Como a abordagem ocidental do Sufismo não é filtrada pela cultura

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O Segredo se Protege a si mesmo
(uma conclusão possível)
O Sufismo ou tasawwuf tem sido caracterizado como a corrente mística da religião
islâmica, significando, em última instância, a submissão total à Vontade de Deus, Allah, o
Um. O adepto aspirante ao caminho sufi (tariqat) é chamado de salik (buscador da Verdade
[Haqiqat] ou da Unidade Absoluta [ahaddiyet]; viajante em busca do Conhecimento). Linhas
específicas de transmissão, fundadas por mestres inspirados, deram origem às diversas
Ordens (tariqats) ou escolas de dervixes existentes no planeta. As diferentes ordens têm
diferentes formas (técnicas) de progredir no Caminho, assim como características comuns
tais como o armazenamento e a transmissão da baraka (influência espiritual). Os sufis dão
grande ênfase à continuidade da transmissão do conhecimento, através do silsila (cadeia de
transmissão). Essas cadeias são originárias em Muhammad e em seus companheiros
próximos, especialmente Ali. O aspirante ao Caminho sufi, quando aceito numa escola ou
tariqat, é chamado de sufi ou dervixe e trabalha sob a orientação de um mestre (Sheikh ou
Pir). A fim de transpor esse caminho, o dervixe passa por diversos estágios (makamat) de
fana (auto-aniquilação) até, finalmente, chegar à Marifat (iluminação) e Haqiqat (Verdade).
As origens do Sufismo nunca foram traçadas nem datadas. É por isso que se diz que a
essência do Caminho sufi é atemporal. Entretanto, com o advento do Islamismo, os sufis
passaram a expressar sua intuição dentro da linguagem e referência do Islã, especialmente
através de veículos como o Alcorão (livro sagrado dos muçulmanos) e os Hadiths (ditos do
Profeta). Como continuaram trabalhando dentro desse referencial, acabaram (alguns, mas
não todos) tomando a prática dessa religião como pré-condição essencial para entrar no
Caminho Sufi. Eis o ponto que quero discutir nesta conclusão.
Como a abordagem ocidental do Sufismo não é filtrada pela cultura muçulmana, a
confrontação, tanto do pesquisador quanto do buscador do Ocidente com as autoridades
islâmicas pode ser, em certos casos, bastante problemática. A questão é que se reduzirmos
esse problema ao binômio aceitação/rejeição das bases islâmicas do Sufismo, ou, vice-versa,
aceitação/rejeição da independência do Sufismo dessas mesmas bases islâmicas, corremos o
risco de não enxergar o que realmente importa.
Há um ditado sufi que diz: “o segredo se protege a si mesmo”. Essa é uma questão
tanto esotérica quanto cultural. Se levarmos a sentença ao pé da letra, será mais ou menos
como dizer: com que ousadia os ocidentais têm esperança de penetrar nos segredos do
Sufismo Islâmico? A pergunta estaria bem colocada no que se refere à incapacidade de
certos pesquisadores do Ocidente em transcender a sua abordagem tipicamente racionalista,
o que, nesse caso, é um verdadeiro empecilho para a compreensão do Sufismo. Mas se
olharmos para o lado muçulmano da equação, podemos igualmente nos perguntar: o que
dizer a respeito das deficiências de alguns sufis islâmicos em compreender que suas
tendências religiosas e sócio-culturais podem também lhes servir de véu para a sua própria
compreensão do Sufismo?
Essa premissa relativizante nos leva a crer que os véus que servem de barreira para
que um ocidental compreenda o Sufismo não são restritos à cultura islâmica. Ao contrário,
são os mesmos que qualquer pessoa enfrentaria ao tentar penetrar a via mística de qualquer
cultura estrangeira. Então o problema não é apenas de ordem espiritual, mas também e,
sobretudo, antropológica. Imaginemos, por exemplo, o grau de estranhamento que, um
pesquisador muçulmano poderia experimentar caso tentasse entrar no Vaticano para estudar
a vida de São Francisco de Assis. Seriam vários os véus culturais e religiosos que ele teria
que transpor para ter acesso ao seu universo de interesse. Da mesma forma, o buscador ou
pesquisador ocidental do Sufismo, no seu contato com os especialistas muçulmanos do
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assunto, depara-se com semelhantes véus: dificuldade com a cultura e a língua do Oriente
Médio; hostilidade ou sentimento de superioridade dos religiosos muçulmanos para com os
não-muçulmanos; aceitação, por parte dos muçulmanos, de muçulmanos ocidentais
convertidos apenas como muçulmanos de segunda categoria; rejeição generalizada do
Sufismo pela maioria dos muçulmanos eruditos e políticos ortodoxos; crença, por parte dos
sufis islâmicos, na sua superioridade com relação aos muçulmanos não-sufis;
posicionamento do Islã como superior ao Judaísmo e ao Cristianismo, apesar de o Islã
considerar tanto Abraão quanto Jesus Cristo profetas autênticos, etc.
