III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares 1 ESTRUTURAS EXISTENCIAIS COM TER E HAVER: VARIAÇÃO NO MELHOR PORTUGUÊS FALADO NO BRASIL SANTOS, Wendel Silva dos Santos1 RAMOS, Conceição de Maria de Araujo2 Resumo Análise da substituição do verbo haver pelo verbo ter em estruturas existenciais no português do Maranhão. Utilizando-se os dados pertencentes ao Banco de Dados do Projeto Atlas Linguístico do Maranhão – ALiMA, este estudo, recorte de um estudo mais amplo, apresenta a análise de fatores linguísticos e sociais que condicionam o uso de uma das estruturas em questão, no falar de 38 sujeitos, ouvidos durante a pesquisa. A análise dos dados evidencia o favorecimento do uso do verbo ter, mais do que o verbo haver, para a construção de estruturas existenciais. Esta pesquisa, ao examinar dados da língua em seu uso real, ajuda a desmistificar o mito de que no Maranhão se fala o melhor português do Brasil, contribuindo, consequentemente, para o delineamento da identidade do maranhense, via o estudo da língua(gem), fator de identificação cultural de uma comunidade. Palavras-chave: Língua. Identidade. Estruturas existenciais. Português falado no Maranhão. Abstract Replacement’s analysis of the verb haver by verb ter in existential structures in Maranhão’s Portuguese. Using the database of Projeto Atlas Linguístico do Maranhão – AliMA, this study, division of a wider research, presents the analysis of linguistic and social factors that propitiate the use of one of the two forms focused in 38 speaker’s speech. The data analysis makes clear the partiality of the use of verb ter, more than the verb haver, to create existential structures. This research, analyzing the language data in real use, helps to demystify the myth that in Maranhão is spoken the best Portuguese in Brazil, contributing, thus, to outline the maranhense’s identity, via the study o the language, factor of a community’s cultural identification. Key words: Language. Identity. Existential structures. Portuguese spoken in Maranhão. 1 Graduando em Letras, pela Universidade Federal do Maranhão e auxiliar de pesquisa do Projeto Atlas Linguístico do Maranhão – ALiMA. 2 Doutora em Linguística pela Universidade Federal de Alagoas; professora do Departamento de Letras da Universidade Federal do Maranhão e coordenadora do Projeto Atlas Linguístico do Maranhão – ALiMA. III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares 2 INTRODUÇÃO É pensamento compartilhado entre os pesquisadores da área da linguística que os indivíduos de uma determinada comunidade não falam do mesmo modo. A partir dessa constatação, muitos têm sido os estudos que se voltam para a análise qualitativa e quantitativa da variação linguística, em situações de uso real da língua. Com esta pesquisa, propomos descrever um fenômeno morfossintático que se tem mostrado bastante frequente no português brasileiro e bastante evidente no português falado no Maranhão – a variação nos usos dos verbos ter e haver na construção de estruturas com sentido de existência. Pretendemos identificar e investigar qual das duas variantes linguísticas tem se mostrado mais recorrente no Estado. Além disso, pretendemos contribuir para o delineamento da identidade do maranhense, pelo viés linguístico, isto é, examinando o português falado no Maranhão, uma vez que, ainda hoje, há quem defenda a ideia cristalizada de que o Maranhão é o estado brasileiro onde se melhor fala o português. Mais do que reiterar a manutenção, ou não, desse mito (cf. BAGNO, 2001), a nossa intenção é, por meio de usos reais da fala, mostrar que esse mito não se sustenta, uma vez que, como poderemos perceber, nos resultados desta pesquisa, o verbo haver não é o único utilizado para expressar existência, conforme prescreve a gramática normativa da língua, e que seu uso tem sido suplantado (cf. MATTOS E SILVA, 2002) pelo verbo ter. Com este estudo pretendemos enfocar o processo de variação não como um erro, mas