COMISSÃO CIENTÍFICA Prof. Dr. Lenio Luiz Streck – UNESA Prof. Dr. André Karam Trindade – IMED Prof. Dr. Fausto Santos de Morais – IMED Prof. Dr. Fábio Correa Souza de Oliveira – UNESA Profª. Drª. Angela Araujo da Silveira Espindola – IMED Profª. Drª. Henriete Karam – UFRGS CAPA: Litogravura de Honoré Daumier. Ilustração n. 3 da série A comédia humana. Publicada em Le Charivari, 3 fev. 1843. BnF. Estampes et Photographie, Rés. Dc-180b (19)-Fol. SUMÁRIO Apresentação André Karam Trindade Henriete Karam ...................................................................................................... 1 1 Desigualdades sociais e criminalidade nos contos Feliz ano novo e O outro, de Rubem Fonseca Rosália Maria Carvalho Mourão (UESPI) Silvana Maria Pantoja dos Santos (UESPI) .................................................... 5 2 O ponta perna de pau e a segurança jurídica André Murilo Parente Nogueira (ITE/SP) ...................................................... 17 3 Imaginar a existência na poesia literária de Mia Couto Bernardo G. B. Nogueira (CUNP) ................................................................... 35 4 O tribunal kafkiano e os seus juristas:quem diz o direito em O processo? Eduardo de Carvalho Rêgo (UFSC) ................................................................ 44 5 Ensaio sobre a cegueira do encarceramento em massa: Saramago e a política de criminalização da pobreza Caio Marcelo Cordeiro Antonietto (PUC/PR) ................................................ 62 Os Joões de Santo Cristo: como os excluídos são tratados no Brasil; a renegação de suas histórias Gabriela Loyola de Carvalho (FDSM) Paulo Henrique Borges da Rocha (FDSM) ..................................................... 78 De uma república aracdiana ao positivismo kelsiano: a busca pela “lei perfeita” Claudia Maria Martins Barbosa Graça (FDSM) Gabriela Loyola de Carvalho (FDSM) ............................................................. 93 Plenária maluca: o julgamento de Pedrinho, o lúdico e o direito Hugo Rafael Pires dos Santos (UNIOESTE) Renato Bernardi (UENP) ................................................................................ 110 Tortura e direitos humanos: a releitura de um antigo paradigma sob a ótica de O prisioneiro, de Érico Veríssimo Luís Rosenfield (PUC/RS) .............................................................................. 137 10 A representação do juiz em O círculo de giz caucasiano, de Bertolt Brecht André Karam Trindade (KATHÁRSIS/IMED) Carolina Nicole Zanotto (KATHÁRSIS/IMED) Luísa Giuliani Bernsts (KATHÁRDIS/IMED) ................................................ 162 6 7 8 9 11 (Na) Beira (do) rio, (na) beira (da) vida: a mundoca no e do direito Dyego Phablo dos Santos Porto (UESPI) ........................................................ 175 12 Direito, literatura e escravidão: reflexões do constitucionalismo liberal à brasileira a partir da obra Negrinha, de Monteiro Lobato Fausto Santos de Morais (IMED) Luísa Giuliani Bernsts (KATHÁRSIS/IMED) ................................................. A lesão ao princípio do devido processo legal na obra O estrangeiro, de Albert Camus: aspectos garantistas do devido processo legal e a nfluência dos fatores legais determinantes Rosália Maria Carvalho Mourão (FSA-PI) Hamílcar Giúlio Brito de Sena Oliveira (FSA-PI) Lorenna Costa Oliveira (FSA-PI) .................................................................... 213 14 A defesa da democracia e a crítica ao decisionismo: a revolução dos bichos e a revolução do direito Ângela Araújo da Silveira Espíndola (IMED/UFSM) Mariana Teixeira Monteiro (IMED) Fabiane Carla Pilati (IMED) ........................................................................... 222 13 15 197 Sem problemas e sem angústias: a monotonia do direito hegemônico em A morte de Iván Ilitch, de Tolstói Maurício Flores (UFSM/IMED) Angela Araújo da Silveira Espindola (UFSM) ................................................. 242 16 A mulher machadiana estreitando as relações entre direito e literatura Vanessa Santos de Souza (UESPI) Silvana Pantoja (UESPI) ................................................................................. 262 17 Os miseráveis: o ciclo que os tornam Felipe da Silva Antunes (IMED) Neuro José Zamban (IMED) ........................................................................... 274 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 APRESENTAÇÃO O II Colóquio Internacional de Direito e Literatura (II CIDIL), realizado de 30 de outubro e 1º de novembro de 2013, nas dependências da Fundação Meridional (IMED), foi dedicado à temática “A representação do juiz e o imaginário social”. A escolha de tal tema reside na expansão do Poder Judiciário, especialmente com o constitucionalismo do segundo pós-guerra, no papel de destaque atribuído aos tribunais no cenário do Estado Democrático de Direito e, consequentemente, todos os desafios resultantes desse protagonismo. O termo “protagonista” pertence, originalmente, à esfera dos estudos literários e designa a personagem principal de uma narrativa ou drama – que, embora se apresente, em geral, como o herói da história, pode, também, ser um anti-herói –, ao redor da qual se constrói toda a trama e de cuja ação dependem, direta ou indiretamente, os acontecimentos narrados ou encenados. Na transposição para o campo jurídico, pode-se dizer que o termo protagonista não perde seu significado de origem, mas é sob a forma de uma derivação – mediante o acréscimo do sufixo ismo, que remete tanto à intoxicação de um agente quanto a movimentos sociais ou ideológicos – e associada a um adjetivo que surge a expressão protagonismo judicial, empregada para designar o juiz como a personagem que ocupa posição central no cenário do Estado Constitucional de Direito. Isso se deve, como se sabe, à expansão do Poder Judiciário, ocorrida após a Segunda Guerra Mundial – sob o impulso do (neo)constitucionalismo – e, paralelamente, à denominada judicialização da política, tendo em vista a necessidade de materialização dos textos constitucionais, especialmente nos países de modernidade tardia. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 1 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Tal fenômeno resulta, contudo, na recente ascensão do ativismo judicial – cujas raízes remetem ao direito norte-americano – que vem sendo endossado na América Latina por parte da doutrina e da jurisprudência, sob o argumento de que tal postura mostra-se imprescindível para a concretização dos direitos fundamentais, sem que leve em conta as especificidades que (con)formam cada realidade constitucional. Com efeito, a revolução constitucional resultante do segundo pós-guerra provoca uma ampliação dos espaços da jurisdição e, conseqüentemente, a redução dos espaços da legislação, aumentando ainda mais a tensão entre direito e democracia, em face da função atribuída aos tribunais constitucionais, cuja legitimidade não advém do voto, mas conferida pela própria Constituição. Ocorre que essa expansão da jurisdição também implicou uma profunda modificação do papel do juiz – recorde-se, aqui, da metáfora de Montesquieu, para quem o juiz era a boca da lei, ou ainda de Thomas Jefferson, para quem os juízes deveriam ser como uma simples máquina –, que antes se limitava a aplicar mecanicamente a lei, com base na noção rousseauniana de volonté générale sobre a qual se fundara a Revolução Francesa. Isso porque, ao contrário do modelo jacobino – para o qual o direito reduzia-se à primazia da lei, enquanto a democracia consistia na submissão à vontade da maioria –, o paradigma do Estado Constitucional submete o exame da validade do direito aos juízes e tribunais, em face da produção de um direito ilegítimo verificada durante os regimes totalitários. Nesse contexto, portanto, em que a jurisdição constitucional torna-se uma peça fundamental da engrenagem do Estado constitucional de direito, é que os olhares se voltam, precisamente, para a figura do juiz, que é guindado a um papel de destaque nas atuais democracias constitucionais. Assim, sob a perspectiva da sociologia jurídica, é fácil observar o crescente poder que, a partir do final do século XX, os juízes e tribunais passam a exercer sobre a vida coletiva, seja em razão do aumento quantitativo e qualitativo da busca pela justiça como um dos efeitos da crise geral que assola a sociedade moderna, seja como um KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 2 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 fenômeno social mais amplo, em que a perda de referências e de valores surge como um sintoma do declínio da família, do desaparecimento da religião como ícone moral e da falência das instituições tradicionais. Entretanto, apesar do seu papel de guardião das promessas – tanto para os indivíduos como para toda a comunidade política –, poucos ainda são os estudos e pesquisas sobre o protagonismo judicial, especialmente em terrae brasilis, sendo aqui, precisamente, é onde entra a literatura, com suas narrativas, personagens, simbolismos e representações, na construção do imaginário social. Como se sabe, entre as inúmeras alternativas que se apresentam aos juristas para re-pensar o direito no século XXI, o estudo do Direito e Literatura adquire especial relevância, sobretudo tendo em vista que a possibilidade da aproximação dos campos jurídico e literário permite aos juristas assimilarem a capacidade criadora, crítica e inovadora da literatura e, desse modo, superarem as barreiras colocadas pelo sentido comum teórico, reconhecendo a importância do caráter constitutivo da linguagem, no interior dos paradigmas da intersubjetividade e da intertextualidade. Assim, partindo dos pressupostos teóricos e metodológicos do estudo do “direito na literatura” e, igualmente, da noção de “modelos de juiz”, formulada por François Ost, o II CIDIL buscou auxiliar na compreensão da figura do juiz através da análise de narrativas literárias que retratam problemas jurídicos, políticos e sociais e propôs uma reflexão acerca do imaginário social construído em torno da representação do juiz e, de modo geral, das instituições ligadas à justiça, a partir das obras de Ésquilo, Shakespeare, Tolstoi, Sciascia, Brecht e Coetzee, entre outros. De fato, a literatura, enquanto manifestação artístico-cultural, adquire papel relevante nos estudos do imaginário social, em especial devido à sua natureza – apontada há muito por Aristóteles – de representação do possível, que remete à capacidade de o texto literário nos oferecer tanto múltiplas leituras e interpretações do real quanto a compreensão do sistema simbólico erigido na busca de atribuição de sentido às experiências humanas. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 3 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 É em virtude de tais características que as narrativas literárias possibilitam desvelar as articulações entre discursos e práticas sociais, bem como as bases ideológicas e os valores compartilhados em determinada cultura – o que inclui os papéis sociais e os mecanismos das instituições nela estabelecidos e vigentes –, e é nesse contexto que se mostra extremamente valioso e profícuo problematizar a representação do juiz no imaginário social através da leitura e do debate de textos literários. Durante os três dias de atividades do II CIDIL, estabeleceu-se um importante diálogo entre diversas comunidades acadêmicas afins (Direito, Letras, Psicologia, Sociologia, História, Antropologia, Filosofia, etc.), cujo fio condutor foi, precisamente, a capacidade da narrativa literária de auxiliar os juristas na árdua tarefa de desvelar a realidade social e jurídica através da ficção. O evento, que contou a presença de 18 ilustres conferencistas – Albano Marcos Pepe (UFSM), Alexandre Morais da Rosa (UNIVALI), Alicia Ruiz (UBA/Argentina), Andre Karam Trindade (IMED), Ângela Espíndola (IMED/UFSM), Carlos María Cárcova (UBA/Argentina), Dino del Pino, Fabiana Marion Spengler (UNISC), Fausto Santos de Morais (IMED), Henriete Karam (UFRGS), Ivan Guérios Curi (UPF), Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (UFPR), José Calvo González (UMA/Espanha), Kathrin Rosenfield (UFRGS), Luís Carlos Cancellier de Olivo (UFSC), Márcia Ivana Lima e Silva (UFRGS), Pedro Mandagará (UFRGS), Vera Karam de Chueiri (UFPR) –, reuniu um público de 310 (trezentos e dez) pessoas, provenientes de inúmeros estados, e 41 (quarenta e um) pesquisadores de diversas unidades federativas do Brasil (RS, SC, PR, SP, DF, GO, SE e PI) apresentaram um total de 31 (trinta e um) artigos científicos, através de comunicações orais, dos quais 17 (dezessete) compõem estes Anais do II Colóquio Internacional de Direito e Literatura. Boa Leitura! André Karam Trindade Henriete Karam KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 4 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 DESIGUALDADES SOCIAIS E CRIMINALIDADE NOS CONTOS FELIZ ANO NOVO E O OUTRO DE RUBEM FONSECA R OSÁLIA M ARIA C ARVALHO M OURÃO 1 S ILVANA M ARIA P ANTOJA DOS S ANTOS 2 Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz como são violentas as margem que o reprimem. Bertolt Brecht 1 INTRODUÇÃO O caos urbano instaurado na sociedade tem contribuído para a proliferação do conflito humano, intensificando a crise das relações interpessoais. O perfil da cidadeserpente deslocara-se do plano real para o ficcional, favorecendo a recorrência de temas como o da violência e criminalidade em obras literárias contemporâneas. O inchaço desordenado das cidades a fragmenta em partículas cada vez menores, contribuindo para o aumento das desigualdades sociais. Assim, a cidade abriga um 1 2 Professora de Direito e Literatura da Faculdade Santo Agostinho – FSA. Professora de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí – UESPI e da Universidade Estadual do Maranhão – UEMA; Professora de Direito e Literatura da Faculdade Santo Agostinho – FSA. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 5 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 número cada vez maior de desempregados, miseráveis, pedintes, desabrigados, acentuando a polêmica em torno das desigualdades sociais e violência. A temática da virulência incide sobre muitas produções brasileiras do período pós-64. A maior parte da obra de Rubem Fonseca se inclui nesse contexto e traz à tona essa delicada questão vivenciada nos grandes centros urbanos. Rubem Fonseca é formado em Direito, no entanto foi no funcionalismo público como policial, posteriormente com funções de gabinete que exerceu boa parte de suas atividades profissionais. Sua atuação como policial nos idos dos anos 50 foi suficiente para que colhesse da realidade, material para a feitura de sua obra. Neste trabalho daremos relevância aos contos Feliz ano novo e O outro, ambos problematizam a situação das desigualdades sociais e criminalidade, cujo cenário da virulência está circunscrito pela banalização da morte. Os contos integram o livro Feliz ano novo, composto por 15 contos que marcam um novo trajeto de Rubem Fonseca. São contos marcados pela liberdade de expressão, de ruptura e de afirmação; traz à tona questões relativas à violência, crise do sistema político e econômico brasileiro. A conjuntura da obra apresenta uma linguagem incisiva que beira o coloquialismo e impacta pela incidência de expressões agressivas, uma forma de tornar o mais verossímil possível a vivência de seus personagens. Dado ao contexto de sua publicação, a obra foi censurada em dezembro de 1976, por ser entendida como veiculadora de conteúdos que agridem a moral e os bons costumes e instigam a violência. Nesse período, a repressão e a tortura atingiram o extremo. 2 CRIMINALIDADE E DESIGUALDADE SOCIAL A criminalidade está ligada não somente ao agente do crime, mas, sobretudo, à condição do homem no contexto da sociedade à qual pertence, logo, os grandes centros urbanos são os mais impactados por essa prática delituosa que vem tomando proporções alarmantes. Os contos Feliz ano novo e o Outro de Rubem Fonseca suscitam uma discussão em torno da relação (ou não) entre criminalidade e desigualdade social, subliminando a KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 6 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 responsabilidade do Estado e da sociedade na garantia de bens às camadas menos favorecidas. Sabe-se que a combinação entre altos índices de pobreza, excesso de demandas sociais e incapacidade de o Estado implementar políticas redistributivas é explosiva e pode comprometer seriamente a institucionalização da ordem democrática em sociedades que, como a brasileira, emergiram de experiências autoritárias. O exemplo extremo da violência generalizada na Colômbia chama atenção para os intricados nexos entre governabilidade e indicadores sócio-econômicos, atestando o papel deletério que reiterados padrões de exclusão social tendem a desempenhar no cenário político-institucional de um país (CARVALHO, 1994, p. 131). Não obstante, não se pode assegurar que as desigualdades sociais, por si só, sejam causadoras de criminalidade, fosse assim, os menos favorecidos, como um todo, estariam envolvidos em atos delituosos. O que fomenta, de fato, a criminalidade é o emaranhado da teia de conflitos urbanos: a miséria humana destituída dos bens de consumo, em contraste com o favorecimento das camadas abastadas; a intolerância que gera violência das mais variadas; a segregação espacial que ocasiona a expansão citadina de forma injusta; o individualismo que aparta as pessoas dos laços coletivos e afetivos; o egocentrismo que instiga a competitividade; a inversão de valores, dentre outros. O Estado, por sua vez, insiste em combater a criminalidade com políticas retrógradas, como o aumento de penas e intensificando a repressão policial, medidas que não têm dado garantia nem de redução das práticas delituosas, menos ainda de ressocialização do infrator. Como diz Toledo (1994), o delito é um “fenômeno social complexo que não se deixa vencer totalmente por armas exclusivamente jurídicopenal”. Por sua vez, Amilton Bueno de Carvalho, desembargador do tribunal de justiça do Rio Grande Sul, discute essa questão na obra Direito Penal a Marteladas (2013) a partir da obra de Nietzsche afirmando que “as sentenças serão sempre emitidas tendo em vista mais a conservação da sociedade do que propriamente o ato praticado pelo KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 7 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 indivíduo”. Dessa forma, o criminoso não é especificamente aquele que comete o delito, mas alguém que, sendo avesso a nós, acredita-se ser capaz de cometer delito, logo, precisa ser “banido”. “O sentido da punição é eliminar os ‘parasitas’ e assim garantir a autodefesa da sociedade”, acrescenta Carvalho (2013, p. 77). 3 VIOLÊNCIA E CRIMINALIDADE EM FELIZ ANO NOVO Feliz ano novo narra a história dos delinquentes Zequinha e Pereba e do personagem narrador anônimo que se intitula líder do grupo. Este, apresenta um diferencial em relação aos demais por ser analfabeto funcional, logo, a posse do discurso na narrativa, bem como, a liderança do grupo são suas marcas de poder. Na noite de réveillon os meliantes furtam um veículo e invadem uma mansão festiva, roubam, cometem assassinato e estupro, depois saem tranquilamente pela porta da frente para comemorar a virada de ano, demonstrando total frieza ante as atrocidades cometidas. Nos termos da Constituição Federal de 1988 os direitos são iguais, no entanto, é sabido que parte considerável da população brasileira é destituída de tal privilégio. O estímulo ao consumo, operado pelas galerias de luxo e pelos veículos de comunicação de massa é considerado uma agressão contra os que se encontram à margem dos bens capitalistas. Em meio ao fosso entre os que têm muito e os que nada têm, paira o mesmo desejo de aquisição dos bens de consumo. A negação a eles é nítida já no início do conto, quando os personagens infratores não dispõem de alimento nem de vestimentas apropriadas para o ritual da virada de ano. Vi na televisão que as lojas bacanas estavam vendendo adoidado roupas ricas para as madames vestirem no réveillon. Vi também que as casas de artigos finos para comer e beber tinham vendido todo o estoque. Pereba, vou ter que esperar o dia raiar e apanhar cachaça, galinha morta e farofa dos macumbeiros (FONSECA, 2007, p. 13). KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 8 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Em meio aos planos para as festividades da virada de ano, o narradorpersonagem anuncia ao grupo que poderiam se apropriar das armas ilícitas de um terceiro personagem, o Lambreta, para se safar da situação periclitante de ter que se alimentar das oferendas de Iemanjá.O desejo de possuir os bens de consumo básicos ou supérfluos instiga os personagens a assaltarem, visto que todos queriam passar o ano novo festejando com amigos, com roupas novas, mesa farta, muita bebida e mulheres, mas não tendo disposição e/ou condições para encarar um trabalho digno que lhes deem os meios necessários para conquistarem o que almejam, retirar dos ricos. O mundo movido pela força do capital ocasiona o sério problema das desigualdades sociais, que por sua vez desencadeia outras delicadas questões. As desigualdades sociais são nitidamente delineadas pelas condições de precariedade dos integrantes do grupo, contrapondo-se ao luxo e fartura da casa invadida. A descrição é feita pelas retinas do narrador-personagem, cuja indignação é visível em cada detalhamento. O quarto da gordinha tinha as paredes forradas de couro. A banheira era um buraco quadrado grande, de mármore branco, enfiado no chão. A parede toda de espelhos. Tudo perfumado. Voltei para o quarto, empurrei a gordinha para o chão, arrumei a colcha de cetim da cama com cuidado, ela ficou lisinha, brilhando. Tirei as calças e caguei em cima da colcha. Foi um alívio, muito legal (FONSECA, 2007, p. 18). O estado de choque da anfitriã assassinada, bem como, da “moreninha” estuprada por Pereba é colocado como causa das atrocidades por eles cometidas: “culpada é a mulher que ficou de flozô”. Uma das vítimas, na tentativa de evitar maiores agressões sugere que se apropriem de tudo e que partam sem receio de que sejam denunciados. Esse comportamento irrita ainda mais os meliantes, ao ponto de o executarem de forma brutal. “Filho-da-puta. As bebidas, as comidas, as jóias, o dinheiro, tudo aquilo para eles era migalha. Tinham muito mais no banco. Para eles, nós não passávamos de três moscas no açucareiro” (FONSECA, 2007, p. 19). O ódio que os infratores depositam na sociedade intensifica a agressão por suporem ser esta responsável por suas situações desfavoráveis. Neste momento, o assaltante toma KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 9 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 consciência das desigualdades sociais das quais é vitimado. Desprovendo aquelas pessoas de seus bens materiais não significa nada para elas, não as atinge com intensidade porque de onde aquelas jóias, relógios, dinheiro, ouro, cheques vieram, tem muito mais, em contrapartida, eles, os meliantes, continuam sem acesso ao luxo e riqueza que tanto almejam. O narrador muda de forma clara e irônica, a própria linguagem deixa de ser vulgar, cheia de impropérios como permeia boa parte do conto e converte-se em modos educados quando pede encarecidamente: “Seu Maurício, o senhor quer se levantar, por favor?”. Em um primeiro momento acredita-se que tudo vai terminar bem, o próprio Maurício parece está seguro da situação: “olhando para os outros que estavam quietos apavorados no chão, e fazendo um gesto com as mãos abertas, como quem diz calma minha gente, já levei este bunda suja no papo”, no entanto, o que se vê é um aumento da carga de violência quando o assaltante mata-o com um tiro de carabina doze no tórax, para vê-lo grudar na parede lentamente, escorregar por esta, e permanecer sentado no chão já morto, lembrando os filmes de ação. Insatisfeito porque não obteve o resultado esperado que grudar o homem na parede com o tiro, o narrador escolhe aleatoriamente, outro homem, este porém ele pede que fique em frente a uma porta de madeira, desta vez consegue alcançar o objetivo de vê-lo permanecer mais tempo grudado a porta, enquanto escorrega lentamente. O conto suscita, ainda, reflexão crítica em torno da fragilidade da segurança pública (os meliantes invadem e deixam a casa pela porta da frente sem nenhuma intimidação), A vivência em espaços urbanos tem sido gradativamente ofuscada pelo medo da violência, o que leva a população a um aprisionamento cada vez maior em busca de segurança. A cidade-prisão [...], sociopoliticamente fragmentada, na qual, crescentemente, a pobreza grassa, a violência se alastra, territórios ilegais se superpõem ao território formalmente controlado pelo Estado (ou pela ‘face oficial’ do Estado): os territórios dominados por traficantes de drogas. No extremo oposto do espectro socioeconômico, territórios de autoproteção da classe média e da burguesia (‘condomínios exclusivos’ e, KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 10 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 menos fortemente, ou mais porosamente, shopping centers) também se multiplicam (SOUZA apud ANDRADE, 2007, p. 19). Os personagens do conto, embora sejam socialmente marginalizados e relegados aos guetos da cidade, permanecem próximo à zona nobre, como uma forma de manter um status social, afinal morar na zona sul, próximo à praia, mesmo que num prédio fétido e imundo, é melhor do que morar longe, em bairros esquecida pelo Estado. Este edifício está mesmo fudido, disse Zequinha, enquanto subíamos, com os material pelas escadas, imundas e arrebentadas. Fudido mas é zona sul, perto da praia. Tás querendo que eu vá morar em Vilópolis? Ironicamente a narrativa se encerra com um final feliz aos infratores, alertando para a impunidade. O narrador-personagem, Zequinha e Pereba, de forma metonímica, ao cometerem os mais sérios delitos como: formação de quadrilha, invasão de propriedade, estupro, homicídio, posse ilegal de arma, roubo, furto, vingam-se do Estado, bem como, da sociedade que os encurralam nos guetos, nas sarjetas, ao tempo em que brindam o “sucesso” da operação: “Que o próximo ano seja melhor. Feliz Ano Novo” (FONSECA, 2007, P. 21). O título do conto é uma ironia, pois para aquela família de classe média alta que teve uma noite de horror com estupros, homicídios, agressões verbais, morais, psicológicas durante o assalto, o ano novo começou de forma violenta e os personagens tiveram contato com uma realidade bem diferente da que eles conheciam, enquanto os meliantes que no início da narrativa não tinham o que comer na passagem do ano, terminaram brindando a chegada o ano novo, sem expressarem nenhum tipo de remorso pelos atos violentos praticados. Assim, terminam impunes e livres para novas atrocidades no ano vindouro. 4 SEGREGAÇÃO E VIOLÊNCIA EM O OUTRO O mecanismo de exclusão da cidade gera um tipo de população que circula por todos os espaços, exatamente porque não tem, de fato, nenhum espaço. No conto O KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 11 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 outro, a cena urbana é recortada pela intolerância que se sustenta por meio da não permissividade da aproximação de um sujeito “estranho”. A narrativa gira em torno de um homem de negócio que é constantemente abordado na rua por um pedinte. Ao contrário de Feliz ano novo, em O outro quem narra os fatos é um personagem abastado que, dado ao seu perfil de executivo, favorece que o pedinte o chame de “doutor”. Ao longo da narrativa o homem de negócios exerce uma falsa caridade, com o intuito de se livrar rapidamente do entranho, ao tempo em que nutre esperança de que a aproximação não se repita. Ao invés disso, o pedinte o aborda com mais frequência ao ponto de o executivo atribuir a ele o agravamento de seus problemas de saúde, o que o desestabiliza emocionalmente. Ocorre que o narrador se preocupa em anunciar bem antes da primeira aproximação do pedinte, a descarga de stress em função de um turbulento trabalho burocrático. Como todo executivo, eu passava as manhãs dando telefonemas, lendo memorandos, ditando cartas à minha secretária e me exasperando com problemas. Quando chegava a hora do almoço, eu havia trabalhado duramente. Mas sempre tinha a impressão de que não havia feito nada útil. [...] Um dia comecei a sentir uma forte taquicardia. Aliás, nesse mesmo dia, ao chegar pela manhã ao escritório surgiu ao meu lado, na calçada, um sujeito que me acompanhou até a porta dizendo ‘doutor, doutor, será que o senhor podia me ajudar?’ (FONSECA, 2007, p. 87). No contexto urbano, comumente, diante do ser estranho, a primeira atitude é de negação. Suspeitamos do outro e de suas intenções, recusamo-nos a confiar (ou não conseguimos fazê-lo) na constante insegurança e suspeita de que o perigo está em toda parte. Ademais, a desqualificação do outro, avesso a nós, associa-se à condição de poder exercida pela sociedade. Vi que o sujeito que me pedia dinheiro estava em pé, meio escondido na esquina, me espreitando, esperando eu passar. Dei a volta e caminhei em sentido contrário. Pouco depois ouvi o barulho de saltos de sapatos batendo na calçada como se alguém estivesse correndo atrás de mim. Apressei o passo, sentindo um aperto no coração, era como se eu estivesse sendo perseguido por alguém, um sentimento infantil de medo contra KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 12 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 o qual tentei lutar, mas neste instante ele chegou ao meu lado, dizendo, ‘doutor, doutor’ (FONSECA, 2007, p. 89). No conto Feliz ano novo, o personagem Pereba é mal instruído, preto, pobre, vesgo e desdentado, logo, tem os traços que o fariam ser colocado à margem. A carência financeira, atrelada ao perfil fora dos padrões de beleza exigidos pela sociedade, forma uma imagem estereotipada do indivíduo. Notemos que essa constatação advém do próprio narrador-personagem, demonstrando que o sujeito infrator, ele mesmo, tem consciência de suas exclusões. No conto O outro, o pedinte não tem o estereótipo do personagem Pereba, no entanto, o executivo o concebe como indivíduo mal por meio de outros atributos físicos. Na primeira descrição, ele o vê como um “homem branco, forte, de cabelos castanhos compridos” (p. 88), sua própria robustez já é indício de ameaça. O medo da proximidade de um sujeito anônimo retira do executivo a capacidade de percepção, transformando o contato em uma cena cada vez mais ameaçadora. Numa segunda descrição, o pedinte transforma-se num sujeito com “rosto cínico e vingativo” (p. 89). Por fim, quando é atingido o limite da aproximação, o executivo investe uma terceira descrição: “e ele encostou o seu corpo bem junto ao meu, enquanto caminhávamos, e eu poderia sentir o seu hálito azedo e podre de faminto. Ele era mais alto do que eu, forte e ameaçador” (p. 90). A sociedade e, por extensão, o Direito Penal, elege os indesejados, diz Carvalho (2013). Concebemos “aquelas pessoas que delas queremos nos livrar, aqueles de quem temos asco profundo”, por isso, procuramos destruí-las, ou, lançando mão de nossa bondade e de nossos preceitos cristãos e de civilidade, “não nos permitimos aniquilálos fisicamente, então reservamos para eles um local menos indigno (a morte aos poucos): o cárcere” (2013, p. 129). No conto O outro a virulência se processa de modo investido: o “diferente” é colocado na condição de inimigo, dada a sua estranheza. O outro é aquele que gera medo, terror e insegurança. Na leitura que faz de Nietzsche e o Direito, Carvalho KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 13 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 assevera que o homem concebe o inimigo “mal” inversamente à imagem que tem de si, ele mesmo, como um sujeito “bom”: o mundo está divido, maniqueísmo agressivo entre ‘bons’ e ‘maus’, perfeitos e imperfeitos, perfumados e fedidos, lindos e feios, adocicados e brutos, mocinhos e bandidos, aqueles que devem permanecer como estão, aqueles que ‘devemos mudar’ (CARVALHO, 2013, p. 103). Dessa forma, a sociedade constrói a imagem do malfeitor, sendo necessário que este seja segregado do convívio social. Assim, a ameaça regada pelo medo reveste-se de violência. O limite da tolerância se dá quando o pedinte descobre a residência do homem de negócio. A invasão da privacidade está na saturação de qualquer estado de permissividade, então, aparentando uma falsa tranquilidade, o executivo pede licença ao pedinte, adentra a residência, retorna friamente com uma arma e o assassina à queima roupa. Somente diante da certeza do definitivo afastamento do Outro, da impossibilidade de ameaça, é que o homem se dá conta da fragilidade do pedinte: Fechei a porta, fui ao meu quarto. Voltei, abri a porta e ele ao me ver disse ‘não faça, isso, doutor, só tenho o senhor no mundo’. Não acabou de falar ou se falou eu não ouvi, com o barulho do tiro. Ele caiu no chão, então vi que era um menino franzino, de espinhas no rosto e de uma palidez tão grande que nem mesmo o sangue, que foi cobrindo a sua face, conseguia esconder (FONSECA, 2007, p. 90). O sujeito, aparentemente indefeso, é interpretado como agressor. Não importaria ao executivo saber se o pedinte se configurava, de fato, uma ameaça, uma vez tendo o perfil de estranho, por si só, já justifica a sua condenação. Como diz Nietzsche apud Carvalho (2013, p. 130), os suspeitos são as pessoas que não podemos suportar”. Assim, o sentido do homem moral está atrelado à sua zona de conforto, portanto, as ameaças, sejam elas quais forem, devem ser abolidas. Nietzsche entende a punição como algo puramente vingativo e expõe o seu entendimento de modo paradoxal: “Se algo é mau, aquele que assume as represálias também pratica o mal” (NIETZSCH apud CARVALHO, 2013, P. 75). KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 14 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 A representação da violência não pode ser feita sem que a alteridade esteja presente, neste caso, confirmando a ideia de que o inferno habita em todos nós, nos nossos medos, ações. Quando o Outro, surge na figura do pedinte para o executivo, o subalterno torna-se visível ao personagem principal que necessita colocá-lo em seu devido lugar, longe de sua vista, de seu caminho. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Enquanto em Feliz ano novo a carência de acesso aos bens de consumo é colocada pelos meliantes como o motor de todos os seus atos ilícitos; em O outro a ação delituosa é justificada como forma de garantir o distanciamento daquele que se configura uma ameaça à tranquilidade, bem como, à segurança. Se em Feliz ano novo os atos de violência são formas de liberar as fúrias dos infratores contra o Estado e à sociedade; em O outro manifesta-se contra o indesejado. A sociedade inquisitória brasileira impõe que aquele que se mostra contrário a nós, “homens de bem”, precisa ser eliminada do convívio social, o que leva “a sociedade a se precaver contra eles através de seus policiais, carcereiros e carrascos, dos seus juízes, promotores públicos e advogados e através dos procedimentos judiciais: eles suscitam a vingança pública” (CARVALHO, 2013, p. 77). O comportamento do executivo é uma forma metonímica de mostrar o aniquilamento de pessoas avessas aos padrões exigidos pela sociedade, logo, a morte do pedinte reveste-se da simbólica da exclusão em prol da autodefesa social. Podemos dizer, então, que a punição tanto dos personagens de Feliz ano novo em relação ao Estado e à sociedade, quanto de O outro em relação ao estranho está atrelada ao sentimento de vingança que retroage ao princípio da Lei de Talião. Nietzsche diz que As represálias são ‘indenizações’ que nos damos e que aparecem sempre acompanhadas pela vingança: ‘o sentimento de vingança cessa logo que o agressor se curva humilhado ou é abatido’. [...] punição significa inferiorizar o transgressor, excluí-lo, enchê-lo de vergonha; não se trata de prevenir um dano através da infusão do medo, mas rebaixar socialmente o KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 15 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 autor do delito, tirando dele a força de que ele dispunha (NIETZSCHE apud CARVALHO,2013, p. 77). Ante o exposto, constatamos que subjaz dos contos Feliz ano novo e O outro de Rubem Fonseca uma das características mais impactantes da vida moderna: o caos urbano, que põe em xeque a certeza de que não adianta intensificar o aparelhamento da segurança pública, bem como, criar medidas punitivas mais rigorosas se o problema está na própria estrutura social. Vivemos um cenário urbano em que o homem é arremessado a contextos estranhos que não reconhece como seu. Ao se confrontar com o fosso entre riqueza e pobreza, com a obsessão pelo consumo e pelo dinheiro, pelo culto ao individualismo, o homem está exposto a conflitos interpessoais, bem como, a comportamentos hostis que estimulam a insegurança, o pavor, a violência e a criminalidade. É preciso, então, um esforço conjunto entre Estado e sociedade com mais investimento em ações legítimas e de maior eficácia na área social, no tocante às carências mais vultosas da sociedade. REFERÊNCIAS ANDRADE, Sait Pereira de. Sentidos e nexos conceituais da cidade contemporânea. In: LIMA, Antonia Jesuíta de (Org.). Cidades brasileiras: atores, processos e gestão pública. S. l.: Autêntica, 2007. CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito penal a marteladas: algo sobre Nietzsche e o Direito. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. CARVALHO, Maria Alice Rezende. Quatro vezes cidade. Rio de Janeiro: 7 Letras, 1994. FONSECA, Rubem. Feliz ano novo. 2. ed. São Paulo: Comp. das Letras, 2007. TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 16 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 O PONTA PERNA DE PAU E A SEGURANÇA JURÍDICA A NDRÉ M URILO P ARENTE N OGUEIRA 1 RESUMO: O estudo aborda tema concernente ao princípio da segurança jurídica, verdadeiro fundamento do estado democrático de direito, relacionando com o texto O ponta perna de pau, de Ernane Buchmann, escrito em 2005. No trabalho buscou-se demonstrar que a ausência de previsibilidade, inclusive, no que se refere às sentenças, é um risco à estabilidade social. Assim, o princípio em tela apresentase como relevante ferramenta para a modificação da realidade social e jurisdicional, quando analisado nessa perspectiva. PALAVRAS-CHAVE: segurança jurídica; Estado Democrático de Direito. 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem por finalidade efetuar um paralelo entre a obra O ponta perna de pau, do ano de 2005, escrita por Ernani Buchmann, e a questão da segurança jurídica nos âmbito das relações jurídicas processuais civis instauradas perante nosso Órgão Jurisdicional. Busca-se, por meio do estudo, evidenciar que a produção judicial no Brasil, atualmente, apresenta-se alijada do comprometimento de efetivar sua atividade de forma a proporcionar homogeneização da jurisprudência, logo, previsibilidade e confiabilidade na prestação do serviço jurisdicional. Cenário semelhante pode ser presenciado na essência do texto literário apontado como paradigma ao trabalho aqui elaborado, onde, em apertada síntese, denotamos 1 Advogado, Mestre em Direito, Coordenador do Curso de Direito e Docente na Disciplina de Processo Civil da Faculdade Iteana de Botucatu – ITE/Botucatu; Presidente da 25ª Subseção da OAB/SP – Botucatu/SP. Email: [email protected] KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 17 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 que o arbitro de futebol Ataíde, pressionado pela torcida enfurecida pelo resultado adverso em desfavor do time da casa, profere uma cusparada sem direção certa e sem preocupação de quem seria atingido por ela e, quem o fora: um menino que nada tinha contribuído à formação daquela situação. Nesse viés, buscamos traçar um raciocínio tendente a demonstrar a necessidade adoção de ferramentas que rompam determinados paradigmas do processo civil pátrio para que, aproximando-o com o modelo dos sistemas jurídicos da common law, tenhamos condições de construir um Estado efetivamente Democrático de Direito. 2 O PONTA PERNA DE PAU E A SEGURANÇA JURÍDICA NA PRESTAÇÃO JURISDICIONAL Na crônica O ponta perna de pau, do ano de 2005, escrita por Ernani Buchmann, membro da Academia Paranaense de Letras, que escrevendo sobre futebol, tange questão cara ao Direito e à construção do Estado Democrático, a segurança jurídica, subsumindo-se na perspectiva Direito na Literatura proposta para esse Colóquio. São duas reflexões pertinentes a que somos levados a realizar na leitura da mencionada crônica, uma, a atitude do árbitro Ataíde de cuspir em direção à torcida, outra, antagonicamente, sob o ponto de vista do menino atingido pela cusparada, como passamos a melhor explicar. Da leitura da obra mencionada podemos constatar que, o árbitro Ataíde, pressionado pela torcida do time local que jogava em casa, não concorreu para o resultado negativo, entrementes, ao dirigir-se para o vestiário, ao final do jogo, fora forte e duramente afrontado pelos torcedores que, desejosos em apontar um culpado para aquele fatídico resultado, elegeram o juiz de futebol. Ao sair do gramado, o juiz passa, então, a ser objeto de xingamentos, humilhações e cusparadas, num ambiente hostil e de verdadeira pressão exercida pelos torcedores, ansiosos em terem sua pretensão, até então resistida, satisfeita. Como percebemos, se tivermos como ponto de partida, como premissa, os olhos do juiz daquele jogo, muito certamente, não repreenderíamos, por completo, sua KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 18 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 conduta de proferir uma cusparada em direção àqueles que lhe assolaram durante toda partida e, ao final, lhe xingaram, cuspiram, humilharam, em razão da derrota do time da casa, à qual ele não concorreu em nada, como bem ressalta o texto. Aquele honesto árbitro fora injustiçado e proferiu seu revide, quase num momento de legítima defesa, ele profere a cusparada, de forma indiscriminada, dirigida ao léu e sem maior preocupação acerca daquele que seria por ela vitimado ou atingido por seus efeitos e resultados; a sentença prolatada por aquele juiz de futebol, ainda que pressionado, atingiu o público sem a menor ponderação atinente ao modo como a qual passaria a ingressar na esfera jurídica dos torcedores que se encontravam na arquibancada. Tanto o é que na arquibancada encontrava-se um singelo garoto, um pequeno menino levado pelo aglomerado de pessoas enfurecidas com a derrota do time local; na verdade, estava ali por pura curiosidade em relação aos fatos que ocorriam, sem qualquer intenção de cuspir no experiente árbitro Ataíde, entretanto, como o revide fora indiscriminadamente dirigido, fora o menino vitimado com a cusparada, que, muito embora não lhe fosse especificamente destinada, o atingiu certeiramente. A partir das ponderações fáticas acima resumidamente apresentadas e postas na obra O ponta perna de pau, podemos tecer um paralelo com as relações jurídicas processuais, onde, em conformidade com a atual do sistema, a questão da verdade, do justo ou injusto, varia, a depender do ponto de vista pessoal com que os magistrados, ao seu livre arbítrio, tomam ou adotam, das ideologias daqueles que julgam e outras forças que atuam sobre esses, gerando um ambiente no qual, a vontade do juiz e suas variáveis atingem, de forma contundente, a previsibilidade e a estabilização das relações sociais. É certo que os fatos cuidam-se de acontecimentos pretéritos e históricos, a verdade que não pode ser alcançada pelos homens, pela linguagem desses, posta em documentos, papéis (o que se tem não é a verdade, mas o que se diz sobre ela), tal como nos feitos em juízo, no entanto, essa questão não pode servir de fundamento para o cenário de instabilidade no qual nos encontramos contemporaneamente. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 19 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 A premissa com que se parte para analisar determinado fato, por certo, implicará no resultado a ser obtido, de tal sorte que sendo aquela falsa este último também o será, e o deslinde do processo apontará para uma injustiça, pela confirmação e imutabilidade de algo que é falso; inadmissível que tenhamos na seara processual uma gama de premissas e que cada magistrado as analise de forma puramente individual e subjetiva, implicando em julgamentos distintos para casos análogos. Pois bem, tecidas essas ponderações a respeito do texto literário que embasa nosso pensamento e iniciais apontamentos de natureza jurídica, pertinente se faz traçarmos o paralelo entre o evidente cenário de insegurança jurídica que permeiam nossa instituição Jurisdicional em face dessa mesma insegurança que surgira como desdobramento do comportamento do juiz de futebol (magistrado) dentro do campo de jogo (sociedade). Nessa perspectiva a análise que somos levados a efetivar, partindo da cena de absoluta insegurança proposta pelo texto, onde um garoto alheio é atingido por uma cusparada expelida sem compromisso com seu resultado prático, é a de que o Judiciário pátrio, ao julgar as milhões de causas que tramitam em seu bojo, atua de forma muito semelhante àquela adotada pelo árbitro Ataíde. É fácil verificar no cotidiano das lides forenses a existência de inúmeros “Ataídes” que proferem suas sentenças e acórdãos sem o menor compromisso de uniformização dos posicionamentos a serem adotados pelos órgãos jurisdicionais brasileiros, em suas mais diversificadas competências e instâncias, instaurando-se um sentimento de completa ausência de previsibilidade em relação às demandas postas em juízo, notadamente, as concernentes ao litígio denominado “de massa” e para matérias de direito. É válida a lição do Ministro Luiz Fux2, para quem, ao tratar das alterações, que estão no porvir, da lei processual civil, assim aduziu: Essas demandas, ao serem decididas isoladamente, geram, para além de um volume quantitativo inassimilável por juízos e tribunais, 2 O novo processo civil brasileiro, p. 23. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 20 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 abarrotando-os, o risco de decisões diferentes para causas iguais, com grave violação da cláusula pétrea da isonomia. É de conhecimento comum que grande parte dos, em torno, de 20 milhões de processos que tramitam perante o Órgão Judiciário brasileiro, cuidam-se de litígios concernentes ao contencioso massivo, ações com idêntico fundamento jurídico e, de mais a mais, versando sobre matéria exclusivamente de direito, o que deixa pouca margem para o livre convencimento motivado descompromissado com o resultado uniforme para todos os litigantes, sob o risco de criarmos um verdadeiro “jogo de azar” ao se procurar a proteção do Estado-Juiz para consagração de direitos lesados ou ameaçados de lesão; sem constrangimento algum, efetivando um notório acinte à isonomia, em seu aspecto formal. A advertência proferida por Luiz Guilherme Marinoni3 bem evidencia o risco desse diagnóstico, ao lembrar que: As decisões do Superior Tribunal de Justiça não são respeitadas nem no âmbito interno da Corte...o que é pior, entendem-se livres para decidir casos iguais de forma desigual....Isso configura um atentado contra a essência do direito e contra a efetividade do sistema jurídico [...] não há como ter estabilidade enquanto os juízes e tribunais ordinários não se veem como peças de um sistema, mas se enxergam como entes dotados de autonomia para decidir o que bem quiserem – pressupõe visão de globalidade do sistema de produção de decisões, o que, lamentavelmente, não ocorre.... o juiz tem poder para realizar a sua ‘justiça’ e não para colaborar com o exercício do dever estatal de prestar a adequada tutela jurisdicional, para o que é imprescindível a estabilidade das decisões. Nesta senda, o presente trabalho desenvolver-se-á de tal maneira a demonstrar a temeridade do comportamento de um Judiciário alheio a tal questão de segurança jurídica e, acima de tudo, o risco de que tal omissão estatal pode nos levar a serem atingidos por cusparadas que não nos foram direcionadas, quer-se dizer, a premente possibilidade de que casos convergentes no que tange ao mérito tenham resultados diametralmente opostos. 3 O precedente na dimensão da segurança jurídica, p. 564-567.. