Marx, Estado e imprensa em 1842

Propaganda
Marx, Estado e imprensa em
1842
Eli Morais |
O ano de 1842 marca o início da carreira política de Karl
Marx. O contexto histórico é de uma forte reação feudal na
Alemanha de então. As esperanças com o caráter liberalizante
de Frederico Guilherme IV, recém entronado rei da Prússia,
desmoronavam. Especialmente para o grupo de intelectuais do
qual Marx fazia parte neste período: os jovens hegelianos, ou
hegelianos de esquerda.
Por pouco tempo, tais esperanças pareceram justificadas.
Frederico Guilherme IV anistiou presos políticos, permitia a
publicação das atas das Dietas provinciais, e prometia certo
abrandamento da censura. Contudo, a classe de senhores de
terra da Alemanha começava a sentir-se cada vez mais ameaçada
pelo desenvolvimento capitalista. O conjunto de Estados que
então formava o território sob o império prussiano sofria
pressão do desenvolvimento da vizinha França e da insular
Inglaterra.
As revoluções liberais que decorreram na década de 1830 eram o
fantasma que tirava o sono desta aristocracia. Como exemplo,
em certo debate sobre a liberdade de imprensa na Dieta renana
o representante da nobreza argumenta que os jornais belgas
cumpriram papel crucial na revolução que resultou na
independência daquele país frente a Holanda, motivo pelo qual
a censura seria necessária na Alemanha. Assim, a aristocracia,
em acordos inclusive com determinados setores burgueses,
impunha um freio às transformações liberais que ocorriam.
No plano intelectual este é um momento de reação romântica.
Schelling, antigo companheiro universitário de Hegel, passa a
interpretar a história como epifania. O conhecimento teria a
revelação divina em sua origem. E é ele o indicado pela coroa
para suceder o próprio Hegel em sua cadeira na Universidade de
Berlim, o que deixa nítido o fato de que sua visão de mundo
passava a ser a filosofia oficial do Estado.
Antes, era a filosofia política hegeliana que era adotada pela
coroa por aparentemente justificar o domínio da monarquia
constitucional prussiana. No entanto, aqui também a revolução
de 1830 deixa marcas. Após a morte do filósofo em 1831,
inicia-se a dissolução da escola hegeliana. De um lado, os
hegelianos de direita, continuam apegados ao Sistema de Hegel,
o conjunto de sua obra que tem como um de seus momentos mais
marcantes os Princípios da filosofia do direito, obra dedicada
à investigação sobre o Estado. Os hegelianos de esquerda, no
entanto, defendem uma leitura esotérica de Hegel, segundo a
qual a essência de sua obra tinha de ser arrancada a partir de
seu método, e não das conclusões apresentadas em seu sistema.
O elemento principal da discussão entre os hegelianos estava
no fato de que, o hegelianismo de direita acreditava que o
progresso histórico havia chegado ao seu ponto máximo. Dessa
maneira, que se vivia em uma época em que a razão estava
realizada, ou, para utilizar a expressão hegeliana uma época
em que “o real é racional”. O real aqui não é apenas o
existente, que pode ser falso ou mesmo acidental. Mas se trata
da ideia de que o mundo social de então havia encontrado-se
com sua essência racional. Em termos simples, os homens se
encontravam em um contexto de plena efetividade da liberdade,
principal preocupação política de Hegel.
O hegelianismo de esquerda, no entanto, vinculava-se ao
processo de transformações liberais que ocorriam na Europa. E
dessa maneira, defendiam que o elemento central da filosofia
de Hegel era o seu método dialético, que, em termos simples,
demonstrava racionalmente o processo do desenrolar histórico.
No entanto, discordavam que este tivesse atingido seu ápice.
Especialmente, não aceitavam a conclusão de que a Monarquia
Constitucional representasse a verdade sobre o Estado. Ou
seja, que ela fosse a concretização da essência do Estado,
tido pela filosofia hegeliana como a mais elevada expressão da
vida social.
A partir de sua exposição crítica da filosofia hegeliana em
temas como a religião, a estética, a política, a liberdade de
imprensa etc., os jovens hegelianos acabaram trazendo atenção
para as possibilidades transformadoras de uma visão de mundo
baseada nesta sua interpretação. Estas possibilidades também
estão entre as razões pelas quais a Monarquia abdica desta
filosofia como sua visão de mundo oficial, optando pelo
irracionalismo religioso de Schelling.
Ao longo dos primeiros anos da década de 1840 as posições dos
jovens hegelianos vão ganhando radicalidade e conquistam
audiência entre a burguesia liberal. Militam pelo ateísmo,
pela separação entre Estado e Igreja, por uma constituição e
leis liberais principalmente. Encontravam raízes, além de
Hegel, no Iluminismo do século 18. Certa vez, A. Ruge, um
dentre os jovens hegelianos, declarou que estes constituíam um
“partido jacobino filosófico”, que era o porta voz das
transformações
Alemanha”.
visíveis
“no
horizonte
tempestuoso
da
Por estas razões, a reação abate-se sobre o movimento. Este
era composto no geral por intelectuais universitários. As
exceções eram devidas a elementos biográficos muito
específicos, como era o caso do próprio Engels, desde muito
cedo ocupado com os negócios da família. Dessa forma, o regime
atinge-lhes em seu próprio terreno. Uma a uma, as portas das
universidades alemãs são fechadas para eles. Bruno Bauer,
reconhecido à época como um dos maiores nomes do movimento,
perde sua licentia docendi e consequentemente o cargo de
professor. Os jovens hegelianos não têm opção a não ser
desenvolverem suas polêmicas na imprensa de então.
