propõe um princípio material universal: a obrigação ética de reproduzir e desenvolver a vida do sujeito humano, dentro de uma comunidade de vida pressuposta, com pretensão de abarcar toda a humanidade. O seu critério de verdade é a vida e a morte. Este princípio mede a eticidade de toda norma, ação, instituição ou sistema de eticidade possível, e é internamente em cada cultura um princípio universal que pode julgar a mesma cultura, e permitir, ademais, um diálogo intercultural de conteúdos. A fundamentação de tal princípio universal, segundo o autor, primeiramente ao nível da ética material se exerce a razão ético material. Essa razão ético material expressa enunciados de fato (Os alimentos são necessários à vida) da qual podemos deduzir uma obrigação ética e, portanto, um enunciado normativo: o ser humano, por ser um vivente, deve ingerir alimentos. Não é somente um fato, é um dever ético – o contrário seria suicídio. Os enunciados normativos, ligados às necessidades da reprodução e desenvolvimento básico da vida do sujeito humano, têm pretensão de verdade universal, valem para toda cultura (em cada uma delas tem pretensão de validade e retidão). Diante das indicações mínimas podemos perguntar se as mesmas trazem algumas implicações para o tema central de nossa reflexão- Ética e filosofia na educação fundamental. Acreditamos que sim e a primeira delas é a de que pensarmos ética na educação, não é possível sem a filosofia. Como ficou sugerido, a ética é um tipo de saber que se configura dentro do campo próprio da filosofia. Sua especificidade diz respeito aos temas de suas interrogações: o agir humano relacionado aos conceitos de bem, mal, justo, injusto, permitido, proibido, dever etc. Uma segunda implicação diz respeito a posição socrática de que ética não é um conjunto de crenças, valores, costumes, preceitos e regras de conduta, quer sejam de origem religiosa, política, econômica etc. Portanto a educação ética não pode ser confundida com o ensinar um conjunto de valores, evidentemente julgados por aquele que ensina como bons, ou seja, ética não é doutrinação. E por último dada a especificidade da matéria em questão e considerando que trata-se de um tipo de saber que situa no campo próprio da filosofia, tais perspectivas indicam a não possibilidade de se trabalhar tal disciplina na escola dentro de uma orientação apenas expositiva, narrativa, etc. Acreditamos que Sócrates nos dá boas pistas de como proceder no trato da disciplina em questão, das quais destacamos: a- o diálogo como o princípio metodológico; b- a construção coletiva do conhecimento mediante a investigação; c- Seriedade, profissionalismo e respeito para com as exigências específicas de construção do conhecimento. [...] Fonte SOFISTE, Juarez. Ética e filosofia na educação fundamental. Disponível em: <http://www.eticaefilosofia.ufjf.br/6_2_juarez.htm>. Acesso em: 13 mar. 2006. 3