“Função Social da Propriedade (C.F., art 5o, XXIII)” DEVER IMPOSTO AO PROPRIETÁRIO SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO 2. APONTAMENTOS SOBRE PROPRIEDADE E UTILIZAÇÃO ADEQUADA DA PROPRIEDADE NA HISTÓRIA BRASILEIRA 3. ALTERAÇÕES NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 4. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE COMO DIREITO E DEVER INDIVIDUAL (ART. 5o , XXIII C. F. 88). EFEITOS PRÁTICOS. NATUREZA JURÍDICA 5. EFEITOS DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE ART. 5o, XXIII SOBRE A LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL 6. EFEITOS PRÁTICOS DO DEVER DE FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE (C. F., Art. 5o, XXIII) SOBRE LEIS ORDINÁRIAS DE POSSE E PROPRIEDADE 7. EFEITOS PRÁTICOS DO DEVER DE FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE (C. F., ART. 5o, XXIII) SOBRE OS PROCEDIMENTOS POSSESSÓRIAS, ESPECIALMENTE NO CASO DE INVASÕES 8. CONCLUSÕES 9. PROPOSIÇÕES AO CONGRESSO DE PROCURADORES DE AÇÕES “O Poder Judiciário não é babá de proprietário”. (Helio Saboya – Chefe de Polícia Civil durante o ciclo de invasões na zona oeste do Rio de Janeiro em 1988) 1. INTRODUÇÃO O aumento dos distúrbios possessórios, os assassinatos e dramas provocados pelas disputas de terras no Brasil fazem qualquer observador da cena brasileira – jurista ou leigo – indagar se as decisões e ordens judiciais, cumpridas toscamente país afora, são adequadas, bem como se a legislação brasileira, sobre propriedade de terras é suficiente e apropriadas às peculiaridades nacionais. De fato, de pouco adianta copiar legislação estrangeira sobre disputas possessórias, se não se levarem em conta as particularidades geográficas, históricas humanas e econômicas do Brasil. Os tratados e leis alemãs sobre posse são, em tese, perfeitos, é verdade, mas duvida-se de que possam ser puramente aplicados ao cenário brasileiro. Nos salões acadêmicos fala-se em “possuidor”, “interdito possessório” e “servo na posse”. Mas no Brasil das invasões é mais comum se falar em “posseiro” “jagunço” e “milícia do campo”. Tais fatos são notórios e, pelo sabor da ilustração, estão documentados em anexo. É bem verdade que a disputa pela posse de terras não é exclusiva da sociedade brasileira. No entanto, o conflito brasileiro é um dos mais expressivos do mundo, sendo um confronto nítido com partes organizadas como o MST e a UDR. Buscar o motivo exato que faz o problema brasileiro tão peculiar é tarefa gigantesca que transbordaria o objetivo deste trabalho. Todavia, de antemão pode-se afirmar que falta de terra não é, posto que que o Brasil tem o imenso território de 8 milhões de km2. Portanto, limita-se ao exame do tratamento que a nova Constituição Federal em 1988 deu à propriedade e à “função social da propriedade”. Por meio desse exame, verifica-se as normas Constitucionais – históricas e atuais - sobre o tema, seu efeito prático sobre a legislação infraconstitucional e, em última análise, sua consonância com as decisões judiciais. 2 2. APONTAMENTOS SOBRE PROPRIEDADE E UTILIZAÇÃO ADEQUADA DA PROPRIEDADE NA HISTÓRIA BRASILEIRA. Em proporção à enorme extensão territorial brasileira, a legislação nacional sobre propriedade sempre foi pequena. A propriedade do território nasceu naturalmente com a ocupação pela Coroa Portuguesa, e já a famosa carta de Pero Vaz Caminha se referia à terra como propriedade do Rei de Portugal. O território brasileiro surgiu assim como propriedade da Coroa Portuguesa. Propriedade absoluta, tal qual a monarquia, sem impor limitações a si própria. No entanto, a propriedade privada de terras já nasceria restrita, limitada e condicionada. De fato, aos particulares a Coroa concederia o uso das terras reais mediante capitanias e sesmarias. Mas não é só. Para a outorga de tais sesmarias deveria o sesmeiro cumprir imposições de cultivo e cultura da terra concedida sob pena de comisso, isto é, perda do uso da terra. Vislumbra-se assim desde início a preocupação do Estado com a utilização efetiva de terras. Sabe-se que, a partir de 1795, a Coroa imporia outro requisito para a concessão de novas sesmarias: o trabalho escravo. Assim, quanto mais escravos