Marx, que com a demissão de Bauer percebe que não conseguirá
carreira acadêmica, já vinha aproximando-se da ideia de que os
filósofos precisavam inserir-se nas lutas políticas de seu
tempo. Em sua tese de doutorado chega a afirmar em uma nota:
“É uma lei psicológica que a mente teórica, assim que liberta
em si mesma, transforma-se em energia prática, e, deixando o
império sombrio do Amenthes na forma de vontade volte-se para
a realidade do mundo que existe sem ela. (…) Mas a prática da
filosofia é ela própria teórica. É a crítica que examina a
existência individual em relação à essência, a realidade
particular em relação à Ideia. Mas esta realização imediata da
filosofia é afetada por contradições em sua essência mais
profunda, e assim sua essência toma forma na aparência e
imprime seu selo sobre ela”. (Os grifos são do próprio Marx).
Em tempos de crise, a filosofia deveria tornar-se prática.
Aqui, no entanto, não há qualquer relação com a conhecida XI
tese sobre Feuerbach, segundo à qual os filósofos não deveriam
apenas interpretar o mundo, mas transformá-lo. Aquilo que
costumamos chamar de prática tinha um significado passivo, que
o próprio Marx denunciará mais tarde nas Teses sobre
Feuerbach, ao dizer que este autor compreende a prática apenas
“em sua forma de manifestação judaica, suja”. Isto porque
Feuerbach, mesmo sendo o principal nome do materialismo entre
os jovens hegelianos, compreendia “apenas o comportamento
teórico como o autenticamente humano”.
Acontece que este é o ambiente de idealismo ativo em que se
formam as primeiras manifestações intelectuais de Marx. E sua
compreensão da relação teoria-prática não passa incólume.
Apenas o espírito é ativo e o verdadeiro sujeito. Portanto, a
prática da filosofia é “ela própria teórica”. Neste sentido, a
concepção de participação dos filósofos nas lutas políticas de
seu tempo, então exposta por Marx, é a “crítica”: momento em
que a filosofia volta-se para o mundo objetivo e avalia-o em
relação à sua essência e aparências, já investigadas pelo
filósofo.
O misto da realidade política que impedia os jovens hegelianos
de seguirem uma carreira classicamente acadêmica com este
programa de crítica filosófica à realidade é o que norteará a
atividade de Marx durante o ano de 1842. Além das revistas
teóricas jovem hegelianas que eram publicadas neste período,
em grande medida pelo esforço editorial de A. Ruge e em geral
impressas fora da Alemanha, a imprensa liberal será uma das
principais arenas de apresentação destas ideias. Marx torna-se
assíduo colaborador do jornal Gazeta Renana, chegando a ser
seu editor durante alguns meses. Nestas páginas, em artigos
esparsos, ele apresenta elementos de uma teoria política
baseada na concepção de que o Estado é não apenas
indispensável, como máximo desenvolvimento da vida social
humana, de que na Alemanha de então não havia um Estado
verdadeiro, isto é, racional concretizado e de que a imprensa
livre, preenchida pela crítica filosófica, cumpriria um papel
de destaque em sua realização.
Uma crítica hegeliana ao Estado prussiano
A Gazeta Renana foi um jornal liberal fundado inicialmente sem
um direcionamento oposicionista à coroa prussiana. Seus
objetivos eram o de fazer frente à católica Gazeta de Colônia.
No entanto, pela influência dos advogados liberais Oppenheim e
Jung, ela se tornará, aos poucos, um verdadeiro órgão de
divulgação das ideias do hegelianismo de esquerda. Com isto,
eleva seu tom contra a Prússia até chegar ao ponto em que é
definitivamente proibida pelo governo.
Esta luta, que teve Marx entre seus dirigentes, será levada à
frente a partir de uma concepção de Estado que, em traços
gerais, é devedora dos princípios da filosofia política de
Hegel. Entende, dessa maneira, o Estado como a verdadeira
associação humana, como o órgão em que se materializam sua
racionalidade, liberdade e universalidade. O Estado é o locus
da vida genérica dos homens.
Parte-se, então, da exigência elaborada por Hegel nos
Princípios da filosofia do direito segundo a qual “o destino
dos indivíduos está em participarem de uma vida coletiva”. A
teoria política hegeliana tem como núcleo nervoso a busca por
uma reconciliação entre a vida dos indivíduos concretos e a
vida genérica do ser social. Estes estão separados como uma
consequência da própria constituição da Modernidade histórica,
alcançada a partir do modo de produção capitalista. É que
apenas com o surgimento da propriedade privada burguesa surge
a individualidade precisamente como entendida por Hegel. A
propriedade privada é, para este autor, a primeira
manifestação consciente do indivíduo, pois representa o
momento em que, através não de sua atividade prática, mas da
externação de sua vontade (uma forma do pensamento) sobre
algum objeto, o indivíduo apropria-se de algo, passando a
existir objetivamente frente às demais individualidades.
De maneira, que passa a exigir o reconhecimento de seu direito
à existência e de proteção de seus interesses individuais. O
que ocorre pelo fato de que toma a consciência do conflito que
existe entre si e as demais individualidades, igualmente
proprietárias. Evidente que a concepção de Hegel é
predominantemente burguesa. Em especial porque define mesmo os
indivíduos sem quaisquer riquezas materiais como proprietários
ainda que apenas de seu próprio corpo (apenas um objeto sobre
o qual se manifesta a vontade). Uma forma muito peculiar de
denominar aqueles que hoje sabemos não terem nada além de sua
própria força de trabalho e sua prole. O homem é o homem das
relações burguesas. E a conclusão é a de que a propriedade
privada é a base da liberdade humana.
“A ideia platônica de Estado contém uma injustiça para com a
pessoa ao torná-la incapaz, por uma lei geral, da propriedade
privada. É fácil, a uma mentalidade que desconheça a natureza
da liberdade, do espírito e do direito e a não apreenda nos
seus momentos definidos, é fácil representar-se a fraternidade
dos homens, estabelecida por piedade, por amizade ou até por
coação como inseparável da comunidade dos bens e da supressão
da propriedade privada”.
