O MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS DAS PESSOAS PORTADORAS DE TRANSTORNOS MENTAIS – Lei 10.216, de 06 de abril de 2001. Inês do Amaral Büschel, Promotora de Justiça do estado de SP, aposentada; Mestre em Comunicação e Educação. Associada ao Movimento do Ministério Público Democrático: www.mpd.org.br “Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica, fora disso sou doido, com todo o direito de sê-lo” Fernando Pessoa A Reforma Psiquiátrica brasileira inspira-se nos diversos processos de reestruturação assistencial que vêm sendo adotados desde os anos 70 por vários países europeus. Dá-se em razão de notórios abusos praticados em manicômios tanto por funcionários administrativos como também por profissionais da área da saúde mental, notadamente por uma exagerada visão organicista, principalmente contra aqueles que se encontravam internados em instituições asilares durante boa parte de suas vidas, estando distantes do convívio social. Nossa política pública segue orientação contida na Declaração de Caracas, datada de 14.11.1990, aprovada por aclamação na Conferência Regional para a Reestruturação da Assistência Psiquiátrica nas Américas, que muda o paradigma hospitalocêntrico para o serviço de saúde comunitário. Cada país tem dado um enfoque diferente para essas questões devido às razões culturais autóctones. Consideradas essas peculiaridades, o que se destaca é que todas essas iniciativas visam o respeito aos direitos humanos dos pacientes e a melhoria na proteção e reintegração social da pessoa do enfermo mental e de sua família. As políticas públicas relativas à saúde mental para tornarem-se eficazes passaram a ter foco universalizante, inclusivo e multiprofissional. 1 No Brasil a política governamental de saúde mental tem como uma de suas principais diretrizes a reestruturação da assistência hospitalar psiquiátrica, objetivando a redução contínua e programada de leitos em hospitais psiquiátricos, com a garantia da assistência desses pacientes na rede de atenção extra-hospitalar, buscando sua reinserção no convívio social. A chamada Reforma Psiquiátrica de uma maneira geral vem atender não só aos interesses dos enfermos e seus familiares, mas também aos interesses de governos, haja vista que a manutenção de hospitais psiquiátricos acarreta dispêndio de altos recursos públicos. Não se pode ser ingênuo nessa seara e acreditar que tudo está sendo feito no melhor dos mundos e para o bem geral da nação. O Poder Público não pode tudo, é certo. Mas a maioria da população que depende para sua sobrevivência dos serviços públicos de saúde e da assistência social, caso não encontre a sua disposição tais serviços gratuitos estará entregue à própria sorte. Há muitos interesses em conflito além daqueles surgidos a partir das diferentes orientações acadêmicas adotadas nos variados cursos de psiquiatria e psicologia, tais como: políticas de inspiração neoliberal voltada à redução do tamanho do Estado; corporações profissionais em disputa por mercado de trabalho; interesses de proprietários de clínicas em busca de verbas públicas; disputas partidárias na feitura de orçamentos públicos no Legislativo, lobbies de grandes laboratórios e planos de saúde privados. Por outro lado, a sociedade humana nunca lidou muito bem com as questões de insanidade mental. Nesse campo vigora desde sempre muito medo e preconceito social. Assim como se diz que na guerra a primeira vítima é a verdade, nos embates sobre saúde mental a primeira vítima é sempre a realidade. I – CONCEITO DE SAÚDE HUMANA No ano de 1978, o conceito de saúde humana foi proclamado pela Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde: “A saúde, estado de completo bem estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de doença ou enfermidade, é um direito fundamental, e a consecução do mais alto nível possível de saúde é a mais importante meta social 2 mundial, cuja realização requer a ação de muitos setores sociais e econômicos, além do setor saúde.” Partindo-se desse conceito podemos concluir que a saúde não é assunto exclusivo da medicina, mas também do meio ambiente, da pobreza local, da segurança pública etc. A Lei 10.216/2001, que redireciona o modelo assistencial em saúde mental, destaca em seu artigo 2º , parágrafo único, incisos VIII e IX, que são direitos da pessoa portadora de transtorno mental: “ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis” e “ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental”. O artigo 4º dessa lei determina que a internação do paciente só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes e que essa internação será estruturada de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtorno mental, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer e outros. Importante salientar que a Lei 10.216/2001 não determina a desativação de todo e qualquer hospital psiquiátrico, quem o faz é a política adotada pelo governo federal na área de saúde mental a partir da promulgação dessa lei. A referida lei também não diz palavra sobre a proteção dos direitos civis dos enfermos mentais. Ao perderem a consciência crítica mesmo em caráter transitório essas pessoas ficam à mercê da atitude de terceiros. Caso sejam provedores de famílias – muitos são pais, mães ou filhos arrimos de família – o caos estará instalado. A quem caberá legalmente a administração da eventual pensão previdenciária, conta bancária, alugueres etc, etc? O enfermo mental em crise aguda - internado ou não - poderá continuar assinando cheques normalmente? Caso se prejudique economicamente isso não será da responsabilidade de alguém? II - DEFICIÊNCIA MENTAL e ENFERMIDADE MENTAL Com relação às pessoas com deficiência mental/intelectual, nossa Constituição Federal, em seu artigo 