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 21 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Não é raro nos dias de hoje nos toparmos com situações em que colegas de trabalho, que dividem os mesmos espaços dentro de uma repartição pública ou de uma empresa, quiçá de vizinhos, parentes ou conhecidos que, ajuizando demandas com o mesmo fundamento, passam, ao final, a serem regulados por normas (aquelas formadas por força da coisa julgada material, consoante disposto no art. 472, do Código de Processo Civil), divergentes. Tais percepções enchem de dúvidas jurisdicionados, operadores do Direito e um sem-número de pessoas, como investidores, economistas, empresários, que analisam o cenário jurídico para concretização de seus planejamentos e planos de ação, muitas vezes de extreme relevo para o progresso social de toda coletividade brasileira, ferindo, em seu âmago, a confiabilidade nas posturas jurisdicionais. A propósito, Patrícia Gomes Teixeira4 afirma: Efetivamente, o subjetivismo do magistrado, que redunda em uma prática que adiante denominamos de decisionismo, abala fortemente a confiança do jurisdicionado, atentando, por conseguinte, contra a segurança jurídica. Há de se procurar distinguir entre casuísmo e decisionismo. Enquanto no primeiro busca-se tão somente sobrelevar as especificidades e implicações, sobretudo fáticas, do conflito sub judice, dando-lhe um tratamento particularizado – cada processo é um processo -, sem contudo deixar de empreender as associações e dissociações necessárias para categorizá-lo juridicamente e, assim, decidir fundamentada e imparcialmente, no segundo o julgador envereda pela arbitrariedade, eis que não concebe quaisquer parâmetros legais ao seu entendimento pessoal do que seja o justo. Com efeito, a disparidade de decisões acerca da mesma matéria levada ao Judiciário fomenta um clima de instabilidade e insegurança pernicioso, afastando os que possuem pretensões em nosso país, assim como uma cusparada proferida por um árbitro despreocupado com seu resultado, em direção a uma torcida, pode acabar por macular os planos e pensamentos de um singelo garoto que desejava assistir a uma partida de futebol. 4 A uniformização da jurisprudência como forma de realização de valores constitucionais, p. 738. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 22 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 A violência e a temeridade de comportamentos merece e acolhe o paralelo aqui proposto, sem mais que notório que tais ações merecem repressão do ordenamento e, no caso da prestação do serviço jurisdicional, ao que nos parece, essa aspiração somente será possível mediante a adoção de práticas tendentes à homogeneização da jurisprudência. Daí a imprescindibilidade de se fortalecer um ambiente em nossas instituições jurídicas a ponto de possibilitar a análise de posicionamentos jurisdicionais e ponderação de riscos no ajuizamento de demandas ou adoção de outros comportamentos, ou seja, nasce dessa premissa de homogeneização, o mínimo de previsibilidade. Aqui é bom que se diga, a propósito, que tratamos não apenas de segurança jurídica sobre a visão de ordem jurídica positivada, mais do que isso, precisamos de segurança jurídica advinda de julgamentos análogos para casos que assim se circunstanciam, não bastando, para construção de um Estado Democrático de Direito, que as leis – em seu sentido mais amplo e genérico – sejam estáveis, mas também, que os pronunciamentos jurisdicionais também acompanhem esse raciocínio. Por certo que a continuidade da ordem jurídica é relevante, assim como a previsibilidade das consequências decorrentes da adoção dessa ou daquela postura ou omissão, de tal modo que as partes envolvidas em determinada relação devem poder antever as possíveis qualificações jurídicas advindas de seu comportamento, o que não merece ser diferente quando estamos a versar dos partícipes processuais. De se ventilar as palavras de Cândido Rangel Dinamarco5, para quem a segurança jurídica possui tamanho relevo que fora elevada ao plano constitucional, tratando-se de valor de elevadíssimo grau nas democracias modernas, enfatizamos, sustentando que sem segurança jurídica, inclusive no tocante às decisões judiciais, insustentável a 5 Instituições de direito processual civil, v. 3, p. 301. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 23 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 mantença das relações estruturantes de um Estado de Direito6 e dos alicerces que calçam uma Democracia verdadeira substancialista e não meramente procedimental. Na mesma esteira das assertivas acima mencionadas, em sua lição, Dinamarco7 reafirma que: A segurança nas situações jurídicas ... é importantíssimo fator de pacificação e tranquilidade, sabendo-se que a insegurança é um estado perverso que prejudica os negócios, o crédito, as relações familiares e, por isso, a felicidade pessoal das pessoas ou grupos. ...estabilidade é um dos mais importante pesos responsáveis pelo equilíbrio entre exigências opostas, inerentes a todo sistema processual. Nesse silogismo podemos constatar que a busca por ferramentas de uniformização ou homogeneização da jurisprudência busca, em sua essência, a preservação dos elementos fundantes do Estado de Direito, o qual mostrar-se-á fragilizado caso seu órgão jurisdicional esteja irrestritamente desprendido para o julgamento de casos semelhantes, fazendo com que a insegurança jurídica seja uma constante. A previsibilidade de condutas a serem adotadas pelo Judiciário acabar por guiar os destinos da sociedade que, por óbvio, em uma vasta gama de casos, pauta seu comportamento a partir das linhas estabelecidas pelos provimentos jurisdicionais, sendo indissociável o risco de rompimento das bases do Estado de Direito caso não se consiga identificar essa linha, o que, infelizmente, podemos perceber no cenário atual. Essa insegurança jurídica que se mostra instalada caminha de forma inequivocamente aproximada ao comportamento adotado pelo juiz Ataíde, o qual, sem qualquer responsabilidade ou compromisso com o resultado de seu comportamento, proferiu seu julgamento, a cusparada, entrementes, ao assim agir acabou por prejudicar pessoa completamente alheia aos fenômenos que ensejaram seu revide. 6 7 A propósito, o Supremo Tribunal Federal, em voto do Min. Gilmar Mendes, nos autos da Questão de Ordem na Petição 2.900-RS, bem reconhece a relevância da segurança jurídica em nosso Estado, sustentando que “Considera-se, hodiernamente, que o tema tem, entre nós, assento constitucional (princípio do Estado de Direito)... Em verdade, a segurança jurídica, como subprincípio do Estado de Direito, assume valor ímpar no sistema jurídico, cabendo-lhe papel diferenciado na realização da própria idéia de justiça material. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador. jsp?docTP=AC&docID=86525>. Acesso em 28 out. 2013. Ibidem. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 24 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 É assim também o comportamento do Estado-juiz ao prolatar provimento jurisdicional descompromissado com a realidade e as relações sociais a que está submetido, eis que um julgamento puramente livre, pautado unicamente em suas convicções mais subjetivas, implicará em nefastos resultados para a concretização da pacificação social daquela localidade e, num sentido macro, de toda nação, desvirtuando-se, pois, da finalidade primordial de toda e qualquer relação jurídicoprocessual, qual seja, a paz social com construção do sentimento de justiça. Indubitável que todas as partes desejam ser exitosas nas demandas levadas a juízo e que o desprovimento de seus pleitos pode gerar insatisfação pessoal, no entanto, muito mais gravoso é o sentimento daquele que vê seu pedido rejeitado, contudo, o requerimento de seu vizinho, parente, amigo, conhecido, enfim, de terceiros, sob o mesmo fundamento e matéria, ser acolhido; saímos da esfera de pura insatisfação, para a revolta, o senso-comum de injustiça, instabilidade, imprevisibilidade e insegurança jurídica, todos, isoladamente ou em conjunto, capazes de gerar graves fissuras no desenho constitucional do Estado Democrático de Direito. Neste diapasão, cumpre-nos transcrever o escrito por Gustavo Santana Nogueira8, segundo qual: A chamada loteria judiciária é um mal que precisa ser combatido. Não pode o Judiciário resolver casos assemelhados de maneira diferente. Isso gera, como visto, uma enorme insegurança. Respeitar e estabilizar os precedentes são condições necessárias para que essa imagem se enfraqueça. Sob esse viés, entendemos que a segurança jurídica analisada sob a premissa das relações processuais e da produção de decisões judiciais, instalada a partir de um mínimo de previsibilidade, um porto-seguro para a sociedade, consiste em instrumento de sustentáculo às bases do Estado de Democrático de Direito e, por isso, merecem maior e melhor reflexão, até porque, como vimos de ver, contemporaneamente, essa preocupação, ao que tudo indica, apresenta-se a nós como de segundo plano. Partindo 8 Precedentes vinculantes no direito comparado e brasileiro, p. 64. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 25 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 ótica da supra ventilada, novamente, valemo-nos dos ensinamentos transmitidos por Marinoni9: A segurança jurídica reflete... um mínimo de continuidade..., embora ainda não haja, na prática dos tribunais brasileiros, qualquer preocupação com a estabilidade das decisões....Para que haja previsibilidade, igualmente são necessárias algumas condições. Se é certo que não há como prever uma consequência se não houver acordo acerca da qualidade da situação em que se insere a ação capaz de produzi-la, também é incontestável que estas dependem, para gerar previsibilidade, da possibilidade de sua compreensão em termos jurídicos e da confiabilidade naqueles que detém poder para afirmalas. Estimula propositura das ações, o aumento da litigiosidade, o acúmulo de trabalho e o aprofundamento da lentidão do Poder Judiciário. A previsibilidade não depende da norma em que a ação se funda, mas da interpretação judicial, é evidente que a segurança jurídica está ligada à decisão judicial e não à norma jurídica em abstrato. [...] um ordenamento jurídico absolutamente destituído de capacidade de permitir previsões e qualificações jurídicas unívocas, e de gerar, assim, um sentido de segurança nos cidadãos, não pode sobrevir enquanto tal. Ou seja, um ordenamento inidôneo a viabilizar a previsibilidade não pode ser qualificado de jurídico” De se verificar que é uma verdadeira falácia acreditarmos que uma vasta produção normativa implicaria num cenário de previsibilidade e segurança; a bem da verdade, como se sabe, o Judiciário, em incontáveis oportunidades, é instado a se manifestar acerca desses atos normativos, seja sob seu aspecto formal ou material, de tal maneira que o reflexo de seus pronunciamentos, sim, servirão como balizamento da estabilidade jurídico-social. Assim trilhando, caso nosso Órgão Jurisdicional mostre-se descomprometido com seu dever de alinhavar seus julgamentos, o que, lamentavelmente denotamos nos dias de hoje, por certo caminharemos ao encontro da imprevisibilidade e, por via de consequência, da insegurança jurídica, malferindo os primados do Estado proclamado em nossa Constituição da República. Por tal é que se faz necessário quebrarmos determinados grilhões que nos deixam amarrados ao status quo e nos impede de formar uma sociedade verdadeiramente 9 Idem, p. 559. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 26 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 igualitária e justa, uma sociedade na qual o Estado respeita os direitos fundamentais dos cidadãos e estes, por conseguinte, também se enxerguem dentro de um mesmo cenário, em condições efetivas de isonomia, fazendo-se, pois, valer os verdadeiros anseios constitucionais de justiça social, em seu sentido mais amplo e genérico, para efetivarmos uma Democracia Material. Em sua obra A resolução dos conflitos e a função judicial: no contemporâneo estado de direito, Rodolfo de Camargo Mancuso10 enfatiza: num mundo globalizado, onde se embatem sociedades massificadas e competitivas, não raro sucede que o padrão de conduta, mesmo estratificada numa norma cogente, não raro reforçada por sanções draconianas, não consegue manter ou mesmo reduzir o ambiente de conflituosidade geral....a simples observação dos fatos evidencia que a vida é mais rica do que o Direito (ou “o território é maior do que o mapa), e por isso obsessiva produção de normas – dita nomocracia – acaba abrindo uma fenda abissal entre o mundo formal e teórico do dever ser (a configuração lógica) e o mundo efetivo e real do ser (a configuração ontológica). Tudo isso, na realidade pátria, induz à visualização de dois Brasis: um legal, outro real; isso é visível em muitas ocorrências contemporâneas..., e desse contexto não se aparta a experiência jurídica, mesmo a da ciência processual, pese o seu caráter instrumental e não propriamente criador de situações jurídicas. [...] pondo à calva um sensível erro de diagnóstico: a principal causa do volume excessivo de processos não reside em nosso arcabouço processual...e sim, por um outro lado, na escassez de meios, materiais e humanos, para um melhor gerenciamento da imensa massa de processos e, de outro lado, cultura judiciarista. [...] Essas e tantas outras constatações induzem a refletir que, nos dias de hoje, a função judicial precisa ser urgentemente repensada e reciclada, colocando-se em pauta uma reavaliação dessa função estatal. As imposições normativas que indicam o poder do Estado em face do indivíduo, agregada a uma cultura extremamente positivista e prolixa do ponto de vista redacional-normativo, quando levada à solução perante os órgãos jurisdicionais tem gerado situações verdadeiramente teratológicas sob o prisma da segurança jurídica, chegando-se ao dado absurdo de matérias totalmente convergentes serem julgadas de 10 p. 36-39. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 27 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 modo totalmente divergente, evidenciando o contrassenso e, pior, a total imprevisibilidade e confiabilidade da produção judicial brasileira. É esperado que o Estado de Direito crie mecanismos que proporcionem estabilidade judicial e possibilitem àqueles que assistem ou participem do jogo jurisdicional, de uma forma maior ou menor, possam antever os possíveis resultados que advirão do ajuizamento de uma ação, ainda que se trate de uma ação individual; isso nada mais é do que consagração da segurança jurídica. Nessa toada, a adoção de determinadas novas ferramentas mostrar-se-ia como notório progresso da prestação jurisdicional pátria, instrumentos esses que passam por reavaliação de nosso sistema normativo-processual e do papel do Judiciário na solução dos conflitos sociais e que, em muitos casos, nos aproximará da cultura dos sistemas de common law, fornecendo capacidade sistêmica de garantir previsibilidade com segurança jurídica no seio da sociedade. Essa nova postura, noutra banda, imporá o enfraquecimento das codificações e de primados do processo civil pátrio, como a persuasão racional, o livre convencimento motivado e o duplo grau de jurisdição, o que, longe de ser um regresso, ao nosso pensar, consiste em relevante avanço de nossa Ciência Processual, notoriamente, porque viabiliza celeridade processual acompanhada de segurança jurídica. A propósito, chegada a hora de rompermos determinados dogmas que ainda pairam sob o processo civil pátrio para passarmos a admitir uma mudança de postura imprescindível à resolução dos graves problemas que assolam o jurisdicionado brasileiro, objetivando, com isso, uma aproximação da realidade com os alicerces do Estado Democrático, dentre os quais, a entrega da prestação jurisdicional célere, efetiva e justa, consoante esculpido na Constituição Federal, o que contribuirá decisivamente para formação de uma sociedade mais igualitária. É necessário fortalecermos os precedentes jurisprudenciais e a observância do posicionamento reiterado dos Tribunais Superiores, não olhando para eles como meras fontes secundárias do Direito, tal como usualmente abordados, transformando-se, pois, a matiz de nosso sistema processual. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 28 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Tanto o é que a preocupação com a uniformidade jurisprudencial e a estabilidade da jurisprudência, destinadas a viabilizar a previsão das consequências jurídicas da conduta do jurisdicionado e orientar as decisões judiciais nada mais são do que manifestação da segurança jurídica no processo, assumem papel de destaque no Projeto de Lei nº 8.046/2010, Novo Código de Processo Civil, que na Exposição de Motivos, assim assevera: haver, indefinidamente, posicionamento diferentes e incompatíveis, nos Tribunais, a respeito da mesma norma jurídica, leva a que jurisdicionados que estejam em situações idênticas, tenham de submeter-se a regras de conduta diferentes, ditadas por decisões judiciais emanadas de tribunais diversos. Esse fenômeno fragmenta o sistema, gera intranqüilidade e, por vezes, verdadeira perplexidade na sociedade. [...] A segurança jurídica fica comprometida com a brusca e integral alteração do entendimento dos tribunais sobre questões de direto. Encampou-se, por isso, expressamente princípio no sentido de que, uma vez firmada jurisprudência em certo sentido, esta deve, como norma, ser mantida, salvo de houver relevantes razões recomendando sua alteração. Trata-se, na verdade, de um outro viés do princípio da segurança jurídica, que recomendaria que a jurisprudência, uma vez pacificada ou sumulada, tendesse a ser mais estável. [...] O novo Código prestigia o princípio da segurança jurídica, obviamente de índole constitucional, pois se hospeda nas dobras do Estado Democrático de Direito e visa a proteger e a preservar as justas expectativas das pessoas. A dispersão excessiva da jurisprudência produz intranqüilidade social e descrédito do Poder Judiciário. É indubitável que vivemos um momento de transformação em nosso processo civil, onde o sopesamento de valores atinentes ao processo tem tendido para fortalecer os precedentes judiciais em detrimento da ampla e irrestrita liberdade dos juízes julgarem conforme convicções pessoais, muitas vezes contaminadas pelas mais variadas formas de ingerência social na formação de seu livre convencimento. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 29 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Em seus ensinamentos, Flávio Luis de Oliveira11, destaca, com acerto, ao nosso sentir, que “a base que sustenta a jurisprudência vinculante seria o fato de que ela traria estabilidade, previsibilidade, segurança jurídica e igualdade”. Não se está a negar a questão de codificação e positivação de textos legais – em sentido amplo - culturalmente relacionadas ao sistema da civil law, mas também não se pode deixar de admitir que o fortalecimento dos precedentes, típico da common law, está cada vez mais presente no sistema processual pátrio, cujo qual mostra a nítida tendência de enrijecer os caminhos amplos e, por vezes, desmedidos proporcionados aos julgadores. O livre convencimento motivado e a persuasão racional dos juízes não devem ser prestigiados a ponto de que possam levar o julgamento para uma esfera de desvirtuamento da liberdade para liberalidade, das distorções da legalidade, da violação da isonomia e da completa ausência de previsibilidade e de confiabilidade na produção judicial. Indisfarçável que as normas, ao serem interpretadas pelos juízes, podem comportar diversas compreensões distintas, mesmo diante de casos notoriamente semelhantes, sobretudo em matérias de fato, entretanto, o que não se pode admitir é que a estrutura processual permita que cada qual dos juízes interprete a lei de uma forma e, por via de consequência, cada qual dos jurisdicionados tenham soluções distintas para o mesmo problema, sob pena de instituirmos o “caos jurisdicional”. A instabilidade judicial advinda nessas situações gera circunstâncias que, longe de pacificar o grupo social com justiça, institui um verdadeiro cenário de descrédito do Judiciário, desconfiança em relação aos agentes que atuam no processo e uma incerteza insustentável às vistas do Estado Constitucional de Direito. Impensável sustentar num Estado de Direito que o jurisdicionado teve “sorte” por ter seu processo distribuído para um ou outro Órgão Jurisdicional, posto que, caso tivesse o “azar” de assim não acontecer e o seu feito fosse distribuído àqueloutro, seu pleito seria improcedente. 11 Os precedentes vinculantes são normas?, p. 184. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 30 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Assim também em O ponta perna de pau onde a álea fora o fator decisivo para o destino daquele menino que, ao final de toda circunstância, fora ele o vitimado pela ausência de compromisso do arbitro Ataíde ao proferir sua sentença, a cusparada, em face daqueles que a ele se dirigiam. Nossa sociedade se vê no lugar desse singelo menino, pressionada contra a grade, empurrada por uma série de fatores que impõe transformação social, contudo, muitas vezes sem saber como se portar, acaba sendo ela, sociedade, a vitimada pelo revide advindo do Estado, na obra literária, o juiz de futebol, na realidade, o Estado-Juiz. O fortalecimento dos precedentes jurisdicionais é imprescindível, a mutação da forma de se tratar o processo civil e a produção das decisões judiciais é premente, cuidando-se, a bem da verdade, do aperfeiçoamento das instituições do Estado-Juiz, reservando-se a assegurar a força da estabilidade pretendida pela Constituição e pela lei, atribuindo maior coerência ao ordenamento jurídico e reduzindo os nefastos efeitos decorrentes das decisões contraditórias que tornam mais densa a ideia de injustiça e de falta de efetividade jurisdicional que já pairam em nossa sociedade. Devemos, portanto, considerar como necessária e urgente a adoção de práticas que, efetivamente, descongestionem nosso Judiciário e uniformizem a produção judicial, construindo um ambiente de estabilidade das relações, confiabilidade e previsibilidade das decisões, para desembocarmos na consagração da segurança jurídica na entrega da prestação jurisdicional, o que fortalecerá, inarredavelmente, as estruturas fundantes de um Estado de Direito que almeja ser substancial e materialmente Democrático, tal como esculpido no conteúdo normativo de nossa Constituição Federal. 3 CONCLUSÃO É iniludível que a sociedade vem sofrendo transformações em uma assustadora velocidade, as quais tem proporcionado novas formas de comunicação, interatividade e troca de experiências entre os indivíduos mundialmente conectados e, por muitas vezes, inclusive, desconhecidos entre si. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 31 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Essa velocidade da informação associada ao incremento de outras ferramentas de facilitação de acesso ao Órgão Jurisdicional viabiliza que milhares de pessoas até então postas à margem da tutela do Estado-juiz possam buscar proteção em relação a seus direitos e interesses, o que vem causando uma verdadeira massificação de processos judiciais, no mais das vezes relacionadas a questões meramente de direito que não exigem qualquer dilação probatória e que cuidam-se de “casos repetidos”. Se por um lado essa massificação evidencia a manifestação da democracia na seara do processo, de outro, esconde um risco considerável, concernente à pluralidade de decisões desencontradas e desconexas em todo território nacional, gerando um ambiente de instabilidade e insegurança jurídica que, além de prejudicar o jurisdicionado, retira qualquer grau de previsibilidade do comportamento estatal ante a essas ações em massa, o que pode implicar em reflexos econômicos, políticos e sociais. O risco dessas decisões proferidas sem compromisso de homogeneizar os julgamentos na jurisprudência pátria também pode ser constatado no âmbito do texto O ponta perna de pau, a que nos propomos abordar como paralelo à sociedade e a prestação jurisdicional brasileiras. Isso porque, assim como nossa sociedade, o menino, que nada tinha a ver com as ofensas proferidas ao juiz de futebol Ataíde – comparado ao nosso Judiciário – fora ele o vitimado da cusparada efetuada de encontro com a torcida, logo ele, que estava ali alheio a toda aquela situação, acabou atingido pela cusparada descompromissada de resultados proferida pelo Ataíde; aqui, a cusparada, pode representar os provimentos jurisdicionais ou a produção judicial, exarados de maneira descompromissada com a uniformização, de modo a gerar em todos que assistem ao jogo jurisdicional, um verdadeiro ambiente de instabilidade, imprevisibilidade e insegurança jurídica, o que malfere os mais basilares sustentáculos do Estado de Direito. Objetivando combater essa realidade, assim como proporcionar maior celeridade ao processo civil, cuja morosidade, também, pode estar relacionada ao excesso de demandas semelhantes, o legislador, a doutrina e a jurisprudência tem caminhado no nítido sentido de fortalecimento das decisões jurisprudenciais, de tal sorte a instituir KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 32 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 ferramentas aptas a minimizarem decisões contraditórias que conturbam o fim-último do processo, a pacificação social. A propósito, chegada a hora de rompermos determinados dogmas para passarmos a admitir uma mudança de postura imprescindível à resolução dos graves problemas que assolam o jurisdicionado brasileiro, aproximando a realidade com os alicerces do Estado substancialmente Democrático, dentre os quais, a entrega da prestação jurisdicional célere, efetiva e justa. REFERÊNCIAS BUCHMANN, Ernani. O ponta perna de pau. Curitiba: Oficina do Impresso, 2006. CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2008. DAVID, Rene. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2002. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. FUX, Luiz (Coord.). O novo processo civil brasileiro: Direito em expectativa. Rio de Janeiro: Forense, 2011. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A resolução dos conflitos e a função judicial no contemporâneo Estado de Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. MARINONI, Luiz Guilherme. (Coord.). A força dos precedentes. 2. ed. Salvador: Editora Jus Podium, 2012. MATOS, José Igreja. Um modelo de juiz para o processo civil actual. Coimbra: Coimbra Editora, 2010. NOGUEIRA, Gustavo Santana. Precedentes vinculantes no direito comparado e brasileiro. 2. ed. Salvador: Jus Podium, 2012. 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KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 34 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 IMAGINAR A EXISTÊNCIA NA POESIA LITERÁRIA DE MIA COUTO1 B ERNARDO G.B. N OGUEIRA 2 RESUMO: O trabalho que ora nos propomos busca um diálogo entre a questão da hospitalidade, a partir da reflexão do filósofo Jacques Derrida, a questão das nomeações, que estão discutidas no pensamento de Alain Badiou e são prementes quando pensamos os direitos humanos por um viés não hegemônico. Nesse caminho, a partir do que Martin Heidegger nos permite perceber em sua conferência sobre o poético, é que encontramos com o conto O embondeiro que sonhava pássaros de Mia Couto. Nesse sentido, o dizer poético-literário nos empresta imaginação bastante para refletir sobre o problema da discriminação, aqui tratada com o termo “nomeação” e ainda, a questão da hospitalidade que revela o limite imposto à imaginação do humano. A imaginação também nos acompanhará neste diálogo, que pretende estabelecer uma prosa infinita com a estrutura sem estrutura do homem. A partir das palavras da literatura de Mia Couto, queremos alimentar a filosofia de Derrida e desembocar em uma imaginação, que ademais, é o que realiza o humano, que “poeticamente habita a terra”. PALAVRAS-CHAVE: poesia, imaginação, alteridade, direitos humanos. “Poeticamente o homem habita.” Esse verso do poema de Hölderlin é alvo de uma análise filosófica feita por Martin Heidegger. Dentre as construções reflexivas deste ideário, o que nos interessa é a reflexão acerca da colocação do homem no mundo enquanto poesia. A reflexão inicia com a questão sobre se, de fato, o homem habita poeticamente o mundo. A princípio, parece-nos, o homem não habita poeticamente o 1 2 Texto orginalmente publicado na Revista Diké do curso de Direito da UNIPAC/Itabirito. Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professor do Centro Universitário Newton Paiva. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 35 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 mundo, muito ao contrário. Talvez pudéssemos dizer que apenas os próprios poetas quanto à sua maneira de existir estejam nessa condição. Essa dimensão, a poética, restaria mesmo impedida de se manifestar dada a colocação do homem em uma forma revestida e permeada pela técnica, o que dentro da nossa perspectiva obnubila e não permite ao homem essa existência poética de que fala o Hölderlin. No entanto, ao estarmos mais próximos destes dizeres, percebemos o quanto é real a afirmação do poeta. Ao analisar o verso “poeticamente o homem habita” Heidegger nos ensina que é apenas por força de uma existência, de um habitar o mundo poeticamente, que então o seu contrário mostra-se possível. Percebemos uma existência não-poética apenas pelo fato de que o próprio habitar é fundamentalmente poesia. Assim, apenas foi possível ao poeta afirmar esse existir na poesia porque em sua essência o homem habita poeticamente. Essa constatação pode ser lida nas palavras de Heidegger: E nós habitamos poeticamente? Parece que habitamos sem a menor poesia. Se é assim, será mentirosa e não verdadeira a palavra do poeta? Não. A verdade de suas palavras se confirma da maneira mais inacreditável. Pois um habitar só pode ser sem poesia porque, em sua essência, o habitar é poético. Um pedaço de madeira nunca pode ficar cego [...] É possível que nosso habitar sem poesia, que nossa incapacidade de tomar uma medida provenha da estranha desmedida que abusa das contagens e medições (HEIDEGGER, 2012). Uma vez percebida a idéia do habitar poético como sendo aquele que realiza o humano, ou em melhores palavras, aquele que possibilita ao humano seu próprio habitar o mundo, refletiremos acerca da relação entre o explicitado na poesia de Hölderlin, por intermédio do pensamento de Heidegger, e a questão da hospitalidade em Derrida, para alcançamos nosso ínterim que é o encontro com a imaginação poética de Mia Couto, mais propriamente em seu conto: “O embondeiro que sonhava pássaros”. Assim ao nos encontrarmos com Derrida e sua frase: “Um ato de hospitalidade só pode ser poético” parece estarmos no rastro do que nos propusemos aludir com o percurso entre o poético, a hospitalidade, a alteridade e a imaginação. Se tomarmos em conta o dizer de que “poeticamente o homem habita”, de alguma forma a relação entre KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 36 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 a hospitalidade proposta por Derrida e esse dizer dialogam e se complementam no encontro entre homens. Esse encontro, plural pela natureza mesma da diferença, desemboca na construção imagética – o outro é então o lócus privilegiado em que a transcendência mesma se realiza. A idéia de uma “hospitalidade incondicional” proposta por Derrida nos coloca próximos ao que entendemos como sendo aquilo que Holderlin expressou em sua poesia. Ou seja, enquanto o outro deve ser recebido sem que antes haja mesmo uma sua interpelação conceitual e institucional, a poesia, como espaço lingüístico onde habita o homem, seria ela mesma aquilo que denota a incondicionalidade da alteridade. A poesia, que não é além nem aquém do humano, pois é o local de medida com o divino, comporta ele dentro de si, distante e próximo ao mesmo tempo. Assim, “habitar poeticamente” é um habitar em que a “hospitalidade incondicional” mesma já se realizara. Quando Derrida nos convoca a pensar uma hospitalidade para além da hospitalidade, está a nos lançar para o terreno do poético no qual o humano, fugido e distante da técnica legal que efetiva uma chamada “hospitalidade condicional”, coloca-se na dimensão aludida por Heidegger. Ora, enquanto Derrida diz da hospitalidade como um ato poético, que se dá na medida que recebe o outro sem medidas, em uma comunhão infinita, podemos ao mesmo tempo perceber que nessa direção caminha os dizeres de Heidegger face à estada do homem no poético: Quando e por quanto tempo acontece a poesia propriamente? [...] Enquanto perdurar junto ao coração a amizade, Pura, o homem pode medir-se sem infelicidade com o divino...[...] Enquanto perdurar esse advento da benevolência, o homem tem a felicidade de medir-se com o divino. Se esse medir-se acontece com propriedade, o homem dita poeticamente a partir da essência do poético. Se o poético acontece com propriedade, o homem habita esta terra humanamente, “a vida do homem” que, como diz Hölderlin em seu último poema, é uma “vida habitante (HEIDEGGER, 2012). E já agora seria o momento de trazermos Mia Couto para esse diálogo infinito. Infinito por se tratar de uma prosa em que a sombra do conceito cartesiano, impedidor por si só de um habitar poético, sai de cena. A primeira frase do conto aludido acima KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 37 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 inagura essa encenação: “Esse homem sempre vai ficar de sombra: nenhuma memória será bastante para lhe salvar do escuro. Em verdade, seu astro não era o Sol. Nem seu país era vida” (Couto, 2013). É interessante perceber como o autor traz termos que denotam toda a prisão que as nomeações infligem ao humano em sua existência. O sol retira a possibilidade de vida na sombra. O país destina-se ao cidadão. A memória conta a história que aprisiona a criação. Nesse caminho, o primeiro passo de nossa interlocução de idéias esta na medida em que esse tal “passarinheiro” nem nome possuía, o que necessariamente o liberta de uma colocação pré-determinada. Isso seria já um problema para os habitantes portugueses que o discriminavam. Discriminavam pelo simples motivo de não poderem tomar esse humano dentro de um conceito. Essa impossibilidade esta colocada pela ausência de imaginação, dir-se-ia mesmo de uma prisão, que “organiza” a sociedade e impede o novo. Impede a vida dentro do escuro e fora do país. Locais nos quais “aquele que vem”, o estrangeiro, como nos fala Derrida, habitam por natureza. A estranheza ante aquele que foge aos conceitos é o que amolda as ações dos habitantes do local em que chega o homem dos pássaros. E é de se observar que os pássaros sempre estão fora do chão. Local por excelência de distinção entre homens: ése daqui ou de acolá. E nesse sentido, imaginar não seria possível aos homens “presos” ao seu chão. Chão que se erguia quando passava o passarinheiro. Essa dimensão imagética que inaugura um outro que não pode ser qualificado esta aqui: à volta do vendedeiro, era uma nuvem de pios, tantos que faziam mexer as janelas [...] e os meninos inundavam as ruas. As alegrias se intercambiavam: a gritaria das aves e o chilreio das crianças. O homem puxava de uma muska e harmonicava sonâmbulas melodias. O mundo inteiro se fabulava (COUTO, 2013). A poesia de Mia Couto nos convida à habitação poética a partir das crianças que recebiam o vendedeiro sem peias qualquer. Enquanto isso os pais reprovavam as invenções dele. Dizia-se que aquele homem “ensinava suspeitas aos seus pequenos filhos”. E as crianças, solícitas “àquele que vem”, à invenção e à existência que é imaginação, recebiam com amizade poética a novidade. A ideologia determinante impregnada no ideário dos adultos do local ordenava que o novo fosse retirado dali. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 38 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 A imaginação, que é o local em que a hospitalidade incondicional habita, posto que é ela mesma um impossível de previsão, restara conseguida apenas aos olhos das crianças, seres que inventam e são passivos à novidade, posto que é assim a sua existência mesma: um inventar contínuo, sem amarras da memória aprisionadora. A fala dos adultos continua a se inscrever no cenário do logos que impede o existir poético. Impede a “hospitalidade incondicional” quando encerram conceitualmente aquele humano, tomando-o pela sua condição, sua cor: “Foste a casa dele? Mas esse vagabundo tem casa? A residência dele era um embondeiro, o vago buraco do tronco.” (Couto, 2013). E a nomeação permanecia quando insistiam, em contrário ao que nos diz Hölderlin, que a imaginação seria um não habitar, pois o morador do embondeiro dizia absurdos às crianças, coisas como: “aquela árvore é muito sagrada”. Como nos permite reconhecer Heidegger a partir de Hölderlin, o homem habita poeticamente quando se mede com o divino. Essa seria a percepção mesma do mundo do “passarinheiro”: “aquela árvore – como dizia o passarinheiro – era muito sagrada, Deus plantara de cabeça pra baixo” (COUTO, 2013, grifo nosso). Os pássaros, “todos os que no chão desconhecem morada” nos dizeres de Mia Couto, seriam o anúncio dessa relação com a divindade, talvez porque espacialmente estão mais próximos daquilo que a imaginação permite enxergar do divino. Assim, todo esse novo que é revoada do existir, que é a medida do belo, trazia aos adultos um incômodo. Não aquele que duvida pra alcançar a pureza. Mas o incômodo que é obstáculo para a poesia. Essa ausência de imaginação tornara-se impossibilidade mesma de viver. As crianças, ao invés, viviam a poesia dos pássaros. E a beleza, que é indizível, continuava a assombrar os adultos. Afinal, os colonos ainda que hesitaram: aquele negro trazia aves de belezas jamais vistas. Ninguém podia resistir às suas cores, seus chilreios [...] Os portugueses se interrogavam: onde desencantava ele tão maravilhosas criaturas? Onde, se eles tinham já desbravado os mais extensos matos? (COUTO, 2013). O “outro que vem”, o estrangeiro, sofre com a austeridade do eu que quer a tudo conformar. “Os senhores receavam as suas próprias suspeições – teria aquele negro KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 39 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 direito a ingressar num mundo onde eles careciam de acesso?” (COUTO, 2013). Parece que Mia Couto se referia ao medo, tema tão corrente em sua poesia, e que como afirma o próprio autor, cria os maiores perigos quando disseminado. Em nosso caso, o medo da imaginação, do desconhecido, acaba por criar a discriminação. A diferença seria o caminho pra imaginar, pra então, habitar a poesia incondicional daquele hóspede inesperado e desconhecido. Esse “chegante” que altera a ordem traz a possibilidade da imaginação. Imaginar amistosamente seria o acesso à existência poética. Mas a perturbação e o assombro dos adultos mostram exatamente a ideologia da naturalização que cria os preconceitos. Ao contrário, as crianças apenas se realizam na inventividade, por isso são divinas e poéticas. Os adultos cuidavam de tentar manter a ordem. Manutenção que é marca das discriminações de toda ordem, e, por conseguinte, da eliminação do que é criado. Assim, ao invés da novidade habitar a existência dos adultos colonos, eles se sentiam incomodados com aquela nova linguagem, e por não entender, preferiam tomá-la como um problema: “Aquela música se estranhava nos moradores, mostrando que aquele bairro não pertencia àquela terra. Afinal, os pássaros desautenticavam os residentes, estrangeirando-lhes?” (COUTO, 2013). Ademais, a questão do estrangeiro nos remete mesmo a Édipo, o dos pés furados, que também sempre fora um estrangeiro onde chegara. Para essa relação vemos os colonos a dizer sobre o passarinheiro: “O comerciante devia saber que seus passos descalços não cabiam naquelas ruas. Os brancos se inquietavam com aquela desobediência, acusando o tempo. Sentiam ciúmes do passado, a arrumação das criaturas pela sua aparência” (COUTO, 2013). Essa fala explicita o que chamamos de naturalização, ou seja, a manutença de uma estrutura como se fosse a única correta e factível. Mais uma vez a imaginação se perde, e poesia não há, tampouco, habitação nela. E nesse mar de invenção naquele bairro, as crianças davam testemunho daquilo que Aganbem chamara de “profanação”. Essa “profanação” se dava na medida em que as crianças se colocavam distraídas ante os conceitos e da própria situação vivida, e KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 40 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 acolhiam poética e incondicionalmente o passarinheiro como se pertencesse a eles. Os pais logo se voltariam contra essa profanação, sobretudo face um termo tão caro às ideologias: Até os meninos, por graça de sua sedução, se esqueciam do comportamento. Eles se tornavam mais filhos da rua que de casa. O passarinheiro se adentrara mesmo nos devaneios deles: - Faz conta eu sou vosso tio. As crianças emigravam de sua condição, desdobrandose em outras felizes existências. E todos se familiavam, parentes aparentes. [...] Os pais lhe queriam fechar o sonho, sua pequena e infinita alma (COUTO, 2013). Resta claro que a profanação das crianças figura no terreno do poético, da imaginação, do devaneio, como nos fala Mia Couto. Assim, essa colocação seria mesmo aquela que permite a existência poética. Imaginar-se medido com o divino que tudo pode, inclusive, imaginar. Essa autêntica revolução, que também inaugura um novo tempo, não passaria indene pelas pestanas adormecidas dos colonos. Logo foi dado um comando para acabar com a novidação que o passarinheiro trazia. A ordem do local pedia. A ausência da imaginação também. Daí que partiu uma comissão de colonos para acabar com o incômodo. A criança logo foi tentar salvá-lo. Era talvez a tentativa desesperada de salvar a si mesmo, o fim do passarinheiro selaria o fim da imaginação, o rito de passagem da criança para o adulto. Preso em conceitos e ordenações. No entanto, assim se deu. Prenderam e utilizaram a força contra o inventor de existências. O passarinheiro ainda quis tocar sua harmônica, mas as agressões não lho permitiram. Seria o fim dos passarinhos. O fim da invenção. O policial, para se assegurar disso lançou fora a “gaita de beiço” e o passarinheiro silenciou. A estrutura de uma existência racional voltaria a se estabelecer. O som do passarinheiro não mais ecoaria. Contudo, o passo nosso é em busca da imaginação e Mia Couto não hesitou em nos abraçar com um enredo próprio dessa categoria – a da poesia que inaugura uma relação com a divindade. Assim, convocando mais uma vez Hölderlin, vemos a idéia da amizade entre a criança e o passarinheiro da imaginação a realizar esse existir poético, pois o poeta traz KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 41 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 um verso em que nos diz: “Enquanto durar junto ao coração a amizade...” que Heidegger analisa a dizer que “junto ao coração” e não “no coração”. “Junto ao coração” significa o que advém nessa essência do homem de ser aquele que habita, o que advém como apelo da medida junto ao coração de tal maneira que o coração se volte para essa medida. Enquanto perdurar esse advento da benevolência, o homem tem a felcidade de medir-se com o divino” (HEIDEGGER, 2012). Nessa senda de imaginação, quando o policial lança fora a gaita, o menino a apanha e sai realizando essa existência imaginada pelo prisioneiro. E assim, nessa relação com seu instrumento, que traz divindade quando tocado, retornou mais uma vez ao tronco, habitação do passarinheiro: O menino se enroscou aquecido em sua própria redondura. Enquanto embarcava no sono levou a muska à boca e tocou como se fizesse o seu embalo. Dentro, quem sabe, o passarinheiro escutasse aquele conforto? Acordou num chilreio. Os pássaros! Mais de infinitos, cobram toda a esquadra. Nem o mundo, em seu universal tamanho, rea suficiente poleiro (COUTO, 2013). Ao regressar ao tronco o menino habitara a aludida existência poética, pois musicalmente media-se aos deuses. A hospitalidade do tronco se dera ao menino como um leito. A morada inventada do passarinheiro recebera seu hóspede em imensa hospitalidade, incondicional, guardando ali toda a imaginação trazida pelos pássaros, deixando pra trás toda a verdade dos adultos. O mundo era ali, e ao viver no tronco, o menino mais uma vez sonhou. Adormeceu até que os adultos, presos à ideologia que não deixa viver a poesia, atearam fogo no tronco. “O sacana do preto está dentro d árvore [...] É o gajo mais a gaita. Toca, cabrão, que já danças! As tochas chegaram ao tronco, o fogo namorou as velhas cascas” (COUTO, 2013). Poderia ser o fim do menino. Na realidade dos adultos seria o fim do preto. Na realidade eles nunca houveram de acessar fundamentalmente o real. Pois o poético se dá apenas quando “perdurar junto ao coração a amizade”. Assim, por não serem capazes da imaginação, feriram de morte seu próprio filho, que em verdade, não seria mesmo filho daqueles colonos, posto que era fruto da imaginação, e se é assim, vive-se KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 42 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 apenas por ela e nela. Daí que Mia Couto pôde encerrar assim seu conto, de maneira que possamos perceber que habitar o poético de maneira hospitaleira e infinita é possível apenas às crianças desenvoltas dos limites racionais do logos. Morre-se pra viver. Dentro – do tronco -, o menino desatara um sonho: seus cabelos se figuravam pequeninas folhas, pernas e braços se madeiravam. Os dedos, lenhosos, minhocavam a terra. O menino transitava de reino: arvorejado, em estado de consentida impossibilidade. E do sonâmbulo embondeiro subiam as mãos do passarinheiro. Tocavam as flores, as corolas se envolucravam: nasciam espantosos pássaros e soltavam-se, petalados, sobre a crista das chamas. As chamas? De onde chegavam elas, excedendo a lonjura do sonho? Foi quando Tiago – a criança – sentiu a ferida das labaredas, a sedução da cinza. Então, o menino, aprendiz da seiva, se emigrou inteiro para suas recentes raízes (COUTO, 2013, grifo nosso). O novo mundo o recebeu por imaginação em incondicional hospitalidade, feito poesia. REFERÊNCIAS COUTO, Mia. Cada homem é uma raça. 1. ed. São Paulo: Comp. das Letras, 2013. HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências, 8. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2012. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 43 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 O TRIBUNAL KAFKIANO E OS SEUS JURISTAS: QUEM DIZ O DIREITO EM O PROCESSO? E DUARDO DE C ARVALHO R ÊGO 1 RESUMO: Embora o filósofo francês Michel Foucault tenha apresentado ao mundo a microfísica do poder em sua versão final, anos antes ela já podia ser vista nas histórias do escritor tcheco Franz Kafka. Em obras como O processo, Na colônia penal, O veredicto e O castelo, para citar apenas algumas, identifica-se o exercício ininterrupto do poder disseminado na sociedade, a tal ponto de ser possível afirmar que quase tudo advém das relações de poder. Nesse contexto, o próprio Direito – que serve de pano de fundo para várias obras de Kafka – é vazio e se materializa apenas nos arranjos ou favores que autor e réu de um processo conseguem conquistar a seu favor. A constatação de que os códigos jurídicos de O processo contêm nada mais do que figuras pornográficas demonstra a própria insubstancialidade da lei, que, como todas as outras figuras jurídicas, é apenas uma invenção ou idealização daqueles que dão suporte a esta grande farsa, que é o Direito. Com Kafka, chega-se à conclusão de que os grandes e característicos símbolos jurídicos são meras ficções – tal como os quadros pendurados nas paredes do advogado de Josef K., que retratam juízes baixinhos como verdadeiros gigantes – e que os verdadeiros tribunais e juristas se localizam “nos bastidores” da Justiça: em ateliês de pintura, em cortiços humildes, em porões ou quartinhos escondidos nos fundos de repartições públicas, etc. PALAVRAS-CHAVE: Kafka; direito; tribunal; juristas. 1 INTRODUÇÃO Desde pequeno, Kafka queria ser escritor, mas, ao se deparar com a escolha por um curso universitário, fez a vontade do pai e se matriculou na Faculdade de Direito2. 1 Mestre em Teoria, História e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC; Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL; Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 44 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Ainda bem, pois foi como advogado de meio período da Companhia de Seguros de Acidentes de Trabalho de Praga que ele pôde vivenciar, de perto, o dia-a-dia do Direito – que se tornou a partir de então pano de fundo para boa parte de sua obra – sem deixar de se dedicar diariamente à sua verdadeira paixão: a literatura. É importante ressaltar, contudo, que Kafka odiava o emprego, conforme pode ser lido em seu diário pessoal: O meu emprêgo é-me insuportável pelo fato de contrariar o meu único desejo e a minha única vocação, que é a literatura. Como eu sou sòmente literatura, e como não desejo nem posso ser coisa diversa, o meu emprêgo jamais poderá atrair-me, apenas poderá ao invés disso destruir-me inteiramente [...]