Em Hegel, a propriedade é o que constitui o indivíduo, e ao
mesmo tempo só pode existir liberdade porque a base deste
último é a vontade livre que se externa no mundo objetivo. No
entanto, aqui ela atinge apenas uma liberdade negativa, em que
a esfera individual deve ser respeitada pelos demais
indivíduos. Esta é a liberdade da sociedade civil, não mais
que um sinônimo para sociedade burguesa (bürgerliche
Gesellschaft, na expressão alemã para ambas), pois elas
representam o momento de expressão dos interesses particulares
destes indivíduos que em grande medida dizem respeito à
satisfação de suas carências. Ao ser constituída pela
atividade privada dos homens, a sociedade civil é o palco da
guerra de todos contra todos, do desenvolvimento ao máximo do
atomismo a que estão submetidos quando determinados unicamente
pela propriedade privada.
Por esta razão, Hegel é completamente contrário às teses
contratualistas. Para ele, o contrato não pode representar
mais do que uma vontade comum entre dois ou mais indivíduos.
Acreditar que o Estado estaria baseado em um contrato social,
seja entre os cidadãos, seja entre eles e o príncipe, seria
submetê-lo à lógica da propriedade privada, dos interesses
privados dos indivíduos. Algo verdadeiramente abominável para
o pensamento hegeliano.
O Estado é de uma natureza mais elevada do que o atomismo da
sociedade civil. Pois em seu desenvolvimento, o indivíduo
passa a reconhecer que é membro de determinadas coletividades,
com as quais possui um destino comum. Sendo, assim,
instituições em que os interesses do indivíduo tornam-se
associados aos interesses coletivos do conjunto dos membros.
Os exemplos pelos quais Hegel passa ao longo dos Princípios da
filosofia do direito são a família e a corporação (em que o
indivíduo possui o interesse de aumentar a riqueza de ambas,
da qual ele próprio deve desfrutar). O Estado, é o cume deste
processo dialético em que a cada passo encontramo-nos mais
próximos do reconhecimento dos interesses universais do gênero
humano, superando e conservando (Aufhebung) os interesses
particulares presentes na sociedade civil, na medida em que
harmoniza-os com a vivência racional e universal, portanto
livre, dos homens.
Por este motivo, Hegel identifica o Estado à esfera da
Sittilichkeit, que é comumente traduzida como eticidade ou
moralidade objetiva. Neste plano deve haver um desenvolvimento
harmônico entre o indivíduo que se tornou consciente de sua
dimensão genérica e a própria vida social coletiva. O homem
burguês encontra perante ele a corporificação de sua vida
genérica no Estado. Ele não precisa mais conviver com as
dúvidas e o arbítrio da vontade isolada, pois os interesses
universais do gênero estão manifestados nas instituições
estatais e nas normas jurídicas perante ele. A correta decisão
moral é objetiva e externa a ele. Por isto que, na filosofia
hegeliana, a noção de dever ganha tanto peso. Pois ao
adequarem-se à vida estatal e a seus mandamentos legais, os
homens estão, na verdade, constituindo-se enquanto autênticas
individualidades humanas, em comunhão de destino com seu
gênero.
Os hegelianos de esquerda da década de 1840 alinhavam-se sob
este lema hegeliano de harmonização entre a vida genérica e o
indivíduo. Grande parte de sua atividade filosófica, aliás,
dedicava-se a descortinar os motivos pelos quais a harmonia
entre estes dois polos não se efetivava. Algo que, por sua
vez, julgavam óbvio no contexto da vida alemã de então, em que
os indivíduos não possuíam, sequer, igualdade jurídica, quanto
mais uma desenvolvida esfera de liberdade. Assim, se assumiam
este “programa hegeliano”, ao mesmo tempo interpretavam que
havia uma acomodação deste filósofo ao identificar o
desenvolvimento deste Estado racional à Monarquia
Constitucional prussiana.
Nas páginas da Gazeta Renana, então, Marx se preocupará em
demonstrar que imperava, na verdade, o misticismo religioso ao
invés da racionalidade; o privilégio, no lugar da liberdade; o
particularismo e não a universalidade. Assim, em uma polêmica
contra a concepção religiosa da Gazeta de Colônia, ele afirma:
“A verdadeira educação ‘pública’ levada à frente pelo Estado
sustenta-se na existência racional e pública do Estado; o
Estado ele próprio educa aos seus membros ao tornar-lhes seus
membros, ao converter os objetivos dos indivíduos em objetivos
gerais, o seu cru instinto em inclinação moral, sua
independência natural em liberdade espiritual, pelo fato de o
indivíduo encontrar o seu bem estar na vida do todo, e o todo
no estado de espírito do indivíduo”.
Dessa forma, Marx compartilha da leitura de época de Hegel,
segundo a qual a Modernidade distingue-se das épocas
anteriores por conta da possibilidade de existência deste
desenvolvimento desarmônico entre os indivíduos e seu gênero.
Em nenhum texto ele fundamenta esta possibilidade na
existência da propriedade privada como está descrito nos
Princípios da filosofia do direito. Mas é visível, que Marx,
no mesmo tom de Hegel, repudia a ideia de que o Estado e os
demais aspectos da vida coletiva submetam-se às necessidades
da propriedade privada e da vontade individual.
Esta posição aparece muito nitidamente nos comentários sobre o
divórcio, onde o jovem hegeliano opõe-se à dissolução do
casamento por conta unicamente do arbítrio dos indivíduos
envolvidos. A família, lembremos, está no campo da moralidade
objetiva hegeliana, portanto a vontade individual não é seu
elemento constituinte. Hegel não entendia, assim, o matrimônio
como um contrato entre as partes, a exemplo de sua
interpretação sobre o Estado. Então, Marx, que defende o
divórcio como um direito, quer retirar-lhe do campo da
privacidade dos cônjuges, exigindo que a dissolução do
casamento ocorra pelo fato de que este não corresponda à
verdade do casamento. Ou seja, de que não corresponda ao seu
conceito, sendo apenas um matrimônio formal.