Ao se depararem com essas barreiras, alguns buscadores ocidentais do Sufismo –
para que sejam aceitos numa determinada tariqat (escola de dervixes) do Oriente – acabam
percorrendo um longo e cansativo caminho, chegando mesmo, em alguns casos, a renunciar
totalmente a sua cultura original. Ao passar por uma espécie de “conversão”, trocando
velhos condicionamentos religiosos por novos, a pessoa estará, uma vez mais, diante de véus
que a impedem de aproximar-se objetivamente do Sufismo.
Ao se converter ao Islã, não apenas no sentido religioso, mas, igualmente, adotando
os costumes muçulmanos, tais como papéis sociais estereotipados, regras de etiqueta, modo
de vestir, hábitos alimentares, etc., a tendência em fixar-se na suposta necessidade de
aprender o comportamento muçulmano adequado tende a distanciá-lo ainda mais da
aspiração original que o levou a buscar o Caminho sufi.
Mas essa é uma questão bastante paradoxal, pois, concretamente, após ter se
convertido à cultura e à religião muçulmanas, o buscador começa, de fato, a ser considerado
um candidato potencial para receber a transmissão do “Sufismo autêntico”. Por que, então,
ele o faria de outra forma? O problema é que a conversão pode mascarar o grau de preparo
do discípulo para receber a instrução, o que, certamente, vai implicar em enfrentar uma série
de novos obstáculos com os quais ele pode não estar equipado para superar.
Essa forma de se conseguir acesso à realidade viva do Sufismo é bastante típica em
se tratando de algumas tariqats conhecidas tanto no Oriente quanto no Ocidente. Mas nem
todos os mestres sufis aderem a essa formulação estrita. Tentativas vêm sendo feitas, desde
épocas mais remotas, para facilitar o acesso ao Sufismo por parte dos não-muçulmanos. Um
exemplo disso é a atitude tolerante que a tariqat Mevlevi sempre teve para com os seus
adeptos; atitude esta que pode ser traduzida nas célebres palavras de Rumi, seu fundador:
“[...] vem assim mesmo, o que quer que sejas; vem, ainda que sejas um idólatra, um pagão
ou um zoroastriano; nossa tekkia não é um lugar de desespero; vem novamente, ainda que
tenhas quebrado o teu voto de arrependimento centenas de vezes”. Igualmente tolerante foi a
atitude do Sheikh sufi contemporâneo Sayed Omar Ali-Shah (1922-2005), mestre da tariqat
Naqshbandi, que nunca considerou a conversão ao Islamismo um critério para que o
aspirante (salik) ou discípulo (murid) fosse aceito na escola. Esse mestre sufi enfatizou
menos a submissão estrita à forma cultural externa do Islã (shariat) e mais a submissão à
filosofia e à disciplina interna da escola (tariqat), a prática individual e coletiva dos
exercícios por ele prescritos (zikr, lataif, sama) e o uso das regras Naqshbandi.
Nesse tipo de escola sufi (tariqat), o aprendizado não parte dos preceitos do
Islamismo Ortodoxo, mas sim dos ensinamentos dos grandes místicos sufis, tais como Rumi,
Ibni Arabi, Saadi, Attar, Sanai, Khayam, etc. As ações são realizadas em linguagem e
formato adaptados ao tempo, às pessoas e ao contexto cultural no qual elas estão inseridas.
Materiais de estudo são colocados em circulação de modo que aqueles que forem capazes de
sintonizar com a transmissão, serão como que selecionados, recebendo um treinamento
adicional. Nesse caso, a conversão à fonte central proveniente de Muhammad, é feita de
forma gradual, sem necessidade de uma conversão externa, conforme descrita anteriormente.