227, § 1o., inciso II, diz que o Poder Público deve criar “programas de prevenção e atendimento especializado para os portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do 3 adolescente portador de deficiência, mediante treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos”. É a Lei nº 7853 de 24 de outubro de 1989, que disciplina esse assunto dispondo sobre o apoio às pessoas com qualquer deficiência. Esta lei federal no artigo 5º impõe atribuição funcional ao Ministério Público, obrigando-o a intervir nas ações públicas coletivas ou individuais em que se discutam interesses relacionados à deficiência das pessoas. Devemos, também, observar a Resolução XXX/3447, de 09.12.75, da ONU, quando, no item 1, da Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes, diz: “O termo pessoas deficientes refere-se a qualquer pessoa incapaz de assegurar a si mesma, total ou parcialmente, as necessidades de uma vida individual ou social normal, em decorrência de uma deficiência, congênita ou não, em suas capacidades físicas ou mentais”. As deficiências físicas, sensoriais e mentais podem ser de natureza congênita ou adquirida. Será congênita quando a pessoa nasce com alguma anomalia cérebral que prejudica o normal desenvolvimento de sua mente, não se tratando especificamente de uma “doença” mental. A deficiência mental/intelectual congênita (antigo retardo) não é questão psiquiátrica, exceto se a pessoa for portadora de comorbidade, ou seja, retardo e doença mental. A deficiência mental adquirida poderá ocorrer de variadas maneiras: (a) a pessoa nasce sem problemas no cérebro, mas devido a algum acidente grave em qualquer fase de sua vida surgem seqüelas que acarretam prejuízo no seu funcionamento mental, ou então, (b) por alguma razão de ordem biopsicossocial a pessoa já desde a infância adoece e apresenta distúrbios psíquicos que lhe prejudicam o desenvolvimento mental ou, (c) por ocasião da adolescência ou fase adulta, surge a doença mental que poderá provocar sérias alterações funcionais na mente. São as denominadas psicoses ou demências. As questões relativas a mente e ao cérebro são muito complexas: o cérebro é um conceito da mente e a mente é um produto do cérebro. Usando uma feliz expressão do educador brasileiro Rubem Alves, há problemas no hardware ou no software. E tais problemas poderão acarretar limitações nas habilidades pessoais tais como na: comunicação; cuidados pessoais; interação social; saúde e segurança; desenvolvimento acadêmico; lazer e, principalmente no campo do trabalho. 4 No campo da deficiência mental/intelectual, todavia, surgiram obstáculos basicamente criados pelo decreto federal 3.298, de 20 de dezembro de 1999, que regulamenta a lei 7.853/89, pois na prática o texto descarta a possibilidade da deficiência mental adquirida, restringindo-a apenas a de origem congênita, induzindo a equívocos de interpretação legal. Na tentativa de esclarecer e definir, o decreto estabelece que deficiência mental é o “funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas,....” Veja-se o absurdo, a lei não restringe a conceituação do que venha a ser deficiência mental/intelectual, quem o faz é um mero decreto regulamentador que optou pela exclusão e acientificidade. A verdade é que a deficiência mental não é um conceito fechado. No campo das diversas deficiências físicas, sensoriais e mentais, há um recente decreto federal – 3.956, de 8 de outubro de 2001, que promulgou a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, que havia sido foi aprovada por Assembléia Geral realizada na Guatemala no mês de junho de 1999 e, pela leitura do texto dessa Convenção vê-se que a deficiência “uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social”. Nota-se que a definição é bastante abrangente e não restritiva. Certamente, as autoridades do Poder Executivo federal que editaram tal norma – o Decreto 3.298/99, que dispõe sobre a Política para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência – não agiram com generosidade e provavelmente estavam mais preocupadas com as despesas previdenciárias e orçamentárias que adviriam a partir dos pleitos dos cidadãos acometidos de deficiência mental não congênita, do que com a necessária política de integração social. Em vez de integrar todas as pessoas com deficiência mental congênita ou adquirida, preferiram excluir estas últimas. Mais uma vez prevaleceu o pensamento neoliberal. Todavia, aos profissionais do direito, quando da aplicação das leis, caberá interpretá-las sem fracionamentos preocupando-se com seu espírito. Se a lei 7.853/89 nasceu para dar apoio às pessoas com deficiência e promover sua integração social, o decreto regulamentador da referida lei não poderia restringir tais 5 direitos. Essa lei tem cunho social e sua interpretação deverá ser extensiva e não restritiva. O Ministério Público deveria até mesmo insurgir-se contra essa exclusão discriminatória que viola dispositivos constitucionais de proteção às pessoas com qualquer deficiência. O novo Código Civil Brasileiro, Lei federal nº 10.406/2002, no capítulo em que trata da capacidade das pessoas, aboliu a expressão “loucos de todo o gênero” e a substituiu por “os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem discernimento para a prática desses atos” (art.3º-II). As palavras deficiência/deficientes, incapacidade civil ou laboral, enfermidade/transtorno, carente/necessitado, são sempre muito importantes na definição legal dos direitos e deveres de cada pessoa humana. A linguagem nesse campo vem sofrendo inúmeras alterações provocando mais problemas do que soluções. Os problemas burocráticos, por exemplo, surgem quando os portadores de enfermidade/transtorno mental (psicoses), ou seja, transtornos psíquicos adquiridos após o