possuísse o sesmeiro, mais lotes de sesmaria poderia reivindicar. Este requisito demonstra, sem dúvida, a preocupação da Coroa em atribuir terra a quem efetivamente fosse dela fazer uso. Contudo, a demonstração dessa forma primitiva de função social da propriedade trazia em si própria a enorme injustiça da escravidão e da apropriação do trabalho alheio. O regime de sesmaria seria extinto pela Resolução de 17 de julho de 1822, que, aliada à agitação geral causada pela independência naquele ano, provocaria uma “vacatio legis”, isto é , a ausência de uma legislação definida sobre terras no País. 3 A Constituição Imperial de 1824, certidão de batismo do Estado brasileiro, limitou-se a declarar: “é garantido o direto de propriedade em toda sua plenitude”. (art. 129, al. 22) Somente em 1850 surgiria uma lei formal sobre propriedade fundiária, que foi a Lei 601, de 18 de setembro de 1850 – lei de terras. Seu objetivo primário era estremar as terras públicas e privadas, mas foi além disso. Por intermédio da Lei 601 se definiam os sobejos de terras reais, as terras vagas e abandonadas como “terras devolutas” (Lei 601 / 1850, art. 3o). Mais interessante era a disposição em relação às terras possuídas, ou seja, aquelas que não tinham um título formal de propriedade. Previa a lei a legitimação dessas terras mediante registro do terreno possuído na freguesia. Contudo, determinava-se a moradia e o cultivo pelo pretendente. Verifica-se que, em 1850, já era uma preocupação do legislador impor alguma forma de utilização forçada do imóvel, não compreendendo a propriedade como de uso arbitrário do proprietário. Este período da história brasileira foi muito fecundo no esforço de regularização do domínio. Assim, logo aparecia o regulamento da Lei de Terras (Decreto 1318 – jan. 1854) e também o “registro paroquial de terras”, isto é, anotações e legitimações de propriedade feitas pela Igreja. Foi exatamente a organização feita pela legislação desse período, especialmente a Lei de Terras, que previa, em seu art. 12, a reserva de terras devolutas para a imigração, que propiciou a distribuição de lotes aos colonos italianos no Rio Grande do Sul, instituindo o regime da pequena propriedade, em uma das mais bem sucedidas experiências do Império. Mas, o advento da República (1889) e da Constituição Republicana (1891) foi, ao invés de renovador, estranhamente conservador. É que, para afastar qualquer suspeita dos latifundiários e restauradores quanto ao seu suposto jacobinismo, a Assembléia Constitucional da República fez questão de repetir a norma da Constituição do Império: Const. 1891, art. 72, § 18: “O direito de propriedade mantém-se em toda sua plenitude” (...) Como se vê, a República não fez nenhuma imposição de uso da terra ao proprietário. Assim, passando o pesadelo da imigração oficial, com distribuição de 4 lotes, na República Velha já podia o proprietário sonhar dormindo sobre o próprio latifúndio. Com a vigência do Código Civil em 1917 pouco se altera. As restrições ao exercício da propriedade são urbanas e de caráter particular, não coletivas. É bem verdade que o Código mudou, punindo o proprietário com a perda da propriedade pelo abandono (Cód. Civil art. 520, art. 589). Mas o problema do latifúndio não era propriamente o abandono da terra mas sim sua subutilização. A Revolução de 1930 veio acabar com a República Velha e, prometendo reformar o País, inovou em sua Constituição de 1934: C.F. 1934 – art. 113, al. 17. “É garantido o direito de propriedade, que não pode ser exercido contra o interesse social ou coletivo na forma que a lei determinar”. Assim, pela primeira vez a Constituição brasileira declarava que a propriedade não era um direito absoluto ! Tal norma constitucional já tinha vaga inspiração socialista, modismo ao gosto da época desde a Revolução Russa em 1917 e da Constituição de Weimar. Mas, no embate ideológico daquele tempo, com o mundo à beira da Guerra Mundial, o Brasil rumou para a ditadura. Assim, a Constituição do “Estado Novo” ditadura getulista de 1937, limitou-se a dizer: Const. 