. Poderia indagar-me a razão pela qual não deixo êste êmprego – não tenho fortuna – e por que não tento tirar a minha subsistência dos meus trabalhos literários. Apenas poderia então apresentar esta mísera resposta de que não disponho dessa fôrça e que, na proporção em que posso encarar o meu estado em tôda a sua extensão, há maiores possibilidades de que o meu emprêgo me destrua, é certo, com muita rapidez.3 É claro que a aversão em relação ao próprio emprego influenciou a opinião crítica acerca do Direito, mas Kafka era muito inteligente e fez questão de aproveitar a sua experiência profissional para observar o modo pelo qual o Direito se manifestava na sociedade de seu tempo. Uma boa ideia do local de trabalho de Kafka é dada por Leandro Konder: 2 3 Segundo relata o amigo Max Brod, “Após concluir o Ginásio [Kafka] havia estudado Química por quatorze dias, depois Germanística (um semestre), depois Direito; este último como um recurso em caso de urgência, sem vocação, igual a muitos de nós. Um projeto com Paul Kisch de continuar os estudos germanísticos em Munique não foi realizado. O estudo do Direito foi iniciado entre suspiros, como a carreira menos definida, que não levava à meta alguma ou que, por abarcar uma maior diversidade de objetivos (advocacia, postos burocráticos, etc.), postergava a decisão por uma delas e não reclamava, em consequência, uma vocação especial [...]. Segundo a ‘Carta ao pai’, a escolha da carreira foi, ademais, produto do triunfo daquele, pois a carreira era ‘o principal’.” Tradução livre de: “Al concluir el Gymnasium había estudiado Química durante catorce días, luego Germanística (un semestre), después Derecho; esto último como recurso en caso de urgencia, sin vocación, al igual que más de uno de nosotros. Un proyecto con Paul Kisch de continuar los estudios germanísticos en Munich quedó sin realizar. El estudio del Derecho fue iniciado entre suspiros, como la carrera menos definida, que no llevaba a meta alguna o que, por abarcar la mayor diversidad de metas (abogacía, puestos burocráticos, etc.), postergaba la decisión por una de ellas y no reclamaba, en consecuencia, una vocación especial [...]. Según la ‘Carta al padre’, la elección de carrera fue, además, producto del triunfo de aquél, pues la carrera era ‘lo principal’” (BROD, 1974, p. 44). KAFKA, 1964, p. 96. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 45 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 O Instituto do Seguro Operário contra Acidentes do Trabalho era uma criação bastante típica da monarquia dos Habsburgos e da burocracia praguense: era uma empresa racionalizada, hierarquizada, na qual a técnica e a organização tinham aos poucos se afastado da finalidade original de servir aos sêres humanos e tinham criado um monstro mecânico que se movia sozinho. No Instituto, a ordem estava posta a serviço do absurdo. As operações do serviço eram cuidadosamente planejadas e executadas sob rigoroso controle, porém não tinham sentido. 35.000 fábricas encaminhavam seus empregados acidentados à organização: eles eram recebidos e transformados em fichas; em seguida, as fichas começavam a passar de sala em sala, se punham a percorrer intermináveis corredores e acabavam estacionando em arquivos cheios de mofo, enquanto os operários necessitados aguardavam, pacientemente, uma solução para os seus problemas. O próprio prédio onde o Instituto estava instalado já dava uma idéia do seu funcionamento: suas janelas inúteis, suas portas sem função alguma, seus corredores tortuosos e abafados constituíam, no conjunto, um ambiente de pesadelo do qual Kafka jamais se esqueceu.4 A experiência profissional de Kafka autorizou o entendimento de que o âmbito jurídico é um grande sistema burocrático que despersonaliza, ou melhor, desumaniza os agentes do poder. E é notório que tal entendimento se refletiu integralmente na obra literária kafkiana. Em O processo, é como se os juízes – totalmente inacessíveis a ambas as partes de um processo – sequer existissem de fato; é como se eles fossem apenas lendas ou mitos. Os códigos jurídicos, que deveriam trazer a letra da lei, de modo a atender aos anseios de toda a população, são nada mais nada menos do que um aglomerado de figuras pornográficas de mau gosto que distraem os prolatores de sentenças. Da mesma forma, os tribunais superiores são objeto de várias histórias grandiosas, que garantem a alguns advogados influentes um bom nome perante a sociedade, proporcionando-lhes, inclusive, um elevado número de clientes. Mas o que se conhece, ou o que é “real”, na verdade, são apenas os cortiços – paupérrimos e habitados por gente muito humilde – nos quais estão instaladas as salas de audiências em meio à mobília desgastada dos inquilinos. Dizem que O processo é uma obra inacabada. Tudo bem, admitindo-se que, ao menos sob o aspecto formal, realmente ela o seja, o fato é que todos os elementos 4 KONDER, 1974, p. 32-33. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 46 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 necessários para compreender o que significava o Direito para o autor tcheco estão ali. Desde a detenção de um homem de pijamas na manhã de seu trigésimo aniversário até o açoitamento de um criado num quartinho escuro, o Direito, em Kafka, age sorrateiramente, por intermédio de figuras que, embora tecnicamente não possam ser classificadas como juristas, dão impulso a todos os processos judiciais: é o advogado que tenta fazer uso de sua influência perante o Tribunal; o pintor que tenta negociar um atraso no processo; a lavadeira que põe fim a uma audiência; a secretária que indica os caminhos ao acusado; enfim, são esses personagens, tidos por secundários, que dão vida ao processo, ao tribunal e, óbvio, ao Direito. 2 A QUESTÃO DO PODER EM KAFKA Décadas antes da conceituação foucaultiana de poder, levada ao conhecimento do grande público por meio da célebre obra Vigiar e punir, o escritor tcheco Franz Kafka já retratava em sua obra a microfísica5 da qual falava o filósofo francês. Em histórias como A metamorfose, Um artista da fome, O veredicto, Na colônia penal, O castelo e O processo, pode-se contemplar o poder como estudado por Foucault: sendo praticado no interior dos diversos segmentos da sociedade. É que o poder, em Kafka, longe de ser uma via de mão única, pressupõe a atuação consciente e voluntária dos dois pólos antagônicos de qualquer relação e pode ser visto, por exemplo, na opressão exercida pelo pai sobre o filho ou pelo filho sobre o pai, nas uniões pessoais ou profissionais que se formam por mútuo interesse, nas mais corriqueiras trocas de favores, nas influências 5 Nas palavras do próprio Michel Foucault, “[...] o estudo desta microfísica supõe que o poder nela exercido não seja concebido como uma propriedade, mas como uma estratégia, que seus efeitos de dominação não sejam atribuídos a uma “apropriação”, mas a disposições, a manobras, a táticas, a técnicas, a funcionamentos; que se desvende nele antes uma rede de relações sempre tensas, sempre em atividade, que um privilégio que se pudesse deter; que lhe seja dado como modelo antes a batalha perpétua que o contrato que faz uma cessão ou a conquista que se apodera de um domínio. Temos em suma que admitir que esse poder se exerce mais que se possui, que não é o “privilégio” adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito de conjunto de suas posições estratégicas – efeito manifestado e às vezes reconduzido pela posição dos que são dominados. Esse poder, por outro lado, não se aplica pura e simplesmente como uma obrigação ou uma proibição, aos que ‘não têm’; ele os investe, passa por eles e através deles; apóia-se neles, do mesmo modo que eles, em sua luta contra esse poder, apóiam-se por sua vez nos pontos em que ele os alcança” (FOUCAULT, 2003, p. 26). KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 47 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 que determinados indivíduos exercem sobre outros nas pequenas ou grandes decisões a serem tomadas no dia-a-dia, nas relações sexuais que se praticam etc. Durval Muniz de Albuquerque Júnior enxergou essa relação entre a literatura de Kafka e a filosofia de Foucault: Nas histórias de Kafka, podemos visualizar o funcionamento daquela microfísica do poder da qual Foucault nos deu a descrição histórica. Poder que atua tanto de forma ascendente, como descendente. Poder que, embora se cristalize em instituições como o tribunal, não existe fora das relações sociais, sendo imanente a elas. O poder como exercício, não como coisa. O poder que circula em todas as direções, que é prática produtora de sentido, que se inscreve nos corpos, que os torna sujeitos e que os assujeita. As engrenagens em que se vêem presas, são as maquinações do poder. Porque este maquina, no sentido de produzir conexões e desarticulações, continuidades e rupturas, fluxos e cortes. [...] Nos escritos de Kafka a questão do poder aparece descrita em práticas como as de erguer e abaixar a cabeça, olhar ou não nos olhos ou no rosto.6 Não é exagerado dizer que, em O processo, Kafka apresenta o direito como grande agenciador do poder dentro da sociedade, pois todas as relações nas quais os personagens estão envolvidos parecem ser relações jurídicas. E o mais curioso é que, embora o Direito esteja representado ou encarnado em grandes instâncias de poder, como o Pai, o Advogado, o Juiz, o Tribunal, etc., somente é possível percebê-lo verdadeiramente no interior da sociedade, de forma disseminada. Ora, uma leitura mais atenta e abrangente da obra kafkiana conduz ao entendimento de que o mundo jurídico de petições e ofícios, de pastas e arquivos, de gavetas e armários é compreendido apenas pelos seres inatingíveis – geralmente altos funcionários que gozam de um nível superior tão elevado que ninguém é capaz de, sequer, contemplá-los pessoalmente. Em O castelo, por exemplo, todos os habitantes da aldeia na qual se passa a história vivem praticamente para o castelo, ainda que nunca tivessem estado lá. E não é só isso. Todos aqueles que trabalham diretamente para o castelo são tidos como figuras elevadas, inatingíveis. Ocorre que essas figuras, esses altos funcionários, jamais são 6 ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2004, p. 22-23. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 48 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 vistos. A adoração a eles acontece mais por conta da crença na função do que propriamente por sua existência física. No romance, o agrimensor K., personagem principal, tentou de todas as formas chegar ao seu superior imediato, Klamm – um alto funcionário do castelo que definia os afazeres do seu subordinado. K. chegou até mesmo a contrair noivado com uma suposta ex-amante de Klamm, de nome Frieda. Foi numa de suas conversas com a noiva que K. questionou a moça sobre a possibilidade de que se arranjasse um encontro entre ele e o alto funcionário. A resposta de Frieda foi seca e incisiva: – É impossível – disse Frieda levantando-se um pouco e pressionando o corpo contra K. – Que idéia! – É necessário – disse K. – Se eu não o conseguir, você precisa fazê-lo. – Não posso, não posso – disse Frieda. – Klamm nunca irá falar com você. Como pode simplesmente acreditar que ele vá falar com você! – E com você ele falaria? – perguntou K. – Também não – disse Frieda. – Nem com você, nem comigo; são coisas simplesmente impossíveis.7 A partir da negativa de Frieda pode-se começar a duvidar da existência real desses indivíduos superiores. Jane Bennett diz que “o próprio Klamm pode ser apenas uma sombra (as descrições que os aldeões fazem sobre ele variam muito e ninguém de dentro do castelo se lembra ao certo de um homem chamado Klamm)”8. Ele e outros personagens poderosos seriam, talvez, apenas idealizações daqueles que idolatram ou admiram o que eles representam. Essas idealizações não seriam simplesmente devaneios coletivos dos habitantes de uma sociedade, mas, sim, produção advinda das relações de poder cultivadas no quotidiano. A figura do pai, por exemplo, é criada a partir do momento em que ele exerce poder sobre os filhos e na medida em que os filhos o aceitam como pai; a figura do rei é criada a partir do poder que ele exerce sobre os súditos e na medida em que os súditos ficam fascinados com o poder. Aos poucos, torna-se difícil imaginar a vida sem 7 8 KAFKA, 2000, p. 78. BENNETT, 1991, p. 75. Tradução livre de: “Klamm himself may be only a shadow (villagers’ descriptions of him vary and none resembles the man called Klamm inside the Castle)”. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 49 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 o pai, o rei, o patrão ou o funcionário. Enfim, é difícil imaginar a vida sem o ente superior. No momento em que se embasa a participação do indivíduo na sociedade em finalidades ditas “maiores”, como, por exemplo, a burocracia, o emprego, a família, o amor, a lei, ou Deus, a vida humana pode passar a ser vista como útil e cheia de significações, em vez de ser vista como vazia e sem sentido. Na verdade, talvez seja esse incômodo vazio que crie a necessidade dos entes superiores. 3 A INSUBSTANCIALIDADE DA LEI E A FARSA DO DIREITO Mas, justamente por ser uma idealização, a lei kafkiana é insubstancial, vale dizer, não possui conteúdo. Em outras palavras: a lei só é válida se proporcionar o espetáculo punitivo9. E, obviamente, não é novidade que a lei sempre precisou de um mecanismo de punição para se fazer conhecer. Uma lei que proíbe alguma conduta e que não prescreve uma sanção, via de regra, é ineficaz, impotente. Para se tornar eficaz, a lei, na imensa maioria das vezes, necessita prescrever também um castigo para o seu infrator, uma pena. Há, na verdade, praticamente uma impossibilidade de separar a lei da ideia de castigo. Se essa separação é efetuada, a lei é sensivelmente enfraquecida. Esvai-se a crença dos cidadãos em sua eficácia: dá-se a sua desmistificação. A lei, enquanto representante do poder estatal, é imbuída de um caráter extra-ordinário. Ela 9 Em Na Colônia Penal, o operador da máquina narra ao oficial estrangeiro, de forma empolgada, a beleza dos antigos espetáculos punitivos: “– [...] Como era diferente a execução nos velhos tempos! Já um dia antes o vale inteiro estava superlotado de gente; todos vinham só para ver; de manhã cedo o comandante aparecia com as suas damas; as fanfarras acordavam todo o acampamento; eu fazia o anúncio de que estava tudo pronto; a sociedade nenhum alto funcionário podia faltar se alinhava em volta da máquina [...]. A máquina, polida pouco antes, resplendia; praticamente a cada execução eu dispunha de peças novas. Diante de centenas de olhos todos os espectadores ficavam nas pontas dos pés até aquela elevação o condenado era posto sob o rastelo pelo próprio comandante [...]. E então começava a execução! Nenhum som discrepante perturbava o trabalho da máquina. Muitos já nem olhavam mais, ficavam deitados na areia com os olhos cerrados; todos sabiam: agora se faz justiça [...]. Bem, então chegava a sexta hora! Era impossível atender a todos os pedidos para ficar olhando de perto. O comandante, com a visão que tinha das coisas, determinava que sobretudo as crianças deviam ser levadas em consideração; eu no entanto podia permanecer lá graças à minha profissão; muitas vezes ficava agachado no lugar com duas crianças pequenas no colo, uma à esquerda e outra à direita. Como captávamos todos a expressão de transfiguração no rosto martirizado, como banhávamos as nossas faces no brilho dessa justiça finalmente alcançada e que logo se desvanecia! Que tempos aqueles, meu camarada!” (KAFKA, 1998, p. 49-50). KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 50 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 é vista como panacéia. Todos querem a lei. Não se pode, entretanto, esquecer que a lei, na abordagem kafkiana, é também uma daquelas instâncias poderosas idealizadas pelo ser humano. Ela existe, mas é impalpável, inatingível. A lei é, por um lado, uma criação do próprio homem e, por outro, já desde há muito, objeto autônomo de adoração. A lei tornou-se ente poderoso, inatingível e ao mesmo tempo difundido nos interiores da sociedade, dando-se, assim, a sua materialidade. Toda relação de poder pressupõe uma opressão de um lado e alguém que a aceita do outro. A lei dita normas, prescreve castigos e o homem as acata; no fundo, as deseja. Kafka utilizou-se desta ideia em sua obra. Mas esse desejo não deve ser interpretado de maneira errônea. Deleuze a Guattari advertem que Estaríamos evidentemente equivocados se compreendêssemos aqui o desejo como um desejo de poder, um desejo de reprimir ou mesmo de ser reprimido, um desejo sádico e um desejo masoquista. A idéia de Kafka não está aí. Não há um desejo de poder, é o poder que é desejo. Não um desejo-carência, mas desejo como plenitude, exercício e funcionamento: até em seus oficiais mais subalternos. Sendo um agenciamento, o desejo constitui unidade estrita com as engrenagens e as peças da máquina, com o poder da máquina. E o desejo que alguém tem pelo poder é apenas sua fascinação diante dessas engrenagens, sua vontade de fazer andar algumas dessas engrenagens, de ser ele mesmo uma dessas engrenagens ou, à falta de coisa melhor, de ser material tratado por essas engrenagens, material que é ainda, a seu modo, uma engrenagem10. A lei, então, exerce seu poder exatamente na medida em que o homem o aceita. Mas em nome de quê ocorre essa aceitação? Jeanine Nicolazzi Philippi busca esta resposta em sua leitura cruzada entre o Direito e a psicanálise. Ela diz que o homem se submete ao domínio da lei em nome do pai: As estruturas sociais, políticas e jurídicas, de fato, não existem por si mesmas; mas são sempre habitadas e modeladas por seres humanos que lhes dão vida e significação. Essas marcas a teoria psicanalítica ajuda a decifrar mediante a tematização de um ser desejante, implicado no estabelecimento do laço social uma relação de alteridade de tipo libidinal e ambivalente, que pode ser compreendida a partir de pares antinômicos como: aproximação/distanciamento, amor/ódio, segurança/perseguição etc., tradutores de movimentos 10 DELEUZE; GUATTARI, 1977, p. 83. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 51 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 afetivos que permitem ao ser humano ancorar em outrem a satisfação de seus desejos, fantasias e medos. Essa metáfora coloca em cena a capacidade do inconsciente de impor a sua ordem, dogmática ab origine, que não é outra senão aquela sustentada na remissão a um terceiro excluído representante da ficção da função paterna que preside a reprodução, não meramente biológica, mas sobretudo simbólica, da espécie humana através do qual se pode, enfim, estabelecer a conexão entre a legalidade subjetiva e a origem da lei da Cidade, pronunciada a partir da tradição romano-medieval, em nome do pai11. Interessante traçar aqui um paralelo com a realidade kafkiana. A figura paterna na vida e na obra de Kafka sempre representou uma instância de poder, talvez a maior de todas. Seu próprio pai era considerado, segundo o autor, uma espécie de tirano. Não se pode ignorar também a importância do pai em alguns textos de Kafka. Em O veredicto, é o pai quem condena à morte, por afogamento, o próprio filho. Também em A metamorfose o pai tem um papel importante. Neste texto é o pai quem vai atirar uma maçã – e esta se alojará no corpo de Gregor, já metamorfoseado em inseto –, que com o passar do tempo, vai conduzir seu filho à morte. A lei é um grande símbolo, válido somente na medida em que é praticado, não possuindo uma existência autônoma capaz de justificá-la fora das relações sociais. Ou seja, a lei não é um ente metafísico, mas empírico: só é válida enquanto difundida no interior da sociedade. E, por ser assim, não se pode deixar de perceber que o próprio Direito é uma grande farsa, pois não está escorado no tradicional brocardo jurídico que proclama ser justo dar a cada um o que é seu, mas, sim, num outro, que garante benefícios àqueles que tem mais condições de exercer poder nas relações intersubjetivas. 4 O TRIBUNAL KAFKIANO E OS SEUS JURISTAS Em O processo, com base nas conversas entre K. e o advogado, fica claro que o resultado final de um processo depende muito das influências externas à causa. Não é propriamente com fundamento na lei que se irá decidir pela culpa ou a inocência de um 11 PHILIPPI, 2001, p. 154-155. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 52 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 indivíduo. O que irá determinar o seu futuro, na verdade, são as relações em que está atuando. O leitor é levado a acreditar, em um primeiro momento, que são apenas as relações e as trocas de favores entre advogados, juízes, promotores públicos e outros funcionários do Poder Judiciário que são realmente decisivas para o resultado de qualquer processo. Nesse contexto, um indivíduo que constituísse um advogado influente e com boas relações dentro do Tribunal estaria praticamente garantindo um resultado conveniente ao seu caso. O advogado de Josef K. tem uma boa relação com os funcionários da Justiça, o que, certamente, segundo os comentários do Dr. Huld, ajudaria o cliente em seu processo. De acordo com o narrador kafkiano, Valor real só têm relações pessoais honradas, na verdade com funcionários mais graduados, o que naturalmente significa apenas funcionários mais graduados do escalão inferior. Só assim se pode influenciar a continuidade do processo, embora a princípio de modo imperceptível, mais tarde porém de maneira cada vez mais nítida. É claro que só poucos advogados conseguem isso, e neste caso a escolha feita por K. foi muito oportuna. Talvez um ou dois advogados mais poderiam se credenciar com relações semelhantes às do dr. Huld12. Nesse sentido, é relevante o modo como o Dr. Huld ficou sabendo do processo de K. Antes mesmo da visita do acusado e de seu tio ele já havia tido notícias do processo nos bastidores do Poder Judiciário: Eu sou advogado, circulo nos meios judiciais, ali se fala de diversos processos, e os que chamam mais a atenção ficam guardados na memória, sobretudo quando dizem respeito ao sobrinho de um amigo. Não há nada de estranho nisso13. Com o desenrolar da narrativa, o que se percebe, no entanto, é que não são apenas as relações de poder advindas do Poder Judiciário que auxiliam na obtenção do resultado de um processo judicial. Relações mais simples, que envolvem indivíduos anônimos, também podem ser decisivas para o sucesso ou o fracasso de um processado. Assim, é significativo que o Tribunal se localize no interior de casas populares. Em O processo, a convivência, as trocas de favores, a prestação de serviços ou as relações sexuais entre os chamados “homens do Direito” e as pessoas comuns se dá, a qualquer 12 13 KAFKA, 2003, p. 144-145. Id., p. 129. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 53 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 hora do dia, quase que naturalmente, a ponto de se poder afirmar que não há, no romance de Kafka, uma perfeita distinção entre o dia-a-dia do Poder Judiciário e o quotidiano das pessoas comuns. Ao contrário do que se poderia pensar, a atuação do Poder Judiciário não obsta as atividades das pessoas comuns, na mesma medida em que os afazeres das pessoas comuns não atrapalham as tarefas realizadas pelo Poder Judiciário. Aliás, o que ocorre é exatamente o contrário, pois os representantes do Tribunal e as pessoas comuns influenciam-se mutuamente a todo o momento. Mais ainda: os dois âmbitos realizam atividades complementares. Isso pode ser traduzido da seguinte maneira: as relações de poder existentes entre os representantes dos dois meios proporcionam a condução dos processos judiciais dos indivíduos. São os meios judiciais, em conjunto com os meios sociais, que, em última análise, difundem, por todos os cantos, a culpa do homem processado. Assim, afigura-se importante que um acusado possua não somente um advogado influente e com boas relações no Tribunal, como também pessoas anônimas e oficialmente desvinculadas ao Poder Judiciário simpatizantes de sua causa. Já na sua primeira ida à casa do advogado, K. conhece Leni, a empregada. Por sua causa, ele abandona a conversa que vinha mantendo com o tio, o advogado e um alto funcionário do Poder Judiciário – o Chefe de Cartório –, sob a alegação de ir ver o que tinha acontecido na sala, após ouvir um ruído: Mal tinha entrado na ante-sala e procurava se orientar no escuro, quando, sobre a mão com que ainda segurava a porta, se colocou uma pequena mão, muito menor que a de K., e fechou silenciosamente a porta. Era a enfermeira, que havia esperado ali. – Não aconteceu nada – cochichou ela –, só atirei um prato contra a parede para fazê-lo sair. No seu embaraço, K. disse: – Também pensei na senhora14. A atuação de Leni no processo de K. é indireta, mas relevante. Foi ela quem explicou para o K. o significado de um dos quadros do gabinete do advogado. Era o retrato de um Juiz: 14 Id., p. 132-133. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 54 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Representava um homem com uma toga de juiz, estava sentado numa cadeira alta em forma de trono, cujos dourados se destacavam em vários pontos do quadro. O incomum era que esse juiz não estava sentado com calma e dignidade, mas premia com firmeza o braço esquerdo no espaldar e no braço da cadeira, mantendo, porém, o direito completamente livre, e agarrava o braço da cadeira só com a mão, como se no instante seguinte quisesse saltar, com uma virada impetuosa e talvez indignada, para dizer algo decisivo, ou então para proferir a sentença. Sem dúvida podia-se imaginar o réu ao pé da escada, cujos degraus mais altos, cobertos por um tapete amarelo, ainda podiam ser vistos no quadro15. O Juiz, sem dúvida, é tido como uma das figuras poderosas de O processo, pois é ele quem possui, na teoria, a prerrogativa de comandar e decidir os processos judiciais. Entretanto, no romance, existem diversas espécies de juízes, que são discerníveis de acordo com o seu nível. Josef. K. já havia tido a oportunidade de conhecer e confrontar um Juiz de instrução – provavelmente um daqueles de nível mais baixo do Tribunal. O Juiz que contemplava no quadro não parecia ter este baixo nível. Parecia ser titular de um alto posto do Tribunal. Mas Leni logo adverte K. sobre a realidade da situação: – Eu o conheço – disse Leni erguendo também os olhos para o quadro. – Ele vem aqui freqüentemente. O quadro é da sua juventude, mas nunca poderia ter sido nem mesmo semelhante ao retrato, pois tem uma estatura minúscula. Por isso se fez encompridar, pois é insensato e vaidoso, como todos aqui [...]. – Ele é um juiz de instrução – disse ela, agarrando a mão com que ele a mantinha enlaçada e brincando com os seus dedos. – Outra vez um juiz de instrução – disse K. decepcionado. – Os altos funcionários se escondem. Ele, porém, está sentado numa poltronatrono. – É tudo invenção – disse Leni, o rosto inclinado sobre a mão de K. – Na realidade, está sentado em cima de uma cadeira de cozinha, sobre a qual foi estendida uma velha manta de cavalo16. A informação de Leni é muito relevante. Ora, o Juiz do quadro, apesar de parecer um Juiz de nível alto, é apenas um Juiz comum, uma pessoa que se fez passar por um Juiz Superior na hora da pintura de seu retrato. Enquanto funcionário do Poder Judiciário, exerce poder, mas apenas na medida de seu ofício, não podendo ser 15 16 Id., p. 134. Id., p. 134-135. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 55 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 considerado, em nenhuma hipótese, um alto Magistrado. Dessa forma, o homem de estatura minúscula, sentado sobre a manta de cavalo, não é uma instância de poder tal como o Pai, a Lei, Deus ou um Juiz superior. Como visto anteriormente, todas essas figuras são idealizações, que são configuradas e constituídas a partir do exercício de poder disseminado na sociedade. Para dizer mais claramente: nenhuma dessas figuras existe fora das relações de poder. Assim, poder-se-ia, no máximo, obter-se a representação de um Juiz superior por meio de sujeitos existentes – como, por exemplo, um Juiz de instrução. O fato de o Juiz superior ser uma idealização e, conseqüentemente, de não existir por si só, não impede que a crença em sua existência real seja propagada por meio de representações como esta que K. contemplava na casa de seu advogado. São imagens, símbolos, representações e quadros parecidos com este que mantêm acesa a crença no Tribunal. Ainda que nenhum processado jamais tenha visto um Juiz superior, dificilmente contesta sua existência, pois estes quadros estão espalhados por todos os cantos: em casas de advogados, em repartições públicas, nos Tribunais, nas casas populares e no imaginário da sociedade. A imagem do Juiz superior imponentemente sentado em sua distinta cadeira, combinada com as diversas histórias que se contam nos bastidores do Poder Judiciário sobre figuras como ele, faz com que algo inventado, ou melhor, praticado, ganhe materialidade, prova de existência. Nesse contexto, a crença na figura é muito mais importante do que sua existência física. A conversa que K. tem com Leni é bastante esclarecedora, não apenas para o leitor, mas também para o próprio K. É a enfermeira do advogado quem irá dar-lhe importantes conselhos sobre como agir em favor de sua causa, além de fornecer uma boa idéia do funcionamento do Tribunal: [...] Por favor, não pergunte nomes, mas corrija os seus erros, não seja mais tão inflexível, contra esse tribunal não é possível se defender, é preciso fazer uma confissão. Na próxima oportunidade, faça essa confissão. Só aí existe a possibilidade de escapar – só aí. No entanto, KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 56 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 mesmo isso não é possível sem ajuda externa, mas não precisa se angustiar por causa dessa ajuda, eu mesma vou providenciá-la17. A explicação de Leni é decisiva. Ela exalta a necessidade de se buscar ajudas externas ao ambiente jurídico na resolução de um processo judicial. A moça dá a entender, inclusive, que as causas jurídicas são conduzidas e resolvidas por cidadãos anônimos. A conclusão parece lógica, uma vez que os Juízes de instrução apenas realizam inquéritos e os Juízes superiores são nada mais do que representações vazias presentes em obras de arte e no imaginário da sociedade. Como já visto, a própria localização dos Tribunais no interior de casas populares e humildes é condição sine qua non para o funcionamento da Justiça. Aliás, em O processo, apesar da primeira impressão ser a de que a sede do Poder Judiciário localiza-se no prédio onde se deu a primeira audiência de Josef K., a Justiça está espalhada, na verdade, por todos os cantos. Ela possui diversas ramificações; utiliza-se de todos os espaços que encontra disponíveis; faz-se presente nos locais mais improváveis. Assim, não impressiona que os guardas acusados de corrupção por K., em seu primeiro inquérito, sejam punidos com chicotadas, por um carrasco, em um dos quartos da instituição bancária onde o acusado trabalha. No romance kafkiano, a Justiça se faz presente, até mesmo, nos quartinhos abandonados: Quando, numa das noites seguintes, K. passava pelo corredor que separava seu escritório da escada principal – dessa vez era praticamente o último a ir para casa, apenas na expedição ainda trabalhavam dois contínuos no pequeno campo de luz de uma lâmpada – ouviu gemidos atrás de uma porta onde sempre supusera existir somente um quarto de despejo, sem nunca tê-lo visto pessoalmente [...]. No cubículo [...] estavam três homens curvados sob o teto baixo. Uma vela fixada sobre uma estante os iluminava. O que estão fazendo aqui? – perguntou K. atropelando-se de excitação, mas não em voz alta. Um dos homens, que manifestamente dominava os outros e era o primeiro a atrair o olhar, estava metido numa espécie de roupa escura de couro, que deixava o pescoço nu até o peito e os braços inteiramente à mostra. Ele não respondeu. Mas os outros dois exclamaram: 17 KAFKA, 2003, p. 135. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 57 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Senhor, devemos ser espancados porque se queixou de nós para o juiz de instrução18. Luiz Costa Lima chama a atenção para a atuação do Tribunal. O autor percebeu que a inexistência material do Tribunal, ou de sua localização fixa, não significa a sua inexistência absoluta. Muito pelo contrário, não limitado a uma construção ou a uma sede apenas, o Tribunal existe em uma proporção muito maior. O autor chega a afirmar que a Justiça de O processo é onipresente: O passeio que Joseph. K. empreende pelo interior do tribunal faz-lhe ver que suas dependências se confundem e se misturam com as residências mais modestas de seus serviçais e que sua força de castigo se estende até mesmo ao quarto de entulhos do Banco. Invisível, de aparência desleixada e vil, a “justiça” é onipresente. [...] a invisibilidade do tribunal está correlacionada ao fato de a sociedade civil, em vez de se lhe opor, mostra-se impregnada de seus agentes, informantes e delatores, infiltrada por sua lógica diretora19. Assim, chega-se à conclusão de que os cidadãos que estão ao redor de K. são todos “funcionários”, que trabalham zelosos, a fim de julgar o indivíduo processado. Josef K. parece ser o único a não perceber isso: Apesar disso, Joseph K. não se alarma pois continua a pensar que a lógica policial não abrangia mais que os funcionários da justiça e que na sociedade, ao invés, continuava a vigorar a lógica do cidadão. A resistência do acusado deriva de sua incapacidade de admitir a interpenetração absoluta das duas esferas, a jurídico-policial e a civil. A lógica liberal do cidadão ignorava a ameaça da lei rizomática, estendida, e não só supervisora, sobre todos os recantos da sociedade. K. e seu leitor, respectivamente, aprenderam e crêem que, no Estado de direito, a lei não poderia se contrapor aos direitos da sociedade. No entanto, ao contrário do que prega o Rechtstaat, os procedimentos a que o processo parece obedecer não são públicos mas sigilosos e o tribunal é invisível20. O processo judicial que é apresentado na obra de Kafka está longe de ser minimamente parecido com o processo judicial previsto nos códigos de processo penal ou civil. O próprio “devido processo legal” kafkiano, embora existente, é apenas 18 19 20 Id., p. 105-106. LIMA, 1993, p. 102-103. Id., p. 103. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 58 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 protocolar; não visa, aparentemente nem em seu discurso oficial, a dar quaisquer garantias ao processado; não é, portanto, mais que mero cumprimento de burocracia. Certa mesmo é a conclusão do pintor Titorelli – servidor “informal” da Justiça que simpatiza com o caso de K. –, após ser importunado pelos gritos das ouriçadas meninas que escutavam do outro lado da porta a sua reunião com o Procurador Josef K.: – Essas meninas também fazem parte do tribunal. Como? – perguntou K., desviando a cabeça de lado e fitando o pintor. Este, porém, sentou-se outra vez em sua cadeira e disse, em parte brincando, em parte como explicação: Tudo pertence ao tribunal21. A conclusão parece lógica, quase desnecessária de se pronunciar: em Kafka, tudo pertence ao Tribunal porque tudo é o Tribunal. Todos são funcionários ou servidores da Justiça, porque todos influenciam em todas as decisões judiciais proferidas. No mundo kafkiano não é preciso diploma de curso superior para ser jurista, basta participar das relações de poder disseminadas na sociedade e que configuram e constituem a própria idéia de Lei e de Direito. 5 CONCLUSÃO A afirmação de que Kafka escreveu sobre Deus, a Família, o Pai, o Patrão, a Burocracia, o Direito ou a Lei, é imprecisa. Mais correto seria dizer que ele escreveu sobre isso tudo, mas enquanto símbolos do poder, enquanto instituições que são configuradas e constituídas por meio das estruturas das relações de poder que difundem a sua prática no interior da sociedade. Dito de outro modo, é plausível sustentar que Kafka escreveu predominantemente sobre representações do poder que não existem por si próprias, que não possuem autonomia, que, em suma, não existem. A Lei de O processo, embora não seja conhecida, é tratada como obscena. Isto porque se escora nas relações de poder, que as constitui e configura. Pouco importa o 21 KAFKA, 2003, p. 183. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 59 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 seu conteúdo, o que é relevante, neste contexto, é o modo como ela se manifesta, se apresenta a todos, se mostra eficaz. A condenação de Josef. K. é desejada e manipulada por todos. Aqueles que estão ao seu redor classificam suas atitudes como típicas de um sujeito culpado. Grande exemplo disso são as meninas que observam, do lado de fora do ateliê, a reunião entre K. e Titorelli. Elas parecem saber o motivo pelo qual K. está ali, e esse motivo não é nada honroso. Do mesmo modo, as outras pessoas percebem, nas atitudes de K., uma espécie de confissão. De boca em boca, de comentário em comentário, K. é considerado culpado por participar dessas relações de poder. Não é um juiz que julga K., são as próprias pessoas que estão ao seu redor. São os olhares dos três funcionários do banco, são as carícias da empregada do advogado, são as risadas das meninas que constroem a imagem de culpado que K. carrega. Assim, percebe-se que o cidadão anônimo, justamente quem mais reclama da atuação da Lei, é que a configura, torna-a eficaz. Da mesma maneira que o pintor Titorelli em O processo faz todos acreditarem que o Direito é composto por figuras distintas, altas e bonitas, os meios sociais, ao praticarem a Lei, dão a impressão de que ela é autônoma, sagrada, imparcial e justa. Neste contexto, o Direito nada mais seria do que a ciência que estuda e aplica as Leis. Entretanto, talvez a conclusão mais significativa a que se pode chegar, com base neste estudo a partir da obra de Kafka, é a de que o Direito é, mais do que qualquer outra coisa, o grande agenciador do poder na sociedade. REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. No castelo da história só há processos e metamorfoses, sem veredicto final. In: PASSETTI, Edson (Org.). Kafka, Foucault: sem medos. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004. BENNETT, Jane. Deceptive comfort: the power of Kafka’s stories. Political theory, n. 1, v. 19, Feb. 1991. BROD, Max. Kafka. Trad. de Carlos F. Grieben. Madrid: Alianza, 1974. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura menor. Trad. de Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 1977. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 60 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Trad. de Raquel Ramalhete. 27. ed. Petrópolis: Vozes, 2003. KAFKA, Franz. Diário íntimo. Trad. de Torrieri Guimarães. São Paulo: Livraria Exposição do Livro, 1964. KAFKA, Franz. Na colônia penal. In: KAFKA, Franz. O veredicto; Na colônia penal. Trad. de Modesto Carone. São Paulo: Comp. das Letras, 1998. KAFKA, Franz. O castelo. Trad. de Modesto Carone. São Paulo: Comp. das Letras, 2000. KAFKA, Franz. O processo. Trad. de Modesto Carone. 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Separam-se da sociedade os doentes até que na sua reclusão se curem, independente do auxílio externo, mantendo-os alimentados e abandonados a própria sorte. Na linha do que se denomina Direito na Literatura o presente trabalho tem por objetivo fazer um paralelo entre o remédio político aplicado pelo Governo à cegueira na obra de Saramago e o remédio político-jurídico aplicado pelo Estado às pessoas excluídas do mercado de consumo no sistema capitalista globalizado, qual seja, o encarceramento da pobreza. Para tanto, faz-se a análise da obra literária destacada à luz dos estudos sobre o desenvolvimento do sistema carcerário moderno e sua real motivação bem como das visões críticas da função da pena de prisão. Assim a pesquisa é centralizada na busca de explicações para manutenção de um sistema socialmente contraproducente e desumanizador que representa o cárcere como resposta estatal válida, legítima e jurisdicionalizada no Estado de Direito. PALAVRAS-CHAVE: Direito e Literatura; José Saramago; encarceramento em massa; processo de globalização. 1 INTRODUÇÃO A descrição de José Saramago sobre a reação governamental em um país no qual a população é atingida por uma doença misteriosa que se propaga descontroladamente 1 Mestrando em Direito (PUC/PR). KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 62 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 em “Ensaio sobre a Cegueira” leva a reflexão sobre as políticas públicas adotadas em momentos de crise social. Os efeitos danosos decorrentes do encarceramento a que as pessoas são submetidas levantam indagações sobre o método punitivo da prisão na realidade social contemporânea. No presente trabalho, busca-se desenvolver a relação entre a obra literária de Saramago e a política criminal de encarceramento em massa adotada globalmente nos países de sistema econômico capitalista, nos moldes do que se entende por Direito e Literatura. Alguns problemas são propostos para o desenvolvimento do trabalho. Em que medida o sistema punitivo atual pode ser utilizado como instrumento de neutralização de doentes sociais? Quem seriam os doentes sociais e como se transmitiria esta doença? Qual seria a relação entre cárcere e problemas sociais? É possível traçar a hipótese de que, assim como na obra de Saramago, o cárcere é utilizado pelos Governos para conter problemas sociais e que a utilização deste meio de controle pode gerar efeitos contraproducentes e negativos como aqueles descritos na obra literária. Para tanto, com base na pesquisa bibliográfica realizada, será desenvolvida uma reflexão com o intuito de identificar a presença de pessoas socialmente doentes passíveis de serem neutralizadas diante do sistema econômico capitalista global, a relação entre estas pessoas doentes e o sistema de justiça criminal, especialmente na figura do cárcere, bem como apontar consequências desta política estatal de tratamento de problemas sociais. 2 O ENCARCERAMENTO NA OBRA DE JOSÉ SARAMAGO – ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA José Saramago ficou marcado na literatura mundial pelas características peculiares de sua forma de escrever por meio de longos parágrafos, pouca pontuação, continuidade de diálogos, mas especialmente pela forma como tratou de problemas sociais e da reação humana a esses problemas com profundidade reflexiva e clareza de pensamento. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 63 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Na obra literária “Ensaio sobre a Cegueira” Saramago narra a reação de um governo quando seu país se vê assolado por uma estranha e inexplicada doença que se alastra por seus cidadãos a medida em que as pessoas infectadas tem contato físico com pessoas ainda saudáveis. As pessoas acometidas por esta doença apresentam um único sintoma, são acometidas por uma cegueira, porém não como a característica perda de visão dos deficientes visuais que nada enxergam senão a escuridão, mas uma cegueira branca, os atingidos por esta cegueira enxergam um clarão e nada mais. Ao se deparar com esta doença que se alastra rapidamente entre seus cidadãos o governo se vê obrigado a agir, convocam-se reuniões, os mandatórios detentores do poder estatal são chamados a pensar e se estabelece uma medida emergencial, decidese que as pessoas infectadas pela cegueira branca serão levadas a um estabelecimento público desativado onde serão colocadas em quarentena até que se obtenham mais informações e conhecimentos sobre o mal que carregam.“Queria dizer que tanto poderão ser quarenta dias, quarenta semanas, ou quarenta meses, ou quarenta anos, o que é preciso é que não saiam de lá.” Diante desta realidade estabelecida Saramago desenvolve ao longo de seu texto as reações das pessoas envolvidas naquela situação, tanto dos governantes como dos cidadãos. Diante do desconhecido e das pessoas que carregam este problema à sociedade o governo não se acanha em tomar medidas cada vez mais enérgicas, aumentar o número de pessoas encarceradas e aumentar o rigor do regime de encarceramento na medida em que pioram as condições do cárcere: o ministério da Saúde tinha avisado o ministério do Exército, Vamos despachar quatro camionetas deles, E isso dá quantos, Uns duzentos, Onde é que se vai meter toda essa gente, […] O caso tem remédio, ocupam-se as camaratas todas, Sendo assim os contaminados vão ficar em contato directo com os cegos, O mais provável é que, mais tarde ou mais cedo, venham a cegar também. Os cidadãos ainda saudáveis aceitam a política pública do encarceramento dos doentes, mesmo porque focados em o seu individualismo não se preocupam em pensar ou conhecer o que se passa para dentro das grades. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 64 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 O comportamento das pessoas encarceradas é narrado com detalhes assustadores, a reação das pessoas ao tratamento estatal que acaba por excluí-las do meio social, separá-las de suas famílias e de todos os laços que possuem no exterior do cárcere, bem como sua adaptação as rígidas e degradantes condições a que foram submetidas pelo Estado para retirar o problema que representam do convívio social. Suas atitudes são cada vez menos civilizadas, amoldam sua rotina e seu comportamento aos limites materiais e morais do cárcere, esquecem dos parâmetros de conduta social a fim de se enquadrarem a sua nova realidade. A realidade descrita do avanço da doença de origem e cura ainda desconhecidas e o modelo de reação escolhido pelas autoridades públicas levam a uma situação de caos onde se perde qualquer controle social, o carcere é abandonado e as pessoas ali recolhidas são lançadas em um mundo desconhecido abandonadas a sua própria sorte. Os cidadãos saem da prisão ainda doentes diante de um mundo diferente daquele que conheciam quando foram presos, sem governo ou qualquer pessoa que lhes possa auxiliar: Diz-se a um cego, Estás livre, abre-se-lhe a porta que o separava do mundo, Vai, estás livre, tornamos a dizer-lhe, e ele não vai, ficou ali parado no meio da rua, ele e os outros estão assustados, não sabem para onde ir, é que não há comparação entre viver num labirinto racional, como é por definição, um manicómio, e aventurar-se, sem mão de guia nem trela de cão, no labirinto dementado da cidade, onde a memória para nada servirá, pois apenas será capaz de mostrar a imagem dos lugares e não os caminhos para lá chegar. Ao final, na mesma ordem em que foram infectadas as pessoas são curadas, voltam a seus olhos voltam a enxergar, porém o que vem não é mais o que viam. 2 OS DOENTES DA SOCIEDADE DE MERCADO GLOBAL Para se traçar as considerações objeto deste estudo, com o paralelo entre os doentes excluídos na sociedade descrita por Saramago e os doentes excluídos na sociedade contemporânea é preciso descrever o processo de criação da exclusão na sociedade capitalista. Assim, fazendo-se uma breve leitura das origens do sistema capitalista se poderá chegar a realidade atual da sociedade de mercado global. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 65 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Ao descrever as origens do modelo econômico capitalista, Marx destaca três pontos fundamentais para a formação do que denominou processo de acumulação primária, ou seja, a acumulação inicial de capital que possibilitou o surgimento do sistema capitalista. Segundo Marx, para que se pudesse desenvolver a acumulação primária de capitais foram necessários três elementos historicamente identificáveis na Europa, especialmente na Inglaterra, quais sejam, a expropriação das terras, a formação de uma massa de mão de obra excedente e de um mercado de consumidores. “E só a destruição da indústria doméstica rural pode proporcionar ao mercado interno de um país a extensão e a solidez exigidas pelo modo capitalista de produção.” O desenvolvimento da propriedade privada das terras nos moldes do que se tem hoje, o fim das terras de cultivo comum e a expulsão dos camponeses do campo, o que se denominou de cercamentos, foram etapas que possibilitaram a formação de uma masa de desocupados nas cidades, bem como a dependência da atividade produtiva dos campos pois aqueles que antes produziam para sua própria subsistência se viram obrigados a vender a única coisa que lhes restava para adquirir sua subsistência, ou seja, sua força de trabalho. Desta forma, se fecha um ciclo onde o capital pode usurpar a força de trabalho nas condições que melhor lhe interessar e ainda dar vasão a sua produção. Assim, o que se observa é a formação de uma massa de pessoas excluídas socialmente. Ao sistema capitalista é indispensável uma força reserva de trabalho, importante para regulação do preço da mão de obra e para fragilizar a classe proletária. Estas pessoas excluídas do mercado de trabalho, expulsas dos campos e não adaptadas aos meios de produção capitalistas, pode ser identificada como a primeira massa socialmente excluída, os primeiros doentes da sociedade capitalista. Conforme será exposto adiante estas pessoas não passaram impunes ao sistema penal. Após as sucessivas crises do modelo de economia capitalista (crise do modelo liberal, crise do modelo de bem estar social) e a imposição das políticas econômicas neoliberais pode se identificar um novo movimento social de exclusão, especialmente ligado com o processo de globalização. