Resenha do capítulo “Cidadania e Classe Social”, In: MARSHALL, T. H. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1967. Guilherme Stolle Paixão e Casarões T. H. Marshall busca, neste texto específico, desenvolver o que ele chama de “hipótese sociológica” latente no ensaio de Alfred Marshall, sobre o qual comenta, segundo a qual “há uma espécie de igualdade humana básica associada com o conceito de participação integral na comunidade (...) o qual não é inconsistente com as desigualdades que diferenciam os vários níveis econômicos na sociedade” (p. 62). Para nosso autor, a sociedade admite a compatibilidade entre igualdade de participação na sociedade, ou igualdade de cidadania, e as desigualdades engendradas pela estrutura de classes sociais. A relação entre essas duas variáveis é seu principal objeto de preocupação (p. 75). Parte-se, a fim de se dar início ao estudo, da seguinte pergunta: “parece haver limites além dos quais a tendência moderna em prol da igualdade social não pode chegar ou provavelmente não ultrapassará, (...) limites inerentes aos princípios que inspiram essa tendência” (p. 63)? De forma a respondê-la, Marshall reconstrói o desenvolvimento da cidadania – na Europa, berço da “sociedade capitalista”, em geral, na Inglaterra em particular – até o século XIX, relacionando-o com seu impacto sobre as classes sociais, para adiante jogar luz sobre o advento dos direitos sociais no século XX. A análise de Marshall parte de três derivações particulares do conceito de cidadania, quais sejam, os elementos civil, político e social. O direito civil está relacionado ao exercício da liberdade individual e suas derivações, como a liberdade de ir e vir, de imprensa, pensamento e fé, bem como o direito à propriedade e à justiça (p. 63). Deriva-se daí que as instituições que se vinculam aos direitos civis, em função da possibilidade que apresenta o indivíduo em afirmar seus próprios direitos em termos de igualdade com os demais, são os tribunais de justiça. O direito político, por sua vez, remete à possibilidade de participar no exercício do poder político, seja como membro eleito de um dos organismos integrantes do Estado ou como seu eleitor. Tem como instituições correspondentes, seguindo esta lógica, o parlamento e os conselhos do governo local. O elemento social, por fim, refere-se “a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade” (pp. 63-4). A ele relacionam-se o sistema educacional e os serviços sociais. Ao tomar a Europa como referencial analítico, Marhsall argumenta que, anteriormente à era moderna, não era possível traçar uma linha clara entre os três direitos, uma vez que as instituições aos quais se relacionam encontravam-se, via de regra, amalgamadas. Além disso, mesmo quando era possível identificar direitos como os sociais nas sociedades feudais, por exemplo, eles estavam ligados a um status que, à época, não representava a igualdade, mas constituía-se, pelo contrário, na “marca distintiva de classe e a medida de desigualdade” (p. 64). A situação era diferente nas cidades medievais, que já possuíam uma cidadania igualitária, mas ainda restritas ao nível local. Desta forma, o autor assinala que a evolução da cidadania nacional1, sobre a qual pretende jogar luz, passou por um duplo processo – de fusão geográfica, por um lado, e de separação funcional, por outro. O primeiro, que ocorrera na Inglaterra pelo menos um século antes de sua consolidação na Europa continental, envolveu a transformação das instituições locais em nacionais e permitiu a passagem da análise para um nível analítico mais amplo. A separação funcional, por sua vez, relaciona-se com o desligamento das instituições da sociedade entre si, resultando na formação de tribunais especializados e parlamento sem funções judiciais, bem como a Poor Law, uma instituição nacional de direito social, porém administrada localmente. Do processo de evolução da cidadania derivam, segundo Marshall, duas conseqüências fundamentais. Em primeiro lugar, a separação funcional permitiu que cada um dos direitos seguisse seu próprio caminho. “O divórcio entre eles era tão completo que é possível (...) atribuir o período de formação da vida de cada um a um século diferente – os direitos civis ao século XVIII, os políticos ao XIX e os sociais ao XX” (p. 66). Em segundo, houve um distanciamento das instituições com relação aos grupos sociais que elas buscavam servir, em função do seu novo caráter nacional, decorrendo daí a necessidade de se remontar o mecanismo de acesso àquelas: como cada um dos direitos ligava-se a uma 1 Acredito que, ao se referir à cidadania “nacional”, Marshall esteja pensando única e exclusivamente em termos de configuração territorial. Argumentam Anderson (1991), Gellner (1983), ou Giddens (2001) que formações estatais pré-modernas, mesmo a Inglaterra medieval, não possuíam vínculos nacionais propriamente ditos. Desconsiderarei, portanto, o “anacronismo” de Marshall, adotando sua visão de nacional como sinônimo de “estatal” para fins desta resenha. instituição cujo mecanismo de acesso foi restituído ao longo dos séculos mais ou menos rapidamente, reforçando, assim, o “completo divórcio” ao qual Marshall referia-se anteriormente. Outro elemento essencial na formulação de Marshall é sua distinção entre cidadania, ou status, e classe social. A primeira “é um status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos direitos e obrigações pertinentes ao status” (p. 76). Ou seja, a cidadania é a relação do indivíduo com o Estado, a partir da qual são conferidos direitos individuais num movimento em direção à igualdade de condições. A classe social, por sua vez, “é um sistema de desigualdade” (p. 76). Relaciona-se com a inserção do indivíduo no mercado de trabalho e, num marco liberal, sua existência é desejável – seja para recompensar o trabalho realizado ou como incentivo para o desenvolvimento. Dessa forma, é possível asseverar que a classe social é fundada nas desigualdades intrínsecas dos indivíduos, ao mesmo tempo em que funciona como um produtor de desigualdades. Para Marshall, status