1937, art. 122, al. 14. “É garantido o direito de propriedade, cujo conteúdo e seus limites serão definidos nas leis que lhe regularem o exercício”. Ora, a lei que regulava a propriedade era basicamente o Código Civil, e tais restrições, como já vimos, eram de Direito Privado. Em 1945, terminada a guerra e a ditadura getulista, o Brasil resolveu fazer nova Constituição, e o legislador Constitucional de 1946 foi renovador: 5 C.F. 1946 – art. 147. “Uso da propriedade será condicionado ao bem estar social”. O texto reintroduzia na Constituição condições à propriedade. Mas foi sob a égide dessa Constituição – especialmente no governo João Goulart - que o problema da propriedade de terras começou a se tornar agudo. Tão agudo se tornou que foi uma das causas de uma Revolução militar conservadora em 1964. E, no Brasil dos militares, se fez mais uma Constituição (1967 – 1969). A Constituição militar de 1967-1969 introduziu na parte da ordem econômica e social um príncipio programático. Const. 69, art. 170 (...). “A propriedade atenderá sua função social”. Dispenso-me de qualquer comentário sobre essa norma. Prefiro reproduzir a palavra insuspeita de um jurista conservador, como Pontes de Miranda, comparando-a com a Const. de 1946: “A Constituição de 1967, freada por elementos reacionários apenas se refere à “função social da propriedade”. Pontes de Miranda – Comentários à Constituição de 1967. A norma tem caráter meramente programático, mas durante o regime militar a questão de terras ganharia o nome genérico e abstrato de “reforma agrária” e mereceria páginas de jornais e refletores de televisão. Todavia, carente de apoio político definido e de uma vontade governamental efetiva, o problema só se agravou, com a criação do MST e da UDR. Com o fim do regime militar, este seria um dos problemas mais graves herdados pela renascente democracia, que tentaria equacioná-lo na Constituição. 6 3. ALTERAÇÕES NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 A Constituição de 1988 é conseqüência da “Nova República” e foi feita por assembléia constituinte em clima “anárquico – democrático”. No entanto, as invasões e disputas por terras eram problemas contemporâneos à elaboração da Carta, e a assembléia não fugiu do problema, diga-se a verdade. De fato, pode-se acusar a Carta de 1988 de prolixa ou utópica, mas nunca se pode afirmar que não tenha enfrentado frontalmente o problema da disputa por terras, pois dedica apenas à função social da propriedade oito artigos – art. 5o, XXIII – art. 156, § 1 - art. 153, § 4 - art. 170, III – art. 182, § 2 – art. 184 - art. 185 parágrafo único e art. 186. Em linhas gerais, pode-se dizer que a Constituição foi minuciosa ao conceituar a função social da propriedade, tanto rural (art. 186) como urbana (art. 182, § 2). A Carta foi também imperiosa ao impor a desapropriação do imóvel que não cumprir sua função social (art. 184). A Carta foi, inclusive, punitiva ao atribuir efeitos tributários gravosos pelo fato de propriedade não cumprir sua função social (art. 153, § 4 – art. 156, § 1). E foi ainda repetitiva da Const. de 1969 quando incluiu a função social da propriedade entre os princípios gerais da atividade econômica (art. 170). Mas não é só ! Por último, a Constituição de 1988 inovou inserindo a função social da propriedade como direito e garantia individual (art. 5o ,XXIII, C.F.) De fato, no capítulo “dos direitos e deveres individuais e coletivos” encontra-se: C. F. 1988 – art. 5o: (...) XXIII - A propriedade atenderá sua função social. Esta é uma verdadeira inovação da Constituição Brasileira de 1988 em comparação à Constituição de 1969. Portanto, concluindo, a Constituição de 1988 criou, no art. 5o , “dos direitos e deveres individuais”, a função social da propriedade como um dever individual do proprietário, o que não existia na Constituição de 1967 – 1969. 7 4. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE COMO DIREITO E DEVER INDIVIDUAL (ART. 5o , XXIII C. F. 88). EFEITOS PRÁTICOS. NATUREZA JURÍDICA. Ao inserir a “função social da propriedade” como um direito e dever individual, a Constituição criou efeitos práticos. O primeiro efeito prático é que os direitos e deveres individuais são cláusulas pétreas da Carta Brasileira, não admitindo emenda para sua alteração. De fato, regula a Constituição atual: Art. 60 (...) § 4o Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (...) IV. Os direitos e garantias individuais. Assim, a conclusão inevitável é que a “função social da propriedade” é cláusula pétrea, não podendo ser alterada ou suprimida da carta. O segundo efeito prático é que as normas de direitos e deveres individuais têm aplicação imediata. É o oposto do que acontece com as normas de princípios gerais da atividade econômica, que são meramente programáticas e principiológicas da legislação complementar da Constituição. De fato, ordena a Constituição Federal 1988: Art. 5o (...) § 1o as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Assim, a conclusão inevitável e sumular é que a “função social da propriedade” é dever imediato do proprietário, não precisando de qualquer legislação ordinária ou complementar para ser exigido. No mesmo sentido, compreendo a função social da propriedade como um “dever imposto ao proprietário” escrevia Pontes de Miranda, em 1934, com apoio na doutrina alemã (Comentários à Constituição de 1934 – pág. 186). 8 Mas se é um dever que pode ser imediatamente exigido ao proprietário, por quem pode ser exigido ? Certamente o direito de cobrar esse dever não é abstrato, coletivo ou difuso, que pudesse ser exercido por qualquer um. A primeira pessoa legitimada a cobrar do proprietário a função social daquilo que é seu é o Estado. Assim, naquelas hipóteses especificadas na Constituição, e só naquelas, tem o Estado legitimidade para impor sanções tributárias (art. 156, § 1o, IPTU, art. 153 ITR) ou desapropriatórias (C.F., art. 184). Mas não é só o Estado que está autorizado a cobrar do proprietário o aproveitamento racional e adequado da propriedade. Também o particular está legitimado a exigir do proprietário a utilização social do bem. De fato, pois, tratando-se de direito e dever individual como definiu a Constituição, tal dever e sua exigência situam-se também na área do direito privado. Assim se faça uma distinção. A “função social da propriedade” a que aludia o art. 160 III da C. F. de 1969 e disposta atualmente no art. 170, III, da C.F. de 1988, é autorizativa da intervenção administrativa na propriedade. Diversamente, no entanto, é a outra menção à “função social da propriedade”, uma inovação da C. F. de 1988 no art. 5o, XXIII. Esta é legitimatória da atuação de particular na exigência ao proprietário para que destine aproveitamento adequado a sua propriedade. Já era esse o entendimento de Pontes de Miranda no regime da Carta de 1967, quando comentava a função social da propriedade. “A regra jurídica não é meramente programática. Quem quer que sofra prejuízo por alguém exercer o “usus” ferindo ou ameaçando o bem-estar social pode invocar a norma, inclusive para as ações cominatórias”. Pontes de Miranda – Comentários à Constituição de 1967 – p. 47 Assim, o terceiro efeito prático a se mencionar é que, inserindo a função social da propriedade no art. 5o, entre os “direitos e deveres individuais”, a Constituição criou dever ao proprietário para que dê aproveitamento adequado do que é seu . Concluindo, função social da propriedade, pois, é dever do proprietário (C. F. art. 5o, XXIII), é dever imediato (C. F. art 5o, § 1o ), dever irrevogável (C. F. art. 60, § 4o, IV). 9 5. EFEITOS DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE ART. 5o, XXIII SOBRE A LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL Como é da sabença geral, a legislação infraconstitucional não se confronta com a nova Constituição. Não há conflito de normas. Apenas a nova Constituição revoga o que lhe é contrário e recepciona o que está a seu acordo. Sendo a função social da propriedade um dever instituido entre os direitos e garantias fundamentais, no art. 5o da C.F., tem aplicação imediata, não precisando de legislação comum para ser aplicado, conforme determina o § 1o do art. 5o da Constituição. Portanto, concluindo, a aplicação da legislação, complementar e ordinária, relativa à propriedade e posse deve incluir a exigência de função social da propriedade, pois é um dever criado pela nova Constituição de aplicação imediata. 