Esta característica da filosofia hegeliana é levada por Marx
até seu limite. A propriedade privada não pode impôr a sua
lógica à vida genérica dos homens. Este limite a que chega
Marx esbarra, portanto, na exigência da dissolução da
propriedade privada. Em outras palavras: no problema do
comunismo.
Este é um passo que começava a ser dado na época pelo
movimento jovem hegeliano, especialmente na pessoa de Moses
Hess. Marx, contudo, mantém uma posição prudente sobre o
assunto. E quando a Gazeta de Augsburgo acusa a Gazeta Renana
de comunismo, Marx promete um estudo sério e completo sobre a
questão. Pois interpretava que, neste momento, o comunismo não
havia ainda adquirido sequer uma realidade teórica, não
estando, portanto desenvolvido. Preocupava-se mais com a
elaboração teórica das ideias comunistas, do que com seus
efeitos práticos e os movimentos de massas inspirados por elas
que começavam a se apresentar à luz do dia.
Nesta mesma ocasião, contudo, reconhece a importância das
obras de pensadores como Leroux e Consideránt. Mas dá um
destaque especial para Proudhon. Este último havia, pouco
tempo antes, em seu O que é a propriedade?, afirmado que o
caráter da propriedade privada era o mesmo que o do roubo.
Argumento que, de forma irônica e polêmica, Marx levantará
contra os defensores da lei contra o roubo de lenha em um dos
artigos mais importantes do período. Dizia ele: se “toda
violação da propriedade sem distinção, sem a mais exata
definição, é caracterizada como roubo, não será toda a
propriedade privada um roubo? Por via de minha posse privada
não excluo todas as demais pessoas desta posse? Não estou
então, violando seu direito à posse?”.
Repetimos, é seguro dizer, contudo, que Marx não ultrapassa
este limite. Chega apenas às beiras do comunismo sem aderir ao
programa da supressão prática da propriedade privada. Sua
interpretação está muito mais próxima da exigência hegeliana
em tratar a esfera do Estado como algo superior em relação à
sociedade civil, esta sim, o reino da propriedade privada. É,
dessa maneira, efetivamente uma superação
propriedade, mas apenas para conservá-la.
teórica
da
A posição do Marx de 1842 em relação às demandas das camadas
mais populares da sociedade alemã é representativa deste
complexo de problemas. O caráter plebeu de sua visão de mundo
de então é exaustivamente demarcado por uma série de
estudiosos. Lukács, por exemplo, afirma que nestes textos se
manifesta um jacobinismo próximo das posições de um Babeuf. No
entanto, esta posição em defesa dos pobres se dá unicamente
pelo fato de que Marx avalia que os interesses desta camada
que era então a mais prejudicada pelas instituições vigentes,
acabavam por fazer com que os pobres (em sua maioria, a
população camponesa) fossem aqueles que melhor corporificavam
o impulso pela constituição de um Estado universal.
“Nós reivindicamos para os pobres um direito consuetudinário,
e de fato um tal direito que não é de um caráter localizado,
mas um direito consuetudinário dos pobres de todos os países.
Vamos além, e sustentamos que um direito consuetudinário por
sua própria natureza pode ser somente um direito desta massa
mais rebaixada, sem propriedade e elementar”.
Escrita no contexto do debate sobre lei contra o roubo de
lenha, não existe nesta citação uma simpatia em termos
classistas de Marx pelos pobres camponeses da Alemanha de
então. Ou existe, mas apenas na medida em que aqui se encontra
potencialmente concretizada a universalidade do gênero humano.
Acontece que, em sua concepção, o espírito racional se
manifesta através dos interesses desta camada social. É este
espírito que é realmente o sujeito da cena, onde a massa
pauperizada serve apenas como sua corporificação. Os direitos
costumeiros desta massa devem ser positivados como leis
reconhecidas pelo Estado, pois carregam a universalidade e
racionalidade do espírito, ainda que ela própria não tenha
sequer suspeita disto.
Portanto, Marx é um defensor de uma concepção de direito,
essencialmente hegeliana, como síntese entre a universalidade
e necessidade. Desta maneira, se por um lado defende os
costumes dos pobres, por outro execra os costumes da
aristocracia. Pois os direitos costumeiros da nobreza
“conflitam seu conteúdo com a forma do direito universal. Não
pode ser-lhes dada a forma de lei, por serem formações onde a
legalidade está ausente”. O direito não pode ser o momento de
positivação de interesses particulares que, em sua essência,
não têm possibilidades de se harmonizarem com os interesses
genéricos. Esta seria, justamente, a característica da
nobreza.
A posição de Marx é de denúncia aberta ao mundo feudal. Para
ele, as leis baseadas nos interesses da nobreza representavam
um mundo em que a liberdade não encontrava lugar para
efetivar-se universalmente. E desta forma o “Feudalismo em seu
sentido mais amplo é o reino espiritual animal”, onde a
humanidade não se põe. Esta é uma posição de Marx em defesa da
moderna sociedade civil, pois nesta, a “desigualdade não é
mais do que uma forma refratada da igualdade”. Ao tratar o
feudalismo como um reino animal o que se manifesta é a ideia
de que apenas com a modernidade capitalista, incluindo suas
características políticas, com o Estado democrático, entra-se
efetivamente na esfera social e, portanto, humana. De forma
que o período histórico anterior é tido como preparação para a
chegada a este momento. Demonstra, então, que a liberdade,
quando submetida ao interesse particular, não é nada além de
puro privilégio de alguns. E ao comentar as posições dos
senhores de terra na Dieta renana afirma:
“Estes senhores, por quererem tratar a liberdade não como um
dom natural da luz solar universal da razão, mas como um dom
sobrenatural de uma constelação de estrelas especialmente
favorável, por tratarem a liberdade como mera propriedade
individual de certas pessoas e estados sociais, são
consequentemente inclinados a incluir a razão e a liberdade
universais entre as más ideias e fantasmas dos ‘sistemas
logicamente construídos’. Na intenção de salvar as especiais
liberdades de privilégio, eles proscrevem a liberdade
universal da natureza humana”.