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 66 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Desde a década de 80 do século passado o mundo passou por um processo de integração multifacetado que se intensificou nos últimos anos com os avanços da tecnologia de informação e transmissão de dados. A sociedade moderna é marcada por uma realidade onde as fronteiras e as distâncias foram vencidas pelo processo de globalização, há uma universalização mundial da economia, cultura e política, na qual há a imposição de uma cultura dominante em detrimento das culturas locais numa realidade complexa de interligação na qual acontecimentos em uma localidade específica podem gerar reflexos em todas as partes do planeta. “Uma revisão dos estudos sobre os processos de globalização mostra-nos que estamos perante um fenómeno multifacetado com dimensões económicas, sociais, políticas, culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo complexo.” Diversos efeitos podem ser identificados a partir do processo de globalização, o trânsito mundial de pessoas e mercadorias, a extinção das culturas locais, a interrelação dos sistemas financeiros, a universalização das políticas criminais, tal como acontece no combate estatal ao tráfico de drogas e a lavagem de capitais, mas especialmente pode se destacar o aumento da desigualdade econômica, tanto entre os países ricos e pobres, como entre as camadas sociais. Conforme destaca Boaventura Santos, o poder econômico na sociedade globalizada esta concentrado em uma nova categoria de agentes internacionais, as empresas multinacionais. “Uma das transformações mais dramáticas produzidas pela globalização económica neoliberal reside na enorme concentração de poder económico por parte das empresas multinacionais: das 100 maiores economias do mundo, 47 são empresas multinacionais; 70 % do comércio mundial é controlado por 500 empresas multinacionais.” Esta nova realidade social e econômica refletirá em uma reformulada política capitalista de exclusão social e uma forma alternativa de tratamento aos problemas da desigualdade social. O sistema econômico de mercado global fará uma clara opção em incluir apenas o que pode ser financeiramente valorado. A partir do momento em que o controle da economia global passa das mão dos governos para as entidades privadas KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 67 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 representadas pelas empresas multinacionais, cujos interesses e objetivos são principalmente, ou exclusivamente, o lucro, as políticas públicas nas áreas econômicas e sociais passam a seguir os mesmos moldes, deixa-se de lado o interesse na promoção social do bem estar dos cidadão para se pensar em formas e modelos sociais de potencialização de ganhos financeiros. “Estamos en presencia de una económia global caracterizada por ser fuertemente incluyente y excluyente a la vez. Incluyente de todo aquello capaz crear valor y excluyente de todo lo que no está valorado.” Neste modelo social global se desenvolve uma nova categoria de massa de pessoas oprimidas pelo capital e excluídas socialmente. Boaventura Santos destaca dois grupos de pessoas dominadas no processo de globalização os quais teriam assumido o lugar da classe trabalhadora oprimida no modelo de capitalismo liberal destacada no universalismo de Marx. De um lado pode se destacar as pessoas exploradas pelo capitalismo global, composta por setores influentes das classes trabalhadoras (empregados de multinacionais em diversos países) que embora dominados pelo capital globalizado estão inseridos no sistema social e econômico da economia de mercado global e por isso adaptados, conformados e submissos a realidade. De outro lado estão as populações oprimidas pelo capitalismo global, composta por significativo número de pessoas excluídas deste mercado global localizados ao redor do mundo, tanto em países periféricos como em países centrais. Segundo Boaventura Santos “vastas populações do mundo que nem sequer têm grilhetas, ou seja, que não são suficientemente úteis ou aptas para serem directamente exploradas pelo capital e a quem, consequentemente, a eventual ocorrência de uma tal soaria como libertação.” Esta nova realidade econômica, política e social nas sociedades de mercado global controladas pelos interesses privados transnacionais de maximização de lucros independente das consequências danosas deles advindos irá se refletir em uma nova forma de tratamento estatal das pessoas fragilizadas. Este modelo não só aumenta o número de pessoas em estado de fragilidade social e piora suas condições de vida, como destorce a ação estatal em favor destes grupos de pessoas. Pode se perceber um abandono nas políticas públicas de auxílio social, a completa destruição do modelo de KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 68 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 bem estar social e sua substituição por modelos menos custosos, independentemente dos resultados sociais alcançados. a cristalização de um regime político liberal-paternalista – que pratica o laissez-faire et laissez-passer em relação ao topo da estrutura de classes, no nível dos mecanismos de produção das desigualdades, e o paternalismo punitivo na base, no nível de suas implicações sociais e espaciais – exige que a definição tradicional de “bem estar social” seja abandonada, como o produto de um senso comum político e científico ultrapassado pela realidade histórica. Ela requer que se adote uma abordagem expansiva, que abrace de uma só vez o conjunto das ações por meio das quais o Estado visa a modelar, classificar e controlar as populações julgadas desviantes, dependentes e perigosas, assentadas em seu território Esta realidade de aumento das desigualdades e de descompromisso social com as políticas públicas a estas pessoas reflete-se na vivencia social e no imaginário coletivo sobre a segurança pública demandando reações nem sempre compassadas com a realidade e as efetivas necessidades sociais. Em um momento social de aumento aparente de insegurança, diminuição de harmonia social frente ao preconceito sobre as pessoas mais pobres, eleitas como as responsáveis pela insegurança que bate as portas das classes mais abastadas, abre-se espaço ao desenvolvimento de políticas simbólicas voltadas ao fortalecimento do estado de polícia em detrimento do estado de direito. Os níveis de segurança urbana tem baixado consideravelmente nas sociedades que adotam o modelo do fundamentalismo de mercado, porque polariza riqueza, produz um crescente número de desempregados e marginalizados, deteriora os serviços sociais e públicos, difunde valores culturais egoístas, divulga a tecnologia lesiva, gera vivências de exclusão que impedem qualquer projeto existencial razoável, aprofunda os antagonismos sociais e, em suma potencializa toda conflituosidade social. Diante desta doença da era da globalização, que se propaga descontroladamente pela sociedade trazendo riscos as pessoas sãs perfeitamente integradas ao mercado global o Estado é chamado a agir nos moldes que descreve Saramago: O governo lamenta ter sido forçado a exercer energicamente o que considera ser seu direito e seu dever, proteger por todos os meios as populações na crise que estamos a atravessar, quando parece verificarse algo de semelhante a um surto epidémico de cegueira, provisoriamente designado por mal branco, e desejaria poder contar com o civismo e a colaboração de todos os cidadãos para estancar a KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 69 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 propagação do contágio, supondo que de um contágio se trata, supondo que não estaremos apenas perante uma série de coincidências por enquanto inexplicáveis. Assim, o Estado é chamado a tomar providências e os cidadãos compelidos a aceitá-las como válidas e legítimas, mesmo que produzidas na contramão dos resultados das pesquisas científicas desenvolvidas nas áreas do Direito Penal, da Sociologia e da Criminologia. A resposta estatal à doença dos excluídos do mercado global é aplicar antigos remédios a novas doenças num circulo vicioso contraproducente que funciona desde a escolha do sistema punitivo moderno. O Estado da era globalizada recorre ao velho remédio do cárcere para curar seus doentes, ou melhor dizendo, proteger as pessoas saudáveis das pessoas doentes que devem ser neutralizadas. 3 POLÍTICA DE CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA UMA DESTINAÇÃO AOS EXCLUÍDOS DO MERCADO GLOBAL Diante desta realidade social de exclusão inerente ao modelo econômico capitalista cabe ao Estado resolver o problema. Como pode se observar na análise dos ciclos econômicos da era capitalista os benefícios são sempre reservados aos capitalistas enquanto os prejuízos, de que ordem forem, sociais, econômicos, ambientais, são democraticamente divididos entre a população por meio da atuação remediadora do Estado. Assim, o problema da exclusão social na sociedade capitalista é de competência estatal conforme apregoam as constituições modernas. Há diversas formas em que pode se desenvolver a atividade estatal no âmbito social a fim de erradicar pobreza, diminuir a desigualdade social, bem como promover a inclusão ao mercado de trabalho, por certo que o Direito Penal e o encarceramento não estão entre elas. Além do princípio basilar da intervenção mínima do direito penal e da utilização do direito penal como última razão do Estado, os efeitos reais do cárcere sobre a pessoa do preso deslegitimam sua utilização como forma de erradicação de problemas sociais. Contudo, conforme ensina Juarez Cirino, embora os efeitos reais do cárcere sejam socialmente contraproducentes, existem outros efeitos que interessam ao KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 70 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 sistema de produção capitalista: “os métodos de “prevenção” dos crimes e de “tratamento” do delinquente estigmatizam, danificam e incapacitam a população criminalizada para o exercício da cidadania, mas o temor da prisão controla a força de trabalho ativa, garantindo a produção material e a reprodução da ordem social.” A história do cárcere como sistema punitivo moderno demonstra que seu desenvolvimento está atrelado ao método de produção capitalista. É sempre necessário destacar que, ao contrário do que se pensa no senso comum, a prisão não foi a forma padrão de punição ao longo da história humana. Até a idade média a prisão era muito mais um meio cautelar e processual de manter o réu a disposição para ser punido do que a forma de punição em si. Esta modelo de prisão como forma padrão de punição está ligado ao desenvolvimento da forma de produção capitalista. A escolha deste modelo deve-se ao fato de que o cárcere enquanto método punitivo apresentava uma dupla função em favor do novo sistema econômico, regular o preço da mão de obra ao obrigar as pessoas a trabalharem pelos salários oferecidos, na medida em que se submeter ao regime fabril seria melhor que a custódia na casa de trabalho forçado aplicada a mendigos e vagabundos e, por outro lado, as prisões preparavam a massa proletária formada por ex-camposes e artesão para o sistema de trabalho nas fábricas. É na Holanda da primeira metade do século XVII que a nova instituição da casa de trabalho atinge, no período das origens do capitalismo, a sua forma mais desenvolvida. A criação desta nova e original modalidade de segregação punitiva responde mais a uma exigência conexa ao desenvolvimento geral da sociedade capitalista do que à genialidade individual de algum reformador - como frequentemente uma história jurídica entendida como história das ideias ou “história do espírito” tenta convencer-nos. Assim, o direito penal moderno, e especialmente a instituição do cárcere como meio punitivo típico da sociedade capitalista se desenvolve com a clara função de reproduzir as formas de dominação e exclusão social inerentes a forma de produção. Segundo Cirino, os objetivos reais do aparelho penal são uma reprodução da criminalidade, limitada a criminalidade da classe inferiorizada, excluindo condutas típicas de classes dominantes e uma reprodução das relações sociais. O aparelho de justiça criminal funciona de forma seletiva contra as pessoas excluídas socialmente, KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 71 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 contra os doentes da sociedade, sendo que ao longo do período de economia liberal foi marcado pela repressão da classe trabalhadora. Como destacam Melossi e Pavarini: “A instituição carcerária permanece assim como uma aquisição definitiva e cada vez mais dominante na prática punitiva burguesa, muito embora a sua função – ao menos na Europa e até o momento em que esta situação perdurar, i. e., depois da metade do século XIX- adquira um tom cada vez mais terrorista e de mero controle social.” A análise do sistema penal hodierno não fica longe de sua revisão histórica. Como destacado acima, a sociedade contemporânea caracterizada pela economia de mercado global formou uma nova classe de oprimidos pelo capitalismo, especialmente aquela destacada pela exclusão social em razão da sua inutilidade para o sistema, são pessoas que não interessam nem como mão de obra e, por consequência, excluídas do mercado de consumo, são os cegos da sociedade. A política pública aplicada a estas pessoas é penal, sua destinação social é o cárcere. O aparelho de justiça criminal moderno é marcado por alguns fatores peculiares, especialmente a internacionalização das políticas criminais e sua característica de encarceramento em massa. Grande propulsor desta realidade do encarceramento em massa é a Guerra às Drogas declarada pelo Governo Regan na década de 80 do século passado. Com o pretexto de combater o inimigo externo que assolava as famílias de bem norte-americanas o Governo Americano intensificou sua presença militar em países subdesenvolvidos como os sul-americanos e africanos bem como intensificou as políticas de repressão interna contra imigrantes e negros. O processo de globalização afetou a forma de produção capitalista, a realidade social e também o aparelho de justiça criminal. Como destacado acima, o processo de globalização e o aumento das desigualdades sociais faz surgir uma demanda por controle social e estabilização da violência, impulsionando a opinião pública e a tomada de decisões dos governantes. O cárcere aparece nas políticas públicas contemporâneas como a forma central de controle das massas excluídas do mercado global, operada por meio da neutralização dos cegos, dos outros. Zaffaroni aborda com precisão esta nova perspectiva do sistema penal: KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 72 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 O sistema penal se superdimensionou até desempenhar um papel importante na demanda de serviços, que contribui para reduzir o índice de desemprego. Os operadores políticos se curvam à tendência sem variantes nem matizes partidárias e disputam clientela eleitoral baseando-se em promessas de repressão maior. O crescimento do sistema penal provocou o crescimento de suas características estruturais, entre elas a seletividade racista. Tem-se advertido sobre o perigo de que redunde em um modelo mundial. As populações excluídas dos mercados de consumo, das facilidades e das melhorias da economia global na era da informação, são tratadas pelo Estado como verdadeiros estorvos sociais, a eles não se aplicam medidas de bem estar previdenciárias, educacionais ou assistenciais mas a eles é reservada a face mais opressora do Estado, a resposta penal. Wacquant destaca esta realidade ao explicar como os Estados Unidos da América substituíram as políticas públicas de assistência pela política penal, economicamente mais viável, embora socialmente mais gravosa: a polícia, os tribunais e a prisão, são, se examinados de perto, a face sombria e severa que o Leviatã exibe, por toda a parte, para as categorias deserdadas e desonradas, capturadas nas cavidades das regiões inferiores do espaço social e urbano, pela desregulamentação econômica e pelo recuo dos esquemas de proteção social. Assim, como na obra de Saramago, os debates entorno desta questão penal não se mostram muito produtivos nos governos reais pois se a população excluída não é criminosa, os criminosos são excluídos, de tal sorte que a resposta penal aparece como remédio a ser aplicado sem contraindicações: “Temos aqui um coronel que acha que a solução era ir matando os cegos à medida que fossem aparecendo, Mortos em vez de cegos não alteraria muito o quadro, Estar cego não é estar morto, Sim, mas estar morto é estar cego.”. Mais do que tratamento terapêutico aos problemas sociais do mundo globalizado, a insistência da utilização do cárcere como remédio aos doentes da sociedade moderna, nos mesmos moldes em que foi adotado pelo Governo da obra do escrito português, é um método de neutralização dos doentes. Segrega-se estas pessoas do convívio social para que fechados nos muros altos dos presídios fiquem distantes dos olhos incomodados com sua presença. Assim esclarece Wacquant: “A penalização serve aqui KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 73 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 como uma técnica para a invisibilização dos problemas sociais que o Estado, enquanto alavanca burocrática da vontade coletiva, não pode se preocupar mais em tratar de forma profunda, e a prisão serve de lata de lixo judiciária em que são lançados os dejetos humanos da sociedade de mercado.” Esta relação entre sistema econômico e cárcere não pode deixar de ser observada, especialmente em relação aos efeitos dela decorrentes, pois ao contrário do que se pode pensar não se está resolvendo qualquer problema social, criminal ou de erradicação da violência, mas está se produzindo um movimento contraproducente que impulsiona o crescimento destes problemas que pretende combater, com ressalta Cirino: “a prisão produz e reproduz os fenômenos que, segundo o discurso ideológico, objetiva controlar ou reduzir.”. É necessário que se tenha a visão de que o problema não é dos outros, que os operadores do sistema e que as pessoas que se julgam imunes ao sistema penal fazem parte deste contexto social e que o fato de não querer enxergar as tornam tão cegas e doentes quanto aqueles que não podem enxergar, conclui Saramago: “Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem”. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A reflexão sobre o sistema de justiça criminal adotado nas sociedades ocidentais com base na obra “Ensaio sobre a Cegueira” permite alcançar alguns pontos de coincidência entre a política criminal contemporânea e a reação governamental na obra de Saramago, principalmente quando o Estado é chamado a resolver problemas sociais decorrentes de fatores que diferenciam as pessoas. Na obra literária estudada as pessoas eram segregadas em razão de uma doença que as acometia, uma cegueira branca, na realidade social analisada as pessoas são segregadas por estarem em situação de fragilidade social que as excluí do sistema de mercado global, a doença da exclusão social. O processo de globalização pelo qual atravessam os países na atualidade, fenômeno multifacetado, complexo e transdisciplinar no qual se ignoram as fronteiras KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 74 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 nacionais com a rápida e incontrolável circulação de pessoa, mercadorias, dinheiro e informação entre os todos os países do mundo, gerou reflexos importantes na esfera social e econômica. Este modelo de sociedade global concentrou o poder econômico nas mãos das empresas privadas multinacionais, formou uma nova massa de pessoas oprimidas pelo capital e agravou a desigualdade entre pobres e ricos. Nesta nova massa de oprimidos formada pelo sistema capitalista global pode se identificar um grupo de pessoas excluídas. Esta exclusão que se manifesta sob diversos ângulos, exclusão social, exclusão cultural e mesmo exclusão jurídica, tem por fundamento principal o fato de que estas pessoas não possuem qualquer valor financeiro para o capital, são pessoas que não interessam como mão de obra e tão pouco compõe o mercado de consumo, são os cegos da sociedade globalizada. Destacada esta realidade é importante identificar quais as políticas públicas adotadas para tratar deste problema social. Ao analisar o sistema punitivo penal desde a incorporação da prisão como forma de punição padrão, pode-se perceber que este sistema se desenvolveu num paralelo com o sistema de produção capitalista. O sistema penal prisional é o modelo de punição padrão da sociedade capitalista pois é responsável por importante papel dentro do sistema de produção, funciona como regulador do preço da mão de obra, garantidor de força de trabalho e da força reserva de trabalho exploradas pelo capital. Assim como o governo fez na obra literária, na sociedade globalizada o Estado utiliza-se do sistema prisional como remédio ao problema social, neste caso não os cegos, mas os excluídos do mercado global. As políticas públicas desenvolvidas na sociedade globalizada, sob a influência do poder econômico das empresas multinacionais cujo principal objetivo é financeiro, faz com que o Estado despreze os princípios da intervenção mínimo do direito penal e do direito penal como última razão para sobrepor as políticas punitivas às políticas sociais. O raciocínio econômico de análise de custos faz com que se substitua as políticas inerentes ao estado de bem estar social pelas políticas criminais transnacionais de maximização do estado punitivista. O cárcere é utilizado como ferramenta de neutralização e destinação das pessoas excluídas da sociedade de mercado global, é o destino dos doentes na sociedade KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 75 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 contemporânea em uma política contraproducente que potencializa os problemas sociais que simbolicamente pretende solucionar. A apontada realidade do sistema de justiça criminal não pode passar desapercebida ao Direito e as pessoas que integram o aparelho do poder punitivo do Estado. É necessário que se tome em consideração esta realidade tanto no desenvolvimento da doutrina penal como na prática do processo de criminalização, não há mais espaço para acusadores, defensor e julgadores adstritos cegamente a letra da lei penal, que atuam sem ter consciência da realidade maior que cerca seu papel de pequena engrenagem da grande máquina estatal a serviço do capital. O estado de direito constitucional, pautado no princípio da dignidade da pessoa humana exige uma nova postura daqueles que integram o aparelho de justiça criminal, não há mais espaço para cegos que vendo não veem. REFERÊNCIAS ARANA, Xavier. La globalización de las políticas em materia de drogas como obstáculo para la profundización em la democracia. In: ARANA, Xabier; HUSAK, Douglas;e SCHEERER, Sebastian. Globalización y drogas: políticas sobre drogas, derechos humanos y reduccion de riesgos. Madrid: Dykinson, 2003; BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. de Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002; SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. 3. ed., Curitiba: Lúmen Juris, 2008; MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 23. ed., Trad. de Reginaldo Sant'Ana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. v. 2. MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário; séculos XVI-XIX). Trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2006. SANTOS, Boaventrura de Souza. Os processos da globalização, In: SANTOS, Boaventrura de Souza (Org.). A globalização e as ciências sociais. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2002. SARAMAGO. José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Comp. das Letras, 2002. SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés de. A função social da terra. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 2003. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 76 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 WACQUANT, Loic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos: a onda punitiva. Trad. de Sérgio Lamarão. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. ZAFFARONI, Eugenio Raul et al. Direito penal brasileiro. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. v. 1. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 77 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 OS JOÕES DE SANTO CRISTO: COMO OS EXCLUÍDOS SÃO TRATADOS NO BRASIL; A RENEGAÇÃO DE SUAS HISTÓRIAS G ABRIELA L OYOLA DE C ARVALHO 1 P AULO H ENRIQUE B ORGES DA R OCHA 2 RESUMO:O presente artigo visa discutir o problema da desigualdade econômica e social e a discriminação gerada por ambas, tendo como plano de fundo a história da vida de João de Santo Cristo, personagem do livro Faroeste caboclo, escrito por Jorge Leite de Siqueira. O relato da vida de João abre espaço para a discussão central do artigo que é a coisificação do outro, em outras palavras, a teoria do Nós X Eles. O artigo trabalha com a realidade brasileira, sua desigualdade e como os excluídos, ou seja, os marginais, que vivem a margem da sociedade, são vistos e tratados. Aborda-se também a diferença de tratamento gerada pela aparência e condição financeira da pessoa, mostrando que os ditos “criminosos” nem sempre são os únicos culpados da violência ocorrida no Brasil, muito embora sejam eles os mais violentados. Esse trabalho pretende iniciar uma discussão sobre o modelo social que temos e como podemos humanizar o outro e não o coisificar como ocorre atualmente. Diferenças sociais, culturais e econômicas existem em todos os países. A proposta do presente trabalho não é indicar uma possibilidade utópica, mas sim, mostrar que toda pessoa que é julgada como má ou vândala tem uma história e, essa história não pode ser deixada de lado. Há a necessidade de se enxergar o próximo como outro ser humano, detentor de direitos e de uma história. Além de que nenhum desses fatos podem ser excluídos para que assim possa existir uma real igualdade entre os indivíduos. PALAVRAS-CHAVE: discriminação; desigualdade social e econômica; excluídos. 1 2 Mestranda em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Sete Lagoas. Mestrando em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Especialista em Pedagogia Jurídica pela Universidade Anhanguera. Bacharel em Direito pela Faculdade Pitágoras. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 78 ANAIS DO II CIDIL 1 V. 2, N. 1, JUL. 2014 INTRODUÇÃO O presente artigo tem por escopo abordar sobre a questão da discriminação gerada a partir da desigualdade econômica e social presente na sociedade. O preconceito enraizado nos paradigmas dos cidadãos brasileiros reflete na forma como vemos o outro. De certa maneira, tendemos a considerar aquele excluído, à margem da sociedade, como o bandido, o ladrão, aquele que pratica o crime, o lado mau da sociedade. Enquanto que, na verdade, esquecemos que existe uma pessoa, por trás desse individuo, dotada de dignidade, assim como todos os outros cidadãos, mas que por circunstâncias sociais, raciais e econômicas não puderam ou não quiseram desfrutar das mesmas igualdades que outros. Partimos do pressuposto de que em virtude da diferenciação, seja ela de qual origem for, somos melhores do que outras pessoas que não se encontram na mesma condição do que a nossa. Vivemos em uma sociedade hipócrita que visa permanecer no mesmo status que ocupa ou mesmo subir mais um degrau, mas que ignora as reais necessidades dos demais, os tratando como coisas, olvidando que, na verdade, somos frutos do mesmo sistema. O artigo em questão buscou contextualizar tal pressuposto por meio do livro Faroeste caboclo de Jorge Lei de Siqueira. O livro relata a história de João de Santo Cristo, nascido de família humilde e que, por ser órfão de pai e mãe, desde muito novo, e, em virtude de sua cor, sofre o preconceito existente na sociedade. 2 A VIDA DE JOÃO DE SANTO CRISTO João de Santo Cristo, nascido em algum pedaço da Bahia, de um lugar chamado Boa Vista, era filho de João Fernando, trabalhador braçal, sempre capinando a terra, limpando a plantação de milho, fonte de seu sustento. A vida de João nunca foi fácil. Sua mãe morreu quando pequeno; seu pai, que batalhava todos os anos contra a seca, plantava tudo o que podia brotar e render boas colheitas em suas terras. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 79 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Desde a morte de sua mãe, seu pai se tornara outra pessoa. A seca reduziu suas terras a umas poucas notas: teve que vender suas terras ao prefeito, que não era tão bonzinho assim, como ele pensava. Agora estava concordando com a oposição”3.A um futuro miserável, João Fernando se entregara. Agora, bebidas, mulheres e confusões faziam parte de sua realidade. João de Santo Cristo já de muito pequeno praticava suas malvadezas. “Era um menino muito esperto, muito inteligente, mas que não gostava de escola. Adorava travessuras e vivia sempre aprontando”4. Joãozinho como era chamado, não quis se entregar a um futuro sem perspectivas que sua família pobre e sofredora estava condenada. Não só sua família como várias outras que no mesmo paradigma se encontravam. O destino nem sempre foi a favor de João. Pequeno, ainda, assistiu a morte de seu pai. Após enfrentar a fúria de um policial, João Fernando se entregou, levou um tiro no peito. Uns diziam que fora autodefesa, outros, covardia do policial. Para João, foi suicídio. “João Fernando havia perdido a esperança de uma vida melhor. Havia perdido a esperança de encontrar pessoas que realmente faziam o bem, sem interesses próprios. Havia perdido a coragem de tentar melhorar. Havia chegado ao seu limite. Para ele, o melhor era morrer”5. O melhor amigo de João se chamava Zé Luiz. Assim como João “foi abandonado por sua mãe, quando ainda era bebezinho, em um orfanato da cidade. Sempre seguiu as maldades que os maiores faziam”6. Zé Luiz vivia fugindo do orfanato. Sempre o resgatavam, até que um dia, cansaram de tanta bagunça que aprontava. O mundo, então, ganhava mais um moleque de rua. Além da forte amizade, João e Zé compartilhavam de outros fatores: [...] era negro, também, assim como João. E já sofria com o preconceito das pessoas. Aprendeu a roubar devido a esta discriminação. Ia pedir as coisas, mas percebeu que era muito difícil. 3 4 5 6 SIQUEIRA, 2013, p. 5. Id., p. 6. Id., p. 7. Id., p. 9. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 80 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 As pessoas se fechavam para ele. Nunca conseguiu nenhum carinho. Sentia uma dor enorme quando pedia um prato de comida, tendo fome, e recebia um não como resposta. Com isso, aprendeu a tomar. Aprendeu a pegar o que não era dele. A princípio, começou a pegar comida. Depois, passou a pegar brinquedos, roupas, e coisas desse tipo7 João havia conhecido Zé no enterro de seu pai. “ – Minha mãe morreu, faz tempo. Meu pai morreu ontem. Foi enterrado hoje. Mas, eu não morava com ele. Ele sempre bebia muito e ficava jogado pelas calçadas. Eu aprendi a morar nas ruas porque não gostava de morar com a minha tia”8 dizia João a Zé. Por desfrutarem de um passado semelhante, a amizade entre os dois cada diz se fortificava. Com o passar dos anos, os dois amigos cada vez mais aprontavam. João dizia que queria ser bandido. A ousadia, agora, falava mais alto. “Se queriam alguma coisa mais cara, tentavam roubar algo e trocar por aquilo. Foi assim com o walkman,com o videogame,com a câmera fotográfica”9. Ambos tinham consciência de que a vida que levavam não era certa. Por outro lado, indignados ficam com tamanha injustiça no mundo. “Por quê uns tem muito e outros não tem nada, que nem a gente?”10 se indignava Zé Luiz. Conversavam a respeito de Jairzinho, um menino branquinho, limpinho que usava roupas novas. Os garotos sentiam na pelo o que era a discriminação. “Acham que porque a gente é preto e pobre devem ficar com medo da gente”11. Sentiam que os tratavam como bandidos. O ódio tomava. A sede de vingança já era maior. O mundo das drogas sempre foi acessível aos garotos. Não é atoa que de muito novos, já haviam experimentado maconha. Sandrinha, uma menina rica, fazia parte das travessuras dos amigos. Ninguém desconfia das confusões dos garotos quando Sandrinha estava por perto. Zé estava gostando dela. O preconceito não atingia somente quem estava fora do campo da discriminação, era notório também, a 7 8 9 10 11 Id., p. 10. Id., p. 11. Id., p. 12. Id., p. 12. Id., p. 13. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 81 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 discriminação do próprio João quanto ao namoro do Zé e da Sandrinha. “Você sabe... Ela é rica; você, pobre. Ela, branca; você, negro. — Porra, João! Você também é negro e pobre. Não está percebendo que está com preconceito?”12. “O tempo passou e João já tinha quinze anos. A sua vida continuava igual. Não tinha perspectivas de um futuro melhor e percebia a discriminação em tudo quanto ia fazer. Sentia a má vontade das pessoas em ajudarem-no”13. João frequentava a escola, já sabia ler e escrever mas não entendia as coisas complicadas que a escola ensinava. A princípio não queria ir, mas por força dos amigos, foi convencido. João pensava que de alguma forma s estudos poderiam ajudá-lo a mudar a direção de sua vida. Santo Cristo não concordava muito com o que ensinavam na escola, e, em uma dessas confusões acabou suspenso da escola. A partir de então, decidiu não mais frequentá-la. Ele mesmo daria um rumo em sua vida. Sua mentalidade depois disso mudou. Sabia que seria capaz de algo novo, que mudasse a trajetória que seguia. Em uma de suas ideias, no intuito de chamar a atenção daqueles que os ignoravam, mostrar a eles que existia, João queria pinchar o prédio da prefeitura. Por causa disso, João foi levado ao reformatório, “quando foram levados para o carro de polícia, João percebeu que estava diferente. O ódio que ele sentiu durante toda a sua vida tinha mudado. Ele agora tinha ódio do sistema”14. João, após sair do reformatório, por meio da influência do prefeito, já que naquela época era o período eleitoral, foi um dos alvos das propagandas do candidato à reeleição, sobre a reabilitação dos jovens delinquentes. João entra na política por meio do Seu Raul. Esse, por sua vez, era o candidato da oposição que deu a Santo Cristo um novo emprego em seu estabelecimento. Via em João uma forma de ascender ao poder. João era um rapaz carismático, que conquistava o eleitorado com seus belos discursos. E era nessa nova fase que João via a possibilidade de mudar o sistema, de eliminar a corrupção, as mentiras, o jogo de interesses, como era a política do concorrente. 12 13 14 Id., p. 16. Id., p. 21. Id., p. 24. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 82 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 João participava de comícios, de entrega de folhetos, de visitas a casas dos moradores, de palestras em escolas, e assim por diante. Aprendeu a falar para as pessoas, sendo simples como era, e aproveitando o seu passado pobre, demonstrava um sentimento de esperança ao povo. Além de tudo, sempre lembrava do que havia acontecido com seu pai. A política era um vício e ele estava gostando.15 Já no fim das eleições, João tem uma surpresa desagradável com Seu Raul. Tudo aquilo que foi contra durante toda a campanha, agora Seu Raul queria fazer igual à oposição. João, que imagina ser seu Raul um candidato diferente, viu nada menos do que aquilo que abominava. Desapontando com os rumos que a eleição tomou, João decide ir embora, Eu vou embora. Aqui não é meu lugar. Está tudo errado. Não confio em mais ninguém, não confio no sistema, não acredito na política. Não tem trabalho decente, só escravidão. Os meus amigos todos estão procurando emprego. Não tem como viver neste lugar.16 Do dinheiro do acerto de seu trabalho comprou uma passagem pra Salvador. Sem saber ao certo qual rumo tomar, para onde ir, o que fazer, conheceu, na rodoviária, alguém que poderia mudar seu destino. Fernando era um fazendeiro que iria à Brasília visitar a filha. Comovido com a história de Santo Cristo, arrumou-lhe um emprego na carpintaria de seu genro, moradia na casa de sua filha até que João pudesse caminhar com suas próprias pernas. Inicialmente sua vida na carpintaria era como a de qualquer outro trabalhador. Cumpria sua carga horária e ao fim do dia só queria descansar. Do momento em que começou a receber seu salário, as coisas mudaram. Passava agora a beber mais, sair mais, e a fazer uso de drogas. De uma dessas noitadas, conheceu Pablo, um peruano que vivia na Bolívia, que começava sua vida de traficante. João, todavia, não ganhava o suficiente para alimentar seus vícios, a insatisfação começava a tomar conta dele. Pablo, com o patrocínio de alguns traficantes do Rio de Janeiro, planejava iniciar uma plantação de maconha. Com a ajuda de João, poderia agilizar o processo. Dessa 15 16 Id., p.44. Id., p. 54. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 83 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 forma, João juntamente com Pablo começaram a distribuir o produto, tornando-se um dos maiores traficantes de Brasília. Santo Cristo, todavia, se apaixonou. Maria Lúcia era o nome dela e em nome de seu amor por ela, abandona o tráfico. Acontece que o que João havia planejado, de viver uma vida sem muitas regalias, ganhando seu salário mensal, não funcionou. João sentia falta do tráfico, e assim decide retornar. Todavia, as coisas já não estavam como antes. Vários pontos de distribuição haviam sidos tomados. Novos traficantes ganhavam poder. A retomada de seu império seria difícil. Seu novo concorrente, Jeremias, além de disputar o poder com João, também levava seu amor, Maria Lúcia. Em um duelo, Santo Cristo enfrenta Jeremias. E assim o fim de João chega. Morto por um tiro pelas costas dado por Jeremias. 3 REFLEXÃO SOBRE AS DISCRIMINAÇÕES SOFRIDAS POR JOÃO Antes de entrar no cerne da questão da discriminação, faz-se necessário refletir sobre a questão da violência. Há três tipos de violências: 1) a violência subjetiva, que é quando há a vontade de praticar a violência, quando a pessoa decide praticar a violência, passando de uma situação aparentemente violenta para uma ação violenta; 2) a violência objetiva, que, diferente da violência subjetiva, é permanente, “[...] são as estruturas sociais e econômicas, as permanentes relações que se reproduzem em uma sociedade hierarquizada, excludente, desigual, opressiva e repressiva” e 3) violência simbólica, que também é permanente e se reproduz na linguagem, na arquitetura, na arte, na moda entre outras formas, fazendo uma distinção entre as pessoas através desses mecanismos17. A violência simbólica e a objetiva são as violências mais danosas para a pessoa. A discriminação está dentro das duas, na violência simbólica pode ser percebida quando alguém diz “isso é coisa de preto”, ou quando se constrói uma galeria toda branca, pois o branco significa puro, bom, bonito, limpo, enquanto o escuro significa o oposto. Já a violência objetiva é visualizada diariamente quando uma pessoa tem um tratamento de saúde de baixa qualidade por não ter dinheiro para arcar com as despesas de um 17 MAGALHÃES, 2013, p. 54. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 84 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 tratamento particular, quando uma pessoa é proibida de entrar em algum estabelecimento por não se vestir “adequadamente”, ou por não pertencer a certo “ciclo social”. Essas discriminações são muitas das vezes inconscientes, a forma de olhar o diferente, o negro, o pobre, é uma forma de descriminação, que está tão enraizada na cultura brasileira que os próprios pobres, negros, entre outras minorias se descriminam, sendo eles os primeiros a se descriminarem. Um ótimo exemplo dos problemas da não aceitação das diferenças é a história de Débora18, que tinha dores de cabeça inexplicáveis, que na verdade ocorriam pelo fato de ela pentear tanto e com tanta força os cabelos que sua cabeça ficava dolorida, e a história mais emblemaria é a de Júlia, uma menina de oito anos, que foi surpreendida por sua mãe penteando seus cabelos com tanta força que fez seu próprio couro cabeludo sangrar19. Esses efeitos são sintomas e não o problema, o problema é estrutural, cultural, de aceitação. Deve haver uma mudança, há a necessidade de se criar uma cultura de aceitação do plural, do diferente. Não podemos aceitar que “[...]uma criança, dada a sua fragilidade, aja desse modo buscando uma forma de afirmar para si mesma que não é aquilo que é[...]”20. João de Sando Cristo percebeu sua auto descriminação quando seu amigo Zé Luiz lhe contou que tinha iniciado o namoro com Sandrinha, que era amiga dos dois. João logo argumentou se daria certo o namoro, uma vez que ela era rica e branca ao contrário de seu amigo que era negro e pobre. Zé logo disse que isso era discriminação e que João também era negro e pobre. Isso foi uma revelação para João, que ao perceber seu preconceito deu razão e desejou sorte a seu amigo. Essa visão de inferioridade é construída a partir da convivência em sociedade, mostrando que as pessoas vítimas de preconceito, que são excluídas, assimilam a hierarquia social e a incorporam, julgando seus atos a partir dessa hierarquização. O Estado tem o dever de promover o respeito pelas diferenças, mostrando que a diversidade é boa, mas o primeiro local onde a pessoa aprende o contrário é na escola. 18 19 20 A história de Débora e de Júlia são contadas por Jessé Souza, no livro Ralé brasileira. SOUZA, 2009, p. 355. Id.,. p. 356. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 85 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 As escolas ensinam que a uniformização é boa, que o diferente não é aceito, quem não utiliza o uniforme, não pensa da forma que “tem” de pensar, é excluído, em alguns casos até mesmo da própria instituição de ensino. Essa criança aprende que o padrão é bom, que o que não está no padrão é ruim. Isso já explica a atitude de Débora e de Júlia, que não aceitam seus cabelos, não os aceitam por não serem iguais aos padrões de beleza, não sendo como o padrão ele é feio, é desqualificado, tem de ser alterado, mesmo que isso signifique uma espécie de automutilação. Simbolicamente, as escolas modernas dizem às crianças que tem de se adequar, se conformar, pois esse é o seu lugar no sistema. Essa criança que aprende isso na escola irá de alguma forma reagir à “ameaça” do diferente, excluindo e punindo o diferente “ruim”. Ate mesmo os professores pecam nesse momento, a criança dita mais bonita é mais bem tratada, recebe mais atenção21. As escolas não estão preparadas para lidar com a diferença, ao contrário, o ensino eclesiástico adotado no Brasil, onde o professor diz a verdade enquanto os alunos em fila o escutam e aceitam aquela verdade sem questionamento, promovendo assim uma “educação bancária”22, onde o professor deposita conhecimento no aluno, junto com o ideal moderno de escola, que serve para formar operadores em fábricas, promovendo a uniformização, é uma forma de educação escolar ultrapassada, que não atinge o objetivo de educar os alunos para conviverem em sociedade, ao menos não em uma sociedade plural e democrática. A instituição de ensino ensina a criança a conviver em uma sociedade hierarquizada, seja pelo dinheiro, pela beleza ou pela cor de pele23. João de Santo Cristo, aos 15 anos, discutiu com seu professor de português por não entender o que ele ensinava como sendo a verdade absoluta, o que lhe rendeu uma suspensão, ele não entendia qual era a serventia das fórmulas matemáticas, da história romana, se ele 21 22 23 MAGALHÃES, 2013, p. 55-56. FREIRE, 1996. p. 47. “Em outras palavras, a escola moderna ensina diariamente a criança a praticar o “bullying”. Veja-se então a ineficiência das políticas de combate à violência, à discriminação, à corrupção que padecem, todas, deste mal. No exemplo descrito anteriormente, a escola, o estado, os governos, criam políticas públicas pontuais de combate ao “bullying” (a tortura mental e agressão física decorrente da discriminação do “diferente”) ao mesmo tempo que mantêm uma estrutura simbólica que ensina a discriminação (o “bullying”)” (MAGALHÃES, 2013, p. 56). KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 86 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 nunca utilizaria esses conhecimentos em seu cotidiano. Faltou uma instrução para ele, não o fora explicado a serventia de cada matéria, nem mesmo a necessidade de se aprender algo que as ruas não o ensinara, ele era esperto, muito inteligente, sempre adiantado em relação a seus colegas, mas não se enquadrava no padrão, sendo relegado pelas engrenagens do sistema educacional. Não adianta instituir políticas públicas de combate a violência subjetiva, sem que haja uma mudança na estrutura socioeconômica opressiva e desigual que existe no Brasil, que reproduzem a desigualdade, a opressão, a exclusão do “outro” diferente, subalternizado inferiorizado24. Na realidade, o Estado Moderno é um Estado uniformizador, normalizador, onde a partir “Desta uniformização (homogeneização) depende a efetividade de seu poder”25. A sociedade, embalada pela grande mídia, aposta na punição dos excluídos, dos não enquadrados, dos não uniformizados e não normalizados. Isso cria uma forma de higienização urbana, sendo essa a mais nova política urbana do século XXI, tornando o Direito Penal o caminho para essa higienização, pois assim não há a necessidade de entender o outro, basta somente prende-lo, excluí-lo, julga-lo26. Essa preferência pela exclusão é fundamentada pela lógica “nós X eles”, sobre a qual se baseia a modernidade, ou seja, o fato de “eles” não serem iguais a “nós”. “Eles” são coisificados, são animalizados, não possuem alma. Essa lógica possibilitou as barbáries cometidas contras os povos originários nas Américas, com os povos colonizados na África, e todas as barbáries cometidas pela humanidade durante a modernidade27. O discurso politicamente correto que é defendido atualmente é que não existe mais, no Brasil, o dogma que define os “bons” (brancos) dos “maus” (negros), que defende os “bons” dos “maus”, como explicar “[...] as afirmações de “orgulho racial” tão 24 25 26 27 MAGALHÃES, 2013, p. 55. MAGALHÃES, 2012, p. 17. MAGALHÃES, 2013, p. 57. MAGALHÃES, 2012, p.27-28. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 87 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 frequentes quanto difusas entre brancos e mulatos no Brasil? Como explicar o comportamento ostensivamente racista?”28 É certo dizer que o racismo brasileiro é diferente que o dos Estados Unidos. Nos Estados Unidos há a segregação física entre os negros e brancos, tendo até igrejas onde pessoas de certa tonalidade de pele não podem entrar. No Brasil, o racismo é diferente, é um racismo hipócrita, onde todos se dizem não ser racista, mas quando um negro se move contra a doxa estética, a sociedade como um todo reage de forma racista, excluindo e desqualificando essa pessoa29. Esse tipo de racismo é insuportável, uma vez que até a punição dos “agressores” se torna de difícil efetivação, uma vez que a reação é espontânea e só ocorre quando um negro tenta romper com a hierarquia social imposta. Os atos racistas nada mais são que um esforço para “tapar o buraco” de uma carência emocional, sendo o orgulho racial uma fonte substitutiva de autoafirmação. Isso explica inclusive por que as classes de menor status são as mais racistas, fato constatado por diversos estudos. Não a sua pobreza em dinheiro, mas antes de tudo a insegurança existencial dessas pessoas diante de um universo de insígnias de dignidade humana e de nobreza cultural (conhecimento incorporado, gostos sofisticados), as quais elas preenchem pouco ou sequer preenchem, faz com que elas busquem fontes substitutivas de autoafirmação. Algo semelhante acontece com o machismo: os homens são tanto mais dependentes da sua honra de “macho” para se autoafirmarem como seres de valor, quanto mais são carentes das fontes de reconhecimento referentes à situação de classe30. Voltando ao século XVI, uma pergunta vem à tona. Os ocidentais não tinham espelhos? Essa pergunta é pertinente ao repensar as acusações que fizeram os portugueses, espanhóis, holandeses e todos os outros povos modernos sobre os demais povos, apontando as “barbáries” que os povos “menos evoluídos” cometiam, não sendo capazes de enxergar suas próprias barbáries a partir do humanismo cristão. Na realidade, eles tinham espelho sim, mas era o espelho de narciso, que mostrava o que 28 29 30 SOUZA, 2009, p. 377. Id., p. 372. Id., p. 377-378. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 88 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 eles queriam ver, ou seja, a sua “superioridade”, sua beleza escultural, tratando de um espelho que não revela, mas esconde a verdade. Através desse espelho “nós” somos mais evoluídos, somos melhores e devemos purificar e evoluir “eles”. “Este é um dispositivo perigoso, pois, quando denunciamos a falta do espelho, quando afirmamos que este “nós” comete as “selvagerias” ou “barbáries”, “nós” retruca mostrando o espelho de narciso: “veja, não há nada de mal aqui”, ou ainda, “o mal que há não é de nossa responsabilidade, a responsabilidade é deles que recebemos tão bem em nossa terra”31. No Brasil há esse espelho de narciso, onde se vê somente o que se quer enxergar. Mesmo os que são descriminados discriminam por conta desse espelho que eles consultam, quando o espelho lhes diz o que ele quer escutar e não a realidade, há uma confusão enorme. [...] o racismo ostensivo daqueles mulatos que querem acreditar ser brancos é movido pelo esforço para negarem a própria condição de negros. O negro que essas pessoas ofendem na escola, numa festa ou em qualquer outra ocasião não é senão aquela negridão inadmissível que elas veem no espelho. Projeta-se o que se odeia em si mesmo numa figura frágil o bastante para que se possa exercer sobre ela esse ódio. Um policial negro que não aceita o fato de ser negro será certamente um dos mais aficionados em “dar duras” em jovens negros. Quando o Estado entrega a uma pessoa tão existencialmente insegura uma insígnia que de uma hora para a outra, como que num passe de mágica, concede a ela um grande poder de violência e o peso de toda uma instituição para legitimar o seu exercício, ele (o Estado) está literalmente armando o racista32. O racismo muitas das vezes ocorre em relação a condição financeira da pessoa, uma pessoa com mais recursos financeiros é melhor tratada, sendo essa uma fusão do capitalismo com a concepção moderna de sociedade. Na sociedade moderna, o dinheiro encontra-se tão encrustado no consciente coletivo, que adquire, de certo modo, o estatuto que as instituições do espaço e do tempo tinham em Kant. Percebe-se, dessa forma, o mundo moderno e suas relações a partir das características que o dinheiro promove, guiando-nos no sentir e pensar. A capacidade avaliativa da pessoa tende a 31 32 MAGALHÃES, 2012, p. 27-28. SOUZA, 2009, p. 378. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 89 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 assumir a forma quantitativa do dinheiro, assim o sujeito que é mais digno, mais importante, melhor, é o que tem mais dinheiro, sendo ele merecedor de mais “amor” e de “atenção”33. Privados de status econômico e social, os indivíduos invisíveis começam a se socializar de uma maneira que os conduz a ocupar uma posição de inferioridade em relação aos indivíduos imunes e a aceitar a arbitrariedade por parte das autoridades públicas. Eles não mais esperam que seus direitos sejam respeitados pelos outros ou pelas instituições com responsabilidade em aplicar as leis. Aqueles que reagem a essa posição degradante se tornam uma ameaça e são tratados como inimigos. Ao mesmo tempo, os indivíduos imunes não se consideram compelidos a respeitar aqueles que veem como inferiores ou inimigos. O mesmo se aplica às autoridades cooptadas. Nesse caso, um grande número de pessoas está abaixo da lei, enquanto um grupo de privilegiados está acima do controle estatal. Dessa maneira, o Estado que supostamente seria o responsável pela utilização dos mecanismos formais de controle social, em conformidade com a lei e pelos seus meios coercitivos, começa a reproduzir parâmetros socialmente generalizados34. As classes sociais que sofrem preconceito são violentadas diariamente por palavras, gestos, insinuações, brincadeiras, etc., o que leva a pensar que um tipo de pessoa é melhor que os demais, possibilitando rotular os que não se enquadram na sociedade como vândalos, criminosos, marginais, quando na realidade são apenas pessoas, com sonhos e desejos. João mostrou isso quando foi para o reformatório e disse para Zé Luiz cuidar do povo que era enganado, como enganaram seu pai a vida toda. João mesmo não se enquadrando na sociedade tinha desejos “nobres”, ele desejava o bem das pessoas carentes, que sofriam nas mãos dos que detinham o poder. A forma de ajudar aos seus iguais era somente aquela, por isso foi considerado criminoso. Ele foi violentado das mais variadas formas durante toda sua vida, não entendendo como funcionava e o porquê existia a discriminação por sua classe e sua cor. A maioria das pessoas em sua posição se anularia, ele, por outro lado, tentou fazer algo diferente: buscou se impor. 33 34 SOUZA, 2013. VIEIRA, 2011, p. 41. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 90 ANAIS DO II CIDIL 4 V. 2, N. 1, JUL. 2014 CONCLUSÃO O artigo em questão pretendeu analisar de que forma a discriminação oriunda da desigualdade econômica e social interfere na forma de tratamento das pessoas excluídas da sociedade. Por excluídos, entendemos aqueles que estão à margem da sociedade, que são considerados por ela como indivíduos marginalizados. Associamos a essa forma de exclusão social o fator da desigualdade econômica, social e racial. Há uma tendência a considerar aquele indivíduo desprovido das mesmas condições do que outros como um ser carente de tratamento diverso, que não pode ser visto com a dignidade pertencente a cada cidadão. A essa atitude, de coisificar o homem, olvidando de seu caráter humano é que nos propomos a debater. Na verdade, a sociedade salienta-se somente para o lado do “Nós”, esquecendo-se que, na realidade, o nós somos também eles. Quando tratamos o outro como “Eles”, não levamos em conta existe toda uma trajetória vivida por aquele indivíduo e que, ao invés de levarmos em conta a história que cada um carrega, optamos por rotulá-los como à margem da sociedade em que vivemos. Carregamos o peso da hipocrisia social quando fazemos discriminações quanto à cor, a origem social, o peso econômico que cada cidadão alberga. Por trás de todo cidadão assim considerado individualmente, existe um ser complexo, com várias dimensões, que se esconde por trás do nome reducionista atribuídos a eles, tais como “o bandido”, “o drogado”, etc. REFERÊNCIA FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. O estado plurinacional e o direito internacional moderno. Curitiba: Juruá, 2012 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Reflexões contemporâneas: corrupção. Legis Augustus, Rio de Janeiro, n. 2, v. 3, p. 53-66, jul./dez., 2012. Disponível em: <http://apl.unisuam.edu.br/revistas/index.php/legisaugustus/article/view/282> Acesso em: 6 nov. 2013. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 91 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 SIQUEIRA, José Leite de. Faraoste caboclo. Disponível em: <http://www.submit.10envolve.com.br/uploads/8a7a7b5ca37abe95eba94198f83e9dde .pdf>. Acesso em: 6 nov. 2013. SOUZA, Jessé. Ralé brasileira: quem é e como vive. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. SOUZA, Jessé. O que é a “dignidade humana”? A cerca da importância dos direitos sociais em uma sociedade desigual. In: TOLEDO, Cláudia (Org.). Direitos sociais em debate. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. VIEIRA, Oscar Vilhena. Desigualdad estructural y estado de derecho. In: GARAVITO, César Rodríguez (Coord.). El derecho en América Latina: un mapa para el pensamiento jurídico del siglo XXI. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2011. p. 2546. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 92 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 DE UMA REPÚBLICA ARACDIANA AO POSITIVISMO KELSENIANO: A BUSCA PELA “LEI PERFEITA” C LAUDIA M ARIA M ARTINS B ARBOSA G RAÇA 1 G ABRIELA L OYOLA DE C ARVALHO 2 RESUMO: O artigo pretende relacionar o conto machadiano A sereníssima república com a obra do austríaco Hans Kelsen. Para tanto, a análise se dará a partir da forma pela qual as aranhas articulam os procedimentos eleitorais para alcançar o sentido único da norma. A cada nova eleição, arbítrios são identificados, fazendo com que as aranhas busquem novas soluções, livres de fraudes e vícios. Muito embora a busca pelo sentido unívoco da norma ou do procedimento seja pretendido pela república aracnídea, Kelsen, em seus escritos da Teoria Pura do Direito, alerta-nos no sentido de que não há uma única resposta correta. Na verdade, a chamada moldura do direito avança na perspectiva de abarcar as soluções possíveis para um caso concreto e não somente uma única solução. Dessa forma, pretende-se demonstrar que as várias tentativas seguidas das aranhas em reformar a lei para corrigir os defeitos da norma seria um bom arquétipo da busca do positivismo pela lei perfeita. Além disso, intenta-se relacionar a teoria kelseniana ao mencionado argumento, no sentido de que para o filósofo, não existe apenas um único sentido na lei. Com efeito, pretende-se verificar que o problema não é o texto, mas sim o que se faz com ele. PALAVRAS-CHAVE: norma jurídica; procedimentos eleitorais; teoria kelseniana. 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como escopo realizar um estudo sobre a norma jurídica tendo como base a teoria Kelseniana. Para esse fim pretende-se partir de uma análise 1 2 Mestranda pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Bolsista FAPEAM. Advogada Mestranda pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Advogada KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 93 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 do conto de Machado de Assis A sereníssima república integrante na coletânea Papeis Avulsos em 1882. Machado é um pensador além do seu tempo, tanto é assim, que seus escritos permanecem plenamente atuais nos dias de hoje e, quiçá, durante toda a história da humanidade. Sua visão de mundo é atemporal e, por isso mesmo, é possível ver-se a atualidade por meio das lentes machadianas. Dessa feita, pode-se dizer que a obra machadiana é como uma fonte que possibilita a análise de problemas das mais diversas ordens, que afligem o mundo contemporâneo. Hans Kelsen foi um dos grandes positivistas de seu tempo. Em atenção à sua obra, a Teoria Pura do Direito, pretendeu-se abordar a relação existente entre a busca pela perfeição da norma jurídica no conto de Machado de Assis e, a contribuição do austríaco ao esclarecer que, na realidade, não existe um sentido unívoco da lei, mas, todavia, a moldura do direito, existe, para solucionar tal percalço. Isto porque, a partir de um quadro de possibilidades normativas, seria viável a escolha de uma das normas para aplicar-se ao caso concreto. De certa forma, ao associarmos o conto machadiano com a teoria do austríaco, enxergamos um paradoxo, de um lado notamos a tentativa infundada das aranhas em pretender o sentido único da lei, e, de outro, a alternativa proposta por Kelsen, em criar a moldura do direito, com as possibilidades jurídicas elencadas em tal. Tivesse o conto A sereníssima república sido publicado no início do século XX e pareceria ao leitor tratar-se de uma análise metafórica do sistema eleitoral brasileiro, sempre em busca de reformas legislativas para solucionar problemas afetos ao sistema eleitoral. Por isso, a escolha desse conto para realizar um estudo sobre o sistema eleitoral brasileiro relacionando-o à teoria de Kelsen. 2 RESUMO DO CONTO A SERENÍSSIMA REPÚBLICA O cônego Vargas realiza uma conferência perante um auditório composto por indivíduos interessados na atividade científica onde divulga que descobriu uma aranha KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 94 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 que possui uma característica atípica, qual seja, o domínio de uma linguagem rica e variada. Explica, ainda, que teve grande dificuldade para dominar o idioma araneida a fim de conseguir estabelecer uma comunicação com as aranhas. No decorrer do conto, Machado descreve que o cônego, ao iniciar seus estudos, fazia anotações em um caderno, motivo, pelo qual, as aranhas deduziram que se tratava do registro de seus pecados, já que julgaram o homem como uma espécie de Deus, passando por esse motivo a tentar realizar boas ações. O que, segundo o autor, denota a ingenuidade das aranhas e a inclinação para ver numa pessoa maior um poder superior ao delas. O Cônego resolveu, então, dotar as aranhas de um sistema de governo, optou por um sistema simples. As aranhas deveriam tecer um saco com o objetivo de que fossem colocar as bolas para a realização do sistema eleitoral, as bolas deveriam ter o nome dos candidatos que seriam retirados aleatoriamente. Os nomes sorteados seriam os eleitos. Segundo informa o autor que assim era consolidada uma república á maneira de Veneza. Uma vez aceito o nome de Sereníssima República, as aranhas se encontravam prontas para iniciar a votação. Durante a conferência, o cônego vai explicando os problemas que ocorreram e as formas imaginadas pelas aranhas para solucionar os problemas e, assim, dotar o sistema eleitoral de integridade. Os partidos políticos dividiam-se com base em princípios geométricos em razão do ofício aracnídeo de tecer teias. Sobre esse fato, narra o cônego: “ Uns entendem que a aranha deve fazer as teias com fios retos,é o partido retilíneo; — outros pensam, ao contrário, que as teias devem ser trabalhadas com fios curvos, — é o partido curvilíneo. Há ainda um terceiro partido,misto e central, com este postulado: — as teias devem ser urdidas de fios retos e fios curvos; é o partido reto curvilíneo;e finalmente, uma quarta divisão política, o partido anti-reto-curvilíneo, que fez tábua rasa de todos os princípios litigantes, e propõe o uso de umas teias urdidas de ar, obra transparente e leve, em que não há KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 95 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 linhas de espécie alguma. Como a geometria apenas poderia dividi-los, sem chegar apaixoná-los, adotaram uma simbólica.” As linhas eram interpretadas pelos diferentes segmentos da sociedade, reunindose os que possuíam uma ideologia semelhante. Ocorre que várias vezes as eleições contiveram vícios, pequenos grupos tentavam manipular a eleição, a fim de obter os cargos públicos. A cada problema as aranhas tentavam encontrar uma nova maneira de evitar que o sistema eleitoral fosse fraudado. Dentre as tentativas de corrupção a que mais se destaca no conto é a última, na qual se tentava eleger um coletor de espórtulas, funcionário encarregado de cobrar as rendas públicas. Eram candidatos, entre outros, um certo Caneca e um certo Nebraska. A bola extraída foi a de Nebraska. Estava errada, é certo, por lhe faltar a última letra; mas, cinco testemunhas juraram,nos termos da lei, que o eleito era o próprio e único Nebraska da república. Tudo parecia findo, quando o candidato Caneca requereu provar que a bola extraída nãotrazia o nome de Nebraska, mas o dele. O juiz de paz deferiu ao peticionário. Veio então um grande filólogo, — talvez o primeiro da república, além de bom metafísico, e não vulgar matemático, — o qual provou a coisa nestes termos: — Em primeiro lugar, disse ele, deveis notar que não é fortuita ausência da última letra do nome Nebraska. Por que motivo foi ele inscrito incompletamente? Não se pode dizer que por fadiga ou amor da brevidade, pois só falta a última letra, um simples a. Carência de espaço? Também não; vede: há ainda espaço para duas ou três sílabas. Logo, a falta é intencional, e a intenção não pode ser outra, senão chamar a atenção do leitor para a letra k, última escrita, desamparada, solteira, sem sentido. Ora, por um efeito mental, que nenhuma lei destruiu, a letra reproduz-se no cérebro de dois modos, a forma gráfica e a forma sônica: k e ca. O defeito, pois, no nome escrito, chamando os olhos para a letra final, incrusta desde logo no cérebro, esta primeira sílaba: Ca. Isto posto, o movimento natural do espírito é ler o nome todo; volta-se ao princípio, à inicial ne, do nome Nebrask. — Cané. — Resta a sílaba do meio, bras, cuja redução a esta outra sílaba ca, última do nome Caneca, é a coisa mais demonstrável do mundo. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 96 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Por mais incrível que possa parecer a interpretação foi aceita e o resultado modificado. Foram tentadas, ainda, várias mudanças afim de se evitar falhas no sistema, todas, porém, foram em vão. O Cônego conclui a conferência, chamando a atenção para o comentário de uma aranha chamada Erasmus, encarregado de notificar a última resolução legislativa às dez damas incumbidas de urdir o saco eleitoral, este as comparou a Penélope da mitologia, que fazia e desfazia a famosa teia, à espera do esposo Ulisses. Como se depreende do conto acima, Machado faz uma crítica bem humorada e sarcástica, bem nos moldes machadianos, sobre a inutilidade da busca por uma lei perfeita, uma vez que sempre haverá pessoas ardilosas, capazes de burlar um sistema jurídico de forma a manipulá-lo em proveito próprio. 3 MACHADO: UM ESCRITOR ALÉM DO SEU TEMPO Após 100 anos, as obras de Machado de Assis permanecem plenamente atuais. Seus personagens apresentam aspetos psicológicos semelhantes aos personagens da atualidade. Além disso, a descrição minuciosa e crítica que fazia da sociedade daquela época possibilita entrever-se o cerne da corrupção que assola esse país até os dias de hoje. Em obras como Dom Casmurro, O alienista, Memórias póstumas de Brás Cubas, dentre outras, assuntos como a degradação humana, adultério, loucura, são tratados de maneira mordaz, os personagens machadianos são complexos, por isso mesmo, sempre atuais, a sociedade é descrita de forma a deixar cristalinamente demonstrado as diferenças existentes entre as classes sociais. Machado, paradoxalmente, consegue ser claro, irônico, mordaz, mas também, sugere, insinua, atiça a imaginação do leitor, fazendo com que esse sinta-se tentado a penetrar no íntimo do personagem, inserir-se em seu mundo, compartilhe seus sentimentos. Nesse sentido Lenio Streck comentando a tragédia de Santa Maria, assim se manifestou: KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 97 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 [...] Vejam. Machado de Assis era um gênio. Há bem mais de 100 anos já denunciava esse tipo de estratégia de buscar utilidades nas tragédias. Nossa imprensa é expert no assunto. Está lá em Quincas Borba. Vejam como cabe perfeitamente no caso do repórter de Porto Alegre e naquilo denunciado na coluna: “Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona — um triste molambo de mulher — chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no chão. Senão quando, indo a passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era dela. - É minha, sim, meu senhor; tudo o que eu possuía neste mundo. - Dá-me então licença que acenda ali o meu charuto? O padre que me contou isto certamente emendou o texto original; não é preciso estar embriagado para acender um charuto nas misérias alheias”3. Streck compara o texto machadiano com a forma como a mídia se comportou no episódio de Santa Maria: “Entrevistaram pessoas que, por alguma razão, não foram à Boate [...] Enfim, todos tiraram a sua casquinha. Repórteres foram tirados das férias para irem morar em Santa Maria”4. Machado, através de seu humor ácido, da análise do caráter humano de seus personagens, da crítica ferrenha à sociedade de sua época consegue manter-se constantemente atualizado, possuindo sua obra um caráter atemporal. 4 KELSEN E O POSITIVISMO CLÁSSICO Em face a um cenário configurado em várias concepções do direito e, em meio a inúmeras recomendações para as diferentes formas de sua aplicação, a teoria de Hans Kelsen, se justifica. Com base em uma concepção neopositivista de ciência, oposta a qualquer tipo de metafísica, Kelsen busca fundar sua teoria em uma ciência genuinamente jurídica, diferentemente da série de motivações políticas, econômicas, históricas, sociais, a filosofia do austríaco corresponde a uma ciência rigorosamente metódica, livre dos fatos sociais, bem como dos fatores psíquicos e, tampouco em relação às finalidades do 3 4 Disponível em: <http://www.conjur.com.br/4/02/13>. Acesso em: 13 nov. 2013. Idem KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 98 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 meio societário, mas sim, tendo por objeto as normas jurídicas, mais precisamente a linguagem das normas. A ciência jurídica de Hans Kelsen, portanto, procuraria explicar o sentido das proposições jurídicas e as relações que essas estabelecem com as outras. É nesse sentido que se pretende desenvolver o presente artigo: a contribuição filosófica da linguagem na construção do marco científico do austríaco ao esclarecer que para a decisão jurídica não existe uma única resposta, sendo essa, todavia, discricionária dentro do quadro das possibilidades normativas do direito. Kelsen, é considerado um dos grandes autores positivistas. Entretanto, faz-se necessário entender o significado de sua concepção positivista do direito. O positivismo clássico tem por escopo banir os pressupostos metafísicos do conhecimento científico. Concentra-se na observação dos fatos, daqueles oriundos da realidade, daquilo passível de comprovação através da lógica. Desta feita, a manifestação não é mais capaz de explicar e fundamentar as realidades daquele contexto histórico. Agora, os fatos existem ou não, de maneira que todas as formas de valoração, seja da moral, da ética, da justiça, são endereçadas ao campo da opinião que, todavia, não é objeto da análise do conhecimento cientifico. Os métodos teológicos e metafísicos que, relativamente a todos ou outros gêneros de fenômenos, não são mais agora empregados por ninguém, quer como meio de investigação, quer até mesmo como meio de argumentação, são ainda utilizados, nesta ou naquela direção, em tudo o que concerne aos fenômenos sociais, a despeito de essa insuficiência já ser percebida por todos os bons espíritos, cansados de vãs contestações intermináveis entre o direito divino e a soberania do povo.5 Cumpre esclarecer que, na perspectiva do positivismo clássico, a atenção se volta para os fatos perceptíveis e comprováveis com os princípios da lógica e da causalidade. A verdade sobre tais fatos e suas leis causais concentra o pensamento dessa linha teórica. O que, entretanto, deixa de ser ressaltado, é a busca pela validade e 5 COMTE, 1978, p. 8. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 99 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 legitimidade de mencionados fatos, ou seja, o critério de correção normativa ainda procura por seu fundamento. Com o positivismo jurídico, o Direito Natural, antes fundamento da ordem normativa, passou a ocupar o campo da validade metafísica do direito. Assim, abre-se o leque para aquilo que seria o direito natural e o direito posto, sendo o último a uma única forma de direito legislado já que seria real, existente e comprovável. Uma das principais contribuições desse paradigma científico foi colocar fora da esfera de discussão, aquilo que seria positivo e incontestável. A veracidade científica, portanto, seria aquela comprovada em fatos. A ciência do direito só poderia trabalhar com base em fatos positivos, reais, de forma a serem atestados como ocorridos ou não, empiricamente. Em face dessa perspectiva, da ciência a partir da observação dos fatos, a concepção psicológica e a sociológica surgem como divisores positivados do direito. A questão se desdobra em que tipo de fato constitui a positividade do direito para assim ser trabalhado no anseio científico. Para o primeiro segmento psicológico, os fatos jurídicos são os psíquicos, oriundos do mundo subjetivo, interior cujo âmbito de análise se concentra no livre arbítrio, no comportamento e na consciência do dever de cada um. Direito em sentido jurídico, é tudo aquilo as pessoas, que convivem em qualquer comunidade, reciprocamente reconhecem como norma e regra de viver em comum. [...] Uma norma de Direito que vem a apresentar-se como conteúdo do seu dever jurídico na medida em que ele sabe que, por um lado, ela lhe é dirigida por certos seus concidadãos e, por outro lado, a sua própria vontade a reconhece6. De outro lado, a concepção sociológica funda os fatos do direito naqueles sociais, provindos do mundo exterior, captados em sua objetividade social, ou seja, na forma dos interesses. Imperioso destacar que tanto para o positivismo sociológico quanto para o positivismo psicológico os fatos devem ser compreendidos segundo a causalidade. A identificação dessas causas, portanto, seriam capazes de explicar os acontecimentos. Nesta perspectiva, ou se considera o direito como uma realidade que existe como fato 6 BIERLING apud LARENZ, 1997, p. 50-51. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 100 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 na consciência humana – concepção psicológica – ou, se considera o direito como um fato social – concepção sociológica7. Ambas as teorias traziam paradigmas reducionistas, unilaterais e equivocados. A teoria psicológica do direito vê na vontade e no reconhecimento fundamento dos fatos comportamentais que edificarão as perspectivas jurídicas enquanto a teoria sociológica entende como direito o resultado de causas sociais, sejam elas econômicas, políticas, uma vez que possuem o condão de estruturar as instituições jurídicas além de atribuírem finalidades sociais ao direito. Kelsen, entretanto, diferentemente da percepção do positivismo clássico, não elencou mencionados enunciados para justificar sua teoria. Assim como a teoria clássica procurou excluir do direito aquilo que não pertencia à norma jurídica positivada, o austríaco, assim também o fez. Para tanto, elegeu como objeto, a norma jurídica, afastando qualquer tipo de comportamento psíquico, social da esfera científica de análise. A teoria pura do direito, por sua vez, adequou-se como uma concepção moderna do direito tanto em relação à autonomia adquirida, ao não abordar questões psicológicas e sociais como centro da análise, sendo a norma jurídica a essência do direito, quanto em face à garantia de abstração do direito ao ampliar seu âmbito de aplicação. O direito, que necessitava ser independente em relação aos interesses sociais, agora, o faz segundo a conectividade dos interesses ao Estado interventor, com o ideal de instrumento das políticas públicas estatais8. A positividade do direito para o austríaco encontra-se muito além da existência positiva, constituindo-se, também, pelas normas com validade jurídica, segundo uma norma igualmente positiva, sempre superior. A validade das normas jurídicas encontra seu 7 8 fundamento de validade naquelas normas igualmente jurídicas mas LARENZ, 1997, p. 48. Cumpre salientar que à época da elaboração da Teoria Pura do Direito, o modelo de Estado progredia para um ideal interventor necessitando do direito como um de seus principais instrumentos para concretização de políticas públicas. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 101 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 hierarquicamente superiores e pré-existentes9. Convoca, pois, para a ciência jurídica, o objeto ideal, que seria a norma fundamental. A ciência normativa do direito persegue não só a norma jurídica como também o resultado das proposições a respeito do sentido nas normas. De forma a endereçar tal positividade à validade normativa Kelsen necessita separar o direito da ciência do direito, realizando tal façanha através da relação entre linguagem e metalinguagem. Com o racionalismo lógico, considera a norma jurídica como a linguagem, através do dever-ser enquanto a ciência do direito, o estudo do sentido das normas jurídicas, seria considerado como a metalinguagem, no nível do que vem a ser o direito. Desde já, cumpre esclarecer que nosso objetivo não é realizar um esboço histórico da construção teórica de Kelsen, nem tão pouco realizar uma análise do que vem a ser os enunciados afirmados em sua teoria. O que se pretende, todavia, é alcançar a relação que existe entre a teoria pura do direito no tocante ao sentido único da norma e o conto a Sereníssima República. Dessa forma, achamos conveniente e necessário, expor os pressupostos que levaram o austríaco a chegar a tal conclusão, sem, contudo, realizar uma exposição de toda a bagagem teórica envolvida nessa ação, mas, tão somente, eleger os pontos principais de tal construção. 5 A CONTRIBUIÇÃO DA CIÊNCIA LINGUÍSTICA Como já mencionamos a análise central do presente artigo tem por escopo, relacionar a moldura do direito em Kelsen com a tentativa infundada das aranhas, no conto machadiano, em procurar criar uma única resposta correta para o caso concreto. Para tanto, não se pode olvidar da trajetória perseguida pelo austríaco na construção de tal paradigma, sem, todavia, realizar um estudo sistemático sobre tal matéria. A questão da linguagem se torna evidente nos escritos de Hans Kelsen. O neopositivismo lógico inaugurou um movimento teórico baseado na análise da linguagem procurando descrever o sentido dos fatos empíricos. O plano da relação 9 KELSEN, 2003, p. 215. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 102 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 analítica dos símbolos linguísticos será o objeto de análise da teoria em questão utilizando, Kelsen, de tais aportes. Sem pretender aprofundar a matéria, introduzimos, superficialmente, o pensamento de Wittgenstein para a questão Desde o neopositivismo do Circulo de Viena, considerando o sentido hipotético das proposições, a lógica não alcança a realidade. Na verdade, a lógica seria representada pelos símbolos que tem o condão de reconstruir a realidade na sua forma hipotética. A mediação entre a lógica e a realidade do mundo, segundo Wittgenstein, se daria pela linguagem. “O mérito de Russel10 é ter demonstrado que a forma aparentemente lógica da proposição não deve ser sua forma real. A proposição é figuração da realidade. A proposição é modelo de pensamento da realidade tal como a pensamos”11. As contribuições de Carnap, seguindo a mesma lógica da análise linguistica, ajudam numa melhor compreensão do desenvolvimento da Teoria Pura. Esse, por sua vez, trabalha com entidades abstratas cuja facticidade está nos símbolos da linguagem em geral, naqueles sintáticos-linguisticos. Divide a linguagem em I – constituída de signos com operadores lógicos diferentes que permitem a passagem de uma proposição para outra – e, em II sendo uma linguagem mais rica, complexa e mais abrangente do que a Linguagem I. Dessa forma, a Linguagem II abrange também a I. Todavia, mesmo para a linguagem II, Carnap considera as disciplinas normativas ou as filosofias de valores tais como a ética, moral, o direito como proposições metafísicas não tratáveis em termos lógico-formais12. Carnap demonstrou que uma proposição linguística correta no nível da Linguagem I não pode ser comprovada da mesma forma no nível da Linguagem II. Assim como na matemática, ciência exata, acobertada pelos empirismos científicos não permite existir axiomas completos e consistentes. Com efeito, uma proposição 10 11 12 Ver mais em Principia Mathematica, obra escrita pelo autor, famoso pelo paradoxo: o conjunto de símbolos que contém todos os conjuntos contém também a si mesmo? Ou, quem faz a barba do barbeiro que faz a barba de todos os homens da cidade? WITTGENSTEIN, 1968, p. 71. CARNAP, 2002, p. 278. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 103 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 linguística correta no nível da linguagem não pode ser afirmada no nível da metalinguagem. Embora se construa uma linguagem rigorosa em termos da lógica, não contraditória e coerente, ela apresentará uma margem de incerteza quando passada para outro nível linguístico. Por mais rigorosa que seja, toda linguagem produzirá lacunas quando da passagem de um nível para o outro. Aplicando o mencionado pensamento à teoria kelseniana, podemos observar a passagem de um nível para outro ao se tratar do direito – a norma jurídica – e, ciência do direito – a proposição. Além disso, a diferença entre os níveis normativos do ordenamento jurídico, desde a norma fundamental até os atos jurídicos corroboram com tal premissa. 6 A LINGUAGEM EM KELSEN Seguindo as premissas de Carnap, o austríaco, no campo do direito, diferencia a Linguagem I, a linguagem objeto da Linguagem II, a metalinguagem. À primeira corresponde o direito, aquele conjunto de normas que regula o comportamento humano13. A segunda, entretanto, seria a ciência do direito, aquelas proposições que explicitam o sentido são normas jurídicas14. A fim de se estabelecer uma unidade analítica do direito, na mesma linha de raciocínio de Carnap, Kelsen elege uma entidade abstrata para ser trabalhada e organizada em termos de uma ciência rigorosa da linguagem. Para tanto, elenca a norma jurídica para esse critério, como aquele arranjo dos símbolos linguísticos que edificam a positividade do direito. A norma jurídica passa a ser o objeto central da ciência do direito. A positividade, agora, configura-se, não mais nos fatores psíquicos ou fatos sociais, mas, tão somente na normatividade jurídica. O direito, pois, seria o conjunto de normas jurídicas válidas e por essa razão precisa ser delimitado, de forma analítica, em relação às demais esferas sociais como a ética, a moral e a política. 13 14 KELSEN, 2003, p. 5. Id., p. 80. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 104 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Quando a Teoria Pura empreende delimitar o conhecimento do Direito em face dessas disciplinas (a psicologia e a sociologia, a ética e a teoria política), fá-lo não por ignorar ou, muito menos, por negar essa conexão, mas porque intenta evitar um sincretismo metodológico que obscurece a essência da ciência jurídica e dilui os limites que lhe são impostos pela natureza do seu objeto15. Com efeito, a norma jurídica, por sua vez, garantia o ideal da identidade do direito em relação às demais normas da sociedade sejam elas éticas, religiosas, econômicas além da garantia da autonomia do direito em relação a outros campos normativos da sociedade. A linguagem da norma, na perspectiva de Kelsen, seria entendida como um esquema de interpretação do mundo. A teoria pura do direito, seria a resposta para aquilo que não é sociológico, nem psicológico tampouco positivista no sentido clássico, mas sim, dotada de normatividade, ao se basear no rigor lógico e formalístico da analise da sintaxe da linguagem do neopositivismo lógico. O fundamento dessa teoria não pode mais ser justificado em valores externos ao próprio direito. Exige, entretanto, que a validade do direito circule dentro dele. Segundo a sintaxe lógica de Carnap, Kelsen verifica a impossibilidade de se garantir uma única resposta correta ao direito. A linguagem normativa, por mais rigor que apresente, deverá ser interpretada tanto no contexto das normas superiores que lhe conferem a validade jurídica quanto em relação ao contexto das proposições da ciência do direito. Desta feita, o direito apresenta-se para a decisão jurídica como uma moldura. Esta por sua vez elenca inúmeras possibilidades jurídicas de decisão que impedem a expectativa de se eleger uma única resposta correta para os casos concretos. Analogicamente, se a linguagem, no maior rigor sintático e lógico apresenta uma margem de indecibilidade, a linguagem normativa do direito, da mesma forma, permitirá produzir decisões diferentes. A decisão jurídica, portanto, não admitiria apenas uma resposta correta. A ciência do direito sempre disponibiliza possibilidades de determinar o sentido de uma norma 15 Id., p. 1-2. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 105 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 jurídica. Dessa análise, a possibilidade, jurídica, de duas ou mais decisões diferentes sobre uma mesma situação concreta é válida. Para tanto, o direito permite a moldura, dentro da qual ficam as possibilidades de sentido, na qual a decisão jurídica estará logicamente correta. 7 DO CONTO MACHADIANO À TEORIA KELSENIANA Como proposto inicialmente, o presente artigo pretende analisar o conto machadiano segundo a teoria de Hans Kelsen. Importante salientar que dos escritos do austríaco se almeja extrair a questão da impossibilidade da única resposta correta. O conto, como já apresentado, relata a experiência das aranhas em relação aos procedimentos e ações alusivas às eleições ocorridas na Sereníssima República. Entretanto, diante dos vícios e equívocos ocorridos durante o processo eleitoral, as aranhas acharam oportuno e conveniente, modificar a lei para que assim pudessem alcançar a perfeição. O primeiro vício encontrado no processo eletivo refere-se ao fato de que duas bolas constantes no saco eleitoral estavam grafadas com o nome do mesmo candidato. A solução encontrada para o caso em tela foi a de se limitar a capacidade de tal saco, restringindo, dessa maneira, seu espaço. Consequentemente, na eleição seguinte, em virtude da diminuição do tamanho do saco eleitoral, um candidato deixou de ser inscrito. Agora, todavia, o erro incidiu sobre a pessoa do oficial público, o responsável pela extração das bolas, sem se saber ao certo se o descuido foi proposital ou não. Da conclusão, decidiu-se que na verdade, o que ocorrera fora mera distração, não sendo tal ação passível de punição. Com efeito, revogou-se a lei que estipulou a restrição do saco. Diante dessas duas primeiras constatações, já se pode perceber que a perseguição nesse modelo aracnídeo seria a tentativa de buscar a lei perfeita, ausente de lacunas e incoerências. Em que se pese, a procura por tal ideal, a mudança, na estrutura das normas, não necessariamente proporcionará um ordenamento mais ou menos perfeito. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 106 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 O terceiro equívoco acontece em virtude da falta da grafia de uma das letras referentes aos nomes dos candidatos. Por se tratar de erro puramente literário, uma elipse, seria necessário rever a lei, já que, segundo aquelas circunstâncias, ninguém poderia ser punido. A solução acertou-se na mudança do saco, agora feito de malhas, Diante de um novo vício, a ideia das malhas foi condenada, restaurando o saco para sua antiga forma, mas, para evitar futuras contradições, novo procedimento foi formulado. Desta vez, 5 pessoas que jurassem ser o nome inscrito, o nome do candidato, a eleição seria válida. Antes de adentrarmos no último vício relatado no conto, acredita-se ser de fácil percepção que os vícios apresentados constituem um arquétipo daquilo que Kelsen rejeita: a busca pela perfeição. Nota-se que para cada nova ordem normativa, se espera um comportamento único, sendo aquela ação fora das expectativas previstas, uma anomalia ao procedimento eleitoral, tornando necessária a mudança da lei para uma nova que assegure as condições exatas para o funcionamento perfeito do sistema. Dos relatos apresentados, todos eles demonstraram a tentativa de se alcançar o sentido único da norma, sem se considerar as demais possibilidades passíveis de tutela. A cada nova lei, novos vícios. Mas, a percepção de que se poderia alcançar uma melhor eficiência estipulando-se as possibilidades normativas determináveis, não é observada. A relação de tais atitudes à teoria kelseniana se torna evidente. O austríaco reconhece a falta de possibilidade de se pretender a uma única resposta correta. Mesmo a linguagem, por mais rigorosa que seja não é capaz de alcançar a lógica perfeita. E assim, também o é em relação às normas jurídicas. Por fim, em virtude do novo estatuto, um novo caso surgiu. A disputa dessa vez era entre o candidato Caneca e Nebraska. A bola extraída foi a de Nebraska. Todavia, o equívoco encontrava-se na falta da última letra do nome Nebraska. Apesar de o processo eleitoral aparentar ter seguindo todos os procedimentos, o candidato caneca requereu sua defesa. Após o deferimento de seu pedido, articulou seu argumento, como exposto no tópico do resumo do conto. O que se chama a atenção neste episódio é que, KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 107 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 apesar do texto legal estar coerente com as finalidades do ordenamento jurídico, ainda assim, criam-se circunstâncias extralegais a fim de se fazer do texto legal, o que bem se pretende, como fez o candidato Caneca. A decisão jurídica, como apresentada por Kelsen, não é uma decisão que decide sobre qualquer coisa, sem um quadro de possibilidades decisórias elencadas. Na verdade, para a Teoria Pura do Direito, faz-se necessário o rol de determinações normativas. 9 CONCLUSÃO O conto machadiano A sereníssima república chama a atenção pela atemporalidade da obra, a qual permite a discussão de assuntos que ainda nos tempos atuais, são polêmicos, assim como o processo eleitoral. Para o presente artigo, entretanto, o ideal proposto foi discutir a procura por uma lei que tenha um único sentido, seja perfeita por si só e que, além disso, produza apenas as consequências nelas previstas. Em que pese tal pressuposto, já se sabe que seria infrutífero se criar normas jurídicas com a prerrogativa de serem únicas nas suas possibilidades em razão dos complexos casos concretos em que lhes são propostas. Dessa maneira, seria necessário não apenas uma única resposta, mas várias capazes de serem extraídas do mandamento legal. A escolha de Hans Kelsen como marco teórico para o desenvolvimento do presente artigo coadunou-se com a ideia de relacioná-lo à tentativa infundada da república das aranhas em buscar a lei perfeita, vale dizer, o sentido único da norma jurídica. O austríaco, na construção da Teoria Pura do Direito, esclarece que a pretensão de se alcançar o sentido unívoco da norma jurídica torna-se impossível. Isto porque, nem mesmo a mais exata das linguagens, a ciência da matemática, consegue ter sua proposições perfeitas. As lacunas e incoerências encontradas em tais signos linguísticos fazem parte do corpo normativo jurídico. A tentativa de se atingir a perfeição das normas resulta por ser um projeto infundado. Por essa mesma razão, o KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 108 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 austríaco elabora a chamada moldura do direito, capaz de abarcar o rol de possibilidades determináveis à aplicação ao caso concreto. REFERÊNCIA ASSIS, Machado. Papéis avulsos. São Paulo: Martins Fontes, 2005. CARNAP, Rudolf. The logical syntax of language. Trad. de Amethe Smeaton. Illinois: Open Court, 2002. COMTE, August. Curso de filosofia positiva. Trad. de José Arthur Giannotti e Miguel Lemos. São Paulo: Abril Cultural, 1978. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. Trad. de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2003. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. 3. ed. Trad. de José Lamego. Lisboa: Fundação Calouse Gulbenkian, 1997. WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Trad. de José Arthur Giannotti. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 109 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 PLENÁRIA MALUCA: O JULGAMENTO DE PEDRINHO, O LÚDICO E O DIREITO H UGO R AFAEL P IRES DOS S ANTOS 1 R ENATO B ERNARDI 2 RESUMO: O Supremo Tribunal Federal julgará, em sessão plenária, o Mandado de Segurança n°. 30.952, impetrado na Corte Suprema pelo Instituto de Advocacia Racial e pelo técnico em gestão educacional Antonio Gomes da Costa Neto, suscitando eventuais aspectos racistas na obra Caçadas de Pedrinho, do escritor Monteiro Lobato. Diante disso, o presente artigo apresentará um julgamento feito pelos próprios personagens do autor, que contará também com a participação especial de um quadro expressionista de Anita Malfatti. O objetivo deste trabalho é aproximar do Direito o universo lúdico que envolve o tema, visando a resolver o conflito entre os princípios constitucionais da liberdade de expressão e do repúdio ao racismo. PALAVRAS-CHAVE: Aspectos racistas; Caçadas de Pedrinho; Monteiro Lobato; universo lúdico; direito; conflito. 1 2 Graduado em Letras/Literatura pela Universidade do Norte Pioneiro (2009); Acadêmico de Direito nas Fio – Ourinhos, SP. Bacharel em Direito pela Instituição Toledo de Ensino – ITE-Bauru (1992), Mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino – ITE-Bauru (2003) e Doutor em Direito do Estado (sub-área Direito Tributário) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP (2009). Foi Coordenador da Faculdade de Direito das Faculdades Integradas de Ourinhos - FIO (2006/2007). É Coordenador do PROJURIS Estudos Jurídicos Ltda. Professor efetivo do curso de Pós-Graduação stricto sensu - Mestrado - e do curso de Graduação da Faculdade de Direito do Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP, Campus de Jacarezinho. Professor dos cursos de pós-graduação lato sensu - Especialização - do PROJURIS/FIO. Professor licenciado do curso de Graduação da Faculdade de Direito das Faculdades Integradas de Ourinhos FIO. Tem experiência na gestão acadêmica e na docência superior na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional, Direito Tributário e direito administrativo. autor de vários artigos na área jurídica e do livro a inviolabilidade do Sigilo de Dados. Procurador do Estado de São Paulo desde 1994. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 110 ANAIS DO II CIDIL 1 V. 2, N. 1, JUL. 2014 O LÚDICO: O CASO SOB O JULGAMENTO DA TURMA DO SÍTIO Ora, ora, vejam só quem está a lhes falar nessa estória maluca3 que envolve todos do Sítio do Pica-pau Amarelo, no julgamento pelo Supremo Tribunal Federal. Eu sou o Jeca Tatu, conhecido de vocês de outras passagens. Mas, fiquem tranquilos, pois me cansei do campo e da vida pacata que eu levava, e vim-me embora para a cidade, onde me tornei amigo de gente importante4 e aprendi a ler e a escrever corretamente, de modo que não vos causarei nenhum estrago neste relato. Contudo, devo dizer a meu crédito, que pretendo contar-lhes o ocorrido de uma forma bastante diferente, diria até um tanto quanto poética, suscitando o lado lúdico da vida. Pois, vejam, estou farto do juridiquês que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo5. A estória é a seguinte: a Cuca ficou sabendo que o Pedrinho, em uma de suas caçadas com os seus amigos, havia chamado a Tia Nastácia de "macaca de carvão"6 e isso, segundo a Cuca, revelaria fortes traços racistas contra a população negra de todo o país. Por conseguinte, impetrou no Supremo Tribunal Federal um Mandado de Segurança7, em que pediu a punição de Pedrinho, para que fosse impedido de frequentar quaisquer escolas da rede pública de ensino. A acusação sustenta que o presente caso não é algo banal, pois enseja a recriação, de geração em geração, da prática nefasta do racismo. Avisados da denúncia contra Pedrinho, a turma do sítio decidiu resolver a questão em sessão plenária, que ficou organizada da seguinte maneira: a Cuca será a advogada de acusação, defendendo que houve racismo nas falas do Pedrinho; o Pedrinho fará a sua própria defesa; o Procurador-Geral será o Marquês de Rabicó; e os onze ministros da Casa serão: a Emília, que insistiu por demais para participar do julgamento, pois disse ter argumentos fortíssimos para sua fundamentação; aí vem o 3 4 5 6 7 Neologismo proposto por João Ribeiro para se referir a conto popular, folclórico. Referência ao poema Vou-me embora pra Pasárgada, Manuel Bandeira. Alusão à Poética, Manuel Bandeira. Na literalidade do livro Caçadas de Pedrinho é o próprio narrador (Monteiro Lobato) que chama a Tia Nastácia de “macaca de carvão”, mas no universo deste artigo, optamos por imputar este ato a Pedrinho, que como será visto adiante, representará por vezes o seu autor. MS 30952 a ser julgado em Sessão Plenária pelo STF. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 111 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Visconde de Sabugosa; o Detetive X B2; senhor Fritz Muller; o moleque risonho e peralta, Saci; o Tio Barnabé, sempre com uma boa estória para contar; o Zé Brasil, que tem afinidades com o comunismo; a embirrada da Narizinho; e por fim, um tal de Homem de Sete Cores, pois pasmem, ele quis participar do julgamento porque guarda uma mágoa muito grande da turma do sítio, mas uma mágoa que não chega a ser ódio, segundo ele8. Cada um dos membros terá o seu momento de falar e defender o seu voto. As partes manifestar-se-ão em acusação e defesa, respeitando-se sempre o decoro da casa, e já fique de sobreaviso a boneca Emilia para que não extrapole nas suas argumentações, pois todos sabemos que essa boneca de pano tem aptidão à fala, e quando começa não quer mais parar. A tia Nastácia, coitadinha, está apreensiva com essa reunião, pois ama todos do sítio, e disse que jamais queria ver o mal do Pedrinho. A Dona Benta, por seu turno, optou por nem assistir ao julgamento, preferiu ficar em casa fazendo bolinhos de chuva para toda a turma, pois sabe que as sessões plenárias são demasiadamente demoradas e cansativas. E o último recado que importa repassar é o de que estamos em um mundo de imaginação, onde boneca de pano fala e um quadro modernista cheio de cores terá direito a voto, ao lado de um porquinho que se diz marquês, de um sabugo que se diz visconde, e de toda uma trupe para lá de animada, que sabe da importância que tem essa decisão para a História do Brasil, bem como para as gerações futuras. Lido o resumo deste trabalho, convido-os a entrar conosco nessa fantástica viagem que une Direito, princípios constitucionais, História, fantasia e realidade. Com a palavra, convido a doutora Cuca a apresentar a sua acusação. 8 Quadro da Anita Malfatti. Todos sabem que Monteiro Lobato criticou assiduamente as tendências artísticas de Anita; creio que esta seja a hora da vingança, pois o Homem de Sete Cores terá a oportunidade de votar pela condenação de Pedrinho. Muito se discutiu se isso não seria motivo de impedimento ou suspeição, mas a decisão foi unânime no sentido de que o Exmo. Ministro deveria participar da Plenária para acalourar ainda mais o debate, e é claro, colorir o ambiente com as suas sete cores. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 112 ANAIS DO II CIDIL 1.1 V. 2, N. 1, JUL. 2014 Doutora Cuca Senhoras e senhores, Excelentíssimos Ministros que compõem esta sessão plenária, recebam os meus cumprimentos. Passo a compor a minha acusação sob o prisma de que Pedrinho cometeu racismo contra Tia Nastácia, atingindo a honra de todas as pessoas negras do Brasil, em razão das suas ofensas contra a pobre Tia, ao chamá-la de "macaca de carvão". É fato sabido e notório que exposições desse tipo subjugam a cultura negra, relegando todo um grupo de pessoas ao escárnio; não podemos ser coniventes com ações dessa natureza, haja vista que nossa sociedade padece de um sentimento de racismo perene e sorrateiro, diferentemente dos Estados Unidos da América onde a existência um ódio racial declarado favorece a defesa dos oprimidos, pois não se esconde entre piadas e histórias de mau gosto. Se isso é bom, eu realmente não sei dizer, e também não pretendo entrar no mérito dessa questão, mas a bem ver, fato é que no Brasil ninguém se tacha como racista, mas esse mal se revela em pequenas palavras e pequenos gestos, que se perpetuam em torpes e nefastos costumes. Posto isso, se me permitem, trago à baila uma profecia que ouvi certa vez no meio da floresta, em uma das poucas vezes que deixei minha caverna para buscar produtos para as minhas poções mágicas: Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles negros, índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos. Como descendentes de escravos e de senhores de escravos seremos sempre servos da maldade destilada e instilada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer mais, quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças convertidas em pasto de nossa fúria9. Vejam só, nobres colegas, somos oriundos de uma sociedade escravocrata, que sacrificou a vida de milhares de pessoas pelo lucro, que explorou a mão de obra de pais e filhos, em busca de um enriquecimento perverso e desmedido. Deixamos de lado 9 Cf. Darcy Ribeiro, O povo brasileiro. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 113 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 nossos sentimentos pelo próximo, a troco de dinheiro e mais dinheiro. Ora, depois de séculos de lutas e de conquistas, depois de leis criadas para proteger os negros e criar mecanismos para a sua inserção social, será plausível pactuarmos com as práticas racistas do menino Pedrinho? Ademais, impende frisar que fundamento minha acusação no ordenamento jurídico pátrio, afinal, quando não estou ocupada com os meus afazeres e minhas malvadezas, estou sempre pesquisando os códigos, pois quero crer que as leis possuem mais eficácia que minhas poções mágicas, e espero sair hoje desta sessão satisfeita com a realização da Justiça! Para concluir minha acusação, confesso nutro uma inveja muito, muito grande pela turma do sítio, e que não topo nenhum de seus moradores, mas, a bem da verdade, não é esse o sentimento que me move aqui hoje para pedir a condenação do Pedrinho, uma vez que sobrepuja em mim o desejo de ver extinta toda e qualquer forma de racismo neste país, o desejo de fazer valer o repúdio da Constituição Federal ao racismo, conforme eu li, naquele prolixo livro, num fim de tarde sombrio em minha caverna10. Finalmente, e para não me alongar ainda mais, requeiro que Pedrinho seja condenado pela prática de racismo e, como punição, não possa mais frequentar nenhuma escola da rede pública de ensino. 1.2 Doutor Pedrinho Bom dia a todos. Quero saudar os Excelentíssimos Ministros e dizer que, muito embora as acusações que me foram feitas sejam gravíssimas, pretendo não falar de mim nesta Suprema Corte, pois a História está a meu lado para mostrar que eu não sou culpado. Hoje eu quero falar da Tia, essa pessoa fantástica que fez e faz parte da minha vida, e creio que da vida de muita gente neste país, de modo que ao final do meu 10 Ver Art. 4º, VIII, CRFB/88. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 114 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 discurso ficará claro que eu não tive a intenção de menosprezá-la, ao contrário do que me acusou a Cuca. Tia Nastácia é uma danada! Pessoa bondosa por natureza, cujos ensinamentos me ajudaram a ser o que sou hoje. Com ela, eu aprendi que não é preciso muito na vida para ser feliz. Nas minhas noites sem sono, me fazia viajar com suas histórias sobre o folclore brasileiro, ensinando-me quase sem querer, com a sua doçura, coisas sobre o meu Brasil, para que eu aprendesse a valorizar a minha História e a não cultuar apenas os valores estrangeiros, tão enraizados em nossos costumes. E por falar em doçura, como esquecer do sabor dos quitutes que só a Tia Nastácia sabe fazer?! Se vocês não sabem, essa danada cozinhou até para São Jorge, na Lua! E digo mais, depois de provar seus biscoitos de polvilho, o Minotauro nunca mais comeu gente, só queria saber dos benditos docinhos! A Tia Nastácia é realmente uma pessoa fantástica! Certa vez, enquanto ela me preparava para dormir, dois passarinhos vieram à janela do meu quarto, e foram testemunhas do amor recíproco que há entre nós. Os dois pararam para ouvir as estórias que ela me contava e, e ao final, entoaram uma canção em homenagem à Tia: Sinhá Nastácia que conta história Sinhá Nastácia sabe agradar Sinhá Nastácia que quando nina Acaba por cochilar Sinhá Nastácia vai murmurando estória para ninar...11 Não pretendo me estender mais, porque estou realmente emocionado, e como já disse a Cuca, espero que a Justiça seja feita aqui hoje. E mesmo que eu seja condenado, se essa for a Justiça, eu só peço que não me afastem da Tia e dos meus amigos; porque eu sei que mesmo que eu não possa mais frequentar nenhuma escola, eu tenho muito a aprender com a turma do Sítio. 11 Música de Dorival Caymmi, interpretada também por Zeca Pagodinho. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 115 ANAIS DO II CIDIL 1.3 V. 2, N. 1, JUL. 2014 Procurador-Geral: Marquês De Rabicó Eminentes Ministros, também serei breve nas minhas considerações, tendo em vista que pretendo me pautar tão somente no sistema jurídico brasileiro para análise do presente caso. Ora vejamos, o réu chamou a Tia Nastácia de "macaca de carvão", e essa expressão configura, em tese, o crime de racismo, tipificado no artigo 20 da Lei 7.716/89, pois, ao chamar a cozinheira de "macaca", implicitamente imputou uma qualidade pejorativa a todo um grupo de pessoas da cor preta. Para inibir crimes dessa natureza, nossa Carta Magna prevê em seu artigo 4°, VIII, um repúdio ao racismo, equiparando-o ao terrorismo. A bem ver, parece-me correta essa postura repressora do nosso constituinte, porque toda forma de racismo é atroz, segrega os povos e aniquila a união e a boa convivência entre as mais diversas culturas. Ora, caros colegas, o texto do artigo 20 da Lei 7.716/89 estabelece que é racismo: "Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, etnia, religião ou procedência nacional". De acordo com os elementos de prova, Pedrinho praticou o crime de racismo contra a Tia Nastácia. O réu tenta nos emocionar com o seu discurso romântico, exaltando as qualidades da suposta vítima, mas não menciona que por vezes a Tia tentou me cozinhar, sendo que em uma dessas cenas quase fatídicas, fui salvo pela Narizinho, de modo que se ela não tivesse chegado eu não estaria aqui hoje como Procurador. Ou seja, o réu nos descreve a Tia de forma platônica, apenas e tão somente para desviar o foco da acusação. Não obstante, cumpra-se o diploma legal. As emoções não devem ser acolhidas neste julgamento. 1.4 Excelentíssima Ministra Emília Ai que raiva que me dá esse Marquês fajuto de meia tigela! Olha aqui, seu Procurador, não me venha com esse papo de "as emoções não devem ser acolhidas KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 116 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 neste julgamento", pois se você não sabe, toda forma de justiça fria e vazia não é senão injustiça! O que o senhor fez com as suas emoções? Comeu-as também, seu procurador de comidas inveterado! 1.5 Jeca Tatu interrompe Emília Infelizmente, a boneca Emília perdeu seu direito de voto e deverá se retirar do plenário. Pois, como eu havia dito no início desta sessão, os membros desta casa devem manter o decoro em suas manifestações. Não toleraremos mais as loucuras da "gentinha"12. Com a devida vênia retornemos aos votos. Passo agora a palavra ao nobre e sábio Ministro Visconde de Sabugosa. 1.6 Excelentíssimo Ministro Visconde De Sabugosa Boa tarde a todos os presentes a este julgamento. Lamentável o episódio ocorrido, mas todos já esperávamos algo de surpreendente na pronúncia da peculiar boneca Emília, pois nessas horas os nervos ficam à flor da espiga, digo, à flor da pele13. Então, vejamos, a acusação está baseada em uma suposta frase racista pronunciada pelo menino Pedrinho contra a Tia Nastácia. A acusação da Cuca está muito bem fundamentada, haja vista que suscitou elementos históricos relevantes. A manifestação do eminente Procurador, por sua vez, nos trouxe fundamentos jurídicos suficientes para se punir a prática maléfica do racismo. A defesa do Pedrinho foi magnânima, e concordo com cada palavra dita por ele sobre a idoneidade, a bondade e a simplicidade da Tia Nastácia. Feito esse breve apanhado das considerações até aqui, afirmo no tocante ao combate ao racismo, que concordo com tudo o que foi dito pelos acusadores. No entanto, no caso sub judice não há elementos configuradores da prática delitiva, especialmente se analisarmos o contexto em que foram exteriorizadas tais palavras. 12 13 Como costumava chamá-la carinhosamente, em alguns livros, Monteiro Lobato. O Visconde morre de medo da boneca Emília, por isso tentou justificar a atitude dela. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 117 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Ademais, o próprio texto é solucionador desse impasse. Relembremos: Tia Nastácia estava em apuros, desesperada em virtude da chegada das onças e de outras feras extremamente perigosas, que avançavam para atacar o pessoal do sítio. Sem saber o que fazer, no auge da sua aflição, a única saída para se salvar era subir no mastro apontado pela menina Cléo, e foi o que ela fez. Subiu com tal agilidade, esquecida de seus numerosos reumatismos, que até parecia não ter feito outra coisa senão trepar em mastros (LOBATO, 2009, p. 39). Sua destreza, impulsionada pelo desespero de buscar a salvação, era tal qual a de uma macaca acostumada a viver nas alturas. Vejam só a força que tem o desespero do ser humano diante da ameaça de morte, capaz de aflorarlhe talentos até então desconhecidos da sua natureza. Nesse contexto, não vislumbro nenhuma agressão à moral da tão venerada Tia Nastácia. O termo empregado "macaca de carvão" tem o objetivo de reforçar a idéia de que a Tia naquele instante demonstrou habilidade surpreendente, e subiu com a agilidade de um macaco no mastro. Ora, se não fosse a situação de risco que se apresentava naquele cenário, em que sobrevivemos por pouco ao ataque das onças, uma senhora de idade avançada, cheia de dores pelo corpo, não teria obtido êxito em sua fuga. De tal sorte que, para demonstrar a façanha ocorrida naquele momento de êxtase em que estávamos, por termos sido salvos, e por também ter se salvado a Tia, foi que houve a comparação. Ante o exposto, não vislumbro nenhum traço racista na fala de Pedrinho, cuja única intenção, como ficou demonstrado, foi a de exaltar a agilidade da Tia em ter se salvado do ataque das onças, nada mais que isso. 1.7 Excelentíssimo Ministro Detetive X B2 Minhas saudações aos Senhores. Quando tomei conhecimento deste caso, encaminhei um pedido a esta Corte Suprema, solicitando a minha participação no julgamento. Como todos sabem, eu pertenço às Forças Armadas do País, e possuo exímios dotes para a investigação. Missão dada é missão cumprida! KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 118 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 O governo sabe o que faz (LOBATO, 2009, p. 60)!14 Após as minhas diligências, verifiquei existir notadamente, neste caso, um conflito entre dois princípios constitucionais, quais sejam: repúdio ao racismo versus liberdade de expressão. Pois bem, nossa Carta Magna prega o repúdio ao racismo, equiparando-o ao terrorismo, e o estabelece imprescritível e inafiançável. Nota-se, clarividente, a severidade com que o constituinte tratou de tal crime. Não obstante, cuidou de resguardar também, dentre outros, o princípio da liberdade de expressão; eis onde surge o nosso conflito. O bom senso deve prevalecer em decisões de casos como este; em que ambos os direitos são tutelados pela Carta Maior. Cumpre ainda lembrar que, independentemente do princípio valorado, a opção por um deles não retira o status de constitucional do outro. Teria Pedrinho subjugado toda uma cultura negra com a sua frase em sentido pejorativo? Teria apenas exercido sua liberdade de expressão? Pedrinho é racista? Ser ou não ser? - eis a questão!15 A situação é verdadeiramente delicada, mas compartilho da tese defendida pelo eminente Ministro Visconde de Sabugosa, ou seja, ponderando sobre o assunto, a escolha mais adequada, neste caso, é o privilégio à liberdade de expressão. Pedrinho apenas exerceu o seu direito constitucional de se exprimir, não restando configurada, portanto, a prática delitiva do racismo. O governo sabe o que faz! 1.8 Excelentíssimo Ministro Fritz Müller O nobre colega lembrou bem o conflito de princípios que se apresenta no presente caso. Todavia, ouso discordar do seu posicionamento, Eminente Ministro, uma vez que não vislumbro um conflito direto de princípios, já que, caso seja 14 15 O respeitadíssimo Detetive X B2, não se cansa de repetir o jargão “O governo sabe o que faz”. Frase célebre de Hamlet, William Shakespeare. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 119 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 condenado por racismo, Pedrinho não perdeu o seu direito de expressão. Explicarei melhor. O conflito de princípios se verifica nos casos em que devemos optar por um dos valores garantidos constitucionalmente. Notem que o direito à liberdade de expressão se exaure no momento em que o indivíduo teve a liberdade de concluir a sua pronúncia, de tal sorte que não pode ser meio para dissimular as consequentes responsabilidades que esse discurso porventura gerar. Ou seja, se a liberdade de expressão gerar uma ofensa verbal, o ofendido pode perseguir seu direito à reparação do dano. Ora, Pedrinho teve a liberdade de se expressar e, se for o caso, deve ser responsabilizado se a sua pronúncia atingiu a honra e a moral dos seus interlocutores. E, ao que se evidencia, essa tal comparação feita entre Tia Nastácia e uma "macaca de carvão" soa com conotação pejorativa, o que justifica, em tese, que o acusado seja impedido de frequentar quaisquer escolas da rede pública do país como forma de punição. 1.9 Excelentíssimo Ministro Conselheiro Caminhamos para o final da tarde e é natural que o cansaço vá nos tomando e trancando nossos olhos e ouvidos para o verdadeiro entendimento do caso. Por isso, serei o mais sucinto possível. Diante da complexidade do caso e da constatação de que as duas correntes de argumentação são boas e convincentes, eu proponho um acordo entre as partes. Pedrinho deve ser punido, mas proibi-lo de frequentar as escolas públicas é uma pena severa demais, desproporcional eu diria. A solução mais plausível é a de que Pedrinho seja submetido um acompanhamento didático de qualidade, para que lhe seja transmitida a história dos povos africanos. De outro norte, Pedrinho deve ser identificado como o menino que deixou de ser racista, e essa informação deve ser pública, ao acesso de todos. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 120 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 1.10 Excelentíssimo Ministro Saci Oi gente, vocês me desculpem se eu começar a rir sem motivos, mas é que sou assim mesmo, estou sempre de bem com a vida. E aqui em mim a tristeza chora de tanto rir. Vamos terminar logo com isso, porque já estou ficando cheio de fome, e a Cuca já me instruiu sobre o que eu tenho que falar. A Tia Nastácia é culpada, digo, é vítima de racismo nesta história. Eu estou sempre rodeando o sítio e sou testemunha dos maus tratos que a pobre Tia sofre diariamente. Para falar a verdade, esse povo do Sítio só gosta dela porque a Tia cozinha que é uma delícia, e porque ela conta muitas estórias do folclore brasileiro, e também porque ela é a pessoa mais bondosa que todos nós já conhecemos. Só por isso que gostam dela. Eu sou a favor da condenação do Pedrinho por racismo. Ele merece ser impedido de frequentar as escolas, e isso até será bom porque daí a gente vai poder brincar junto, escondido o dia inteiro. Antes de finalizar, eu trouxe aqui uma lista com algumas reivindicações a fazer, e gostaria que os senhores anotassem aí, para depois a gente poder fazer uma sessão plenária para discutir sobre isso também: eu quero uma muleta, cansei de ficar pulando num pé só; preciso de roupas novas, tenho aversão ao vermelho; necessito urgentemente de um boné, essa minha touca não está com nada; por último, me chamem de Sacir, porque Saci não soa bem16. 1.11 Excelentíssimo Ministro Tio Barnabé Boa noite minha gente, como é que vocês estão? Muito cansados? Oxalá que esse julgamento logo se acabe. Por sinal, um julgamento muito importante para nós lá do Sítio e para todos que se encantam com uma estória bem contada. 16 Crítica ao politicamente correto, em detrimento a perda de identidade das obras literárias. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 121 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Eu não vou falar de leis e nem de Constituição, mesmo porque o que eu gosto de fazer é contar estórias, não sou bom para os causos jurídicos. Se ninguém se importar, eu quero contar, em poucas palavras, como é a nossa vida lá no sítio donde a gente mora. Nós vivemos em perfeita harmonia lá no campo; lá a gente ouve até o cantar dos pirilampos. Ah! Como é boa a nossa vida. Eu fiquei até triste pelo amigo Jeca Tatu, o senhor não podia ter deixado a fazenda não rapaz, a vida na cidade é muito agitada, e as pessoas são desconfiadas por demais, ninguém acredita em ninguém. Tudo tem que ter prova. Tudo tem que estar escrito. É um querendo o mau do outro. Isso não é certo não. A vida no campo é regada de bondade, lá não tem essas de papel não, se falou está falado! E não carece de mais nada. O que mata essa gente moderna é a maldita desconfiança de tudo e de todos, para eles tudo tem um duplo sentido, tudo é para o mal. Eu pergunto para vocês, seus modernos desconfiados: vocês acham mesmo que o sinhozinho ia querer o mau da Tia? Que ele ia querer desmerecer essa danada da Nastácia? Se é ela que nos lembra a todo instante dos nossos valores, dos nossos costumes; se é ela que conta estórias de ninar para essa meninada toda; se é ela que faz renascer em nós o orgulho de sermos brasileiros? O sinhozinho soltou uma palavra de tão contente que estava de ter visto a Tia se salvar, porque o desespero deu a ela os mesmos dotes de um macaco, que dos animais é o mais rápido para subir em árvores. Se não fosse esses dotes de última hora, a Nastácia já teria morrido fazia tempo, porque aquelas onças raivosas já tinham comido era tudinho a tia. O momento é de alegria, não de acusação. Vamos é parar de ficar acusando os outros; vamos nos preocupar em fazer o bem, simplesmente isso. E de tudo que eu já vivi, eu posso garantir com toda a minha sinceridade que a Literatura, os causos do folclore brasileiro e toda forma de arte só fazem o bem, nunca o mau. Deixa a meninada brincar, e aproveitar essa que é a melhor fase da vida, a infância. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 122 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 É claro que o Pedrinho é inocente! E esse moleque Saci vai ver comigo quando ele voltar lá pro Sítio. Ah! Se eu te pego. 1.12 Excelentíssimo Ministro Zé Brasil Caros Ministros, meus cumprimentos a todos. Os defensores de Pedrinho apresentaram como argumento a tese de que não se pode analisar o caso sem o contexto em que foi dita a suposta ofensa. Eu gostaria de ir um pouco além, e dizer que não se deve analisar a frase, ora em questão, sem trazer à tona um pouco da História do país. Isso é, para se entender o que se pede, não basta explicar o momento de desespero da Tia em fugir das onças e a consequente frase de "exaltação" do Pedrinho; deve- se voltar os olhos ao passado e, por conseguinte, avançar para o presente. Pois bem, como a Cuca já ressaltou em sua acusação, o Brasil foi uma sociedade escravocrata onde pessoas de determinado grupo foram escravizadas e submetidas a condições subumanas, fruto da ambição do homem e da falta de sensibilidade e solidariedade para com o próximo. Após quase 350 longos e terríveis anos, um homem cria aquela que seria uma das leis mais significativas do país, quiçá a mais importante. Com apenas dois artigos e em sucintas quatro linhas, Joaquim Nabuco pôs fim à exploração mais perversa que este País já vivenciou. Era a Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel em 1888. Nada obstante, Nabuco falou pouco. Uma prática perversa não se resolveria em apenas dois artigos; deveria ter escrito mais, pois os negros absolvidos não tinham para onde ir; ficaram abandonados, sem emprego, sem casa, sem comida, foram remetidos às margens da sociedade, onde permaneceram, a sua grande maioria, por mais longos e sacrificantes anos. A liberdade conquistada só tinha uma vantagem concreta: de escravos do senhor de engenho, passaram a ser escravos do sistema. Ao decorrer do tempo, eis que os negros foram ascendendo aos poucos na escala social, e hoje aquele grupo antes esquecido às margens, consegue questionar as amarras e ofensas que sempre estiveram presentes em sua trajetória. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 123 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Importante observar que atualmente se trava uma luta muito grande contra o racismo, pois esse costume nefasto, arraigado aos costumes brasileiros, perpetua-se de geração em geração, e um dos modos dele se propagar é, sem dúvida, por meio da arte e dos meios de comunicação, que querem fazer crer que o racismo é algo banal, quando isso não é verdade! O racismo é coisa séria e vem fantasiado de piadas, de anedotas que se dizem engraçadas. É temeroso ensinar às nossas crianças que certas formas de combatê-lo é sensacionalismo, é politicagem. Devemos ficar atentos às palavras que pronunciamos, pois elas ferem. Em consequência, toda arte que anunciava o negro como marginal, toda literatura que desmerecia o ex-escravo e toda forma de racismo, ainda que sob a alcunha de descrição contextual da época, devem ser extintas do novo modelo social que ora se almeja. Pois: Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou, ainda, por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar (MANDELA, 1994). Necessário dizer que eu não condeno o menino Pedrinho pela comparação infeliz que fez à Tia Nastácia, ele é um menino da sua época e que viveu sob fortes cargas racistas, haja vista que os negros até pouco tempo não tinham expressividade no âmbito social. Mas bem se sabe que não se pode valer da própria torpeza, ou seja, muito embora Pedrinho também seja vítima do seu tempo, fato é que atualmente não se admite mais quaisquer atos com elementos racistas que ofendam a dignidade da pessoa humana. Diante do exposto, ainda que me arda o coração, peço a condenação do pobre Pedrinho, haja vista que, como diria meu amigo, um andarilho que fica sentado o dia todo lá na praça a conversar comigo: "é preciso que os homens bons respeitem as leis más, para que os homens maus respeitem as leis boas"17. 17 Alusão a Sócrates, o filósofo grego da praça pública (Ágora). KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 124 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 1.13 Excelentíssima Ministra Narizinho Ai gente, vocês não acham que estão exagerando demais nas acusações? Nossa! É uma história de crianças, onde o mais importante é se divertir, brincar, ouvir estórias do nosso folclore. Vocês que acusam o Pedrinho não conseguem entender o verdadeiro espírito da arte. Toda criança é arteira, as brincadeiras são as nossas únicas responsabilidades. Incriminar o Pedrinho é descarregar um fardo muito pesado e negativo sobre as nossas costas, até porque não é somente o Pedrinho que será punido, mas, indiretamente, toda a turma do Sítio. As melhores aventuras que eu vivi foram lá no sítio da nossa avó. Como é bom viver essa história! Me divirto muito com a turma do Sítio, com a estressada da Emília, que só sabe dar ordens ao pobre do Visconde, e o Marquês de Rabicó que só pensa em comida!? Ah! - a Tia Nastácia, com os seus quitutes maravilhosos! Tem o Tio Barnabé; o Quindim, que não veio aqui hoje, mas que é um rinoceronte muito amável. Sinceramente falando, nós vivemos em perfeita harmonia. Não teríamos motivos para querer o mau da Tia. O Pedrinho é inocente, de mau gosto é pedir explicações sérias a uma história que envolve magia, sonhos e imaginação. Pedir explicações sérias, sob fortes acusações de racismo, é que deveria ser um crime, pois estão tentando matar a nossa Literatura. O que a gente quer é brincar e se divertir. Não estamos aqui para criar problemas! No nosso mundo "não temos tempo para mais nada, ser feliz nos consome"18. 1.14 Discurso Final - Jeca Tatu Boa noite, Excelentíssimos Companheiros! Infelizmente, o Homem de Sete Cores teve que se retirar do julgamento no final da tarde, porque já começava a cair a noite e ele tinha que estar de volta ao museu antes de escurecer o dia. O que é lamentável, uma vez que seria épico ver a vingança histórica 18 Alusão a Adélia Prado. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 125 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 dele contra a turma do Sítio. Ele com certeza tinha muita coisa a falar com todo o seu expressionismo19. Assim sendo, aguardamos pelo voto do Eminente Ministro Homem de Sete Cores, que deverá ser colhido ainda este ano. Devo agradecer a participação de todos; aos presentes, muito obrigado por permanecerem até ao final do julgamento, e corram que os bolinhos de chuva da Dona Benta já devem estar murchos, tamanha foi a demora deste encontro. No mais, tenho extrema convicção de que foi muito construtiva esta reunião de magia e realidade. Realidade, por vezes, tão triste de ser encarada distante dos sonhos e da imaginação. Depois de horas de argumentos opostos, o que se retira de lição é que está demonstrado que o Direito comporta toda forma de arte. A arte é que não suportaria uma invasão do Direito. O artista clama por liberdade de expressão, pois todo tipo de censura, ou repreensão, silencia aos poucos a cultura de um povo, tornando-a vazia e ao mesmo tempo cheia de regras e dogmas incertos, até que ela se esvai devagarinho nos braços da santa ignorância. A sessão plenária está encerrada, aguardamos ansiosos pela decisão do Supremo Tribunal Federal. Tenham todos um bom retorno aos seus mundos reais, mas levem um pouco da fantasia. 2 O DIREITO: O COTEJO DO CASO CONCRETO COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL. UMA INTERPRETAÇÃO VIÁVEL 2.1 A manifestação do pensamento como expressão do estado democrático Na democracia brasileira e, mais precisamente, na plenitude do Estado Democrático de Direito, é direito conferido ao cidadão pela Constituição Federal, no 19 Referência à tendência expressionista da pintora Anita Malfatti. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 126 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 inciso IV, do art. 5°, manifestar-se, articulando seu pensamento, restringindo a lei somente o anonimato. Na mesma esteira, registra-se que a Constituição Federal também assegura a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença, vale dizer que para tal manifestação ninguém precisa pedir autorização a quem quer que seja, conforme previsto no inciso IX, ainda do art. 5°. Assim, não há dúvida quanto ao direito do cidadão em poder manifestar-se; nem ao fato de que essa manifestação não pode ser objeto de censura, haja vista a expressa proibição posta na Constituição Federal20. Assim, parte-se do pressuposto de que a manifestação do pensamento é direito fundamental defeso de qualquer espécie de censura. 2.2 O caráter relativo dos direitos fundamentais Certo é que mesmo um direito fundamental pode conhecer limitações. Por restrição de um direito fundamental se entende a limitação ou diminuição do âmbito material de incidência da norma concessiva, tornando mais estreito o núcleo protegido pelo dispositivo constitucional, interferindo diretamente no conteúdo do direito fundamental que a norma visa a proteger. A característica da limitabilidade não é indispensável à existência dos direitos fundamentais, mas decorre de uma necessidade externa ao direito, que é de compatibilizar os direitos de diferentes indivíduos, como também os direitos individuais e os bens coletivos (SCHÂFER, 2001, p. 62). Os direitos fundamentais, dentre eles a livre manifestação do pensamento, embora detentores da característica da imprescritibilidade, não são direitos absolutos, pois, no ordenamento jurídico, como sistema que é (BOBBIO, 1977, p. 71.), todas as 20 Art. 5º, inciso IX: é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença e Art. 220, § 2º: É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 127 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 posições jurídicas são limitadas, por se encontrarem em relação próxima entre si e com outros bens constitucionalmente protegidos. A modernidade, segundo Boaventura de Souza Santos (1995, p. 91), confinou-nos numa ética individualista, uma microética que nos impede de pedir, ou sequer de pensar responsabilidades por acontecimentos globais, como a catástrofe nuclear ou ecológica, em que todos, mas ninguém individualmente, parecem poder ser responsabilizados. A inadequação de uma teoria tradicional dos direitos fundamentais reside justamente nesta questão: os direitos são considerados a partir de uma ética individualista, que está em choque com uma sociedade que exige uma macroética, na qual as responsabilidades e as relações se mostram essencialmente coletivas. Os direitos e as garantias individuais não mais podem ser apreciados a partir de uma esfera absoluta de titularidade individual, pois as ações da humanidade, bem como suas consequências, estão centradas na esfera do difuso, em que se mostra impossível a determinação específica das titularidades das pretensões: crimes da macrocriminalidade, invasão da privacidade por meio da "Internet", agressões contra o meio ambiente, criminalidade organizada internacional, catástrofes nucleares etc (SCHÂFER, 2001, p. 64). Nesse pensar, vislumbra-se a possibilidade de serem impostas limitações aos direitos fundamentais. 2.2.1 Espécies de restrições aos direitos fundamentais Referidas restrições podem ser de duas ordens: restrições ou limites expressos na Constituição, englobando as restrições diretamente constitucionais (previstas expressamente na Constituição) e as restrições efetuadas pela legislação infraconstitucional com expressa autorização da Constituição (restrições indiretamente constitucionais); e restrições ou limites imanentes, que decorram da convivência dos direitos e que, portanto, não se encontram expressos na Constituição, mas decorrem de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 128 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 O primeiro grupo de restrições aos direitos fundamentais é composto da seguinte maneira (SCHÂFER, 2001, p. 147): A - Restrições que decorrem direta e expressamente da Constituição: a própria Constituição, ao conferir o direito, estabelece a hipótese de restrição. Ou seja, o direito é conferido agregado à sua restrição. Exemplos: a liberdade de expressão, prevista no artigo 5°, inciso IV21; a inviolabilidade de domicílio, sendo que o próprio texto da Constituição Federal restringe tal direito em caso de flagrante delito, ou desastre, ou para a prestação de socorro22; o direito à propriedade, cuja utilização pelo Poder Público é permitida no caso de iminente perigo público23. B - Restrições cuja imposição pela lei infraconstitucional está autorizada pela Constituição: nessa hipótese restritiva, a Constituição expressamente autoriza que a restrição ao direito fundamental seja imposta pela legislação infraconstitucional, sendo o controle da constitucionalidade dessas restrições efetuado pelo princípio da proporcionalidade. Exemplos: a liberdade no exercício de trabalho, ofício ou profissão prevista no artigo 5°, inciso XIII, da Constituição Federal24, e o artigo 8° da Lei 8.906/94 (Estatuto dos Advogados), que torna obrigatória a aprovação no exame de Ordem para o exercício da advocacia; a pessoalidade da pena criminal, permitindo-se à legislação infraconstitucional que estabeleça o cumprimento, pelos sucessores, da reparação de danos e do perdimento de bens, prevista no artigo 5°, inciso XLV25. 21 22 23 24 25 "é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato". “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial". "no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano". "é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer". "nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido". KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 129 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 C - Restrições cuja imposição pelo Poder Judiciário está autorizada pela Constituição: essa hipótese de autorização constitucional para limitação aos direitos fundamentais embasa-se no poder conferido diretamente pela Constituição ao magistrado, na qualidade de agente político integrante de um dos Poderes da República. A peculiaridade dessa espécie de autorização reside no fato de que cabe ao Poder Judiciário, no exercício de sua função típica (jurisdição), preencher, no caso concreto, respeitadas as garantias constitucionais, os elementos fáticos e jurídicos autorizadores da mitigação dos direitos fundamentais. A Constituição, ao prever a possibilidade da restrição ao direito, descreve, abstratamente, os pressupostos de sua incidência, delegando ao magistrado a adequação concreta desses postulados. A restrição somente pode ser constatada a partir da junção de dois fenômenos distintos, quais sejam, a previsão constitucional abstrata e a fundamentação concreta do juiz. Exemplos: o direito à inviolabilidade do domicílio e a possibilidade de, durante o dia, por ordem judicial, ser limitado o direito (artigo 5°, inciso XI, da Constituição Federal); o direito à liberdade, passível de restrição em caso de, no que interessa ao estudo do presente tópico, ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente (artigo 5°, inciso LXI, da Constituição Federal)26. Examinados os casos de possibilidade de restrições ou limitações expressas na Constituição Federal, resta analisar, agora, os casos de restrições ou limites imanentes, que decorrem da convivência dos direitos e que, portanto, não se encontram expressos na Constituição, mas decorrem de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico. A concepção teórica dos limites imanentes possui estreita ligação com o caráter de princípio dos direitos fundamentais. Os princípios são mandados de otimização caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus, e que a 26 "ninguém será preso se não em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei". KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 130 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 medida devida de seu cumprimento não somente depende das possibilidades reais senão também das jurídicas, não contendo mandados definitivos senão somente prima facie. Dessa idéia decorre que os direitos fundamentais, em sua maioria, não são previamente limitados (existência de uma norma restritiva), senão que as limitações decorrem de questões ligadas a aspectos externos a sua concepção original, em virtude da necessidade concreta e prática de convivência com outras esferas, individuais ou coletivas, mas sempre constitucionalmente protegidas. 2.3 A colisão de princípios constitucionais Quando dois princípios jurídicos entram em colisão irreversível, um deles obrigatoriamente tem de ceder diante do outro, o que não significa que haja a necessidade de ser declarada a invalidade de um dos princípios, mas sim apenas que, sob determinadas condições, um princípio tem mais peso ou importância do que outro, ao passo que em outras circunstâncias poderá ocorrer o inverso. Em se tratando de restrições (limites) imanentes aos direitos fundamentais, a ponderação entre os bens em conflito é um método constitucionalmente adequado à preservação dos respectivos núcleos essenciais. A ponderação de bens, no caso concreto, é um método de desenvolvimento do Direito que se presta a solucionar colisões de normas, bem como para delimitar as esferas de aplicação das normas que se entrecruzam e, com isso, concretizar os direitos cujo âmbito ficou em aberto, estabelecendo-se uma clara prevalência valorativa dos bens tutelados pela Constituição Federal, o que determina que a lesão de um bem não deve ir além do que é necessário ou, pelo menos, "defensável", em virtude de outro bem ou de um objetivo jurídico reconhecido como de grau superior em determinada situação levada ao conhecimento do intérprete (SCHÂFER, 2001, p. 78). A ponderação ou o balanceamento de bens para a solução de conflitos de bens constitucionais, segundo J. J. Gomes Canotilho (1998, p. 1112), pressupõe a existência de, pelo menos, dois bens ou direitos cujos suportes fáticos e jurídicos se entrecruzem KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 131 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 de modo a impedir a realização de seus objetivos em toda a sua intensidade. Ou seja, o intérprete se depara com uma colisão entre dois ou mais direitos constitucionais, traduzindo uma impossibilidade de convivência em sua plenitude dos respectivos núcleos protegidos. Como segundo elemento para a aplicação da ponderação, de acordo com o mesmo autor, é necessária a inexistência de norma abstrata prevendo a prevalência de um dos direitos em conflito, pois nesse caso o balanceamento e a opção sobre a ascendência hierárquica teriam sido resolvidas pela própria norma constitucional. Por fim, são indispensáveis a justificação e a motivação da regra de prevalência parcial assente na ponderação, tendo-se presente o princípio da segurança jurídica. Ou seja, a fundamentação sobre a necessidade e a extensão dos limites a serem impostos aos direitos fundamentais, bem como o resultado da aplicação da ponderação - elegendo-se o princípio de maior valor no caso concreto - são requisitos inafastáveis, pois conferem racionalidade ao método. Não há uma lista abstrata estabelecendo a prevalência de alguns princípios sobre outros, mas em cada situação concreta é possível efetuar-se a hierarquização para o caso, conforme os pesos prevalecentes, devendo a situação ser resolvida pela máxima da unidade da Constituição, segundo a qual todas as normas contidas numa Constituição têm igual dignidade abstrata. 2.3.1 O princípio da proporcionalidade De acordo com o princípio da proporcionalidade, sempre que haja restrições colidentes com direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, o intérprete deve atuar segundo o princípio da justa medida, vale dizer, deve atuar escolhendo, dentre as medidas necessárias para atingir os fins legais, aquelas que impliquem o sacrifício mínimo dos direitos dos cidadãos. As restrições que afetem os direitos e interesses destes têm como limite a imprescindibilidade da garantia do interesse público, não se devendo utilizar medidas mais gravosas quando outras que o sejam menos forem suficientes para atingir os fins da lei. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 132 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Em seu sentido amplo, portanto, quer significar o princípio da proporcionalidade a proibição do excesso, o que equivale a dizer que as restrições a direitos somente podem ser efetuadas se houver estrita necessidade para a preservação de outras posições constitucionalmente protegidas. O Poder Público deve agir estritamente na busca do interesse público. A finalidade, e não a vontade, é que preside a ação da autoridade pública (SCHÂFER, 2001, pp. 106/107). De todo modo, consagrando-se a liberdade e a justiça como escopo final desse princípio, é de se ver que ele é constitucionalmente determinado, em muitos momentos, ainda que de forma implícita. Inicialmente, a proporcionalidade se depreende no próprio preâmbulo da Constituição brasileira, o qual, em particular, distingue-se do de outras constituições por apresentar duas partes distintas, a primeira firmando a legitimidade formal do Estado e a segunda referindo uma série de fins e objetivos a serem perseguidos por esse Estado. Revelando-se como princípio orientador de Justiça, pode-se afirmar que o princípio da proporcionalidade se mostra como um princípio implícito no preâmbulo da Constituição. No Brasil, o princípio da proporcionalidade não é disposto de forma expressa. Com minoritária discordância, os autores pátrios, ladeados pelo Supremo Tribunal Federal, entendem ser ele previsto pelo artigo 5°, inciso LIV27 o, da Constituição Federal. Dessa forma, a sedes materiae do princípio da proibição do excesso se encontraria caracterizado na idéia do due process of law. O princípio da proporcionalidade ou da proibição de excesso, limitando o poder do Estado, constitui um princípio geral do Direito Público, o qual rege o estabelecimento e a aplicação de toda a sorte de medidas restritivas de direitos e de liberdades, obrigando, assim, a uma necessária ponderação entre a gravidade da conduta imputada, o bem jurídico protegido e as subsequentes consequências jurídicas. Percebe-se que seu conteúdo é múltiplo, podendo ser dividido em vários momentos. Inicialmente, poder-se-ia vislumbrar uma necessária proporcionalidade 27 “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 133 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 abstrata ou legislativa, em que ocorre a seleção qualitativa dos direitos postos em situação de confronto. Num segundo momento, percebe-se um princípio de proporcionalidade concreta ou judicial, segundo o qual o magistrado, quando do julgamento de uma dada causa, valorará os direitos em conflito e, finalmente, ter-se-ia a aplicação de um princípio da proporcionalidade executória, que corresponderia, de fato, à opção do magistrado por tal ou qual direito na situação posta em exame. 2.3.1.1 Princípios da proporcionalidade e da razoabilidade Faz-se mister breve incursão sobre a aplicação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no Direito Constitucional. Segundo tais princípios, cabe ao Poder Judiciário, ao examinar certas restrições de direitos, apreciar até que ponto são elas justificadas pelo interesse público, admitindo-as como legítimas ou não. Luís Roberto Barroso (1996, pp. l60/l75, passim) analisou o assunto, mostrando que o princípio da razoabilidade teve, tradicionalmente, sua incidência no âmbito do Poder Executivo, voltado que estava para o exercício do poder de polícia na área do direito administrativo e para os limites da interferência do Estado na vida privada. Embora a Constituição Federal de 1988 não tenha feito referência expressa ao princípio da razoabilidade, tal princípio integra o direito constitucional brasileiro, podendo ser aplicado pelo intérprete da Constituição "integrando de modo implícito o sistema, como um princípio constitucional não-escrito" ou, ainda, poderá ser extraído da cláusula do due process of law (art. 5°, LIV), em razão do caráter substantivo que se deva emprestar à cláusula (BARROSO, 1996, pp. l60/l75, passim). A restrição de um direito fundamental depende de dois pressupostos, que são a existência de conflito entre direitos fundamentais ou interesses constitucionalmente assegurados e a verificação da possibilidade de aplicação do princípio da proporcionalidade, interpretação sutil do princípio da igualdade, segundo o qual todas as disposições jurídicas que importem em restrições devem ser pertinentes ao KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 134 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 ordenamento jurídico, sendo necessárias e proporcionais para a obtenção da finalidade pretendida. Havendo um conflito entre duas liberdades públicas sem que haja explícita credencial constitucional, dever-se-á proceder à ponderação ou concordância prática dos direitos fundamentais em confronto, mediante a conciliação de ambos (MORAES, 1997. p. 210). O Ministro Gilmar Ferreira Mendes formula sustentação semelhante ao aduzir que a validade da medida que produza limitação do direito fundamental depende da verificação de proporcionalidade entre os fins e as conseqüências observadas. Posto isso, toda restrição ao exercício de direitos fundamentais deve ser adequada ou idônea e não gravosa ou necessária (MORAES, 1997. p. 211). 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Cotejando as doutrinas acima com o caso concreto em exame, pode-se concluir que a intenção dos impetrantes, de anular ato homologatório do parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE) que liberou a adoção de livros do autor vai de encontro ao direito fundamental de livre expressão do pensamento. No caso em apreço não há que se falar em racismo. A extensão dada pelos impetrantes à publicação está longe daquilo que foi imaginado pelo autor em 1933, ano de publicação da obra. Não se trata, aqui, de conflito entre os preceitos constitucionais de liberdade de expressão e de vedação ao racismo. As disposições constitucionais pertinentes à liberdade de expressão não autorizam o controle, por parte do Estado, da produção de conhecimento ou da divulgação de informação. Qualquer tipo de controle desse tipo que interfira na liberdade profissional criativa no momento do próprio acesso à produção, controle prévio que, em verdade, caracteriza censura prévia das liberdades de expressão e de informação, expressamente vedada pelo art. 5°, inciso IX, da Constituição. A impossibilidade do estabelecimento de controles estatais sobre o acesso à cultura leva à conclusão de que não pode o Estado criar um organismo para a fiscalização desse KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 135 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 direito fundamental. O exercício do poder de polícia do Estado é vedado nesse campo em que imperam as liberdades de expressão e de informação. E, partindo do pressuposto de que a vedação da utilização da obra configura censura, a resposta à questão discutida no presente estudo é dada pela própria Constituição Federal, que, além de garantir a liberdade de expressão veda, qualquer espécie de censura. REFERÊNCIAS BANDEIRA, Manuel. Vou-me embora pra Pasárgada. Disponível <http://veja.abrilxom.br/blog/augusto-nunes/feira-livre/vou-me-embora-prapasargada-um- poema-de-manuel-bandeira>. Acesso em: 14 mar. 2013. em: BANDEIRA, Manuel. Poética. Disponível em: <http://nelsonsouzza.blogspot.com.br /2013/02/poetica-manuel-bandeira.html>. Acesso em 14 de março de 2013. BARROSO, Luís Roberto. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade do Direito Constitucional. Revista do Ministério Público, Rio de Janeiro, n. 4, 1996. BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 9. ed.. Brasília: UnB, 1977. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 1998. LOBATO, Monteiro. Caçadas de Pedrinho. 3. ed. São Paulo: Globo, 2009. LOBATO, Monteiro. Zé Brasil. Rio de Janeiro: Editorial Vitória, 1947. MANDELA, Nelson. Discurso de posse. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/ cronologia/mandela/index.shtml>. Acesso em: 14 mar. 2013. MORAES, Guilherme Braga Penã de. Dos direitos fundamentais: contribuição para uma teoria. 1. ed. Rio de Janeiro: LTR, 1997. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2. ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1995 SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pósmodernidade. São Paulo: Cortez, 1995. SCHÂFER, Jairo Gilberto. Direitos fundamentais: proteção e restrição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 136 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 TORTURA E DIREITOS HUMANOS: A RELEITURA DE UM ANTIGO PARADIGMA SOB A ÓTICA DE O PRISIONEIRO, DE ÉRICO VERÍSSIMO. L UIS R OSENFIELD 1 RESUMO: O objetivo do presente trabalho é iniciar, a partir da análise do romance O prisioneiro, de Erico Veríssimo, um debate sobre direitos humanos na atualidade. A literatura é aqui o fio condutor da reflexão, em razão de sua qualidade empática, usado para repensar problemáticas da ciência jurídica, inserindo-se o estudo na tradição do Direito e Literatura. A composição do trabalho é feita por um breve estudo comparativo entre as ideias construídas por Günther Jakobs e Luigi Ferrajoli sobre o terrorismo, tortura e direito penal do inimigo; assim como de jurisprudência internacional no que tange à Lei de Segurança Aérea alemã, considerada inconstitucional recentemente, esta relacionada com a Lei do Abate brasileira. Em suma, trata-se de uma abordagem interdisciplinar que abrange temáticas relacionadas a tortura e democracia, terrorismo e direitos humanos, a partir de releitura da obra literária. PALAVRAS-CHAVE: terrorismo; tortura; direitos humanos; direito e literatura; democracia. 1 O DIREITO A REBOQUE DA LITERATURA O objetivo do presente trabalho é realizar, a partir da análise do romance O prisioneiro, de Erico Veríssimo, uma reflexão acerca do respeito aos direitos humanos na atualidade. Os desoladores diagnósticos contidos na obra, proferidos por Erico há mais de quatro décadas são, ainda hoje, munidos de intensa e perturbadora atualidade. O autor elabora, com uma rica e engenhosa escrita, um minucioso e complexo 1 Graduado em Direito (PUC/RS). Mestrando em Direito (IMED/RS). KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 137 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 panorama da situação geopolítica internacional dos anos sessenta. Em face da relevância das lúcidas noções de política encontradas na obra, este se alça, naturalmente, como objeto de análise ideal para uma abordagem interdisciplinar. A literatura é um instrumento valioso e indispensável para se repensar a ciência jurídica, e uma série de obras literárias possuem, por excelência, o condão de nortear reflexões do gênero, tal como Os Miseráveis, de Victor Hugo, Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski ou O estrangeiro, de Albert Camus. Esse tipo abordagem interdisciplinar se funda na tradição do Direito e Literatura, representando uma crítica inserida no ramo do Direito na Literatura. Apesar da ainda pequena representatividade do campo do Direito e Literatura no Brasil, em uma série de países — notadamente nos Estados Unidos, na França, na Alemanha e na Itália —, já existe uma forte e consistente bibliografia sobre o assunto (TRINDADE; GUBERT, 2008, p. 24-33). A meta aqui é de, a partir da bela argumentação de Veríssimo, construir uma ponte com o Direito e realizar uma reflexão utilizando da capacidade da literatura de rever questões controversas sob um diferente escopo. Embora o épico regional — O Tempo e o Vento —, que eleva Erico para um novo patamar dentro da literatura nacional, seja, ainda hoje, amplamente conhecido, obras que mereceriam maior destaque da crítica e maior volume de análise ficam, por vezes, à margem de textos mais conhecidos. Esse seria o caso de O prisioneiro, escrito num período de maturidade intelectual do autor, obra que alavanca um momento universalista de sua escritura. É sublinhada, no enredo, uma vasta gama de questões polêmicas da época que eram objeto de angústia, incômodo e indignação do escritor. São esses conflitos, incrustados na tinta de cada página do breve corpo textual, que abrem problemáticas controversas do âmbito jurídico. Apesar de não existir uma indicação clara e explícita sobre o lugar da história há sugestões bastante fortes de que o ambiente físico corresponde ao da Guerra do Vietnã. As críticas desferidas pelo escritor gaúcho não se limitam apenas à intervenção estadunidense na região — marcada pelos infindáveis abusos aos direitos humanos —, nos anos sessenta até meados dos anos setenta, mas também ao forte protagonismo KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 138 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 europeu, notadamente francês, na região décadas antes. Dentro do clima de especial horror que inunda essa guerra no sudeste asiático, são desveladas importantes e pesadas angústias, assim como dilemas que ocorrem num contexto de práticas perversas e nefastas. Tanto é que Erico, em dedicatória a seus netos, confessa ter sido afetado pessoalmente ao escrever o romance. O pilar argumentativo terá por base a análise do evento principal ilustrado na obra, o caso emblemático de tortura de prisioneiro de guerra. De fato, no final do romance, o protagonista conhecido como "tenente" defronta-se com um impasse. Sobre seus ombros repousa a decisão de permitir, ou não, a tortura de um prisioneiro de guerra a fim de arrancar dele informação sobre a localização de explosivos plantados em alguma edificação da cidade. Detonados, os explosivos ocasionarão a morte de um número considerável de civis. Essa controvérsia, que opõe a vida e a dignidade de uns em troca da necessidade de salvaguardar e dar segurança para um coletivo, potencializada pela sóbria escrita de Veríssimo, é um núcleo importante no argumento que pretendemos apresentar e permite refletir sobre questões relevantes acerca dos direitos humanos. 2 GUERRA, TERRORISMO & TORTURA: O ENREDO DE O PRISIONEIRO O romance é ambientado num país quente, úmido e de nome desconhecido, em meio a um turbulento período de guerra. A sensação de stress e tensão é constante e isso se dá, em grande parte, pela existência de vários focos de guerrilha na cidade e região. As personagens, majoritariamente homens — o "coronel", o "tenente", o "major", a "médica", a "prostituta", o "proxeneta", o "sargento", o "capitão-médico" —, tampouco possuem nomes, a distinção sendo sempre feita a partir de seus ofícios. Imersos nos horrores da guerra, as ações dos interlocutores são permeadas por uma atmosfera especialmente violenta e cruel. As descrições, tanto dos abusos cometidos pelos rebeldes, quanto dos excessos perpetrados pelo exército ocidental, ilustram o clima de terror que cerca o enredo. O próprio Erico define seu romance como uma KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 139 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 "espécie de parábola moderna sobre vários aspectos da estupidez humana". As duras críticas às barbáries da guerra do Vietnã, além de numerosas, são veementes e contundentes. O "coronel" e o "major", as primeiras figuras introduzidas na história, inauguram a trama com discussões sobre os caminhos da guerra, esboçando comentários sobre moral e religião. Este embate verbal entre altos oficiais das Forças Armadas retrata bem o viés da crítica feita contra a maneira perversa com que são conduzidos os combates contra os rebeldes. Da mesma forma, não são poupadas de dura crítica as nefastas ações praticadas pelos rebeldes asiáticos contra o exército estrangeiro. O pensamento do "coronel" é imprescindível para ilustrar: Um quadro de horror iluminou-se em sua mente. A coisa se passara havia pouco mais de quatro meses. Visitara uma aldeia do Sul recémdestruída pelos guerrilheiros comunistas. As cinzas das cabanas incendiadas estavam ainda quentes quando ele lá chegara. Segundo o relato do único sobrevivente do massacre, famílias inteiras haviam sido queimadas vivas dentro de suas palhoças. Dera-se, porém, aos maiorais da povoação um "tratamento especial". Tinham sido primeiro castrados e depois decapitados, e seus órgãos genitais pendurados nos galhos de uma árvore. Moscas enxameavam ao redor dos cadáveres, cujo fedor pútrido empestava o ar. Numa das extremidades duma lança de bambu, enfiada no ânus de um dos corpos, estava presa uma tabuleta com algumas palavras escritas na língua da terra: "Este é o fim que espera todos os que colaboram com os imperialistas brancos e seus lacaios" (VERÍSSIMO, 2008, p. 31). O "tenente", personagem principal, conduz a história para seu pesado desfecho. Filho de mãe branca com pai negro é constantemente assolado por um forte complexo de culpa em razão de sua descendência afro-americana. O contexto político que esse tenente mestiço se vê inserido, desde infância e adolescência, é de intensa e brutal discriminação por parte das numerosas organizações racistas dos Estados Unidos. Marcado por experiências traumáticas na juventude, é assolado por questões mal resolvidas sobre a sua situação racial e sente, também, uma forte negação das raízes negras oriundas do lado paterno. A partir dessa relação ambígua com sua identidade negra, somada às intempéries da guerra, gradualmente se consolida em sua psique um estado de quase paranóia, que acaba por colocá-lo num estado de fragilidade KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 140 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 psicológica. Cenas dos horrores da guerra lhe perseguem e surgem em sua mente constantemente: O sargento branco que comandava a operação de limpeza, dissera que havia alguns "macacos amarelos" escondidos numa caverna próxima, e que a solução mais prática e segura para fazê-los vir para fora era "chamuscá-los" com um lança chamas. O tenente lembrava-se dos homens esqueléticos e lívidos que tinham saído a correr e o urrar da boca da caverna, com os corpos incendiados, e se atiravam no chão, rolavam na relva, tentando apagar o fogo que lhes devorava as carnes... (VERÍSSIMO, 2008, p. 47). O "tenente" vive a iminência da baixa do Exército, o que significa a consequente volta para sua família — mulher e filho — em sua terra natal. Todavia, vive sentimentos conflituosos quanto ao seu regresso para casa. Possui um sentimento de culpa por estar envolvido com uma prostituta asiática denominada apenas de "K.", com a qual não consegue sequer se comunicar, em razão da barreira da língua, a não ser por mímicas e gestos. Às vésperas de seu retorno ao seu país, o "tenente" convida uma amiga, denominada como a "médica", para jantar. Durante o jantar, conversam sobre diversas temáticas polêmicas com admirável profundidade: das atrocidades da guerra até os complexos de negação da identidade negra do "tenente". Segundo as denotações encontradas no texto, deduz-se que a "médica" seja uma descendente de franceses que imigraram na época colonial. Em função de haver se apegado à cultura, ao povo e à terra, a sua família decide criar raízes na Ásia. A "médica" conta ao "tenente" parte da trágica história de sua vida: relatou que, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, o país foi invadido por tropas de outra nação e sua família inteira posta em um campo de concentração na península asiática. Sua mãe morreu de disenteria e seu pai foi executado sumariamente. Não bastassem esses horrores, os invasores a violaram múltiplas vezes, razão pela qual ela se quedou a beira da loucura e da depressão. Por intermédio da Cruz Vermelha, enviaram-na para a casa de um tio em sua terra natal, o que significou sua salvação. Ao chegar em seu antigo país, descobriu-se grávida e abortou o feto. Após anos de tratamento psiquiátrico e, depois de restabelecida sua sanidade, seguiu um curso universitário e retomou, KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 141 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 gradualmente, a sua vida. Quando da morte de seu tio, herdou um polpudo patrimônio. Sentiu-se deslocada na pátria de origem dos pais, que não considerava a sua, então decidiu voltar para a Ásia, onde fundou um orfanato para meninas que, com a guerra, tornou-se ainda mais importante auxílio às vítimas da violência. Após o intenso encontro com a "médica", o "tenente" se desloca para o bordel da cidade para passar sua última noite junto de sua amada "K.". Lamenta não conseguir sequer se comunicar com a prostituta e, diante do eminente regresso para sua terra natal, fere-lhe a impossibilidade de se despedir dignamente em razão da barreira do idioma. Sente-se sensibilizado pela fragilidade daquela miúda menina de doze anos, tão jovem e tão bela, obrigada a se degradar — explorada pelo "proxeneta" asiático — para ganhar alguns trocados. Logo após sair do bordel, no centro da cidade, o tenente sente uma explosão brutal. Momentos depois, recuperado do choque inicial, dá-se conta que o prédio em que "K." estava acabara de ser alvo de um ataque terrorista desferido pelos rebeldes. O "tenente" vaga pelos escombros por uma hora, desnorteado e confuso, procurando por "K.", até que a encontra morta no chão. Após se recompor, o "tenente" é subitamente interpelado pelo "major", que lhe avisa que o "coronel" deseja vê-lo em regime de urgência no quartel-general. Ao se reunir com o "coronel", lhe é dada a informação de que dois rebeldes foram capturados e responsabilizados pelo ataque. Um deles foi morto após perseguição; o segundo, capturado vivo. O prisioneiro sobrevivente, munido de furiosa convicção de seus ideais, afirma presunçosamente que há mais uma bomba programada para ser detonada em cinco horas. Escolhido por consenso de seus superiores hierárquicos, "major" e "coronel", o "tenente" é conclamado a realizar o interrogatório no prisioneiro. Ao "tenente", que se encontra em situação de iminente desligamento definitivo das Forças Armadas, assombrado por suas contradições raciais e, também, fragilizado pela morte de "K.", lhe é dada essa permissão informal para fazer uso de todos meios possíveis para retirar a informação do prisioneiro asiático. Sua incumbência é de interrogar o preso da maneira que bem entender, desde que alcance êxito em extrair as informações sobre a localização dos explosivos. A tarefa KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 142 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 de salvaguardar o coletivo — as possíveis vítimas dos explosivos — repousa em seus ombros. Outras duas pessoas acompanham-no, o "capitão-médico", judeu sobrevivente do holocausto, e o "sargento", especialista em práticas de tortura. Em face da atroz tarefa que lhe é designada, conforme as horas passam, sem perspectivas de alcançar o sucesso desejado, o tenente acede em recorrer à medidas extremas para obter as direções necessárias. Em meio a um turbilhão de contradições, permite expressamente que o sargento utilize-se de métodos de tortura contra o prisioneiro. Sem conseguir sequer presenciar a sessão de tortura, irrompe porta afora e escuta os urros de agonia do torturado: O tenente precipitou-se para fora da cela, batendo a porta atrás de si, e saiu a andar às tontas pelo corredor deserto. Mas não tão depressa que não pudesse ser alcançado por um grito humano horripilante, um urro de animal ferido de morte. Levou as mãos ao meio das pernas, encostou uma face na parede da galeria, depois tapou os ouvidos com os punhos. Por alguns instantes ainda ouviu os gritos lancinantes do prisioneiro, entremeados das exclamações do sargento. Depois - quanto tempo? dois minutos? três? cinco? dez? - fez-se um grande silêncio. Uma figura surgiu no fundo do corredor e aproximou-se do tenente, a passo acelerado. Era o capitão-médico, que exclamava: — Suspendam o interrogatório! Foi encontrada a bomba! O tenente olhou para ele, aparvalhado, como se não tivesse compreendido o sentido daquelas palavras. Enquanto ambos caminhavam na direção da cela, o doutor contou: — Uma irmã do prisioneiro procurou um de nossos oficiais e confessou tudo espontaneamente para salvar a vida do rapaz... A bomba tinha sido colocada no dormitório de um colégio de moças... do outro lado do rio. Foi desmontada há poucos minutos... (VERÍSSIMO, 2008, p. 125). Após receber essa notícia, completamente aturdido arrependido por ter permitido a atrocidade se perpetuar, o "tenente", inicia uma jornada sem rumo pela cidade assombrado pelas lembranças da cela de tortura: Pensava no gravador, no olho verde, nos carretéis rodando... Sua memória era uma fita magnética que registrara não só as vozes mas também as imagens e os odores daquelas horas horrendas, na cela. Pensou no prisioneiro caído sobre as lajes, morto, as pernas abertas, os escrotos esmigalhados... Santo Deus! Como tinha sido capaz de permitir uma coisa daquelas? E tudo inútil! No momento mesmo em KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 143 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 que o sargento torturava o prisioneiro, a bomba estava sendo desmontada pelos peritos do Exército (VERÍSSIMO, 2008, p. 128). Durante o percurso errante pela cidade, o "tenente" avista um templo católico e, apesar de comungar fé batista, decide se confessar com um padre. Após breve discussão no confessionário, desentende-se com o sacerdote e volta a vagar pela vila. Ao sair da igreja, dá conta que está há poucas quadras do orfanato de sua amiga "médica". Bate na porta da amiga, que lhe recebe de maneira calorosa e houve seu depoimento angustiado. É confortado por alguns momentos por sua amiga quando, em meio a dor e ao arrependimento, ressuscita em seu corpo uma sensação de calor e virilidade. Sente o sangue pulsar fortemente, começa a levantar sua cabeça das coxas da médica e a se virar em direção ao sexo dela. Apesar de sua amiga não logo o esbofetear, nega-lhe os beijos na boca e, após instantes, empurra-o para longe, de maneira que o "tenente" cai no chão a respirar com dificuldade. A "médica" pede que vá embora, embora ela não o faça munida de raiva ou rancor, e o "tenente", profundamente envergonhado, caminha mais uma vez em direção ao luar da noite. Dirige-se, dessa vez, de volta ao hotel militar, onde está hospedado. Encontra com o "capitão-médico", que lhe avisa que não irá a acobertar os atos para os quais o "tenente" havia dado aval. Avisa-lhe que, de qualquer maneira, o corpo do rebelde já estava sendo submetido, naquele momento, a uma necropsia. Subitamente, o "capitãomédico" recebe uma ligação: aviões da Marinha haviam bombardeado com napalm uma aldeia aliada, onde estavam acampados soldados do Exército, totalizando mais de trinta mortes e cerca de oitenta feridos. Os dois dirigem-se ao hospital central, que começa a se apinhar com homens desfigurados com feridas de um vermelho-vivo que já começam a se tornar purulentas. O "tenente" encosta-se em uma parede, assolado por uma náusea que lhe remói o estômago. Passa a andar pela rua desconcertado. Um jipe da Polícia do Exército passa pelo lado contrário da rua e estaciona cinco metros adiante. Um soldado lhe interpela, pedindo seus documentos. Em sua cabeça, ouve somente frases de conteúdo racial, como se estivesse, mais uma vez, sendo alvo de injustiças e ameaças. Em meio ao KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 144 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 estado de surto, projetando alucinações de xingamentos racistas desferidos pelo soldado, toma o fuzil das mãos do militar e passa a atirar a esmo, atingindo os faróis do jipe. Logo é atingido por uma rajada de fuzil disparada pela guarnição, que lhe atravessa o peito de lado a lado, momento em que tomba e sangra até a morte. 3 DA FICÇÃO PARA A REALIDADE É dentro dessa miscelânea de guerra, terrorismo e tortura que surgem questões pertinentes para um debate acerca dos direitos humanos na atualidade do contexto internacional. Muitas problemáticas se impõem, como, por exemplo, a discussão sobre qual seria o limite legal para apontar, abstratamente, qual seria um direito humano "correto" para se defender. Ou se seria constitucional, caso viesse a ser legislado, buscar na tortura um instrumento salvamento de vidas. Em razão de questões vinculadas à guerra, terrorismo e tortura estarem em voga nas reflexões teóricas em âmbito internacional, sendo amplamente abordadas por diferentes setores da sociedade civil mundial e das comunidades intelectuais de diversas nações, é que se impõe trazer temáticas como esta para reflexão em terrae brasilis. Embora o Brasil, histórica e geograficamente, tenha passado ao largo de situações de guerra, com algumas raras exceções, e, ainda na atualidade, hipóteses de terrorismo seja ainda uma realidade um tanto quanto distante, permanece essencial se debruçar acerca do assunto diante de relações internacionais cada vez mais globalizadas. A imprescindibilidade desse debate toma contornos ainda mais claros e delineados tendo em mente que o Brasil, em face de seu crescimento econômico e de seus avanços democráticos, almeja ocupar futuramente um assento no Conselho Permanente de Segurança da ONU e lugar de proeminente destaque no cenário político internacional. Sendo assim, a reflexão se legitima diante da necessidade da sociedade de construir numa cultura de proteção efetiva dos direitos humanos. Ao fim e ao cabo, o que se busca aqui é um norte para estas questões controversas, e o intuito é de encontrar maneiras adequadas para conduzir os atos e as medidas de segurança por parte dos Estados, ações estas que sejam aceitas pela sociedade civil e, principalmente, KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 145 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 tenha conformidade com a constituição. É vital que se acredite nos pressupostos estabelecidos pela coletividade no texto constitucional, que é uma construção do estado de consciência que as sociedades se encontram, e se busque uma interação harmônica das coletividades de cada nação: e isso pode ser conquistado através da solidificação de uma proteção dos direitos humanos em âmbito global. O amalgamento de situações de respeito ao outra de forma prática deve ser conduzido de maneira em que a consolidação de uma cultura de direitos humanos não se restrinja apenas à formalidades de ratificação de tratados ou de convenções internacionais, por vezes despidas de aplicabilidade prática ou de aceitação no ordenamento jurídico nacional. Na construção de uma maturidade democrática, impõe-se que diferentes legitimações e convencimentos não continuem a possuir o condão de, perpetua e sistematicamente, servir como justificação para usurpar a vida e a dignidade humana. Agamben aponta com lucidez, quando tristemente analisa as experiências nazistas, em como a perda de respeito — de reconhecimento — de outros seres humanos, além de abrir caminho para a devastação da dignidade humana, pode conduzir, in extremis, a processos que subtraem até mesmo o direito à morte (AGAMBEN, 2003, p. 43-93). 3.1 A conjuntura do medo no cenário internacional e a eterna necessidade da criação de inimigos O recrudescimento das tentativas de paz e das tensões étnico-religiosas na atualidade tem como marco o ataque contra as torres gêmeas no fatídico 11 de setembro de 2001. O paradigma estadunidense é ilustrativo para mostrar como, através de incitação constante e sistemática de um sentimento de medo na população, opera-se com relativa facilidade a supressão de direitos em âmbito doméstico e, na política externa, a legitimação de guerras e intervenções assimétricas em outros países. Após o ataque às torres gêmeas, a principal ação política do governo Bush foi a guerra do Afeganistão e, mais tarde, ainda no contexto de guerra ao terror, embora sob diferente justificação, a guerra do Iraque. No campo jurídico, a consequência mais evidente aos KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 146 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 fatídicos atentados contra as torres gêmeas foi a promulgação, com impressionante celeridade, em cerca de sessenta dias depois dos ataques, do USA Patriot Act pelo governo Bush, um grande texto legislativo recentemente prorrogado parcialmente pelo presidente Barack Obama. A referida legislação é extensa e, dentre outras medidas, reduz drasticamente controles sobre agências de inteligência e polícias, são "simplificados" os pressupostos para realização de prisão e detenção e a privacidade individual, inerente à cultura liberal americana, é reduzida em nome de maior poder investigativo. A análise feita por Agamben mostra com propriedade os perigos à ordem constitucional que é a consagração de medidas como essa, em que se institui um estado de exceção: A novidade da "ordem" do presidente Bush está em anular radicalmente todo estatuto jurídico do indivíduo, produzindo, dessa forma, um ser juridicamente inominável e inclassificável. Os talibãs capturados no Afeganistão, além de não gozarem do estatuto de POW [prisioneiro de guerra] de acordo com a Convenção de Genebra, tampouco gozam daquele de acusado segundo as leis norteamericanas. Nem prisioneiros nem acusados, mas apenas detainees, são objeto de uma pura dominação de fato, de uma detenção indeterminada não só no sentido temporal mas também quanto à sua própria natureza, porque totalmente fora da lei e do controle judiciário. A única comparação possível é com a situação jurídica dos judeus nos Lager nazistas: juntamente com a cidadania, haviam perdido toda identidade jurídica, mas conservavam pelo menos a identidade de judeus. Como Judith Butler mostrou claramente, do detainee de Guantánamo a vida nua atinge sua máxima indeterminação (AGAMBEN, 2004, p. 14-15). Ao fim e ao cabo, um dos bastiões históricos da democracia, criou, após a queda de seu arquiinimigo, o comunismo soviético, um novo mal a combater com imensurável força e às custas das liberdades civis americanas: o terrorismo. Nota-se que, apesar dos ataques terroristas à central financeira do mundo, Nova Iorque, representar a guinada da política americana contra o terrorismo, a construção do clima de tensão e insegurança que se instaura nos Estados Unidos não é um fenômeno recente. Barry Glassner, sociólogo americano, aponta para a maneira como convergências entre mídias, governos e interesses escusos possuem o poder de criar, a partir de métodos diversos, a consolidação de uma cultura do medo. Sua pesquisa consistiu em minuciosa KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 147 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 coleta de material que perdurou durante longo período de tempo. Imerso na análise de estatísticas, reportagens, declarações e entrevistas, elaborou um contraponto ao senso comum dominado pelo medo. Basicamente, a tecla que pressiona é a seguinte: por que, hoje, a população possui tantos temores, quando, na verdade, a humanidade nunca esteve tão segura? Glassner é objetivo e contundente para ilustrar, a partir de casos concretos, como, por vezes, um singular evento anormal pode criar temor em grupos diversos de pessoas. Em 1995, no até então mais trágico atentado terrorista doméstico da história dos Estados Unidos, um prédio administrativo de Oklahoma City foi brutalmente dinamitado através de um ataque de carro-bomba, totalizando um total de 168 mortes, 608 feridos e 324 prédios destruídos ou danificados num raio de dezesseis quadras. O editorial de um dos grandes jornais americanos, o New York Post, no dia seguinte ao episódio, especulou no seguinte sentido: como um carro-bomba indica a ação de terroristas do Oriente Médio, é seguro assumir que o objetivo é promover terror amplo e anarquia, desorganizando a vida americana. Dias depois, descobriu-se que os dois jovens responsabilizados pelos pilares da organização do atentado eram homens brancos da região central do país, ligados a milícias de orientação política de extrema direita, descontentes com políticas domésticas do governo federal americano (GLASSNER, 2003, p. 22). Recentemente, a Noruega também foi assolada por um trágico ataque similar, cometido por um militante das fileiras de sua política de extrema-direita. Embora eventos trágicos como esse, infelizmente, tomem lugar em diversos países do mundo, hão de ser coibidos de maneira condizente com as práticas democráticas constitucionais. A síntese de Glassner resume bem a maneira com que deve ser pensada a questão — é melhor que aprendamos a pôr em dúvida nossos medos supervalorizados antes que eles nos destruam. Os medos válidos têm sua razão de ser: dão-nos dicas do perigo. Os medos falsos e exagerados causam apenas apuro (GLASSNER, 2003, p. 22-26). Superestimar a ameaça terrorista — que de maneira alguma implica que se deixe de investigar, de julgar e de coibir as práticas de terror ― surge como um perigo KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 148 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 democrático quando cria zonas cinzentas para o seu combate, sendo a ponta do iceberg a conhecida prisão política americana de Guantânamo, na ilha de Cuba. Atualmente, surgem regularmente indícios de existência de black site prisons na Europa: prisões clandestinas usadas pelo serviço secreto americano, em países como Lituânia, Romênia e Polônia, que serviriam como localidades de interrogatório por intermédio de tortura (GOETZ e SANDBERG, 2012; SANDBERG, 2012). A partir da criação desse inimigo sem face, digno de ser combatido sem clemência, que se desvela o caminho do arbítrio: é institucionalizada e glorificada a barbárie. A decisão americana de criar um homem indigno de direitos consagrados aos cidadãos vai de encontro com toda sua tradição democrática liberal, que foi consagrada através de séculos. No caso do estreitamento das liberdades individuais para o combate ao terrorismo, geralmente associado ao islamismo árabe e persa, o processo é ancorado na distorção da realidade, no uso sensacionalista de tragédias e na instrumentalização de casos de comoção pública para criar um campo fértil para a ascensão de leis cujo conteúdo afronta as garantias civis imprescindíveis para manutenção de um Estado Democrático de Direito. O intelectual americano Alan M. Dershowitz, advogado judeu que, curiosamente, é conhecido como ferrenho defensor das liberdades individuais, é um dos que coaduna com a teoria de um uso "necessário" e "controlado" da tortura em casos específicos. Seu pilar de argumentação é de que a escalada do terrorismo continuará sendo inevitável caso não se permita, sob autorização judicial, a prática de tortura para obter informações (DERHOWITZ, 2002, p. 23-42). Sua proposta parece ignorar completamente os princípios basilares da Constituição americana; partir de pressupostos de que ela permitiria defender um "bem superior", que ele denomina de segurança do cidadão comum, através de tortura, é inverossímil. Suas assertivas destoam da realidade do que é a prática de tortura mundo afora, e a idéia de que os fins justificam os meios, cumpre lembrar, são, por excelência, marca registrada de regimes totalitários. A argumentação autoritária de Dershowitz faz lembrar da maneira categórica com que Beccaria se insurge, no século XVII, contra os abusos cometidos na prática jurídica da Europa, em que descreve a ineficiência da tortura como instrumento KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 149 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 judicial. Na época, a coletividade dava aos juízes a competência de arbitrar que acusados fossem torturados por dias até que admitissem o delito ao qual eram imputados, mesmo com indícios de inocência (BECCARIA, 2002, p. 69-76). Por fim, é ilustrativo — e essencialmente significativo — lembrar como, através de abusos típicos de estado de exceção, no contexto de guerra ao terror, foi executado sumariamente, com 8 disparos na cabeça, o imigrante brasileiro Jean Charles de Menezes, em 2005, numa estação do metrô de Londres. Na ocasião, a Polícia Metropolitana teria confundido o brasileiro com um terrorista islâmico e atirando a esmo antes mesmo que Jean pudesse falar algo. Os agentes estavam perseguindo um suspeito de terrorismo de origem etíope, naturalizado britânico, e assassinaram o brasileiro pois pensavam que qualquer ação corporal da vítima pudesse, acionar explosivos nas linhas do metrô. Munidos de parcas informações sobre o suspeito e incitados pelo momento de tensão vivenciados por tentativas fracassadas de atentados, dias antes, a força policial, com má formação para este tipo de ação, assassinou um inocente. Um retrato da incompetência policial2. 4 AS (POSSÍVEIS) RESPOSTAS JURÍDICAS AOS EXTREMOS DA VIOLÊNCIA Feita esta breve e parcial ambientação do panorama político mundial de guerra ao terror, incitada pela análise da trama de O prisioneiro, urge-se trazer certas questões para a reflexão em âmbito jurídico. Essa capacidade empática proporcionada pela literatura, que nos oportuniza vivenciar situações que, por outros meios, estariam fora do nosso alcance, é essencial para revisitar espaços ― nesse caso as áreas cinzentas entre o Direito e a política ― através do inesgotável alcance que a obra literária possui 2 Até hoje nenhum agente policial foi punido individualmente pelos excessos cometidos. A Polícia Metropolitana fora responsabilizada e condenada a pagar apenas uma multa de 100.000,00 libras esterlinas, soma considerada baixíssima em comparação a outros casos. Recentemente, o trágico caso de Jean Charles de Menezes foi consagrado através do filme brasileiro Jean Charles (2009), dirigido por Henrique Goldman e estrelado por Selton Mello. Na Inglaterra, o incidente causou tanta comoção que foi brindado com peças de teatro, intituladas Oh well never mind goodbye, Stockwell e This much is true. Informações retiradas dos jornais Folha de São Paulo, Estado de São Paulo e The Guardian. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 150 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 para reorganizar nossas perspectivas da realidade. Determinadas cenas do romance são a incorporação de críticas veementes da barbárie oficializada por um discurso de Estado que denunciam a selvageria e a violência da guerra. Um dos trechos da obra, o embate moral entre o "tenente", oficial que dá permissão para a prática da tortura, e o "capitão-médico", judeu sobrevivente do holocausto, é excelente para cumprir a função de elo para a nossa discussão: O médico deixou a toalha cair no chão. Sem levar em conta a interrupção, prosseguiu: — Você há pouco pôs o seu problema em termos de meios e fins. Eu não aceito a idéia de que os fins justificam os meios. O cão danado que era o chefe dos nazistas aceitava esse princípio. O mesmo acontecia com o sinistro ditador comunista. Um invocava como objetivo sagrado a defesa da raça ariana, que era um mito, uma mentira. O outro achava que todos os meios eram bons para promover a socialização do mundo. Pense nos milhões de criaturas humanas que morreram, perderam a liberdade e foram vítimas de atrocidades e injustiças por causa dessas falácias... O tenente pôs-se de pé. — Não vim aqui para discutir política ou filosofia. — Para que veio, então? — Não sei. Nem quero saber. — Mas espere, tenente, você vai embarcar de volta para a pátria dentro de poucas horas. Nossos caminhos se separam aqui e agora. Quero terminar meu argumento. Naquela cela subterrânea, havia uma pessoa viva de carne, osso, sangue e nervos... dotada duma alma. Era lícito mandar torturá-la para salvar... uma abstração? Sim, tenente, os ditadores que mencionei costumavam falar nessa dupla abstração que é a Humanidade do Futuro. Quem eram as pessoas que a bomba ia destruir? Naquele momento em que o prisioneiro ficou a sua mercê, tenente, não passavam de abstrações, hipóteses. E quem lhe garantia a existência real da segunda bomba? Não podia ter tudo invenção vingativa do terrorista moribundo? — Mas ficou provado que era uma realidade! — O que não altera todo o raciocínio que acabei de expor (VERÍSSIMO, 2008, p. 147). A questão que se impõe: o torturado é "menos humano", ou indigno da qualidade de cidadão e, dessa forma, deveria ter sua dignidade e sua vida sacrificada em prol do coletivo? Nesse contexto de perigo iminente verificado na trama, seria necessário criar limbos onde a tortura é autorizada e considerada legítima? O asiático, no contexto do livro, é referido pelos americanos como o asiático amarelo, como o oriental vil e KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 151 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 maldito que apenas representa um inimigo a ser combatido e eliminado sem clemência. A crítica aqui é que, independentemente da situação, no caso da tortura, seja ela em tempos de paz ou de guerra, se esquece da condição do outro de ser humano, detentor de garantia de dignidade e de vida. Para que se caminhe no sentido da maturidade dos sistemas democráticos, é necessária a criação de consensos de respeitabilidade as condições mínimas de dignidade, não passível da constante intervenção de leis típicas de estados de exceção que suprimam direitos constitucionalmente estabelecidos, de forma a criar uma cultura de direitos humanos que represente o que se almeja como condição mínima de uma existência em sociedade. Na atualidade a manutenção do respeito aos princípios democráticos essenciais é imprescindível para evitar um retrocesso nas conquistas alcançadas nas democracias mundiais. Isso significa mostrar o quão incompatível é, em pleno terceiro milênio, que aconteçam diariamente práticas perversas como execução sumária e tortura. Questões como essa ganham distância da população quando essas afrontas aos direitos humanos se tornam, dia após dia, gradualmente, institucionalizadas e consideradas normais e legítimas — em nome dos mais distintos fins e intenções. Diante do medo crescente da comunidade global das práticas terroristas, é pertinente fornecer informações coerentes sobre assunto. Temas como esse devem ser debatidos publicamente e com seriedade, pois, inevitavelmente, está em jogo uma questão humanitária e, diante da inércia e da falta de pressão das mídias e da sociedade civil, a necessidade de respeito aos direitos humanos é, sistematicamente, ignorada e esquecida. É importante, para munir de coerência e clareza, que discussões acerca da aplicação do Direito, da criação legislativa e das limitações jurídicas do uso de força por parte do Estado façam parte do cotidiano da nação. Dois juristas se posicionam, antagonicamente, nesse embate sobre a correta condução jurídica do paradigma do terror: Luigi Ferrajoli e Günther Jakobs. Jurista alemão, Jakobs estabelece que é imprescindível, para a manutenção da ordem jurídica, medidas de exceção contra atos que atentem contra a estrutura do corpo social e das instituições do Estado para, assim, fazer reinar a segurança social (JAKOBS, 2009, p. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 152 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 61). Em síntese, postula a legitimidade de um Direito Penal do inimigo, teoria construída desde 1985, desvinculado completamente da estrutura geral do Direito Penal (que se limitaria a regulamentar os delitos cometidos pelo corpo social "cidadão"), competente para utilizar da coação e do uso da força contra quem atente contra os princípios basilares do Estado. Esse Direito Penal do "outro", segundo Jakobs, através desse distanciamento do Direito Penal da "pessoa normal", seria o método menos danoso para se estabelecer uma situação de segurança para população. Explicita que é desnecessário entrelaçar todo o Direito Penal com fragmentos de regulamentações próprias do Direito Penal do inimigo (JAKOBS, 2009, p. 47). Dessa maneira, argumenta pela impossibilidade de tratar os inimigos do Estado como pessoa (JAKOBS, 2009, p. 58). Através da supressão do status de cidadão, o terrorista — o inimigo — estaria suscetível ao arbítrio de um Estado não comprometido com ideais de um Estado de Direito, que contaria com a necessária legitimação jurídica e disporia da utilização de métodos não-ortodoxos para obter êxito no combate às ameaças contra as instituições. Nas palavras do autor: o Direito Penal dirigido especificamente contra terroristas tem, no entanto, mais o comprometimento de garantir a segurança do que o de manter a vigência do ordenamento jurídico (JAKOBS, 2009, p. 60-61). Luigi Ferrajoli, por sua vez, insurge-se contra essa maneira de fundamentação pragmaticista da guerra e da luta contra o terrorismo, reafirmando o princípio da legalidade no ordenamento jurídico: reitera que o Direito é, antes de mais nada, uma garantia elementar da construção democrática, e não um conjunto de formas vazias ou procedimentos abstratos meramente vigentes. Nessa esteira, insere-se o debate sobre a supressão total de direitos — em plena era de constitucionalismo democrático — de terroristas e presos de guerra que são submetidos à práticas de exceção típicas de regimes autoritários. Ferrajoli critica a definição dada pelo governo norte-americano às ações terroristas como "atos de guerra" — mesmo apesar da gravidade de atentados como o ocorrido em 11 de setembro de 2001. Desenvolve, inclusive, a noção de que os atos terroristas são (deveriam ser) considerados delitos de competência exclusiva de justiça criminal comum e, consequentemente, consideradas ilegítimas as desmesuradas KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 153 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 retaliações dos países desenvolvidos contra, por exemplo, o Afeganistão. A mais acertada síntese do autor é de que a racionalidade e a civilidade, noções tão bem quistas pela cultura ocidental, deveriam, exatamente, contrapor-se à brutalidade dos atos terroristas — ao invés de se optar por um modelo de guerra perpétua no lugar do diálogo racional (FERRAJOLI, 2004, p. 27-33 e 51-73). Quanto ao uso da guerra nessa cruzada contra o terror, há quase quarenta e cinco anos atrás, quando da publicação de O prisioneiro, Erico evidenciava o uso do argumento da intervenção militar como "missão civilizatória" americana na Ásia-doSudeste, na qual o avanço comunista seria a grande o mal a ser extirpado. Hoje, essa mesma "missão civilizatória" toma contornos de "guerra ética" ou de "missão humanitária" — situações, estas, que Ferrajoli argumenta não existirem, pois toda a guerra se caracteriza por uso arbitrário de força. Com esse uso desenfreado da força bélica dos Estados, infelizmente se consolida, na modernidade, uma guerra infinita de caráter assimétrico (FERRAJOLI, 2009, p. 13-33). A elucidação do sofrimento vivido pelas populações civis em situação de guerra, contrastado às denúncias genéricas que se faz contra o terrorismo, como a da "jihad global", mostram o quanto é ilegítimo, falso e falacioso o posicionamento das potências mundiais como vítimas. Ressalta que as consequências das intervenções militares resultam na usurpação da dignidade e da vida de populações civis e, também, numa enorme desestruturação do tecido social das sociedades atingidas — e esses danos são imensuravelmente superiores aos pretextos genéricos empregados na guerra ao terror, como o "perigo às democracias ocidentais" ou "do terrorismo como maneira de promover a anarquia no Ocidente". Com isso, surge um questionamento frequente na obra de Ferrajoli, em que ele compara também com a situação do terrorismo na Itália nos anos oitenta: as organizações terroristas possuem, de fato, o poder de afrontar as instituições democráticas dos Estados? (FERRAJOLI, 2006, p. 765-769). Cumpre ressaltar aqui que o autor italiano não nega a necessidade de investimentos em políticas de segurança para coibir atentados. A crítica repousa na condução desmesurada da comunidade internacional contra as práticas terroristas, KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 154 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 onde não se verificou práticas objetivas e eficazes de investigação de células terroristas ou de coordenação entre serviços de inteligência para a localização e a entrega para a justiça de membros de células terroristas. No lugar de condutas guiadas pelo direito internacional, a partir de racionalidade, inteligência e cautela — enfim, ações estas norteadas por princípios democráticos essenciais —, optou-se pela guerra, pela reiterada prática de tortura contra presos políticos e pela legitimação de práticas arbitrárias. Pelo raciocínio de Ferrajoli, no momento em que os Estados liberais coadunam com a própria lógica do terrorismo que, por excelência, rege-se por uma anti-racionalidade, significa que sucumbem ao plano de instauração de violência imposta por seu inimigo e, assim, retroalimentam as práticas de violência irracional as quais pretendem eliminar (FERRAJOLI, 2009, p. 14-17). Eugênio Raúl Zaffaroni, ministro da Suprema Corte Argentina, é objetivo em delimitar o cerne da questão concernente a instrumentalização do inimigo do Estado. Retrata com excelente ponderação a inerente incompatibilidade da personificação dos inimigos da democracia no Estado Constitucional de Direito: Nossa tese é que o inimigo da sociedade ou estranho, quer dizer, o ser humano considerado como ente perigoso ou daninho e não como pessoa com autonomia ética, de acordo com a teoria política, só é compatível com um modo de Estado absoluto e que, conseqüentemente, as concessões do penalismo têm sido, definitivamente, obstáculos absolutistas que a doutrina penal colocou como pedras no caminho da realização dos Estados constitucionais de direito (ZAFFARONI, 2007, p. 9-10). A almejada realização do Estado Constitucional de Direito a que Zaffaroni se refere depende da formação de uma comunidade jurídica que saiba identificar e, consequentemente, proteger os direitos os quais são imperativos para a construção democrática. Para que se confirme, de fato, um sistema garantidor de direitos humanos, é essencial que se forme, além da necessária cultura de reconhecimento de direitos que assegurem a todos uma existência digna, tribunais constitucionais se posicionem como efetivos protetores desses direitos. A partir de decisões que reafirmam e protegem a vida e a dignidade da pessoa humana — especialmente quando em sede de tribunal constitucional — é oxigenado o debate para que se alcance um KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 155 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 regime democrático-constitucional que prima pela sua legitimidade para com a sociedade através do respeito aos direitos humanos. 