10 6. EFEITOS PRÁTICOS DO DEVER DE FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE (C. F., Art. 5o, XXIII) SOBRE LEIS ORDINÁRIAS DE POSSE E PROPRIEDADE. A criação de um novo dever ao proprietário tem efeitos administrativos e privados. No campo do direito administrativo a Constituição instituiu a pena máxima da perda da propriedade por desapropriação do imóvel rural que não cumprir sua função social (art. 184), e penas mínimas de efeito tributário (art. 153 – art 156). No campo do direito privado não havia, antes da C. F. de 1988, qualquer conseqüência prática no fato de o proprietário não dar aproveitamento adequado à propriedade. Mas, com a criação deste dever, e com sua aplicação imediata determinada pela Constituição, há de atribuir efeito prático a tal determinação. Não se poderia punir o proprietário com a perda da propriedade, pois a desapropriação privada é instituto desconhecido e não autorizado pela Constituição. Todavia, se não se pode punir o desleixo e descaso do proprietário com a perda da propriedade, deve-se puni-lo com a perda da posse. De fato, no regime da função social da propriedade, instituído pela Constituição de 1988, o proprietário que despreza a utilização adequada do que é seu não pode ser considerado possuidor. Já determinava o velho Cód. Civil de 1917 a perda da posse pelo abandono da coisa (C.C. art. 520). Foi além a Constituição de 1988. Penaliza menos que o abandono, punindo também a subutilização do bem ou sua utilização inadequada. 11 7. EFEITOS PRÁTICOS DO DEVER DE FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE (C. F., ART. 5o, XXIII) SOBRE OS PROCEDIMENTOS DE AÇÕES POSSESSÓRIAS, ESPECIALMENTE NO CASO DE INVASÕES. Também a aplicação do Código de Processo Civil, de 1973, deve incluir o cumprimento da nova Constituição Federal de 1988. Particularmente os procedimentos de ações possessórias (C.P.C. art. 920), que sempre foram utilizados nas questões de disputas de terras, devem agora ser aplicados conjugados com o dever de função social da propriedade. Portanto, por aplicação direta do art. 5o, XXIII, da Constituição ao proprietário que não cumpre o dever de função social não há direito à proteção possessória estatal especial. Processualmente falando, pode-se dizer que, no regime da função social da propriedade, o pedido de reintegração de posse formulado pelo proprietário de imóvel sem aproveitamento deve seguir o rito ordinário. Em outras palavras, ao proprietário desleixado não cabe a defesa da posse com a movimentação do Judiciário em regime especial ou de urgência. Aliás, o Código de Processo, de 1973, já impunha o rito ordinário ao possuidor relapso que defendia a sua posse passado o prazo de um ano e dia da invasão (C.P.C., art. 924). O Código só preve essa hipótese única realmente. Mas o Código de processo é de 1973, ao passo que a Constituição é de 1988, e o dever de função social da propriedade tem aplicação imediata, sem necessidade de regulamentação. Assim, adotado o rito ordinário em relação à propriedade sem função social: a) não é cabível liminar de reintegração ou manutenção de posse (C.P.C., art. 928); b) não é cabível preceito proibitório (C.P.C., art. 932); c) tampouco deve ser julgada procedente “justificação de posse” (C.P.C., art. 929), pois o objeto desta audiência de justificação são os requisitos gerais da defesa possessória (C.P.C., art. 928). Ainda que se use o rito ordinário não se admite tutela antecipada (C.P.C., art. 273). O impedimento decorre da idéia simples de que, se o imóvel não é utilizado adequadamente pelo proprietário, não há porque se lhe deferir a posse do bem no curso do processo. 12 Eventual invasão e ocupação, por terceiros, de terras ou terrenos sem uso aconteceram exatamente em razão de não ter dado o proprietário destino e utilização apropriada ao imóvel quando isto era possível. A cognição pelo juiz do cumprimento pelo proprietário do dever de aproveitamento da propriedade deve dar-se no mesmo momento que verifica e examina os demais requisitos da posse, tais como data do esbulho; caráter clandestino ou precário da posse, etc., conforme o art. 928 do C.P.C. Vale lembrar que é ao autor que incumbe provar a sua posse conforme o art. 927 do C.P.C. Apenas tem direito à proteção e tutela jurisdicional urgente a propriedade ameaçada que tem aproveitamento racional e adequado na forma do art. 186 da Constituição de 1988. 