Há portanto, uma luta para que os interesses privados não
sejam aqueles que determinem a vida social dos homens. Pois
ele “por sua própria natureza é cego, imoderado e unilateral”,
e o interesse privado não “se torna capaz de legislar por
sentar no posto de legislador mais do que um mudo se torna
capaz de discursar por ser-lhe dada uma imensa trombeta”. Por
este motivo, Marx repudia a composição das assembleias
provinciais baseadas em representações estamentais, em defesa
da representação popular democrática. Sua avaliação é que não
cabe tratar o povo como “massa inorgânica”, pois, ao dar aos
estamentos medievais o reconhecimento estatal, por um lado,
distorce-se a vontade da maioria, pois as regras
representativas sempre davam vantagem às vontades dos nobres.
Por outro lado, e mais importante, torna-se impossível
reconhecer um “organismo próprio da vida estatal, mas apenas a
justaposição de partes heterogêneas que são englobadas
superficial e mecanicamente pelo Estado”. De forma que, ele
mobiliza a exigência hegeliana de um Estado universal como a
defesa de um Estado democrático.
Até aqui, então, seguimos essencialmente um roteiro hegeliano,
ainda que aprofundado com radicalidade por Marx, fazendo-lhe
dar uma leitura plebeia desta filosofia política, quando o
próprio Hegel via o povo apenas como “populacho”. Mas o que
testemunhamos é a defesa do Estado como o locus da vida
genérica humana, e a necessidade de que a vida concreta dos
indivíduos harmonize-se a isto. Ainda que toda esta defesa se
dê nos marcos de uma crítica ao Estado prussiano, em nome de
uma concepção política democrática, sua essência é a filosofia
política de estrutura hegeliana. Há no entanto, um tema em que
a radicalidade da leitura marxiana leva-lhe às beiras da
ruptura com Hegel, algo que se confirmará apenas em sua
Crítica da filosofia do direito de Hegel, no início de 1843.
Trata-se da relação entre sociedade civil e Estado mediada
pela burocracia.
Em Hegel, a burocracia é compreendida como a classe universal.
Ela é formada pelos indivíduos que fizeram de sua atividade
profissional a própria dedicação direta ao funcionamento do
Estado. Desta maneira, seu interesse individual coincide
imediatamente com os interesses do Estado. Ela realiza, então
a própria essência da filosofia hegeliana, por ser constituída
de indivíduos que têm como razão de sua existência a vida
estatal.
Marx, por sua vez, em um dos últimos artigos escritos para a
Gazeta Renana, sobre a situação dos vinhedos da região do
Mosela, apresentará uma leitura antagônica a esta. O texto é
uma defesa de um outro artigo, escrito por Coblenz, que teria
causado a ira do representante provincial do governo, o
Oberpräsident von Schaper, ao denunciar a situação de miséria
dos camponeses daquela região. Este último teria feito uma
requisição de esclarecimento em algumas questões, das quais
apenas duas respostas escritas por Marx foram publicadas antes
do fechamento definitivo do jornal.
No texto, Marx defende, no geral a crítica apresentada por
Coblenz. Mas, como era sua característica, aprofunda-lhe em
muito. Para tanto, retoma o debate sobre o tema entre os
representantes dos camponeses (alguns destes, bem-sucedidos
capitalistas do campo) e os oficiais representantes do
governo. Os camponeses, denunciando a decadência dos vinhedos,
exigiam medidas administrativas de proteção àquela atividade
econômica. Os oficiais do Estado, contudo, no geral não
identificavam na atuação da administração qualquer problema
relacionado ao fato.
Para Marx, os oficiais indicados pelo governo para tratar da
questão estariam impossibilitados de uma análise crítica sobre
o tema. O governo, ao receber as reclamações dos camponeses,
deveria designar um funcionário responsável para analisá-las.
O mais óbvio, seria a indicação daquele que melhor conheça os
problemas descritos, portanto, preferencialmente o próprio
funcionário responsável por administrar a região do Mosela.
Mas, assim, ele só poderia compreender as reclamações dos
cidadãos como “ataques ao seu entendimento oficial e à sua
atividade oficial anterior”. Não poderia ser mais natural que
ele se entrincheirasse contra os reclamantes. E “as intenções
destes últimos, que evidentemente poderiam sempre estar
ligadas a interesses privados, deveriam aparentarem-lhe
suspeitas”.
Em meio àquelas discussões, Marx percebe que toda a atividade
dos funcionários é demonstrar a infalibilidade da
administração. No entanto, como o estado de desgraça em que se
encontravam os camponeses do Mosela não poderia ser
simplesmente ignorado, tendo tornado-se, naquele momento, um
fato político que extrapolava os limites regionais, era
necessária a busca de suas causas. Sendo a administração
isenta de qualquer responsabilidade, apenas os erros dos
próprios administrados poderiam explicar os problemas por eles
enfrentados.
Com isto, Marx denuncia o estabelecimento de uma dupla
realidade. Primeiro, aquela descrita pelos cidadãos do Mosela,
que ele aceita como a verdadeira. Segundo, aquela descrita
pelos oficiais estatais, que nosso autor classificará de
“burocrática”. Nesta, valem os dados dos memorandos, os
relatórios, as diligências oficiais etc., mas não cabem as
opiniões dos mais interessados em resolver os problemas. Os
camponeses mais humildes são tidos como “leigos” pelos
funcionários, e os mais cultos são acusados de defenderem
somente seus interesses pessoais, sem terem compreensão
profunda da superioridade do Estado.