como uma marca da identidade linguística, pois, como afirma Bortoni-Ricardo (2005), a variação linguística é, mais do que uma ruptura com o sistema imposto, uma marca da identidade social. METODOLOGIA Ao estudarmos a língua considerando sua relação com o contexto social, histórico, geográfico em que seus usuários se inserem, constatamos a heterogeneidade linguística, resultado da diversidade existente no interior dos grupos sociais. A partir desse reconhecimento, há a necessidade de registro dessa diversidade. Nesse ponto estão inseridas as pesquisas da geolinguística/dialetologia e da sociolinguística. De acordo com Corvalan (apud CARDOSO, 2010, p. 26), a dialetologia e a sociolinguística têm sido consideradas sinônimas, III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares 3 [...] uma vez que ambas as disciplinas estudam a língua falada, o uso linguístico e estabelecem as relações que existem entre certos traços linguísticos e certos grupos de indivíduos. Assim como a sociolinguística, a dialetologia reconheceu desde cedo a existência da heterogeneidade linguística. Aliando, portanto, os enfoques teórico-metodológicos da geolinguística/dialetologia e da sociolinguística variacionista, constituindo-se, pois, em um estudo geo-sociolinguístico, esta pesquisa se estrutura nas seguintes etapas: i) pesquisa bibliográfica no âmbito da linguística e da sociolinguística, com ênfase nos estudos sobre morfossintaxe; ii) delimitação e seleção do corpus com base nos inquéritos pertencentes ao Banco de Dados do Projeto ALiMA3, realizados em nove localidades integrantes da rede de pontos do atlas. São elas: São Luís, Alto Parnaíba, Bacabal, Balsas, Brejo, Imperatriz, São João dos Patos, Tuntum e Turiaçu. São considerados o questionário morfossintático4 e as perguntas metalinguísticas5 e iii) análise qualitativa dos dados, a fim de verificarmos a ocorrência do fenômeno em estudo. SOBRE A VARIAÇÃO TER/HAVER NO PORTUGUÊS Muitos pesquisadores têm se ocupado em verificar o uso variável dos verbos ter e haver em estruturas existenciais (cf. RAMOS; BEZERRA, 2009; CALLOU; AVELAR, 2002; GÄRTHER, 1996, entre outros). Alguns desses estudos têm demonstrado que a alternância nos usos de haver por ter, em construções existenciais, é uma das características mais marcantes do português falado no Brasil (cf. LEITE, 2002). Essa característica também tem evidenciado que, cada vez mais, o português brasileiro se distancia do português europeu e se aproxima do português falado em países africanos, como Moçambique e Angola (cf. LEITE et al, 2002). Utilizando dados que datam do século XIII, Mattos e Silva (2002) verificaram a alternância nos usos de ter e haver na formação de estruturas existenciais. No período arcaico do português competiam, nesse contexto, os verbos haver e ser. Ressaltamos que, como evidencia Mattos e Silva (2002, p. 135), “[...] já no chamado latim vulgar habēre, verbo de posse no latim padrão, está documentado nos séculos IV e V como existencial [...].” Já no período explicitado, a autora mostra que já havia predominância de ser como existencial, com 56% das ocorrências, encontradas em documentos oficiais, e 44% das ocorrências para o verbo haver, encontradas em textos literários. A partir da amostra e III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares 4 da análise do corpus citado, Mattos e Silva (2002, p. 137) afirma que encontrou raras evidências “[...] da possibilidade já de variação entre haver/ter como verbo <<existencial>> e também da concordância de haver com o SN que o segue no plural”. Para fins de comprovação, a autora apresenta o seguinte exemplo “Temos mais este verbo [h]ei, [h]ás que é de genero diverso pelo oficio que tem”. Ramos e Bezerra (2009) chamam a atenção para o que Mattos e Silva postula sobre a variação entre haver e ter, tendo como base a Carta de Caminha. Segundo os autores, [...] são os contextos opacos, isto é, aqueles em que o verbo ter pode receber uma interpretação