13 8. CONCLUSÕES Nos casos de invasões e ocupações de propriedade para que o Estado conceda tutela por intermédio do Poder Judiciário e da Polícia Militar, há de ser exigida do proprietário a demonstração “ab initio” e cabal de que a propriedade cumpre o dever constitucional de aproveitamento adequado e racional, atendendo sua função social. Dessa maneira se evitariam reintegrações de posse em terras improdutivas, áreas sem muros, sem cercados, terrenos baldios e vagos. Tais reintegrações de posse ao proprietário são fonte de violência, causando o desalijo de dezenas de pessoas. São reintegrações despiciendas ao proprietário que do imóvel pouco uso faz. São custosas ao Judiciário que junto com a Polícia Militar arca com o ônus da operação. São inúteis à sociedade e à Justiça. 14 9. PROPOSIÇÕES AO CONGRESSO DE PROCURADORES No 1 A Constituição Federal de 1967–1969 – regulava a função social da propriedade no título “Da Ordem Econômica e Social” (Título III, art. 160) No 2 A Constituição Federal de 1988 inseriu a função social da propriedade entre os direitos e deveres individuais (Título II - capítulo II, art. 5O ) No 3 As normas de ordem social e econômicas podem ser alteradas por via de emenda à Constituição, ao contrário das normas de direitos e deveres individuais (art. 5o, C.F. 88), que são cláusulas pétreas, não podendo ser alteradas ou revogadas. (art. 60, § 4o, IV., C.F. 88) No 4 As normas constitucionais de ordem social e econômica são, geralmente, de caráter programático e principiológico da legislação complementar e ordinária, ao contrário das normas de direitos e garantias individuais, que tem aplicação imediata (art. 5o, § 1o, C.F. /88), não precisando de qualquer regulamentação legislativa para serem aplicadas. No 5 A partir da Constituição de 1988, destinar função social à sua propriedade é dever individual do proprietário (art. 5o, XXIII – título II – cap I, C.F. /88), dever imediato (art. 5o, § 1o, C.F. /88) dever irrevogável (art. 60, § 4o, IV, C.F. /88). No 6 A aplicação da legislação ordinária, como o Cód. Civil de 1917 e o Cód Processual Civil de 1973, deve incluir a aplicação imediata do dever social do proprietário de destinar função socialmente adequada a sua propriedade (C.F., art 5o, XXIII; C.F. art 5o, § 1o) No 7 Por aplicação imediata do art. 5o, XXIII da C. F. / 88, o proprietário que não cumpre com o dever de destinar função social à sua propriedade deve ser punido com a perda da posse (Cód. Civil, art. 520, conjugado com art. 5o, XXIII, da C.F. ) No 8 Por aplicação imediata do art. 5o, XXIII, da C.F. / 88, a ação de reintegração de posse do proprietário que não cumpre com o dever de destinar função social a sua propriedade deve seguir o rito ordinário, vedada antecipação de tutela (Cód. Proc. Civ., art. 924; art. 273; conjugado com art. 5o, XXIII, da C.F. / 88) No 9 Por aplicação da garantia constitucional do direito de propriedade, em caso de ocupações possessórias por terceiros, é legítima, ao proprietário, a manutenção de posse da área não ocupada, mediante defesa preventiva por empresa de vigilância ou similar (Cód. Civ. art. 502, mantido pelo art. 5o, XXIII, da C.F. 88) 15 BIBLIOGRAFIA Vários autores “O Império e a Lei 601 de 1850 – Lei de Terras” “Notas sobre os Registros Paroquiais” “A Lei de Terras e a Abolição” In “Atlas Fundiário do Rio de Janeiro” Edição Secretaria de Estado de Assunto Fundiário e Assentamentos Humanos – Rio de Janeiro-1991 Luis Boni e Rovilio Costa “Far La Merica” “A presença italiana no Rio Grande do Sul” Edição Riocell – Porto Alegre-1991 Pontes de Miranda Comentários a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil Ed. Guanabara – Rio de Janeiro Comentários a Constituição Federal de 10 novembro de 1937 Irmãos Pongetti editores – 1938 – Rio de Janeiro Comentários a Constituição de 1946 Henrique Cahen Editor 1a edição – Rio de Janeiro Comentários a Constitução de 1967 Com a emenda no 1 de 1969 2a edição, Revista Editora Revista dos Tribunais 16