nascimento, entre eles, a esquizofrenia, o transtorno afetivo bipolar (outrora denominada psicose maníaco-depressiva) a depressão severa, requerem para si seus direitos ou mesmo benefícios previdenciários, pois não são consideradas “pessoas com deficiência mental”. A única exceção para patologia mental dá-se com relação à esquizofrenia, nos casos em que a doença provoca seqüelas mais graves. No entanto, os que convivem com pessoas acometidas de enfermidade mental sabem perfeitamente como é possível após os primeiros anos de tratamento mudarse o diagnóstico de transtorno bipolar para esquizofrenia e vice-versa. Por outro lado, muitas dessas doenças mentais surgem na infância e adolescência, portanto antes dos dezoito anos e raramente são diagnosticadas nesse período. Apesar de tantas incertezas, no entender de zelosos agentes do poder público, bem como de muitos profissionais da área da saúde, essas pessoas apenas estão doentes e, quando bem medicadas e recebendo atendimento psicoterapêutico curam-se e podem tocar a vida normalmente, portanto, não se enquadram nas exigências legais, pois não são pessoas com deficiência. Aliás, também no entendimento deles próprios - os portadores de transtornos mentais - há os que vêem a palavra deficiente com preconceito. Nesta situação, repetem o chavão de que se equiparam a quaisquer outros doentes tais como os hipertensos, renais, diabéticos etc. 6 Este argumento – de que a doença mental não é diferente da doença física é muito utilizado pelos médicos psiquiatras para amenizar a dor daqueles que recebem o diagnóstico de doença mental. Pode ser uma forma inteligente de convencer o paciente e seus familiares a aceitar a realidade e o tratamento de uma doença crônica. Todavia, não podemos nos esquecer de um importante diferencial entre sofrer de diabetes e sofrer de esquizofrenia: a doença mental prejudica o entendimento intelectual e altera comportamento. Muitos enfermos mentais durante suas vidas perdem o discernimento e conseqüentemente a autonomia, ainda que por curtos períodos de tempo. Bom seria se os medicamentos psiquiátricos fossem poções mágicas que, após serem ingeridos, colocassem a pessoa enferma em completo bem estar físico, mental e social. A realidade, entretanto, é que muitos portadores de transtorno mental, apesar de bem tratados do ponto de vista terapêutico, dependendo do grau de comprometimento provocado pela doença, têm limitações para muitas tarefas, tais como, por ex., lidar com dinheiro, relacionar-se socialmente criando vínculos, memorizar dados, observar pontualidade nos compromissos pois têm dificuldades em despertar pela manhã, encontrando-se sempre sonolentos devido aos efeitos colaterais dos medicamentos. Estarão aptos para algumas atividades sociais, todavia com limitações que são sérios obstáculos para conquistarem bons emprêgos. Há, de fato, portadores de transtorno mental perfeitamente aptos para algum trabalho – tal qual muitas pessoas com deficiência mental/intelectual congênita desde que não sejam submetidos a situações estressantes e não se exija deles horários rígidos. O empregador deve estar ciente dessas condições especiais. Mas, não tem sido fácil encontrar empregadores dispostos a contratá-los, uma vez que há milhões de brasileiros saudáveis desempregados. No cômputo geral, resta-lhes apenas os subempregos ou trabalho informal. Há iniciativas governamentais inspiradas na economia solidária, tentando encaminhar essas questões através da criação de cooperativas sociais nos termos da Lei 9.867/1999, porém é preciso dar tempo ao tempo. Oferecer atendimento especializado apenas àquelas pessoas com deficiência mental congênita é discriminar os portadores de transtorno mental de natureza grave. Ambos pertencem a grupos vulneráveis. Fala-se tanto em inclusão social e, no entanto, como é possível que muitos Promotores de Justiça que atendem aos 7 denominados PcD (pessoas com deficiência) excluam de sua atribuição funcional o atendimento daqueles que por conta de doença mental têm limitação em sua autonomia e também necessitam de ajuda e esclarecimentos sobre seus direitos? Trata-se de um grave equívoco essa prática de corte radical entre as pessoas com deficiência mental congênita e os enfermos mentais graves. Separar aqueles que não tiveram completo desenvolvimento mental antes dos dezoito anos daqueles que adoeceram após essa data, pode ter sua relevância para as ciências da área da saúde, todavia, para as questões jurídico-sociais essas condições pessoais não têm a mesma importância, pois ambos têm limitações na autonomia e da mesma forma estarão sujeitos a internações involuntárias nos quadros agudos, por exemplo. Ademais, afirmar-se que a deficiência mental em si não é uma patologia é um exagero, considerando-se que se trata de uma anomalia genética, pois foge ao padrão de normalidade – por excesso ou escassez funcional que faz sofrer – sendo, portanto, uma enfermidade. E esta é uma discussão que convém aos fisiologistas, não aos juristas. A deficiência mental/intelectual congênita (síndrome do down, síndrome do X frágil, etc) não se origina de doenças psiquiátricas. A epilepsia e o autismo também não são considerados doenças mentais. Todavia, como todas essas patologias cerebrais podem provocar limitações na autonomia pessoal tal qual algumas enfermidades mentais, todas as pessoas acometidas desses males devem ser tratadas pelo Direito igualmente como pessoas com deficiência mental/intelectual. Até mesmo porque a ausência de enfermidade não significa que uma pessoa seja saudável e, o que importa no campo jurídico é a realização concreta dos direitos humanos. Essa prática de segmentação reducionista acaba reforçando o preconceito social, pois é muito comum em nossa sociedade dizer-se que “meu familiar não é louco, apenas nasceu com um problema genético”, sem que essas pessoas percebam que estão estigmatizando aqueles outros que tiveram a infelicidade de adoecer mentalmente ao longo da vida. E vice-versa, pois muitos enfermos mentais – e também seus familiares - destacam o fato de serem apenas doentes sob tratamento médico e não portadores de defeitos genéticos. Aliás, insistem em salientar que são muito inteligentes, dando a entender que os “deficientes” já não o seriam, ignorando-se que as inteligências humanas são múltiplas. 