Esta posição dos funcionários, descrita por Marx, é uma
distorção caricatural da filosofia hegeliana. Pois é evidente
que neste caso não se realiza o reencontro entre indivíduos e
seu gênero, ainda que a tal interpretação dos burocratas possa
ser arrancada de uma leitura enviesada do texto de Hegel. Marx
desvenda o problema. Aqui existe a necessidade de superar a
equivocada ideia de que necessariamente a burocracia estatal é
aquela classe que resguarda e compreende conscientemente os
interesses universais. Pelo contrário, da mesma forma que faz
quando defende o direito baseado nos costumes dos pobres, ele
se esforça por demonstrar que os interesses de uma camada
popular podem coincidir com os interesses genéricos. A
burocracia, por sua vez e por sua própria natureza, tende a
atuar da maneira exatamente oposta. Isto porque é de sua
natureza entender como interesses do Estado apenas os seus
interesses particulares, no caso, o de provar que sua atuação
enquanto funcionário foi exemplar.
O mais importante, contudo, é que Marx não para em criticar os
funcionários da monarquia prussiana. Além disso, ele
generaliza este comportamento para toda a administração e
seguidamente para todos os governos.
“Finalmente, todo governo é movido, por um lado, pela
consciência de que o Estado tem leis as quais ele precisa
defender face a todos os interesses privados, e, por outro,
como uma autoridade administrativa individual, seu dever não é
fazer instituições ou leis, mas aplicá-las. Portanto, suas
tentativas não podem ser de reformar a administração em si,
mas apenas o objeto administrado. Ele não pode adaptar suas
leis à região do Mosela, mas apenas promover seu bem-estar nos
limites de suas regras administrativas firmemente
estabelecidas. Assim, quanto mais zelosa e sinceramente um
governo esforçar-se – nos limites das instituições e
princípios administrativos já estabelecidos, pelos quais ele
próprio é governado – por remover um notório estado de
sofrimento que abrange possivelmente toda uma região, e quanto
mais contumaz for a resistência destes males às medidas
tomadas contra eles, crescendo apesar da boa administração,
tão mais profunda, sincera e decisiva será a convicção de que
este é um estado de sofrimento incurável, o qual a
administração, isto é, o Estado, não pode fazer nada para
alterar, e que requer, antes, uma mudança da parte dos
administrados”.
Para Marx, o resultado é que os habitantes acabam
desenvolvendo a compreensão de que o Estado não existe em prol
do país, mas, ao contrário e infelizmente o país é que existe
em prol deste Estado. O ponto mais forte desta argumentação é
a percepção de que a administração não consegue se perceber
como parte do problema. Na verdade, o Estado ser parte do
problema era algo completamente excluído da mentalidade dos
burocratas, e mesmo da filosofia hegeliana.
O alvo principal de Marx continua sendo a monarquia prussiana,
evidentemente. No entanto, ao generalizar as conclusões para
todos os governos ele, parece-nos, dá um passo a mais. Pois o
comportamento da burocracia acaba, com esta generalização, se
fazendo presente em qualquer Estado, incluso aqueles de
natureza democrática. Marx segue defendendo uma administração
democrática, pois esta é a única em que os cidadãos podem
demonstrar que seu interesse privado acaba sim por coincidir
com os interesses universais
recepcionados pelo Estado.
e
devem,
portanto
ser
Mas a esfera estatal perde o seu caráter imaculado sem perder
o posto no altar. Ele não representa a universalidade do
gênero efetivada perante os indivíduos por si só. Segue sendo
o elemento mais importante e indispensável desta relação. Em
outras palavras, ele segue sendo o locus da racionalidade,
universalidade e liberdade humanas, mas somente se superado o
seu afastamento dos indivíduos, permitindo-lhes que mantenham
o Estado sob o seu alcance. Caso contrário, ele terá apenas
uma universalidade formal.
E ele conclui, portanto, por uma inovação frente à teoria de
Hegel. Marx defende a necessidade de uma mediação entre os
indivíduos presentes na sociedade civil e o Estado, única
capaz de fazer com que este último seja, de fato, o resultado
da vida genérica dos homens. Ao mesmo tempo, uma mediação que
não faça o Estado refém da lógica da propriedade privada, que
mantenha o seu posto de superioridade em relação à guerra de
todos contra todos da sociedade civil.
Esta mediação, Marx encontrará na imprensa livre. Um “terceiro
elemento, que seria político sem ser oficial (…) um elemento
de natureza civil sem estar agrilhoado a interesses privados e
a pressão de suas carências”. A imprensa possuiria a cabeça de
um cidadão do Estado, e o coração de um cidadão da sociedade
civil. Nela, administradores e administrados participam
igualmente como forças intelectuais, ou forças espirituais.
Como bem colocado por Bermudo, se “o Estado chega a converterse em um aparato burocrático que defende os interesses de seus
funcionários; se o Estado necessita de uma espécie de gendarme
[a imprensa] que vigie seus desvios, se está destroçando a
ideia hegeliana – e burguesa – do Estado racional universal”.
Isto porque, em Hegel, o Estado deve ocupar o cume da vida
social. Sua única necessidade é a de contar com o dever de
seus membros em adequarem-se a ele. Ao incluir a crítica
presente na imprensa como uma necessidade do Estado, Marx está
atestando a sua insuficiência. Está afirmando que, não
necessariamente o que está positivado nas instituições dos
Estados, os democráticos inclusive, é o interesse universal do
gênero humano. Este é um passo que, aqui, ainda não se
desdobrou em conclusões que o levem a abandonar a ideia de que
é necessário constituir-se um Estado racional universal. Mas é
possível supor que surge a suspeita de sua impossibilidade.