e classe social, por divergirem-se fortemente quanto aos fins, são princípios opostos. A observação de que, no século XX, cidadania e sistema de classe capitalista encontram-se em guerra foi o que suscitou a preocupação do autor em investigar os impactos de uma sobre outra, e eventualmente vislumbrar algum tipo de compatibilidade. Ainda assim, os termos continuam a carecer de definições mais concretas. Marshall ocupa-se em realizar uma distinção entre dois tipos de classe social que são importantes para a sua análise. O primeiro deles é a classe que “se assenta numa hierarquia de status e expressa a diferença entre uma classe e outra em termos de direitos legais e costumes estabelecidos que possuem o caráter coercivo essencial da lei” (p. 76), sendo uma instituição, emergida naturalmente, em seu próprio direito. Trata-se, grosso modo, do sistema de classes do feudalismo medieval, e o autor aponta incisivamente a incompatibilidade deste com aspirações de cidadania. O segundo tipo de classe social, já brevemente tratado acima, pode ser entendido como um produto derivado das instituições sociais, particularmente dos “fatores relacionados com as instituições da propriedade e educação e a estrutura da economia nacional” (p. 77). Permite-se a mobilidade social, que está relacionada com a participação do indivíduo na economia – via mercado de trabalho – e a possibilidade de sucesso material. A existência desse tipo de classe gera um tipo de desigualdade social “necessária e proposital” (p. 77), ainda que possa se tornar destrutivamente excessiva. Não obstante, sua necessidade sugere que, a princípio, ela não seja incompatível com aspirações igualitárias via status. O desejo por cidadania e o despertar da consciência social, que acarretaram a – benéfica – diminuição da influência das classes, não constituiu um ataque ao sistema de classes, tornando-o, ao contrário, menos vulnerável. Ademais, e particularmente quando o núcleo da cidadania residia nos direitos civis, a concessão de direitos era necessária para a manutenção de um mercado competitivo e gerador de desigualdades. Os direitos políticos de cidadania, por sua vez, “estavam repletos de ameaça potencial ao sistema capitalista” (p. 85), uma vez que Marshall reconhece a centralidade do exercício do poder político para demandar e se assegurar direitos sociais. Contudo, o que se observou na Inglaterra foi a transferência da reivindicação social da esfera política para a civil da cidadania, via sindicalismo ou aceitação do direito de barganha (p. 86). Tem-se, portanto, que até o despertar do século XX, momento em que os direitos sociais começam a se pronunciar, o desenvolvimento da cidadania tenha exercido pouca influência direta sobre a desigualdade social (p. 87). A ampliação dos direitos sociais possuiu um papel decisivo na relação com o sistema de desigualdade, ainda que seu objetivo aparente não tenha sido atacar a desigualdade de renda, mas sim fomentar a igualdade de status (pp. 94-5). Nesse sentido, destaca-se que, num Estado que provê direitos sociais, amplia-se a concessão de direitos fundamentalmente coletivos, em detrimento daqueles intrinsecamente individuais. Marshall aposta a importância vital da “manutenção de um equilíbrio razoável entre esses elementos coletivos e individuais dos direitos sociais” (p. 97). Caso contrário, há um efeito perverso notório da expansão dos direitos coletivos, qual seja, a transformação da cidadania no próprio elemento criador da desigualdade social (p. 99). O exemplo mais vívido dessa lógica encontra-se na relação entre a estrutura educacional, baseada em direitos coletivos, e a estrutura ocupacional: a origem do indivíduo em termos educacionais – se recebeu educação governamental, e de que tipo – acompanha-o como um estigma insuperável, reduzindo seu leque de possibilidades de trabalho e fazendo com que a cidadania, no limite, opere como um instrumento de estratificação social (p. 102). Assim, na forma moderna, o desenvolvimento do contrato de trabalho é feito com base nos direitos sociais, sendo que os privilégios do contrato individual tem sido substituídos por direitos coletivos, estratificantes, como o status de classes trabalhadoras específicas ou diferenças de piso salarial. Ao concluir sua exposição, Marshall atenta para os efeitos combinados de três fatores vigentes nas sociedades atuais: a compressão, em ambos os extremos, da escala de distribuição de renda; a grande extensão da área de cultura comum e experiência comum; e a consolidação da universalização do status da cidadania, lado a lado com a legitimação de certas diferenças de status via educação e ocupação (p. 108). O autor pondera que o movimento em direção da maior cidadania coloca em questão a preservação de certas desigualdades econômicas, ao mesmo tempo em que há limitações claras à busca total pela igualdade, impostas não somente pelo sistema econômico como também pela própria cidadania. É fundamental destacar dois aspectos da análise proposta por Marshall e tratada aqui. Em primeiro lugar, ressalta-se a centralidade de sua definição de cidadania, em geral, e de sua tipologia dos direitos, em particular. Ainda que o empreendimento do autor não chegue a se constituir numa teoria stricto sensu, apesar de certas (e dispersas) generalizações quanto ao surgimento da cidadania na Europa, suas formulações fornecem ferramentas importantes para a compreensão de fenômenos sociais ao longo da história. Um segundo aspecto a se sublinhar é a relação crucial estabelecida por Marshall entre busca por igualdade, por meio da universalização da cidadania, e manutenção de um sistema de desigualdades, engendrado pelo próprio desenvolvimento de uma economia de mercado. Ele consegue demonstrar que, a despeito da tensão entre um e outro gerada especialmente pela coletivização dos direitos sociais, a convivência entre ambos é desejável e necessária dentro da lógica capitalista vigente. Nesse sentido, vale destacar a atualidade de certas questões por ele levantadas, ainda que a análise tenha sido realizada há quase seis décadas.