existencial sem que a interpretação possessiva seja excluída, que permitiram, ao longo da história do português, a expansão do domínio de ter em direção a haver existencial [...] Retirado da própria Carta de Caminha, o fragmento seguinte exemplifica a citação de Ramos e Bezerra: “[...] se metiam [eles] em almaadias duas ou tres que hy tinham”. No estudo sobre a Carta de Caminha, Mattos e Silva (1996, p. 186) reiteram as condições de uso dos verbos haver, afirmando que: [...] é haver o verbo existencial utilizado, ou seja, é o verbo que ocorre em estruturas que não selecionam sujeito, mas um sintagma nominal interpretado como complemento direto e um elemento locativo expresso por sintagma preposicional ou por um seu substituto adverbial. Ao explicitar as condições de uso para o verbo ter, Mattos e Silva (1996, p. 192) afirmam que, no período arcaico, o verbo “[...] ter é, por excelência, um verbo de posse [...]”, mas que apresenta variação com haver na construção de estruturas possessivas do tipo bens adquiríveis imateriais por parte do possuidor, como em “Ele tem fé”. Ressaltamos, porém, que essas acepções dos verbos ter e haver voltam-se para as condições de uso no contexto em que se insere o período arcaico da língua portuguesa. Silva (1813 apud RAMOS; BEZERRA, 2009), em seu Diccionario da lingua portugueza, atribui dois conceitos para o verbo haver. O primeiro conceito registra o verbo haver com o sentido de ter, conseguir, alcançar, obter, a exemplo de “Houve della dois filhos”. III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares 5 O segundo conceito registra o verbo haver com sentido de existir, tal qual a gramática normativa o concebe atualmente, a exemplo de “Ha homens virtuosos, e outros que não o são”. Silva reconhece, no entanto, que essa é a visão dos gramáticos e, em seguida, acrescenta a sua acepção para haver, explicando que se trata de um verbo ativo, que significa possuir, ter. Acrescenta ainda que o verbo haver não pode, sozinho, significar existir. Em O dialeto caipira, Amadeu Amaral (1976 [1920]) descreve os usos do verbo haver e ter impessoais. Para o autor, temos utilizado ter impessoalmente em vez de haver. Ele afirma que essa variação se dá em estruturas em que o complemento não encerra a noção temporal. O exemplo a seguir, registrado por Amaral, ratifica seu pensamento: “Tinha muita gente na eigreja” e “Tem home que não gosta de caçada”. Além disso, o autor complementa sua descrição, afirmando que “quando o complemento é tempo, ano, semanas, emprega-se às vezes haver, porém, mais geralmente, fazer [...]” (AMARAL, 1976 [1920], p. 77) (grifos originais). O verbo haver, segundo o autor, está sendo utilizado em raras construções, levando, consequentemente, ao avanço do verbo ter em estruturas existenciais. Ao afirmar que a ocorrência de ter existencial “[...] é usual, especialmente na linguagem menos formal”, contrariando os preceitos do que ela denomina gramática tradicional, que prevê o verbo haver e não o verbo ter nas construções existenciais, Neves (2003, p. 744) reconhece o alargamento do domínio de ter sobre o espaço de haver. Ao afirmar que a ocorrência de ter existencial “[...] é usual, especialmente na linguagem menos formal”, contrariando os preceitos do que ela denomina gramática tradicional, que prevê o verbo haver e não o verbo ter nas construções existenciais, Neves (2003, p. 744) reconhece o alargamento do domínio de ter sobre o espaço de haver. Em seu estudo sobre o português europeu e o português brasileiro, Monteiro (1959[1931]) afirma que, no português falado no Brasil, o verbo ter segue a mesma evolução do verbo habēre no latim vulgar. Segundo o autor, o verbo que possuía a carga semântica de existir era o verbo esse: “Erant omnino itinera duo”... A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E A CONTRUÇÃO DE IDENTIDADE É certo que os indivíduos de uma determinada sociedade estabelecem entre si funções sociais específicas. De modo mais amplo, esses indivíduos mantêm relações entre III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares 6 si, desempenhando o que se tem denominado de papéis sociais. Segundo Bortoni-Ricardo (2004, p. 23), os papéis sociais “[...] são um conjunto de obrigações e de direitos definidos por normas socioculturais [...] são construídos no próprio processo de interação humana.”