Ainda não está posta a ruptura com a filosofia política de
Hegel. Repetimos, isto se dará meses mais tarde com a Crítica
da filosofia do direito de Hegel, em que Marx afirma a
necessidade da abolição do Estado. Testemunhamos aqui uma de
suas últimas fronteiras. E quando do fechamento da Gazeta
Renana pelo governo, a defesa escrita por Marx ainda é em
termos hegelianos, e baseia-se na concepção de que, embora
tenha tomado atitudes oposicionistas ao governo em
determinados temas, o jornal jamais rendeu-se aos
particularismos presentes nas diversas regiões da sociedade
alemã. Pelo contrário, advogou em todos os casos pela
universalidade do Estado.
O papel da imprensa
Não é a toa que a imprensa apareça como esta mediação. Em
diversos momentos, o projeto de Marx é apresentado nos
próprios artigos da época. Os textos são, em geral, polêmicos,
buscando o debate contra as concepções tidas como mais
influentes naquele momento. É comum pensarmos, hoje, que para
a melhor forma de impulsionar o progresso do conhecimento, as
polêmicas devem ser dirigidas contra o que de mais elevado
tenha se produzido até então, um valioso conselho de autoria
comumente atribuída a Gramsci. Chama a atenção, no entanto, o
fato de que Marx se dedica a criticar, inclusive, autores e
posições que o próprio desenvolvimento histórico demonstrou
não serem importantes.
O Marx de então preferia escolher os adversários que melhor
permitissem a apresentação de suas próprias posições. E
possivelmente pelo contexto de reação feudal e romântico que
citamos acima, nem sempre estes eram de alto nível. Em certa
carta de julho de 1842, endereçada a Ruge, ele diz:
“Provavelmente serei forçado a uma polêmica prolongada com o
Hermes da [Gazeta de] Colônia. Não importa o quão ignorante,
superficial e trivial este homem seja, precisamente graças a
estas qualidades ele é o porta-voz do filisteísmo e eu não
pretendo permitir que continue com sua tagarelice. A
mediocridade não deveria mais gozar do privilégio da
imunidade”.
A filosofia que se tornava prática precisava conquistar a
consciência do público. A disputa era, assim, essencialmente
política por buscar tornar o Estado um assunto popular, e
travada, em determinadas ocasiões, no tabuleiro disposto pela
própria ação do inimigo. Esta preocupação em não agraciar a
mediocridade com o privilégio da imunidade está casada ao
papel de destaque que Marx atribuía à imprensa.
Ocupando o posto de mediação entre indivíduos e Estado, a
imprensa tinha como sua tarefa, transformar os interesses
genéricos um assunto particular de cada indivíduo. Trazendo ao
público as principais discussões políticas do momento, a
imprensa faria emergir uma “real simpatia pelo Estado, e teria
feito o Estado próximo ao coração, um assunto doméstico dos
seus membros”. Pois a imprensa não apenas representaria a
opinião pública, mas serviria também, para criá-la.
Mas, ao mesmo tempo, abre a possibilidade de que os indivíduo,
pensando com a cabeça de um cidadão do Estado advogue em
defesa de suas causas. Pois ela por si poderia “transformar um
interesse particular em interesse geral”. Este papel atribuído
pelo Marx de 1842 é devedor, mais uma vez, da estrutura
filosófica de seu pensamento em que as ideias possuem
importância preponderante em relação à ação. Isto faz com que
ele interprete que qualquer questão só possa ser encarada
seriamente quando posta nos termos teóricos corretos.
“O que faz da imprensa a mais poderosa alavanca para a
promoção da cultura e da educação intelectual do povo é
precisamente o fato de que ela transforma a luta material em
uma luta ideológica, a luta de carne e osso, em uma luta do
espírito, a luta da carência, do desejo e do empirismo, em uma
luta da teoria, da razão e da forma”.
A imprensa popular, política, mas não oficial, participaria da
vida dos cidadãos, compartilhando suas impressões, seus medos
e suas alegrias, e portanto, apenas ela poderia realmente
ligá-los à sua vida genérica no Estado. Mas ela cumpre este
papel especialmente porque, por sua própria natureza, exige de
seus participantes que para gozarem de suas vantagens adentrem
em sua esfera a partir de sua atividade intelectual. Exemplo
disto é certa passagem em que, defendendo o anonimato por
parte dos autores da imprensa popular, Marx utiliza um
argumento duplo para tal: por um lado, ao utilizar do
anonimato, o autor permite-se ser julgado não pelo
conhecimento empírico que o público tem dele, mas por sua
personalidade intelectual; por outro, ocultando-se a
individualidade do escritor, aparece a coletividade do jornal
como um órgão defensor de uma determinada concepção e não uma
miríade de indivíduos.
É por esta possibilidade que tem a imprensa de trazer as lutas
materiais de seu tempo para o campo da luta em defesa da
razão, que Marx critica seus próprios companheiros do
hegelianismo de esquerda. A esta altura, os jovens hegelianos
de Berlim haviam constituído um grupo autodenominado de “Os
Livres”. Para Marx, sua principal característica, e a de seus
escritos, eram o autoelogio e o romantismo político. Acontece
que estes pensadores, liderados por Bruno Bauer, haviam levado
ao limite suas teorias da “consciência de si”, autodeclarandose, desta maneira, “livres”. Para o editor da Gazeta Renana,
tal atitude, especialmente quando expressa na imprensa, estava
“comprometendo a causa do partido da liberdade”. Não era o
momento de abdicar da tarefa crítica da filosofia,
demonstrando que o então estado de coisas na Alemanha
precisava ser transformado, ainda mais em nome de um exercício
abstrato e, em grande medida equivocado, da teoria.