Essa abordagem do Sufismo, denominada por Anthony Hodgson de “projeção
adaptável”, tem considerável conteúdo psicológico e grande compreensão da influência do
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condicionamento cultural no processo de aprendizagem do discípulo, podendo servir de
ponte para o que chama de Sufismo Maior:
O Sufismo Maior não está centrado no Islã. Este é centrado na
Verdade Cósmica e pode fluir para dentro de qualquer veículo, incluindo o
Islã. Suas raízes não estão no Muhammad temporal, mas sim no
Muhammad Cósmico. O Sufismo Maior reconhece não apenas os Santos e
Mestres Sufis, mas também a atividade de todos os seres iluminados do
planeta Terra. O Sufismo Maior trata de todas as manifestações da Verdade
única no planeta, independente de onde possa ser encontrada. Por exemplo,
diferentemente dos Sufis culturalmente dominados pelo Islã [Sufismo
Menor], o Sufismo Maior está aberto para aprender dos caminhos Hindu,
Budista, [etc.].1
A “projeção adaptável” do Sufismo pode, segundo Hodgson, levar o discípulo a um
alto grau de desenvolvimento espiritual. A questão é que a maioria dos buscadores ocidentais
não está preparada para aceitar a disciplina que acompanha essa abordagem, não
encontrando nela uma espiritualidade que possa reconhecer como “autêntica”.
Condicionados a experimentar superficialmente a via exterior ou exotérica das religiões,
quando se põem a trilhar a via interior ou esotérica de algum sistema místico-filosófico,
tendem a ficar presos à relação de culto que lhe é peculiar ou ao ambiente no qual a natureza
dos cultos é bem conhecida, acomodando-se aos “mecanismos de proteção” dos mesmos. 2
É exatamente isso que acontece quando nós, pesquisadores do fenômeno religioso,
penetramos a via esotérica de qualquer ordem, filosofia ou seita mística. Principalmente se o
nosso foco de atenção for a “prática corporal” e/ou o “rito” que lhes são característicos. Ao
invés de olharmos para essas práticas como sistemas simbólicos de representação – com uma
estrutura subjacente e uma cosmologia implícita –, tendemos a ficar presos ou seduzidos pela
aparência exterior das mesmas, preocupando-nos antes em identificar o modo como os
adeptos executam esses ritos do que em revelar o seu significado implícito.
É claro que eu não estou desmerecendo a atitude daqueles que queiram, apenas,
aprender as técnicas corporais, sem se submeter à disciplina invisível que as regula e incita.
(Se isso não fosse possível, as várias técnicas corporais existentes no planeta não
“encarnariam” em outros corpos que não fossem os dos performers “originais” [relativizem,
por favor] fazedores do rito e as criações artísticas de inspiração exógena não seriam tão
apreciadas no âmbito cênico, tanto Oriental quanto e, principalmente, Ocidental.
O que estou querendo dizer – esta fala se dirige àqueles que queiram aprender a
técnica sufi de girar – é que eles podem fazê-lo, sim, sem que, para isso, tenham que
submeter-se à disciplina mística. A questão aqui não é aceitar ou não a disciplina do Sufismo
para poder realizar a prática do Sama, mas assumir (e esta é uma premissa ética), de
antemão, que ao optarem por realizar a técnica sem a disciplina que lhe é característica,
estarão, automaticamente, fazendo uma outra coisa que não a dança tradicional dos dervixes.
Que o “guia prático de treinamento e aprendizagem do Sama” possa ser útil, não
apenas para os adeptos do rito Mevlevi, mas também para aqueles – especialmente os atores
e/ou bailarinos – que queiram utilizar-se desta técnica de meditação dinâmica como um
método eficaz de treinamento e preparação do corpo na práxis do seu ofício. Que este
trabalho possa contribuir para os futuros estudos etnocenológicos que envolvam dança,
cosmologia e religião. E que as duas áreas do conhecimento que dialogaram tão intimamente
nesta pesquisa – a Antropologia e as Artes Cênicas – continuem colaborando entre si.
1
HODGSON, Anthony M. Sufismo Maior e Menor. Palestra proferida no Imperial College, em Londres, em
junho de 1981. Tradução: Endre Kiraly e Rogério Rita. Londres, Coombe Springs Press, 1982.
2
Ibidem.
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