. Ainda, segundo a autora, quando do uso da linguagem, no processo comunicativo, estabelecemos papéis sociais. Nos mais diversos ambientes, desempenhamos papéis sociais diversos: em casa, os pais e os filhos têm seus papéis definidos; na escola, professores, diretores, alunos, também, possuem papéis definidos. Dessa maneira, a variação linguística também vai se definindo, uma vez que os filhos não falam com os pais da mesma forma que falam entre si; e os alunos de uma escola não falam com os professores e/ou com os diretores da escola, da mesma maneira com que interagem com os colegas de turma. Esse tipo de comportamento é o que Bortoni-Ricardo (2004) denomina de regras que determinam as ações dos diversos domínios sociais. Por isso, não podemos pensar que exista esta ou aquela variedade superior. Bortoni-Ricardo (2004, p. 33) afirma que essa crença “[...] sobre a superioridade de uma variedade ou falar sobre os demais é um dos mitos que se arraigam na cultura brasileira”, e que, mais do que superioridade, os falares particulares de cada região são, na verdade, “[...] um instrumento identitário, isto é, um recurso que confere identidade a um grupo social”. Para Le Page (apud BORTONI-RICARDO, 2005), os diversos comportamentos linguísticos estão submetidos às múltiplas influências do que ele reconhece como sendo os diferentes aspectos da identidade social, que são: sexo, idade, localização, pertencimento étnico, ocupação, religião e relações com sujeitos mais próximos, sendo competentes, no âmbito da comunicação. Sobre a questão da competência comunicativa, nos reportamos à etnografia da comunicação (GARFINKEL apud MORALES, 2004, p. 31), que tem como principal objetivo “[...] determinar o que um indivíduo necessita saber para comunicar-se com êxito em uma dada comunidade e, evidentemente, o que concerne à aquisição desses saberes”6, incluindo, aí, não apenas regras de comunicação, linguísticas e/ou sociais, mas também outras regras de interação, como a cultura. Esta, por sua vez, serve de base para a construção de contextos básicos para os eventos sociais e a consolidação dos processos de interação. A seguir, verificaremos de que maneira os sujeitos envolvidos na pesquisa demarcam, por meio do uso, ou não, do verbo haver nas construções existenciais, a sua III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares 7 identidade linguística, o que nos possibilita delinear a identidade do maranhense, com base no português falado no Estado. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS Os resultados obtidos a partir da análise dos dados nos permitiram fazer inferências sobre o objeto de estudo desta pesquisa, nas localidades pesquisadas: São Luís, Alto Parnaíba, Bacabal, Balsas, Brejo, Imperatriz, São João dos Patos, Tuntum e Turiaçu7. Ressaltamos que, para a realização deste estudo, levamos em consideração fatores linguísticos e sociais que podem condicionar, ou não, o uso de uma das estruturas variantes por nós estudadas: animacidade do argumento interno (+ ou – animado) e tempo verbal, para caracterizar os fatores linguísticos, e localidade, idade, gênero e escolaridade para representar os fatores sociais. Logo na distribuição geral dos dados, percebemos que o verbo ter ocupa a quase totalidade dos casos. A análise geral levou em consideração os fatores sociais e os linguísticos, selecionados para a pesquisa. HAVER Tabela 1 – Distribuição geral dos dados TER TOTAL 8 322 330 2,4% 97,5% 100% Percebemos que em 330 ocorrências – 100% dos casos – o verbo ter ocorre 322 vezes, representando um percentual de 97,5% dos casos, contra 8 ocorrências de haver que, por sua vez, representa, apenas, 2,4% desse percentual. Com a distribuição dos dados nas localidades investigadas, percebemos que há certa uniformidade nessa distribuição, com exceção de São Luís, que possui o maior número de ocorrências, pelo fato de apresentar, em seu corpus, a categoria universitários. 