8 Se a lei não faz essa distinção por que os membros do MPE insistem em fazê-la? Essa interpretação restritiva focada na definição de um Decreto, desprezando-se até mesmo as declarações internacionais específicas, levará ao seguinte absurdo: a internação involuntária de uma pessoa com deficiência mental será da atribuição da Promotoria responsável pelas PcD e a internação involuntária de uma pessoa portadora de transtorno mental será da atribuição da Promotoria responsável pela cidadania. Se a matéria é a mesma – insanidade mental e limitação de atividades e autonomia - a atribuição funcional, racionalmente, deveria ser incumbência de uma só Promotoria. III – DEPENDÊNCIA QUÍMICA: álcool e outras drogas É um erro tanto do Estado quanto de nossa sociedade não priorizar o tratamento relativo ao alcoolismo e o uso de drogas nas políticas públicas de saúde mental, pois a dependência química gera condutas que costumam desencadear problemas psiquiátricos importantes ao longo do tempo, com total desestruturação familiar. Os alcoólicos e toxicômanos são pessoas enfermas que, costumeiramente, são internadas em clínicas psiquiátricas. Não é razoável que assim seja, mas dada a notória falta de opção de locais específicos para tratamento de casos sérios de dependentes crônicos em estados de total comprometimento da saúde física e psíquica, acaba sendo a única possibilidade. A internação desses pacientes não deve ser longa e, via de regra, é importante que a pessoa seja convencida a tratarse. Por outro lado, é bastante freqüente que os usuários de álcool e drogas sofram de males psíquicos ainda não diagnosticados e façam uso dessas substâncias para aplacar o mal estar e um desajustamento social que sentem constantemente. Daí acabam caindo na armadilha da dependência química. Os problemas psiquiátricos acabam sendo escamoteados pelo uso de substâncias psicoativas. Há linhas de tratamento na área da saúde que defendem a necessidade de internação de dependentes químicos por um período de, aproximadamente, trinta 9 dias para a perfeita eficácia terapêutica. Baseiam-se no fato de que o afastamento social do paciente propicia não só sua desintoxicação mas também a própria conscientização de seu estado de saúde. Se não houver estabelecimentos clínicos públicos próprios para essas internações, para onde seguirão essas pessoas e seus familiares? Hoje em dia aqueles que não têm planos de saúde que acobertem essas clínicas de recuperação estão em estado de completo abandono social e estigmatizados como “arruaceiros”. IV – DIREITOS HUMANOS: multidisciplinariedade; limites do poder médico psiquiátrico frente ao poder do juiz de direito, do promotor de justiça, da família, dos psicólogos, enfermeiros, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais e do próprio paciente. A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República federativa brasileira, conforme dispõe o inciso III do artigo 1º da Constituição Federal. Assim sendo, todos os profissionais que se ocupam de um paciente com sofrimento mental, deverão tratá-lo acima de tudo com humanidade e respeito. Devem, também, desenvolver a paciência, tolerância e compaixão, que são virtudes necessárias para a melhor compreensão desse paciente que na maioria das vezes não se comporta adequadamente. Cabe sempre lembrar que nunca deveremos subestimar a inteligência das pessoas com deficiência ou enfermidade mental. Sempre deveremos nos dirigir primeiro a elas quando queremos comunicar-lhes algo e depois ao seu acompanhante, mormente quando o deficiente ou enfermo mental for pessoa adulta. È uma questão de respeito. Sabe-se, todavia, que muitos embates se dão nos bastidores dos estabelecimentos psiquiátricos entre os profissionais dos distintos campos científicos: medicina, psicologia, enfermagem, serviço social, terapia ocupacional. E outros tantos embates se dão entre esses profissionais da área médica e os familiares do paciente, bem como com advogados, juízes de direito e promotores de justiça. O paciente é o que menos conta nessas horas de luta pelo poder corporativo. O médico detém o conhecimento acerca da enfermidade e da deficiência mental. Ninguém negará isso pois é seu campo de estudo e pesquisa, muito embora 10 os psicólogos também estudem essa mesma matéria sob outro enfoque. Entretanto, nos casos de prolongamento da internação involuntária de um paciente, o médico não deveria recusar-se a trocar idéias com juízes de direito e promotores de justiça, uma vez que se trata de impedir a locomoção - portanto uma restrição de direito - de alguém que momentaneamente não está em pleno gozo da sua capacidade mental. Nesses casos não há que considerar essa intervenção como invasão de sua área de trabalho. O diálogo entre esses profissionais é a melhor forma de entendimento. Quando não há diálogo franco entre essas pessoas, todos restringem-se a discursar usando a linguagem técnica de sua ciência e daí não conseguem comunicar-se eficientemente com os colegas profissionais de outros distintos campos do saber. Essa visão compartimentada da ciência humana por especialistas provoca grandes prejuízos aos direitos dos enfermos. A estes, em geral, ninguém pede opinião alguma nem mesmo sobre