Com esta concepção, Marx não poderia deixar de ser um ferrenho
militante da liberdade de imprensa. Esta liberdade, por sua
vez, confunde-se com a própria liberdade do espírito, na
medida em que qualquer ameaça a ela é também uma ameaça ao
pensamento. De forma que, em seus escritos contra a censura,
nosso autor demonstra como esta é, também ela, uma forma de
privilégio. Pois a censura nada mais seria que a crítica (a
prática teórica) oficial. E ironicamente ele levantava a
questão: Se os censores são homens tão capazes, ao ponto de a
tudo dirigem a sua impiedosa crítica, por que o público
científico não conheceria os seus valiosos escritos?
A censura não é apenas o impedimento da liberdade universal.
Ela é, também, o exercício da liberdade, novamente, como
privilégio. No caso da Alemanha de 1842, mais uma vez, como
privilégio da aristocracia. Posto que estendia de forma quase
ilimitada o exercício da crítica por parte dos burocratas da
censura, ao mesmo tempo que impedia a livre manifestação do
espírito popular. A luta pela liberdade de imprensa, dessa
maneira, traduzia-se em uma luta contra as instruções da
censura, mas, igualmente, por uma lei de imprensa. Reaparece a
concepção hegeliana de Marx sobre o direito. A lei seria a
forma de reconhecer universalmente uma liberdade natural já
existente na própria essência dos homens.
Neste sentido, se a imprensa é a mediação necessária entre os
indivíduos e sua vida ética, o exercício da liberdade de
imprensa é um composto imperativo para a realização da
moralidade objetiva dos homens. Marx possuía ciência de que
com liberdade da imprensa haveria sempre espaço para o
surgimento dos particularismos da sociedade civil, das
informações apresentadas sem qualquer pesquisa séria, enfim,
haveria sempre a possibilidade da má imprensa ganhar terreno.
Para ele, contudo, este era o curso concreto do amadurecimento
do espírito de um povo. E da mesma forma que existia boa
imprensa sob a pressão da censura, seria natural existir má
imprensa sem ela.
No entanto, o fazer-se da imprensa seria necessariamente uma
busca pela verdade. Por um lado através da polêmica e da
crítica. Mas também, através do exercício coletivo de
investigação do mundo objetivo. Pois a verdade, aqui, está
relacionada à busca pela totalidade, que só poderia ser
realizada pelos muitos indivíduos que dividissem o trabalho de
buscá-la. Cada pequena contribuição com dados, considerações
teóricas ou mesmo estéticas, seriam um passo aproximando-se do
conhecimento verdadeiro. De forma que “este trabalho da
imprensa terá preparado para um de seus participantes o
material a partir do qual ele criará um todo único”.
***
Estas características atribuídas por Marx à imprensa são o
motivo que levam-lhe a propôr a audaciosa inovação à teoria
política de Hegel de que falamos acima. Se o Estado é o corpo
da universalidade da vida social humana, a imprensa aparece
com o seu próprio espírito em movimento. E, de certa maneira,
tudo indica que para Marx, ela é o elemento ativo da
conformação do Estado como de fato a universalidade do gênero.
Esta concepção encontrava como resultado necessário a tomada
de posição por um liberalismo radical, de corte jacobino e
plebeu. Dado que o único Estado, no interior desta concepção,
que poderia superar a universalidade meramente formal a que
chegou Hegel, seria um que estivesse baseado em leis e
instituições democráticas. Mas além disso, que fosse capaz de
corporificar os genuínos interesses universais dos homens,
identificados pelo Marx jacobino com os interesses da massa
popular, pauperizada e privada de toda liberdade.
Ler as páginas da Gazeta Renana é, por fim, um exercício
prazeroso. Leva-nos a perceber que o tamanho dos passos dados
por Marx até a formulação de sua concepção própria de mundo,
baseada em uma defesa filosófica e científica do comunismo.
Mas também nos fala de nosso presente. Pois, em um momento em
que os autointitulados “liberais” de nossas terras bradam pela
defesa de mordaças em professores de escolas secundárias e
cortes de verbas em serviços públicos para garantir os
privilégios de verdadeiras castas financeiras; nada como ler
escritos liberais de um outro tom, radicalmente contrários à
censura, e em defesa de um Estado que tome para si a tarefa de
proteger os interesses das massas populares, únicos com
caráter realmente coletivo e público. Sem dúvidas, acabou o
tempo em que nos era permitido deixar a mediocridade gozar do
privilégio da imunidade.
Referência bibliográficas:
BERMUDO, J. M. El concepto de praxis em el joven Marx.
Barcelona: Ediciones Peninsula, 1975.
EIDT, C. Da crítica idealista à crítica materialista: ser
genérico e gênese do comunismo. Campinas: s.n., 2010.
HEGEL, G. W. F. Princípios da filosofia do direito. São Paulo:
Martins Fontes, 1997.
LUKÁCS, G. O jovem Marx. Sua evolução filosófica de 1840 a
1844. In O jovem Marx e outros escritos de filosofia. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 2007.
MARX, K. Karl Marx, Friedrich Engels Collected Works. Vol 1.
Londres: Lawrence & Wishart, 2010.
MARX, K. Ad Feuerbach (1845). In MARX, K. e ENGELS, F. A
ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em
seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do
socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845 – 1846).
São Paulo: Boitempo, 2007.
MEHRING, F. Karl Marx. A história de sua vida. São Paulo:
Editora Jorge Luis e Rosa Sundermann, 2013.
PROUDHON, J. P. O que é a propriedade? 2 ª Ed. Lisboa: Estampa
Editorial, [1840] 1975.
SAMPAIO, B. A. e FREDERICO, C. Dialética e materialismo. Marx
entre Hegel e Feuerbach. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.
WEIL, E. Hegel e o Estado. Cinco conferências seguidas de Marx
e a filosofia do direito. São Paulo: Realizações Editora,
2011.
Download