8 III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares Tabela 2 – Distribuição dos dados por localidade LOCALIDADES HAVER % TER % TOTAL SÃO LUÍS 3 4,2% 68 95,8% 71 ALTO PARNAÍBA 2 7,4% 25 92,6% 27 BACABAL 1 2,6% 38 97,4% 39 BALSAS 0 – 35 100% 35 BREJO 0 – 43 100% 43 IMPERATRIZ 0 – 49 100% 49 2 8,3% 22 91,6 24 TUNTUM 0 – 16 100% 16 TURIAÇU 0 – 26 100% 26 SÃO JOÃO DOS PATOS Como podemos perceber na distribuição por localidade, muito escasso tem sido o uso do verbo haver para a construção de estruturas existenciais, havendo, inclusive, lugares em que o verbo ter suplantou, completamente, o verbo haver. Já no que concerne à distribuição dos dados entre os sujeitos mais jovens e os mais idosos, verificamos que ambos optam quase que igualmente pela forma inovadora, conforme mostra a tabela a seguir. Tabela 3 – Distribuição dos dados por faixa etária FAIXA ETÁRIA HAVER TER % jovens 2 74 50,3% idosos 6 77 54,9% Como evidencia a Tabela 3, são os idosos que mais utilizam o verbo ter. Isso nos leva a inferir que o alargamento do domínio do verbo ter em direção ao de haver, em construções existenciais, não é recente. Contudo, vale enfatizar que são eles os que, ainda, mantêm a forma padrão. Na tabela a seguir, demonstraremos a distribuição dos dados quanto ao fator sexo. III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares Tabela 4 – Distribuição dos dados por sexo GÊNERO HAVER TER 9 % homens 3 84 57,6% mulheres 5 61 43,7% A distribuição dos dados evidencia que são as mulheres as que mais utilizam o verbo haver, com 5 ocorrências, ao contrário dos homens, sujeitos desta pesquisa, que utilizam este verbo apenas 3 vezes. Consequentemente, são eles os que mais utilizam o verbo ter, com 84 ocorrências, contrastando com o resultado apresentado pelas mulheres com 61 ocorrências, como ilustra o exemplo a seguir, extraído da fala de um homem de Alto Parnaíba, da primeira faixa etária, com ensino fundamental. (01) INQ. – E como era a cidade, antigamente, em termos de festas? O que tu lembras. INF. – Era... era legal. INQ. – Como é que era, conta aí. INF. – Era pequeninha. Quando tinha uma festa, tinha um lugar, todo mundo ia, e todos alegre, também, né? No exemplo supracitado, percebemos o comportamento de um homem, da primeira faixa etária, com ensino fundamental, em relação à construção de uma estrutura existencial. No exemplo a seguir, verificaremos o comportamento de uma mulher de São Luís, da segunda faixa etária, com curso superior completo, em relação à construção de uma estrutura existencial: (02) INQ. – Como era a cidade, antigamente, assim, em termos de festas, né? O que é que acontecia aqui? Você se lembra, assim, nas festas aqui de São Luís? INF. – Em São Luís? O que é que acontecia? Com as festas, assim, mais, que eu mais participava eram as festas de natal porque tinha um pastoral que é... que hoje se chama auto de natal, né, o teatro. Mas chamava pastoral, onde tinha o nascimento, tinha... primêro tinha a anunciação pelo anjo Gabriel, então, eu sempre era o anjo Gabriel porque tinha o cabelão cumprido era bem magra e... e cantava bem. A partir dos exemplos, confirmamos a quase equivalência entre homens e mulheres quanto ao uso do verbo ter. Verificamos que não há, por parte dos falantes, qualquer tipo de estigma no que concerne ao uso deste verbo na construção de estruturas 10 III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares existenciais. A seguir, verificaremos a distribuição dos dados, levando em consideração os fatores linguísticos animacidade do argumento interno e o tempo verbal. Tabela 5 – Fator linguístico – Animacidade do