como se sentem, se têm algo a dizer ou não. O paciente tem direito de saber porque está sendo internado. Se irá aceitar e compreender esse fato é outra questão. Por isso surgiu a necessidade da Comissão Revisora Multiprofissional prevista na Portaria/SAS nº 2391/2002 do Ministério da Saúde. Esse corpo de revisão deveria ter constado do texto da Lei 10.216 (constava do projeto de lei), mas não foi aprovado pelo Congresso Nacional. A criação desse órgão está respaldada nos Princípios para a Proteção de Pessoas Acometidas de Transtorno Mental e para a Melhoria da Assistência à Saúde Mental estabelecidos pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 17.12.1991, e que foram adotadas pelo Conselho Federal de Medicina brasileiro em 08.06.1994 através da Resolução CFM 1.407/94. O princípio 17 assim dispõe: “ 1. O corpo de revisão deverá ser um órgão independente e imparcial, judicial ou outro, estabelecido pela legislação nacional e funcionar de acordo com procedimentos prescritos pela mesma. Deverá, ao formular suas decisões, ter a assistência de um ou mais profissionais de saúde mental qualificados e independentes e levar em consideração suas recomendações.” É de observar-se, todavia, que uma Portaria ministerial não tem a força de lei para obrigar a participação do Ministério Público Estadual nessas Comissões. Os membros do Ministério Público agem em função de lei emanada do Poder Legislativo. Mas nada impede que o MP possa aceitá-la como um convite considerada a importância social de sua participação nessa Comissão. A 11 deliberação de integrar ou não a Comissão Revisora, entretanto, será de cada Promotor. V - INTERNAÇÕES PSIQUIÁTRICAS: voluntária, involuntária e compulsória. São raras as internações voluntárias e, quando ocorrem é comum o médico perceber que a pessoa não está nada bem e, via de regra, essa internação acaba se transformando em involuntária devido a gravidade do estado psíquico do enfermo. Embora tenha de fato internado-se de “livre e espontânea vontade” num estabelecimento psiquiátrico, na maioria das vezes não será possível atender ao seu pedido de retirar-se quando assim bem o desejar. A alta médica se dará pela decisão do profissional médico que cuida dessa pessoa ou sob a responsabilidade de algum familiar do paciente. Quanto às internações feitas contra a vontade do paciente sempre se darão por ordem médica em face de condições sérias em que a pessoa ofereça perigo para si própria (um possível suicídio, p.exemplo) ou quando ofereça perigo para a vida de outrém (dirigir veículo em vias públicas sem ter noção correta do que está fazendo ou, também ameaçar tocar fogo na própria casa onde mora com parentes, p.exemplo). Os casos de internação compulsória são decididos pelo Poder Judiciário, decisões estas sempre baseadas em laudo médico psiquiátrico. Sempre é bom lembrar que a grande maioria dos médicos psiquiatras são profissionais responsáveis e apenas recomendam internações quando assim entendam cabíveis. Não são todos algozes que estão a serviço do mal. Parece ridículo afirmar-se isto, mas é preciso dizer pois o preconceito está arraigado na sociedade. Por outro lado, é bom que se diga que não são todas as famílias que rejeitam seu familiar enfermo psiquicamente, mas muitas vezes é o próprio doente que rejeita sua família até por conta do embotamento afetivo provocado pelo transtorno mental ou até mesmo movido pela raiva que sente de tudo e de todos. É bastante comum o enfermo exaltar-se exatamente diante da pessoa que ama. Ademais, devemos sempre levar em consideração que as pessoas com sofrimento mental muitas vezes pertencem a famílias disfuncionais, seja por fatores sócio-ambientais ou genéticos. Nessas circunstâncias fica complicado colocar o enfermo aos cuidados apenas de seus familiares, pois com certeza haverá conflitos 12 que poderão ocasionar o agravamento do quadro. É preciso que o Poder Público e a comunidade local mantenham equipamentos “residenciais” que abriguem pessoas enfermas que não possuam dinheiro e que, por alguma circunstância, não possam contar com seus familiares ou até mesmo escolham não conviver com eles. Essa é uma atitude racional e humana. Não podemos tapar o sol com a peneira. Há um mar de incompreensões no campo da saúde mental. O fenômeno da negação está sempre presente. Por isso a sociedade precisa receber muitas informações de qualidade sobre essas questões de insanidade mental que, não raras vezes, surgem desde a infância da pessoa e ninguém dá importância. O quadro clínico do indivíduo vai pouco a pouco se agravando e a família toda acaba se desestruturando sem nem mesmo perceber o porquê. Nas sábias palavras do escritor Tolstoi: “Todas as famílias felizes se assemelham; cada família infeliz é infeliz à sua maneira.” VII - CAPS – Centro de Atenção Psicossocial A orientação recente do Ministério da Saúde - acessível na página da internet www.saude.gov.br ou www.ccs.saude.gov.br/saude_mental/index.asp - fornecida aos gestores municipais é de construção de uma rede de saúde mental que leve em conta a população e as demandas locais, constituindo-se de ações na atenção básica, CAPS, serviços residenciais terapêuticos (SRT), leitos em hospitais gerais, ambulatórios, bem como o Programa de Volta para Casa. Essa rede deve funcionar articulada, tendo os CAPS como serviços estratégicos na organização de sua porta de entrada e de sua regulação. Os CAPS podem ser de vários tipos dependendo do porte populacional do município: I, II, III, Álcool e Drogas (CAPS AD) e infanto-juvenil (CAPSI). O Serviço Residencial Terapêutico (SRT) são casas localizadas no espaço urbano, constituídas para responder as necessidades de moradia de pessoas com transtornos mentais graves egressas de hospitais psiquiátricos ou hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico que perderam os vínculos familiares e sociais; moradores em situação de rua portadores de transtornos mentais severos desde que inseridos em projetos terapêuticos acompanhados nos CAPS. O número de usuários em casa SRT poderá variar de uma pessoa até um pequeno grupo de no 13 máximo 8 (oito) pessoas, que deverão contar com suporte profissional sensível às demandas e necessidades de cada um. Os SRTs deverão estar vinculados aos CAPS ou outro serviço ambulatorial e terão prioridade na implantação de suas unidades os municípios sede de hospitais psiquiátricos e com CAPS. O Programa De Volta Para Casa tem por objetivo garantir a assistência, o acompanhamento e a integração social fora da unidade hospitalar, de pessoas acometidas de transtornos mentais com história de longa internação psiquiátrica – 2 (dois) anos ou mais ininterruptos em instituições psiquiátricas, Hospitais de Custódia ou residência terapêutica. É parte integrante deste Programa o auxílio-reabilitação no valor de R$240,00 mensais, pagos ao próprio beneficiário durante um ano, podendo ser renovado se necessário. No que tange ao programa de atenção a álcool e outras drogas, a política pública também prevê a constituição de uma rede articuladas com os CAPSad e os leitos para internação em hospitais gerais (para desintoxicação e outros tratamentos). Haverá Serviços Hospitalares de Referência para Álcool e outras Drogas (SHRad) para os municípios com população acima de 200.000 habitantes, visando a redução de internações de alcoolistas e dependentes de outras drogas em hospitais psiquiátricos. Esses serviços estarão localizados somente em hospitais gerais e poderão contar com, no máximo, 14 (catorze) leitos. VII - LEI 10.216/2001, ARTIGO 8º, § 1º : “A internação involuntária deverá, no prazo de setenta e duas horas, ser comunicada ao Ministério Público Estadual pelo responsável técnico do estabelecimento no qual tenha ocorrido, devendo esse mesmo procedimento ser adotado quando da respectiva alta” Esse mandamento legal é salutar haja vista que internar alguém contra sua própria vontade devido a perturbação mental é ato que se assemelha a uma detenção e que precisa, portanto, ser comunicado com rapidez a alguma autoridade estatal. É ato público e não privado que deva ser mantido em segredo. Não é a mesma coisa que internar alguém que esteja momentaneamente sem consciência, em um hospital geral devido a graves males de saúde física resultantes de acidentes vasculares cerebrais, quedas, acidentes de trânsito etc. 14 A comunicação da internação de um portador de transtorno mental ao MP servirá até mesmo de proteção para o profissional médico, pois assim agindo ele estará a salvo de uma leviana acusação de prática do crime de cárcere privado (art.148 do Cód. Penal), conduta bastante usual entre aqueles que não se conformam com a sua própria internação. Os Ministérios Públicos estaduais brasileiros devem, cada um a sua maneira peculiar e dentro de seu território, estabelecer rotinas de trabalho que facilitem a eficiente monitoração dos estabelecimentos clínicos públicos e privados que trabalhem com internações psiquiátricas, até mesmo porque a lei não previu sanção penal para os casos de descumprimento legal, ou seja, a não comunicação de internações involuntárias por parte da direção dos estabelecimentos clínicos sequer gera multa. O Promotor de Justiça incumbido dessas atribuições em cada Comarca obterá ótimas informações para seu trabalho ao aproximar-se: a) dos Conselhos Estaduais e Municipais de Saúde, fazendo visitas periódicas a esses órgãos colegiados paritários e democráticos sempre que possível, bem como participando eventualmente de suas reuniões ordinárias. Muitas vezes dentro desses Conselhos há Comissão ou Grupo de Estudo encarregado dos assuntos da Reforma Psiquiátrica; b) dos profissionais da Vigilância Sanitária local pois estes têm poder de polícia para efetuar a interdição de estabelecimentos irregulares que abrigam pessoas (recomendação dada pelo Procurador-Geral de Justiça do est. de SP, através do Aviso nº 635, de 24.11.203, Assento nº 6); c) dos colegas do Ministério Público Federal. É indispensável estabelecer rotinas de trabalho em conjunto, pois o MPF também tem atribuições relativas às questões de saúde pública e de direitos humanos; d) das faculdades de medicina locais que tenham departamentos de psiquiatria e, também, das faculdades de psicologia, pois os professores e estudantes poderão contribuir na elucidação de dúvidas. Essa fiscalização transindividual feita pelo MPE não poderá excluir o acompanhamento do interno individualmente, considerando-se que uma pessoa enferma pode permanecer internada por um determinado período em um estabelecimento clínico, receber alta médica e logo a seguir ser novamente internada em outro estabelecimento, cumprindo um ciclo de internações infindáveis 15 dentro do próprio município, em vários municípios vizinhos e até mesmo em outros estados. Com o auxílio da informática poder-se-ão desenvolver softwares adequados para a obtenção de dados e realização de mapeamento completo de todos esses estabelecimentos psiquiátricos públicos e privados nos limites territoriais do próprio estado. Esta sugestão baseia-se na recomendação feita pelo PGJ do MP estadual de SP através do Aviso nº 429, de 20.08.2003, Assento nº 4. Com tais dados nas mãos, os membros do MP poderão contribuir enormemente para evitar uma possível nova sentença condenatória como a que o Brasil acaba de receber – 04.07.2006 – da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso de Damião Ximenes Lopes um deficiente mental que faleceu em 4 de outubro de 1999, em conseqüência dos maus tratos recebidos durante os poucos dias – três - em que esteve internado na Casa de Repouso Guararapes, no município de Sobral, estado do Ceará. Além disso, terá condições para, democraticamente, sugerir ao Poder Executivo local a celebração de convênios inter-municipais, evitando-se assim dispêndio de verbas públicas e eventual ociosidade de leitos ou outros equipamentos públicos, bem como facilitando a própria monitoração das pessoas internadas. De outra parte, o Ministério Público estadual deve aproximar-se cada vez mais dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátricos, onde internos cumprem medidas de segurança impostas pelo Poder Judiciário, pleiteando até mesmo a instalação dessas unidades nas localidades onde ainda não existam. Uma das falhas da lei 10.216/2001 é exatamente ter silenciado a respeito das pessoas encarceradas. Dentre aqueles Princípios estabelecidos pela ONU e que foram acima mencionados, encontramos o de nº 20 que se refere aos infratores da lei: “2. Essas pessoas devem receber a melhor assistência à saúde mental disponível, como determinado no Princípio 1. Estes Princípios serão aplicados a elas na maior extensão possível, com modificações e exceções limitadas apenas por necessidades circunstanciais. Nenhuma dessas modificações e exceções deverá prejudicar os direitos da pessoa no que diz respeito aos instrumentos mencionados no parágrafo 5 do Princípio 1.” 16 A praxe induz a que essa fiscalização se dê por Promotores de Justiça da área criminal, todavia seria de grande valia a gradual mudança de atribuição para os Promotores Cíveis, conforme sugestão dada pela psicóloga Sra. Odete M. Lanzotti, que dirigiu por longos anos o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do estado de São Paulo, considerando-se que os internos não são pessoas criminosas no exato sentido técnico do termo e, enquanto estiverem internados cumprindo medidas de segurança, necessitarão de assistência médica e possivelmente de interdição civil judicial. Essa proteção civil – a interdição - é um direito humano ao contrário do que apregoa o senso comum que abomina essa possibilidade. Muitas vezes o portador de enfermidade mental possui alguma propriedade imóvel mesmo que de pouco valor econômico ou mantém conta bancária e acaba perdendo seu patrimônio por descuido ou vilania de terceiros. Ademais, se foram declarados insanos mentalmente e receberam medidas de segurança, alguém deveria ser imediatamente nomeado seu curador provisório e assumir a responsabilidade de cuidar de seus interesses. As Escolas Superiores do Ministério Público devem oferecer cursos que proporcionem aos membros do Ministério Público melhor conhecimento a respeito não só das patologias mentais como também da eficiência e efeitos colaterais provocados pelos medicamentos neurolépticos e benzodiazepinicos. A sociedade precisa estar atenta a essas questões, sob pena de trocar a internação asilar pela overdose medicamentosa. As conquistas das pesquisas científicas na área química de fato tem levado alento à vida dos enfermos mentais e, por conseqüência, de suas famílias. Entretanto, a sociedade brasileira precisa estar melhor informada sobre os efetivos progressos da indústria química, uma vez que há – no mundo todo – graves denúncias a respeito de “maquiagens” feitas em medicamentos antigos com “roupagens” novas com o evidente propósito dos laboratórios na elevação dos preços no mercado para a obtenção de lucros indevidos. Estamos vivendo em plena era de desvendamento dos mistérios contidos no funcionamento do cérebro humano, escopo da neurociência, e os membros do Ministério Público precisam ter ao menos noções básicas atualizadas sobre esse campo científico que examina de perto as bases bioquímicas do comportamento humano. 17 O livre arbítrio nem sempre é tão livre assim como nos leva a pensar o senso comum e a doutrina do Direito. 18 VIII – CONCLUSÃO “Há mais coisas entre o céu e a terra, do que pode sonhar tua filosofia.” William Shakespeare A se levar em conta as notícias dos jornais brasileiros a desativação de leitos destinados às internações psiquiátricas não está sendo acompanhada da correspondente e imediata ampliação da rede de atendimento ambulatorial de psiquiatria, seguida de abertura de comunidades terapêuticas, hospitais-dia ou noite, Centros de Atenção Psicossocial suficientes para cada município. Podemos concluir então, que o setor de saúde mental não está sendo bem cuidado nem pelo Estado nem pela sociedade brasileira. Essa situação precária é cruel e provoca muita dor. É a total falta de respeito para com os cidadãos deficientes ou enfermos mentais. Neste momento, está sendo muito difícil para uma família conseguir socorrer seu parente que necessite de internação hospitalar de curta duração que seja, até para sua própria segurança e também para que possa conscientizar-se da rotina prescrita para seu tratamento médico, uma vez que é muito comum o paciente recusar-se a ingerir medicamentos ou ameaçar tomá-los todos de uma só vez. Entendo que a política de redirecionamento da assistência psiquiatria para os cuidados primários de saúde está correta, mas equivoca-se no que tange a extinção paulatina de todo e qualquer hospital psiquiátrico público. Esta decisão política não é a melhor. Sabemos que os trágicos fatos ocorridos nos manicômios asilares acabou gerando um sentimento geral de repúdio à psiquiatria. Todavia, não se pode “jogar a criança junto com a água do banho”. Uma das providências para se evitar maus tratos aos pacientes é propiciar um melhor treinamento e capacitação dos funcionários dos hospitais – dos CAPS, inclusive – bem como a manutenção de um número suficiente de pessoas para cuidar dos internos. O Poder Público precisará investir em recursos humanos. E a população brasileira precisa cobrar mais solidariedade da classe abastada, que deveria investir pesado em instituições filantrópicas comunitárias que se ocupassem da assistência à saúde mental. 19 Todas as pessoas lúcidas deste país rejeitam a manutenção e a existência desses antigos e enormes hospícios que mais se assemelhavam a um “depósito de gente”. Porém, essa rejeição não pode ser irracional e ir ao encontro do popular preconceito para com a psiquiatria. Essa atitude apenas virá reforçar a negação dessa especialidade médica pelas pessoas. Insistir em que o atendimento psiquiátrico de urgência seja feito apenas em Hospitais Gerais é atitude insensata. A realidade é que poucos médicos clínicos reconhecem sinais de insanidade mental, pois não foram educados para isso. Que se dirá dos funcionários. Parece que estamos vivenciando tempos de total negação social à insanidade mental. As pessoas e muitos profissionais da área estão convencidos de que lidar com uma pessoa com deficiência ou enfermidade mental é tarefa simples: basta dar remédio e carinho; que os deficientes e enfermos mentais não necessitam nunca de internações prolongadas pois suas famílias podem cuidar deles perfeitamente. Por certo nunca conviveram com uma pessoa em surto psicótico grave ou com alguém acometido de demência. É complexo e exaustivo. Essa atitude social nos faz lembrar o retrocesso que a sociedade mundial sofreu por determinado período – entre o fim do século 19 e início do século XX – quando uma determinada vertente pedagógica conquistou corações e mentes e, durante décadas, impôs às pessoas surdas o aprendizado da fala através da leitura de lábios, em detrimento do aprendizado da língua de sinais. Restou um enorme prejuízo pessoal e social, além do inútil sofrimento humano. Por acaso com essa posição radical iremos eliminar toda e qualquer internação psiquiátrica? Por acaso são poucos os seres humanos que padecem de grave sofrimento mental e em algum momento de suas vidas necessitarão de contenção e internação hospitalar? Se assim não é, então por que a recente Lei 10.216/2001 previu o controle dessas internações inclusive? Certamente porque elas são e serão inevitáveis, infelizmente. Seria razoável extinguirmos o Hospital do Câncer, por exemplo? Por que a especialidade médica – a psiquiatria – não pode ter hospitais públicos próprios com pronto-socorro ininterrupto tal qual as outras especialidades têm: Hospital do Coração, Hospital do Fígado, etc? Se a eliminação desses hospitais se dá pelo horror ao passado recente e ao estigma deixado, então mais razoável seria acompanharmos os adeptos da linguagem politicamente correta e mudarmos sua denominação: de hospital 20 psiquiátrico para Hospital de Saúde Mental. Quem sabe assim a população brasileira e os demais profissionais da área da saúde aceitassem melhor essa terminologia e o atendimento imediato aos deficientes e enfermos mentais seguiria sendo feito a qualquer hora do dia e da noite em hospitais especializados nessa patologia, tendo a possibilidade de internar-se para um tratamento eficaz com duração dentro do razoável. Tanto os médicos-psiquiatras como os demais profissionais da saúde mental não poderão omitir-se diante de situações estressantes que levam os funcionários da clínica a conter os internos usando métodos violentos e até mesmo pedindo ajuda de outros internos. Nisto não poderá haver tolerância com ninguém. A exigência legal da comunicação de toda internação involuntária ao Ministério Público Estadual poderá contribuir em muito para a eliminação da possibilidade de maus tratos aos internos. Desde, é claro, que os membros do Ministério Público não façam um controle apenas formal e burocrático. Se assim agirem, um dia perderão a autoridade moral que detêm hoje, tal qual perderam os médicos psiquiatras que se omitiram frente a estados de verdadeira calamidade vivenciados em antigos manicômios, por acharem que não tinham nada a ver com questões da administração hospitalar. Oxalá em futuro próximo a sociedade brasileira possa encontrar uma boa solução para o atendimento digno dos deficientes e enfermos mentais que buscam ajuda médica e psicológica, sem ilusões e negação da realidade. Se a recomendação médica for de internação breve, média ou prolongada, que os enfermos recebam o melhor tratamento. Isto é possível. E aos Ministérios Públicos Estaduais caberá a difícil decisão de organizarem essa nova e complexa função, distribuindo atribuições funcionais entre as diferentes Promotorias e encontrando uma solução plausível para a dicotomia deficiência mental e enfermidade mental. SP, janeiro de 2007. Inês do Amaral Büschel, Promotora de Justiça do estado de SP, aposentada; Mestre em Comunicação e Educação, associada ao Movimento do Ministério Público 21 Democrático: www.mpd.org.br 22 LEITURAS RECOMENDADAS: ASSIS, Machado de. “O Alienista”. Editora Martin Claret: SP, 2006. BASAGLIA, Franco. “A instituição negada”. Edições Graal: RJ, 1985, 1ª edição. DAMÁSIO, Antonio. “ O Erro de Descartes”. Cia. das Letras: SP, 1996. DESVIAT, Manuel. “A Reforma Psiquiátrica”. Editora Fiocruz: RJ, 1999. ERASMO DE ROTERDAM. “Elogio da Loucura”. Edit. Martins Fontes: SP, 2004. FIKS, José Paulo; SANTOS Jr. Andrés. “No avesso da tela: a psiquiatria pelo cinema”. Editorial Lemos:SP, 2006. FOUCAULT, Michel. “O Poder Psiquiátrico”. Editora Martins Fontes: SP: 2006, 1ª edição. _________________. “A História da Loucura”. Editora Perspectiva: SP, 1997, 5ª edição. GOFFMAN, Erving. “Manicômios, Prisões e Conventos”. Editora Perspectiva: SP, 2001, 7ª edição. LOUZã NETO, Mário Rodrigues. “Convivendo com a Esquizofrenia - Um guia Para portadores e familiares” Editorial Prestígio/Ediouro: SP, 2006. PESSOTTI, Isaias. “O Século dos Manicômios”. Editora 34: SP, 1996, 1ª edição. 23