argumento interno ANIMACIDADE DO ARGUMENTO INTERNO HAVER TER % – animado 5 99 68,8% + animado 3 44 31,1% Segundo Avelar (2006, p. 58), a animacidade do argumento interno permite a seguinte divisão: Animado, inanimado material, espaço (designação de locais públicos, bairros, cidades, regiões, localização em geral), abstrato e, Evento. Essas duas possibilidades apresentam como características comuns os traços [+ animado] e [- animado]. No corpus analisado, verificamos o favorecimento do verbo ter em todos os tipos de argumentos, como demonstrado nos exemplos a seguir, extraído da fala de um homem de Bacabal, da primeira faixa etária, com ensino fundamental: (03) INQ. – E como era a cidade, aqui, antes. Como era Bacabal? INF. – Aqui? Bacabal, aqui, era pequeno, era pequeno. Num tinha muita, num tinha muito emprego, num tinha... nada, num tinha supermercado, tudo pequeno. Aí depois foi crescendo, crescendo. (Inint.) era supermercados, Paraíba, essas loja aí tudo. Foi desenvolvendo mais a cidade. Cresceu... O exemplo acima corrobora a distribuição dos dados na Tabela 7. Para os casos de animacidade do argumento interno [+ animado], há 44 ocorrências do verbo ter e apenas 3 do verbo haver, selecionado no exemplo a seguir: (04) INQ. – Então por essa sua colocação você percebe que há diferenças... entre o Maranhão e outros estados INF. – Há sim. Há sim. Isso, isso. Há diferenças entre uma pessoa maranhense e uma pessoa de São Paulo, como eu tava falando. Com relação ao exemplo (04), vale destacar que foi realizado por um indivíduo de São Luís, da segunda faixa etária, com curso superior completo. Essas duas características III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares 11 poderiam mostrar certa manutenção da norma, mas, com a escassa ocorrência do verbo haver, não sustentamos tal possibilidade. No que concerne à animacidade do argumento interno [-animado], há 99 casos do verbo ter, e 5 ocorrências do verbo haver, como demonstrado no exemplo abaixo, extraído da fala de uma mulher de Alto Parnaíba, da segunda faixa etária, com ensino fundamental: (05) INQ. – E havia festa? INF. – Havia. INQ. – Como é que era? INF. – Tocada de sanfona, de vela. Aí, as coisa foi melhorando. Havia uns lampião. Eles compravam um lampião, né, levavam prá lá, era assim. Quando eu era nova, ah, eu dancei muito. Gora não, cabou, morreu a puga do pé, nem lembro. Essas 5 ocorrências nos parecem, no entanto, resultado da fala do entrevistador que, ao utilizar o verbo haver na pergunta, motivou o falante a utilizá-lo, também. Na tabela a seguir, verificamos a distribuição dos dados em função dos tempos verbais presente e pretérito. Tabela 6 – Fator linguístico – Tempo verbal TEMPO VERBAL HAVER TER % pretérito 3 41 29,1% presente 5 102 70,8% Em uma perspectiva geral, percebemos que a variável tempo presente é um fator relevante no que concerne ao uso de ter por haver em estruturais existenciais. Convém destacar que a forma da terceira pessoa do presente do indicativo do verbo haver – há – soam, muitas vezes, estranha para muitos falantes com nível de escolaridade mais baixo. Como podemos observar, o maior número de usos ocorre com o presente, com 107 das 151 ocorrências – 70,8% do total, distribuídas entre os verbos haver, com 5 ocorrências, e o verbo ter, com 102. Com o verbo no pretérito, verificamos um total de 44 ocorrências – 29,1% do total, distribuídas entre os verbos haver, com 3 ocorrências, e o verbo ter, com 41 ocorrências desse total. CONSIDERAÇÕES FINAIS III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares 12 Nesta pesquisa, buscamos verificar a alternância nos usos dos verbos ter e haver na construção de estruturas existenciais no português falado no Maranhão. Para tanto, utilizamos corpus extraído do Banco de Dados do Projeto Atlas Linguístico do Maranhão – ALiMA. Consideramos fatores sociais, como localidade, sexo, escolaridade e idade, e fatores linguísticos, como animacidade do argumento interno (+animado e – animado) e tempo verbal. Considerando o que prescreve a gramática normativa – o uso do verbo haver em estruturas existenciais do tipo há pessoas reunidas nesta sala – buscamos observar se, de fato, os maranhenses preservam a forma canônica, e que fatores condicionam o uso dessa forma. Os resultados de nossa pesquisa mostram que o uso do verbo haver em construções desse tipo tem se tornado cada vez mais raro, com o verbo ter suplantando o verbo haver, corroborando o que Mattos e Silva (2002) afirma sobre o fenômeno de variação na construção de estruturas existenciais. Constatamos, assim, a consolidação do uso do verbo ter em estruturas existenciais, na língua falada no Maranhão. As raras ocorrências de haver existencial em nossos dados aparecem na fala de idosos e de universitários; entre os universitários, como resultado do efeito gatilho, confirmando, assim, o que disse Jucá Filho na década de 50 do século passado (1953, p. 102): “[...] qualquér que viva no Brasil sabe que o verbo haver é entre nós exótico [...]”. Além da perspectiva morfossintática, podemos afirmar que a substituição do verbo haver pelo verbo ter, em estruturas existenciais, é a exemplificação do pensamento de Bortoni-Ricardo (2005, p. 176), ao afirmar que, “quando falamos, movemo-nos num espaço sociolinguístico multidimensional e usamos os recursos da variação linguística para expressar esta ampla e complexa gama de identidades distintas [...]”. Além disso, promovemos a desmistificação do mito de que no Maranhão se fala o melhor português, além de realizarmos uma fotografia do uso real do português, no Maranhão. NOTAS EXPLICATIVAS 3 – Os informantes do ALiMA, em número de quatro por localidade investigada, exceto em São Luís, onde foram entrevistadas oito pessoas, são selecionados com base no perfil descrito, a seguir. Pessoas de ambos os sexos, distribuídas, igualmente, em duas faixas etárias – faixa I, de 18 a 30 anos, e faixa II, de 50 a 65 anos. Quanto à escolaridade são considerados sujeitos alfabetizados e que tenham cursado, no máximo, até a 4 a série do Ensino Fundamental. Apenas na capital do Estado, onde há maior densidade populacional e grande diversidade de estratos sociais, o número de informantes é maior, de modo a incluir universitários. Os 13 III Seminário Linguagem e Identidades: múltiplos olhares informantes devem ser naturais da localidade linguística pesquisada, devendo não se ter daí afastado por mais de um terço de suas vidas. Seus pais devem ser também, preferentemente, da mesma localidade linguística. 4 – Questão 46: Como era esta cidade, antigamente, em termos de festas? [Antigamente, esta cidade era mais desenvolvida? Por quê?/ Questão 47: Você/ o(a) senhor(a) sabe se tem vida em outro planeta? 5 – Questão 1: Como chama a língua que você/ o(a) senhor(a) fala?/ Questão 2: Tem gente que fala diferente aqui em ______ (citar a cidade onde está)? Se houver, identificar os grupos “que falam diferente”/ Questão 3: Poderia dar um exemplo do modo como falam essas pessoas “que falam diferente”?/ Questão 4: E, em outros lugares do Brasil, fala-se diferente daqui de _____ (citar a cidade onde está)?/ Questão 5: Poderia dar um exemplo do modo como falam em outros lugares do Brasil?/ Questão 6: No passado, falavam diferente aqui? 6 – A tradução deste trecho que, se encontra no corpo do trabalho, é de nossa autoria. “[...] determinar lo que un individuo necesita saber para comunicarse com éxito en una comunidad dada y, por supuesto, lo relativo a la adquisición de esos saberes”. 7 – A realização da pesquisa em Alto Parnaíba, Balsas e Imperatriz foi financiada pelo CNPq, processo nº 401119/2009-2, bem como a de São João dos Patos, Tuntum e Turiaçu, processo nº 402408/2006-3. REFERÊNCIAS AMARAL, Amadeu. O dialeto caipira. São Paulo: Casa Editora “O Livro”, 1976. BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico. São Paulo: Edições Loyola, 2001. 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