4.1 A lição alemã para a criação de uma cultura de respeito à vida e à dignidade da pessoa humana Na jurisprudência internacional, a decisão do Tribunal Constitucional Alemão sobre a inconstitucionalidade da Lei de Segurança Aérea é paradigmática. A lei fora promulgada em um período conturbado, após os atentados terroristas de onze de setembro, e estava em vigor desde janeiro de 2005. O referido diploma legal explicitava que era autorizado, em último caso, as Forças Armadas intervirem por meio de força, com intermédio de autorização do ministro da Defesa, quando de sequestro de aeronave civil por terroristas que, possivelmente, pudessem vir a usar o avião como arma. O que ficou evidenciado na decisão do Tribunal Constitucional foi que a vida e a dignidade dos cidadãos que estivessem, hipoteticamente, no avião, deveriam ser resguardadas constitucionalmente. Os tripulantes da aeronave, nessa situação, não poderiam ser tratados como objetos e, seu destino, tampouco, ser considerado selado em razão do sequestro. Optou-se, então, pela impossibilidade de se validar uma lei que dê ao Estado o arbítrio para decidir sobre quem vive e quem morre. A corte negou ao Estado alemão esse poder de ingerência, esse sopesamento sobre quais direitos humanos seriam convenientes para a proteção no caso concreto. Outro argumento usado se refere à restrição de que, em âmbito interno, as Forças Armadas, em tempos de paz, só poderiam agir em caso da catástrofe natural e acidentes graves (TRIBUNAL FEDERAL CONSTITUCIONAL ALEMÃO, 2006). O que foi posto em pauta, nesse caso, foi a defesa da dignidade da pessoa humana e da vida dos cidadãos, opondo-se firmemente contra a criação dos fantasmas do perigo em muitos regimes democráticos nas últimas décadas. O jurista e escritor alemão, Bernhard Schlink, se posicionou duramente contrário às condutas da ala mais conservadora da política alemã que, ainda hoje, insistem em defender a aprovação de legislações duras contra o terrorismo (SCHLINK, 2012) Para ele, medidas que atentem, KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 156 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 como foi no caso da Lei de Segurança Aérea, contra a vida dos reféns na aeronave, em nome da virtual segurança de civis em terra, é uma clara afronta à ordem constitucional. Mais do que isso, Schlink considera que procedimentos nesse sentido seriam portas abertas para, mais adiante, no desenrolar dos anos, a própria tortura ser explicitamente sancionada pelo Estado. Esta lição prática de correta condução da jurisdição constitucional é de grande importância para denotar a maturidade com que a prática constitucional contemporânea deve ser ater em nome da manutenção das ordens democráticas. Decisões como esta que fortalecem uma coerente cultura de respeito aos direitos humanos na ordem global. No Brasil, houve promulgação de lei com características similares a Lei de Segurança Aérea alemã, conhecida comumente como Lei do Abate. A lei foi elaborada com intuito de combater o narcotráfico e de defender o espaço aéreo brasileiro. Apesar de ter sido duramente criticada pela comunidade jurídica, que denunciou o seu conteúdo inconstitucional, a lei ainda é vigente, talvez em grande parte pela falta de pressão da população e, até mesmo, pelo apoio do senso comum do povo à eterna guerra contra as drogas. As críticas repousam sobre a série de vícios de constitucionalidade em que a lei estaria eivada: a ausência do due process of law, a desproporcionalidade da lei penal, a institucionalização da pena de morte, a afronta e a usurpação dos diretos à vida e à dignidade da pessoa humana (GOMES, 2012) (MAGALHÃES, 2012). O caso concreto que ilustra o perigo representado por essa lei é fato acontecido no Peru em 2001. Uma missionária e sua filha morreram após seu avião ter sido abatido equivocadamente pela Força Aérea peruana — os aparelhos de comunicação da aeronave estavam estragados e ela não conseguiu se comunicar com as autoridades, motivo pela qual a legislação foi amplamente discutida em terras peruanas. No Brasil, nenhum partido ousou se urgir contra a lei, apenas poucos cidadãos, como o Deputado Federal Fernando Gabeira, posicionaram-se sobre o assunto. Gabeira argumenta contra a tentativa dos defensores da lei de esvaziar possibilidade e existência de qualquer medida alternativa para realizar a abordagem das aeronaves, pintando como único caminho adequado a aniquilação sumária das KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 157 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 aeronaves suspeitas. Foram por ele também relatadas as tentativas frustradas de provocar o Supremo Tribunal Federal, nas quais nenhum partido político ousou se posicionar contra uma lei que conta com amplo apoio da opinião pública, o que acarretaria um desgaste eleitoral devastador e, por essa razão, ainda não houve posicionamento da Corte Constitucional sobre o assunto (GABEIRA, 2012). 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em razão da clareza conceitual, da sensibilidade arrojada e das bem elaboradas alegorias que Veríssimo lança mão é que se optou por utilizar O prisioneiro para desvelar importantes lições para concebermos problemas da atualidade políticojurídica sob diferente ótica. Resta essencial mostrar que as práticas de arbítrio não podem se desvincular das limitações constitucionais, sob pena de aniquilar toda e qualquer pretensão democrática de uma sociedade. A legitimação de atos como a tortura, por vezes protegida por mantos político-ideológicos, é o verdadeiro caminho para o arbítrio — mesmo em situações limite como a vivida, na obra, pelo "tenente". A presença dos inimigos-a-combater sempre será elemento presente nos ideários coletivos: o que, em momento algum, significa que essa necessidade de segurança da população civil comporte a supressão do estatuto de pessoa humana de alguns como medida imprescindível para resguardo de um coletivo. Práticas de repetida afronta contra o princípio da dignidade humana são delírios de sociedades doentes e, apenas com esperança de abertura para um diálogo entre as culturas, interação esta que não é fácil nem imediata, é que se criará a perspectiva de vislumbrar um mundo mais pacífico. O que se verifica na imersão nessa temática é que a reiterada tentativa, sobre diferentes argumentações e discursos de legitimação, de se criar condições de aceitabilidade para a tortura é um fenômeno que tende a se repetir na História. Erico, no longínquo ano de 1967, no auge da Guerra Fria, criticou com ferocidade os mandos e desmandos das nações, independentemente das orientações políticas, no que tange às afrontas aos direitos humanos — em sua obra impera uma dura indignação contra os abusos perpetrados de maneira cruel e reiterada, tanto pelas KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 158 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 nações comunistas quanto pelas capitalistas, para perseguir fins postos como justos, sejam eles o que forem. Na América Latina, todavia, sequer seria preciso da literatura para ilustrar o que a tortura institucionalizada trouxe para todo continente durante as ditaduras militares (ARNS, 1996, p. 31-48 e 203-273) (SÁBATO, 1984, p. 16-41) Esse debate, em plena era democrática, não pode continuar a se guiar por orientações políticas, a necessidade de uma visão apolítica desse panorama é uma característica que se impõe. É essencial mostrar que práticas arbitrárias, como a tortura, não condizem com um Estado Democrático de Direito. Se não forem respeitados, pois, os instrumentos jurídicos de conformidade constitucional para coibir práticas de terror, é a própria coletividade dos homens que se pretende democrática que passa a se autoaterrorizar. É válido rememorar que, na ditadura argentina (1976-1983), o sistema de repressão atingiu tal ponto de perversão que, após a intensa repressão nos primeiros anos de regime, não havia outro método investigativo a não ser a tortura nos porões. (SÁBATO, 1984, p. 31-39). Vive-se num mundo que não possui uma polarização clara e definida, as mudanças são rápidas e, por vezes, difíceis de perceber. A complexidade com que estamos inseridos hoje no mundo globalizado, não raro, gera obstáculos para distinguir e discernir o que, de fato, merece nossa indignação e consequente engajamento. Tampouco foi desprovido de desafios elaborar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, explica Stéphan Hessel, o mais novo dentre os que participaram da redação do documento adotado pela ONU. Em seu pequeno manifesto, redigido recentemente, intitulado Indignez-vous!, explica que, no movimento da Resistência, o espírito de indignação e irresignação contra o nazismo foi a principal convicção e força espiritual para alavancar a libertação de uma França aliada ao nazismo. No contexto do pós-guerra, sabia que a Declaração de 1948 não tinha alcance jurídico, e sim declaratório, mas ilustra o poder possuído por aquela afirmação de direitos mínimos: empecilhos em sua concretização não a impediram de desempenhar um papel central e protagonista na defesa contra a opressão e a barbárie em diversos momentos a partir da metade do século XX (HESSEL, 2011, p. 30-36). Hessel entende que a violência dá as KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 159 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 costas à esperança: prega que a humanidade deve aprender a se guiar pela nãoviolência. Para isso, propõe uma insurreição pacífica contra o senso comum que aponta para a violência como o único caminho a ser trilhado. Transcrevo os anseios do autor: A mensagem de uma Mandela, de um Luther King encontra toda sua pertinência em um mundo que ultrapasso o confronto das ideologias e o totalitarismo conquistados. É uma mensagem de esperança na capacidade das sociedades modernas de ultrapassar os conflitos por meio de uma compreensão mútua e de uma paciência vigilante. Para alcançá-la, devemos nos basear nos direitos, cuja violação, qualquer que seja o autor, sempre há de provocar nossa indignação. Não se pode transigir sobre esses direitos (HESSEL, 2011, p. 32). É através da busca da formação de uma cultura de respeito aos direitos humanos que se constitui a real liberdade do homem no mundo de hoje. Idéias como as de Hessel, guiadas pela sabedoria que emana de uma vida de lutas e conquistas, objetivos estes que nunca se pretenderam facilmente alcançáveis, que devem nortear o debate das novas gerações sobre como encarar os desafios da modernidade, seja o âmbito qual for — político, jurídico, social ou econômico — para construir sistemas de democracia plena e de culto às necessidades mínimas de existência de populações inteiras. REFERÊNCIAS ARNS, Paulo Evaristo. Brasil: nunca mais. 3. ed. 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Utilizando-se de aspectos fenomenológicos-hermenêuticos, faz-se possível constatar que, durante a evolução histórica das ciências jurídicas, como resultado de uma superação de paradigmas até então vigentes, o Poder Judiciário ganhou papel de destaque na sociedade, alterando a figura representada pelo Magistrado, cujo perfil será retratado no presente trabalho PALAVRAS-CHAVE: direito na literatura; a representação dos juízes; decisão judicial. 1 INTRODUÇÃO O principal objetivo a ser atingido neste ensaio é a reflexão acerca das possibilidades de compreensão dos fenômenos jurídicos através da Literatura, mais 1 2 3 Doutor e Mestre em Direito Público (Università Degli Studi Roma Tre/ Itália). Professor da Escola de Direito da IMED e CESUCA. Email: [email protected] Acadêmica do curso de Direito da Faculdade Meridional – IMED. Bolsista FAPERRGS Membro do Grupo de Estudos em Direito e Literatura Katharsis. Email: [email protected]. Acadêmica do curso de Direito da Faculdade Meridional – IMED. Bolsista do Programa de iniciação científica da IMED. Membro do Grupo de Estudos em Direito e Literatura Katharsis. Email: [email protected] KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 162 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 especificamente da peça o O círculo de giz caucasiano, do escritor alemão Bertolt Brecht. Sendo assim, a pesquisa realizada segue como orientação metodológica a fenomenologia-hermenêutica, buscando através da Literatura novas perspectivas à compreensão dos problemas jurídicos. A análise teórica de textos literários clássicos, nacionais e estrangeiros, possibilita identificar, nos mesmos, elementos conectores destes com a Teoria do Direito e com a Filosofia no Direito. Dessa forma, o estudo busca evidenciar a semelhança entre a Ciência do Direito e da Literatura, a partir da compreensão proposta pela corrente direito na literatura. Pretende-se, portanto, apresentar e refletir, à luz da literatura, temas centrais da Ciência do Direito dando destaque à figura do juiz por influência dos modelos de juiz propostos por François Ost. 2 DIREITO NA LITERATURA Embora muito recente no Brasil – onde ainda existem poucas pesquisas interdisciplinares jusliterárias –, o estudo do Direito e Literatura atravessa o século XX, especialmente na Europa e nos Estados Unidos. O direito e a literatura se assemelham em diversos pontos. Contudo, o estudo dessas interseções ainda é um tema relativamente novo no âmbito acadêmico. As correntes que estudam essas relações podem ser divididas em três. A primeira delas é o direito da literatura, que trata da regulação que o ordenamento jurídico confere a problemas ligados à produção intelectual. Há, também, o direito como literatura, que possui maior expressividade nos Estados Unidos, e cujos estudos buscam relacionar a interpretação do âmbito jurídico com o literário. Por fim, a corrente do direito na literatura, com a qual trabalharemos. A corrente do direito na literatura – analisada como direito a partir da literatura – parte da premissa de que algumas questões jurídicas se encontram melhores formuladas e esclarecidas em obras literárias do que em muitos dos manuais jurídicos especializados (TRINDADE; GUBERT, 2008, p.49). KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 163 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 François Ost, em sua obra intitulada Contar a lei, propõe a elucidação de questões jurídicas através da liberdade trazida pela literatura por meio das narrativas (OST, 2005, p. 48-58). O autor diferencia direito e literatura em quatro principais aspectos. Primeiramente, no que diz respeito ao papel destes, enquanto o da literatura é por em desordem as convenções, suspender as certezas e liberar os possíveis, o papel do direito é de codificar a realidade (OST, 2005, p. 48-58). Essa caracterização de Ost implica em certa ambiguidade. Isso porque, a Ciência do Direito vem fazendo movimentos para ultrapassar as noções jurídicas rasas que acabam equiparando o Direito ao Direito Positivo. Nesse sentido, novos questionamentos sobre a Teoria das Fontes do Direito podem dar vasão à discussão sobre o alcance normativo – codificador – do Direito Positivo e o papel do intérprete nesse processo. Em segundo, a literatura ao contrário do direito, não possui a função social de estabilizar expectativas e tranquilizar as angústias da sociedade, sendo possível, assim, a exploração de todos os meios para concretização de um determinado fim, criando-se dessa forma a possibilidade de inovações decorrentes do emprego de um olhar crítico (OST, 2005, p. 48-58). Não se pode negar, entretanto, que o leitor ao conhecer a condição reacionária da literatura não possa empregá-la como forma de denunciar impropriedades dogmáticas do Direito. Nesse sentido, entende-se que a Literatura ampara a crítica, evidenciando o pluralismo na compreensão do Direito. Um terceiro ponto de divergência surge da análise dos estatutos dos indivíduos de que fala cada um desses discursos. No Direito o homem encontra uma vinculação à sua conduta, passando a seguir uma referência de comportamento padrão, fonte de inspiração da atitude dos demais membros da sociedade, enquanto na literatura nada é impossível, cabe ao escritor a possibilidade de contestar as convenções sociais, criar personagens rebeldes que não abdicam de sua função de agente transformador da sociedade (OST, 2005, p. 48-58). O que parece ficar ocluso a Ost nessa diferenciação é que o Direito precisa apresentar essa condição de intersubjetividade. Isto é, de KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 164 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 elementos comuns nos quais as condutas podem ter como seus pressupostos. Para o Direito, essa pressuposição dá segurança às relações. A quarta diferença reside no fato de que o direito trata e descreve aquilo que é abstrato e comum, já a literatura não, descreve as singularidades de uma história particular (OST, 2004, p.12-16.). Novamente, ressalva deve ser feita a diferenciação proposta pelo autor. O Direito também acaba tratando do particular. Aliás, grande parte dos questionamentos sobre a justiça do Direito (Positivo) acaba sendo anunciado mediante o contraste normativo entre previsões gerais e abstratas – ideal típico do direito positivo codificado – e a sua aplicação ao caso concreto. Ao mencionar em sua obra que “a literatura adota em muitos domínios a forma da casuística, na qual a exposição do caso, misturando relato e argumentação, destinase a levar à descoberta e a à aplicação da lei” (OST, 2010, p. 53), François Ost retoma a ideia da capacidade de incentivo trazido pela literatura ao direito. Esse diálogo faz com que os juristas, através da análise feita às obras literárias, ampliem seus horizontes e descubram, a partir dos fatos narrados pelas mesmas, soluções para os casos da realidade. Facilitando dessa forma a resolução de conflitos e sinalizando qual seria a aplicação correta da lei. Seria, dessa forma, possível constatar que, o jurista que adota uma postura crítica, desenvolvida através da literatura, perante os conflitos propostos pelo direito, descobre a capacidade de contribuir para a melhor concretização da justiça e do bem estar social. Uma vez que a narrativa poderá indicar possibilidades diferentes de análise do problema, facilitando, assim, a aplicação da lei de forma correta, e, consequentemente, trazendo benefícios ao sistema Jurídico. Para ilustrar esse papel desempenhado pela literatura no jurista, pode ser mencionada a seguinte passagem de Ost: O jurista que desembarca em terra literária assemelha-se a Colombo pondo os pés no novo mundo – ignorante da natureza exata de sua descoberta: ilha ou continente? Índia ou América? Muitas outras surpresas ainda o esperam, e ele certamente será obrigado a modificar mais de uma vez o traçado dos mapas que traçou presuntivamente (OST, 2004, p. 58). KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 165 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Contudo, não se desconhece a crítica sobre a relação entre o Direito e a Literatura. Há aqueles, no exemplo de Rodrigo Díez Gargari que assumem uma postura cética quanto a troca produtiva entre esses âmbitos do saber. Entende o autor que o constitucionalismo moderno fez com que o direito passasse a ser entendido de outra forma. A interpretação e argumentação jurídica afastam-se cada vez mais da teoria positivista, uma vez que as normas presentes no texto constitucional possuem uma grande amplitude e indeterminação, enfatizando a necessidade do desenvolvimento da teoria da argumentação. Ou seja, o autor reconhece a transformação da prática jurídica e as novas demandas resultantes desse processo, contudo acredita ser grande de mais o salto entre a hermenêutica e a argumentação jurídica à literatura (GARGARI, 2008. p. 149-175). A ideia de que a literatura é capaz de formar melhores cidadãos, segundo Gargari, apenas alimenta a esperança desmedida sobre o papel da literatura, o pensador não acredita que aquele indivíduo que possui falhas em sua formação irá repará-las com a literatura tornando-se um melhor servidor público. Ao referir-se ao método de análise dos textos legais da mesma forma que são efetuadas nos literários, Díez aponta para a possibilidade que a utilização dos meios interpretativos, próprios da literatura, resulte na superficialização dos temas tratados pelas ciências jurídicas (GARGARI, 2008. p. 149-175). Mesmo conhecendo as críticas proferidas por Gargari, assume-se que a Literatura acaba contribuindo ao Direito, nos termos da proposta de Ost, pois permite que questões holísticas sobre o funcionamento ou a legitimidade do Direito – decisão – não tematizadas pela dogmática jurídica tradicional apareçam e mereçam maior atenção do jurista. Assim, particularmente, estudar o Direito na Literatura é recepcionar no âmbito jurídico problemas que, na operacionalidade cotidiana do Direito, não se mostram evidentes. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 166 ANAIS DO II CIDIL 3 V. 2, N. 1, JUL. 2014 DA LITERATURA À AZDAK A partir dos pressupostos do estudo do Direito na Literatura, o trabalho teve como seu objeto o livro: O círculo de giz caucasiano, de Bertolt Brecht, procurando identificar elementos que pudessem caracterizar a figura do juiz apresentada na obra. O livro estudado foi escrito em 1944, nos Estados Unidos, representando uma peça que narra a estória sobre a disputa da posse de um determinado vale. De olho na peça, especula-se que a obra faz menção, mesmo que indiretamente, ao momento histórico de reconstrução da Rússia Soviética por consequência da destruição proveniente da primeira Guerra Mundial (BRECHT, 2010, p. 12). Interessa destacar que a obra apresenta uma peça dentro da peça, cuja encenação é observada pelos personagens como forma de compreender de que forma modelar a decisão sobre a posse do vale, questão tratada na narrativa (BRECHT, 2010, p. 13). Assim, a peça dentro da peça tem como objeto o litígio sobre a guarda de uma criança. Isto é, apresenta a disputa travada entre a mãe de criação e a mãe de sangue do menino Miguel. Inspirado por uma lenda chinesa, semelhante a historia do juízo salomônico, Brecht demonstra a necessidade da resolução dos problemas quanto à posse das terras seguir o exemplo da decisão do juiz Azdak na disputa pela guarda do menino Miguel. Na peça, Grucha salva a vida do filhinho do Governador de alguma cidade da Geórgia medieval, que fora assassinado durante uma revolta política. Ocorre que, após ser restabelecida a ordem social, a mãe de sangue, que havia abandonado o filho durante a fuga, reivindica a guarda do menino. Nesse momento entra em cena Azdak, o juiz dos pobres, beberrão e corrupto, o qual, para resolver o caso, manda que tracem no chão um círculo de giz, no qual o menino será colocado, devendo cada mãe puxar a criança para o seu lado fora do círculo. Grucha perde, porque não puxa a criança com toda a sua força para não machucá-la. Mas Azdak entende que, diante da situação, quem deveria ficar com o menino é Grucha, por ter agido ela de forma verdadeiramente maternal. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 167 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Manuel Bandeira ao prefaciar o livro assinala que “a moral da peça é que as coisas devem caber àqueles que são bons para elas” (BRECHT, 2010, p. 19). Fica a pergunta que orientou a pesquisa: quem é o juiz? O juiz era Azdak, escrivão do povoado, representado na peça que serve de modelo à resolução da disputa do vale. O juiz Azdak teria sido nomeado pelos couraceiros após chegar ao tribunal alegando que havia abrigado o Grão-Duque fugitivo, e, merecia severa condenação por ser um traidor da aldeia. Ao longo da conversa mantida com os couraceiros, pouco intelectuais, Azdak demonstra conhecer das relações jurídicas e da história da aldeia, além de possuir ideias semelhantes dos atuais governantes da comunidade. Seja por esse motivo ou porque todos os juízes e pretendentes ao cargo tinham sido enforcados, os soldados decidem nomeá-lo como Juiz do vilarejo, baseados na justificativa de que os juízes anteriores de boa índole se transformaram em tratantes. Em seu artigo intitulado “O juiz em Azdak: um estudo de hermenêutica jurídica na peça O círculo de giz caucasiano, de Bertold Brecht”, publicado nos anais do Conpedi de Belo Horizonte, Luis Gustavo Cardoso, descreve a figura do juiz, demonstrando ao fim que suas decisões eram irregulares, de um estranho racionalismo, utilizando-se de uma justiça própria, peculiar e concreta. O autor relaciona o problema apresentado pelo livro com a hermenêutica jurídica, na maneira de adotar a interpretação como linha de pensamento. Entretanto, pouco escreve sobre o dilema das decisões do juiz e a relação com o direito (CARDOSO, 2008. p.4992-5003). Ao contrário de Cardoso, trataremos da figura do juiz a fim de possibilitar sua relação com o direito e com os problemas atuais enfrentados pelo Judiciário na motivação das decisões dos juízes, que, por sua vez, adotam uma postura desvinculada das fontes do direito. Atitude, essa, que ocasiona problemas na efetivação da justiça e concretização dos direitos fundamentais. Ao analisar a narrativa, a figura do juiz é caracterizada, entre outras, pela parcialidade adotada por Azdak na resolução dos problemas apresentados a ele. Em um primeiro momento, faz-se possível perceber que ele tende a beneficiar o proletariado, contudo, com o passar do tempo, essa característica deixa de ser marcante, cedendo KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 168 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 espaço a uma conduta imprevisível. O destaque à conduta do juiz é a falta de apego às leis, o que pode ser visto na peça quando Azdak utiliza o código como assento. Para ilustrar as particularidades e a instabilidade do Juiz Azdak na peça, referimos três decisões proferidas por ele ao longo da história. A primeira delas se refere a um crime de extorsão em que há um Inválido, um Médico e um coxo. Na situação o inválido custeou os estudos do médico, este, por sua vez, nunca lhe pagou e, após formado, tratava seus pacientes gratuitamente. Por se assustar com o fato, o homem ficou inválido. Já o coxo alega erro médico, que operou a perna errada. Ao se defender o médico acredita ter recolhido os honorários por meio de seu assistente. Simultaneamente, um homem e acusado de chantagem, nega, e diz que estava verificando se o proprietário tinha violentado a sobrinha, o proprietário lhe disse que não e deu-lhe dinheiro para pagar os estudos musicais de seu tio. O juiz decide, provada a extorsão, condenar o inválido ao pagamento de multa, o coxo a receber como indenização uma garrafa de aguardente francesa. Ao chantagista ceder ao Promotor metade dos honorários, pois o tribunal não divulgou o nome do proprietário e ao médico a absolvição por erro profissional (BRECHT, 2010, p.153-156). Já na segunda decisão o juiz adota ideias diferentes em relação aos primeiros dois conflitos, aqui, decide a favor dos pobres, no entanto sem nenhum embasamento legal aparente. Neste caso uma camponesa é acusada de ter detido uma vaca pertencente a um proprietário, além disso, foi encontrado com ela outros pertencentes, e quando se reclamou o pagamento de um arrendamento a acusada, os proprietários reivindicam os bens e a acusada alega milagre de um santo. O juiz após escutar todas as partes, profere sua decisão dizendo que os proprietários devem pagar multa por desacreditar nas palavras da camponesa, favorecendo, portanto, a parte mais fraca (BRECHT, 2010, p. 163). O ato de o Juiz Azdak ignorar os códigos é retratado na passagem abaixo, em que Azdak diz a Schauva seu ajudante e promotor público: Vá me buscar o livro grosso em que me sento. Shauva apanha o livro na cadeira, Azdak o abre: Isto é um código, podem dar testemunho de que sempre me utilizei dele. Shauva: Sim, pra sentar-se em cima. Azdak : Agora é melhor consulta-lo pra ver o que eles me podem KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 169 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 chimpar. Pois eu costumava fazer vista grossa aos que nada tinham, isto vai me custar cara. Ajudei a pobreza a se sustentar nas magras pernas, e eles me levarão isso à conta de bebedeira; meti o nariz nos bolsos dos ricos, o que é considerado uma obscenidade (BRECHT, 2010, p. 166). A atuação do juiz Azdak acaba, de certa maneira, representando a possibilidade de o juiz decidir os problemas jurídicos de acordo com as suas convicções. Pela narrativa da peça, parece evidente que Azdak pouco se importava com o conteúdo do Direito Positivo. Especula-se, ser por isso o seu descaso com os códigos. Ou melhor, a sua ironia com aquilo que estava previsto nos códigos. A cena em que Azdak solicita o código para se sentar sobre ele pode, simbolicamente, representar duas questões diversas. Dependendo do conceito de Direito que se pretende, a interpretação poderá ser diferente. Isto é, poderia a cena representar tanto a importância do intérprete na dação do sentido jurídico quanto a ignorância que o intérprete pode fazer das leis. Nesse sentido, a formação do conceito de direito a partir do entendimento da corrente doutrinária proposta por H. L. A. Hart e aquela proposta por Ronald Dworkin pode ser evidenciada fomentando essas interpretações. Ao dissertar acerca da discricionariedade judicial Hart sinaliza para o conflito, mas contundente entre sua teoria e a Dworkiniana. Segundo ele, qualquer sistema jurídico pode ser indeterminado ou incompleto, e assim sendo, caberia ao juiz criar um “novo direito” endossado pelo poder discricionário a ele investido (HART, 2009. p. 351). Essa teoria esta ligada ao fato de se concepção de Direito permitiria que o jurista, em última ratio, pudesse, inclusive, deixar de lado o Direito Positivo, exercendo as suas próprias convicções, sentimentos pessoais para resolver os problemas. Assim quando Azdak opta pelas suas preferências pessoais, fazendo do código das leis mero apoio ao seu ato, estaria relegando o poder normativo do Direito Positivo. De outra sorte, para Ronald Dworkin, o juiz nunca teria a oportunidade de sair do âmbito do direito. Não poderia ele exercer o seu poder discricionário. Inclusive, considerar o que está escrito no código faria parte da sua responsabilidade jurídica. É KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 170 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 nesse sentido que Dworkin reclama que os juízes não podem dizer que a Constituição expressa (simplesmente) as suas próprias convicções (DWORKIN, 2006, p. 15). Ao decidir sobre determinado caso cujo precedente não existe, o juiz deve considerar-se como parceiro de um complexo empreendimento em cadeia, do qual essas inúmeras decisões, estruturas, convenções e práticas são a história. O juiz tem a responsabilidade de continuar essa história no futuro a partir de suas atitudes (DWORKIN, 2005, p. 238). Sobre a influência da literatura nas tomadas de decisões pelos juízes, Dworkin alerta para a presença de casos similares com aqueles que com os quais o juiz pode se deparar em livros. Casos plausivelmente similares com aqueles a ele demandados, decididos há décadas ou mesmo há séculos por muitos outros juízes, de estilos e filosofias judiciais diferentes (DWORKIN, 2005, p. 238). A cena descrita na peça parece indicar isso: que o juiz tem participação ativa da realização do Direito. E se ele não age com responsabilidade, pode simplesmente ignorar o direito posto e a função desse direito para determinar as condutas na sociedade. Esse dilema interpretativo parece remeter a atual discussão sobre os limites da interpretação do Direito, em que se coloca a discussão sobre o positivismo jurídico e o pós-positivismo. Isso é, pode o juiz interpretar o Direito independente das leis e da Constituição? Ao trazer a narrativa para a realidade, verifica-se que as características presentes no juiz da peça se assemelham e podem ser comparadas as posturas de alguns juízes na atualidade, que utilizam, por diversas vezes, a discricionariedade, atos de vontade para decidir determinado conflito, se distanciando da lei (STRECK, 2010, p. 87-89). Segundo Ost, “um juiz deve ser capaz de dar voz aos sem-voz, de arrancar sujeitos do anonimato e dos clichês redutores nos quais o discurso se encerra” (OST, 2004, p.51). Ou seja, o juiz representa a sociedade para que se proceda à justiça. Dessa maneira, a figura de Azdak permite a reflexão sobre a atuação do juiz que ignora as leis ou as interpreta independentemente da Constituição, entendendo possuir KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 171 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 liberdade para decidir como se fosse legislador (STRECK, 2010, p. 87-89). Aliás, essa marca apresentada por Azdak parece ser aquilo que move os juízes que utilizam dos princípios jurídicos como ferramental justificador das decisões sob a chancela do denominado “pós-positivismo” (STRECK, 2010, p. 87-89), sem representar, no entanto, a responsabilidade do juiz no ato de tomada de decisão, como evidencia Rigaux, O problema da interpretação que está no centro do raciocínio judiciário não tem por único objeto a inteligência dos textos normativos escritos, emanantes de uma autoridade pública (lei, regulamento, ato administrativo, decisão judicial etc.). O costume, os usos, os atos jurídicos privados, os comportamentos individuais, inclusive aqueles que não se revestem de uma forma oral (gestos, silêncios, ações e inações, omissões) oferecem-se a interpretação judiciária (RIGAUX, 2000, p. 306). Demonstra o autor, na passagem citada, que o juiz é dotado de todos os meios necessários para interpretar de maneira correta e comprometida com o bem comum, sem usar artifícios. Entretanto, reiteradas vezes, o que se percebe é a irrelevância adotada pelo Juiz perante os instrumentos existentes, cuja atitude torna precário o sistema, já que afeta diversos interessados que estão em busca da resolução de seus conflitos de maneira justa. Esvaziando, portanto, o real papel do Juiz e da Ciência Jurídica. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Tendo em vista o momento de crise por qual passa o judiciário, a discussão acerca da influência da literatura na formação de um senso crítico aguçado nos Magistrados, traz a tona a necessidade de adequar ao novo paradigma constitucionalista fincado em uma nova visão apreciativa acerca da Ciência e da prática jurídica. A pesquisa de fenômenos jurídicos através da obra de Bertolt Brecht e da corrente do direito na literatura, fundamentada em François Ost, propicia uma visão nítida da contribuição que a literatura traz ao direito. Uma vez que, conforme se viu, a literatura possibilita, entre outros fatores, diversas visões através dos quais auxiliam as compreensões das relações jurídicas e humanas. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 172 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Portanto, tornar-se necessário que a Ciência do Direito se utilize da literatura na busca pelo desenvolvimento crítico, bem como para ampliação de horizontes proporcionados pelo contato com as obras literárias. Na tentativa de evitar a tendência de estereotipar e abstrair os problemas jurídicos, o direito pode recorrer à literatura e, assim, promover a descaracterização dos padrões, levando em conta a singularidade das narrativas, suas situações e personagens. Isto porque, como se sabe, a literatura possui a capacidade de explorar todas as saídas possíveis de um mesmo caminho, abandonando a “linha reta”, representada pela codificação dos fatos, presente no direito aplicado. REFERÊNCIAS BRECHT, Bertolt. O círculo de giz caucasiano. Trad. de Manuel Bandeira.São Paulo: Cosac Naify, 2010. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. CARDOSO, Luis Gustavo. O juiz em Azdak: um estudo de hermenêutica jurídica na peça O círculo de giz caucasiano, de Bertold Brecht. In: Congresso Nacional Conselho Nacional de Pesquisa em Pós-Graduação em Direito, 16, 2008, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte, 2008. DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito: definiçao e conceitos básicos; norma jurídica; fontes, interpretação e ramos do direito; sujeito de direito e fatos jurídicos; relações entre direito, justiça, moral e política; direito e linguagem. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. DWORKIN, Ronald. O direito de liberdade: a leitura moral da constituição norteamericana. Trad. de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2006 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. GARGARI, Rodrigo Díez. Dejemos em paz a la literatura. Revista de Teoría y Filosofía del Derecho, México: Instituto Tecnológico Autónomo de México, n. 29, p.149-175, oct. 2008. HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. OST, François. Contar a lei: as fontes do imaginário jurídico. São Leopoldo: Unisinos, 2004. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 173 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 RIGAUX, François. A lei dos juízes. Tradução Edmir Missio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães. Direito e Literatura: aproximações e perspectivas para se pensar o direito. In: TRINDADE, André Karam; GUBERT, Roberta Magalhães. (Org.) Direito & literatura: reflexões teóricas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 174 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 (NA) BEIRA (DO) RIO, (NA) BEIRA (DA) VIDA: A MUNDOCA NO DIREITO D YEGO P HABLO D OS S ANTOS P ORTO 1 RESUMO: O presente artigo objetiva analisar as possíveis e necessárias relações entre direito e literatura a partir da obra Beira rio beira vida do piauiense Assis Brasil, cuja narrativa retrata a vida de pessoas marginalizadas pelos poderes públicos. Primeiramente, apresenta-se o processo de “gestação” do artigo, ou seja, os motivos (conscientes e, talvez, inconscientes) que lhe condicionaram. Posteriormente, são expostas as correntes que fazem parte do movimento “direito e literatura”, optando-se pela abordagem que retrate o “direito na literatura”. Após, pretende-se (re)discutir o (in)efetivo papel do Direito em transformar a realidade, problematizando seu caráter, assumido no contexto pós-Segunda guerra, de plus normativo, fazendo-se, para tanto, um breve relato do constitucionalismo para se analisar a forma pela qual o Estado se propôs a intervir na realidade desde sua feição Liberal até sua conformação de Estado Democrático de Direito. Aposta-se, por fim, no caráter compromissório da Constituição, para que o Direito não seja identificado com a personagem mundoca; que não possua um “mundo oco”; e que seu discurso, por fim, não se configure numa mera promessa de amor (Warat). PALAVRAS-CHAVE: direito e literatura; marginalização; estado democrático de direito. 1 ANGÚSTIA E REVOLTA: POR QUE DIREITO E LITERATURA? A grande pergunta que devemos fazer ao se iniciar um estudo que intercale direito e literatura é: por que estudar direito e literatura, hoje? O que é isto – direito e literatura? Serve para quê? Qual a importância de se introjetar a “fábula” literária nos 1 Acadêmico de Direito da Universidade Estadual do Piauí (UESPI) – VIII bloco. Membro do Grupo de Estudos “Justiça, Simbolismo e Sociedade” (UESPI). Estagiário da Justiça Federal, Seção Piauí – Subseção Judiciária de Parnaíba KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 175 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 estudos jurídicos, nos códigos, na prática forense, enfim, na vivência do Direito? Ou de outro modo: quais os potenciais que a literatura nos fornece para que possamos visualizar suas denúncias ao discurso jurídico? Ou ainda: de que forma a literatura antecipa a vida e, por consequência, as grandes discussões jurídicas?2 Essas perguntas são imprescindíveis para delinearmos os caminhos pelos quais iremos traçar neste trabalho. Afinal, em tempos de estandardização da ciência jurídica, em tempos de um ensino jurídico prêt-à-porter e prêt-à-pense, como se refere ad nauseam Lenio Streck, fica até mesmo difícil de explicarmos a alguém o porquê de tal estudo. Não raro, vemos pessoas (do estudante ao Desembargador) se perguntando qual a utilidade em fazer esse tipo de intercâmbio (e, pasmem, até mesmo outros intercâmbios!). Tal desinteresse, certamente, tem relação umbilical com o próprio ensino jurídico acima denunciado, de tal forma que fica difícil de saber quem origina quem. Passa-se a ter, assim, um ensino cuja epistemologia ainda é presa a uma espécie de pedagogia profissionalizante, bastando ver, salvo algumas exceções, os cursos jurídicos espalhados pelo Brasil direcionados ao exame da Ordem dos Advogados do 2 Há um conto fantástico de Machado de Assis intitulado “Ideias do canário” que de uma forma ou de outra antecipa alguns pontos que mais adiante serão objetos de estudo tanto pela filosofia hermenêutica (Heidegger) como pela hermenêutica filosófica (Gadamer), assim como acaba antecipando alguns conceitos lacanianos (imaginário, real e simbólico). No conto, temos um canário filósofo numa loja de belchior que foi comprado pelo Sr. Macedo. Este, encantado com o canário, leva-o para casa. Antes, porém, indaga-lhe se não sentia saudade do “espaço azul e infinito”. Ao que o canário responde: “ – Que coisa é essa de azul e infinito?”. Depois, conceitua o mundo. E arremata: “– Fora daí, tudo é ilusão”. Na casa do Sr. Macedo – este fazendo anotações científicas, o que parece ser uma ironia machadiana à pretensão metodológica da ciência em abarcar algo que foge de sua alçada – o canário, uma vez mais, conceitua o mundo. E, de novo, arremata: “ – Tudo o mais é ilusão é mentira”. Aqui, podemos trabalhar com o conceito de real em Lacan, pois este seria o impossível, o não simbolizado, portanto, a rigor, o que não existe para o canário. Algo que seria ilusão. Sobre os conceitos de imaginário, real e simbólico em Lacan, Cf. Streck (1999, p. 134-136). Até mesmo a distinção tão festejada entre “easy case” e “hard case”, se metaforizada no conto, perderia sentido. Isto porque o canário só vai entrar em contato com o “céu azul” algum tempo depois que estava na gaiola da loja de belchior. Surpreendentemente, depois que fugiu da casa do Sr. Macedo, é encontrado num jardim vasto, e, indagado, novamente, a respeito do mundo, responde: “ – O mundo é um espaço infinito e azul, com o sol por cima”. Ora, na gaiola, seria muito “difícil” saber o que seria céu azul. Passou-se um tempo e o dito “céu azul” sofreu uma Lichtung (clareira), apareceu, manifestou-se como tal, passando a ser algo mensurável, simbolizado, simples, comum, numa palavra, “fácil”. Assim, de forma análoga, a ideia de caso fácil e difícil vai estar na compreensão do sujeito, e não de forma antecipada como se as coisas possuíssem uma suficiência ôntica. Nesse sentido, Cf. Fernandes (2010, p. 69) e Streck (2008, p. 298-301). KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 176 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Brasil e aos concursos públicos3, de maneira que daqui a algum tempo talvez reivindiquem por uma disciplina chamada “Teoria Geral dos Concursos Públicos” ou “Exame da OAB”. Nesse contexto, o Direito é identificado como uma atividade “prática” e fruto tão somente da “experiência forense”. Afinal, “isso é só coisa teórica, na prática é diferente”; “direito é oriundo da prática que se absorve no dia a dia forense”. É claro que o Direito trabalha com casos práticos, com pessoas de carne e osso, com seres humanos. Ora, esse é um dos motivos que, paradoxalmente, faz com que a literatura, dentre outros saberes, sirva de substrato ao Direito, pois ela trabalha com processos subjetivos, com a imaginação, com vivências e nos possibilita desta forma nos vermos no outro, no que se está a passar naquela outra realidade4. Com isso a compreensão do processo como instância de vivências, de vidas, de seres humanos, de problemas relacionados à exclusão social e a má prestação de direitos sociais – e não meramente como a instauração de um procedimento que inicia uma “lide” e trabalha com “sujeitos de direitos” que na verdade não são sujeitos5 – fica mais fácil de ser percebida. E mais: mal essas pessoas (as que defendem que Direito seja tão somente fruto da prática e dos 3 4 5 Como se refere Trindade (2013) em texto recente publicado no Conjur, “aqui, em terrae brasilis, os cursos se voltam à aprovação no Exame de Ordem. Tanto é assim que, periodicamente, divulgamos o ranking das faculdades que obtêm maior percentual de egressos aprovados na OAB, como se isso fosse um atestado de qualidade. Isto para não falar do tal Selo OAB, certificado às instituições recomendadas”. Claro que será impossível experimentar exatamente o que esta outra realidade denúncia. Isso porque, como seres humanos que somos, possuímos vivências próprias e sentimentos próprios. Não podemos sentir o que os outros sentem da mesma maneira. Mas, paradoxalmente, o mundo é um só e é através da comunicação no mundo que podemos sairmos-de-nós-mesmos, embora desde outros lugares, desde outras situações. Essa é a condição humana que temos que humildemente reconhecer. Como diz Merleau-Ponty (2009, p. 22-23), “é dentro do mundo que nos comunicamos, através daquilo que nossa vida tem de articulado [...] nós vemos verdadeiramente a coisa mesma e a mesma coisa – e, ao mesmo tempo, não alcanço nunca a vivência de outrem. É no mundo que nos reunimos. [...] só através do mundo posso sair de mim mesmo. Então é mesmo verdade que os ‘mundos privados’ se comunicam entre si, que cada um deles se dá a seu titular como variante de um mundo comum. A comunicação transforma-nos em testemunhas de um mundo único”. Luís Alberto Warat não entende o individuo como sujeito do Direito, e sim como indivíduo a partir da perspectiva do amor e do desejo (MONDARDO, 2000, p. 66). Dessa forma a interação com-o-outro será vista desde uma perspectiva afetiva e dialógica, assim como poderiam ser, respectiva e exemplificativamente, tanto o contato do advogado com seu cliente, como a estrutura de um processo num Estado que se intitule Democrático. Sobre a feição dialógica e policêntrica do processo assumida nos marcos de um Estado Democrático de Direito, Cf. Nunes (2013). KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 177 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 “casos concretos”) sabem que retornam, inconscientemente, ao velho positivismo fático, cuja compreensão requer, necessariamente, um horizonte teórico. Aliás, tal problemática deita raízes na história das tradições jurídicas6. Já, então, que a literatura envolve processos de subjetividades, penso que seria impossível a um mortal escritor (seja do que for!) não se envolver pelo drama e pelos relatos inscritos em suas narrativas. Como se referiu certa feita Gabriel Garcia Márquez (apud CARVALHO, 2013, p. 5), ao lhe perguntarem como fazia para escrever, disse que começa com letra maiúscula, termina com ponto final e no meio expressa-se aquilo que se está sentindo. Nessa trilha de pensamento, friso que a intenção do presente artigo é escandalosamente menos científica7 do que possa parecer, se por científico 6 7 O Direito inglês de tradição common law se constitui em práticas jurídicas advinda dos Tribunais e dos juízes, daí porque a importância dos precedentes naquele sistema, ao contrário do direito construído na tradição civil law cuja característica é a de ser ensinado nas universidades, cientificamente, dando-se importância, por consequência, aos estudos doutrinários. Sobre tal problemática, abordando a distinção entre precedentes e súmulas vinculantes em suas respectivas tradições jurídicas, Cf. Streck (2013). Uma observação importante: não ter pretensão “científica” significa, no presente artigo, trabalhar com instâncias e processos de subjetividades que foram deixados do lado de fora do monastério da modernidade, esta entendida como um projeto cuja narrativa exige um sujeito neutro, imparcial e asséptico, onde o saber é valorizado em detrimento da imaginação, da loucura, do absurdo, do onírico, do surreal, do amor, da ficção, do desejo, dimensões que sem dúvidas fazem parte de uma narrativa literária. Penso que essa é a única maneira de criarmos fissuras no instituído, de ousar, de inovar, de criar, “porque a não-razão do desejo deve revelar a inconsistência do mundo razoável. A ilusão da verdade deve morrer para dar passo a um novo mundo amoroso fundado numa ilusão que a razão logocêntrica chamará loucura (WARAT apud MONDARDO, 2000, p. 47)”. No mesmo sentido de colocar em xeque e de problematizar o discurso científico, posto, repisando, em termos específicos, ou seja, a partir de um debate que confronte paradigmas; a partir de uma perspectiva hermenêutica (filosófica), Cf. Tese de Doutorado de Costa (2008, p. 8). Afinal, o que quer que seja denominado de “ciência” vai ser sempre produto de uma vontade de saber que subjuga, ordena e classifica o que merece e o que não merece entrar no seu repertório, assim como vai ser fruto, também, de uma prescrição para que o conhecimento seja visto como algo verificável e útil (FOUCAULT, 2013, p. 5). É dessa forma que a subjetividade, o desejo, a sensibilidade, a arte, porque não incorporadas no repertório científico-teóricoracionalizante da modernidade, ficaram marginalizadas, postas de lado e excluídas do rótulo científico. Nesse sentido, um dos maiores nomes “rebeldes” que tivemos creio ter sido o de Luís Alberto Warat, jurista argentino radicado no Brasil falecido em 2010 cuja obra ainda influencia uma legião de estudiosos do Direito. Inovou como ninguém o estudo de muitas disciplinas, inclusive quando falava de carnavalização e cabarés. Como diz Mondardo (2000, p. 78) “[Warat] tentou trazer o teatro, o cinema, a poética em geral, e o cotidiano imaginário dos alunos à sala [...]”, assim como ministrou a única disciplina no mundo que falava, num curso de Direito, sobre o amor (MONDARDO, 2000, p. 97), ideia tida como subversiva. Sobre a trajetória de Warat no Brasil, assim como os momentos de seu magistério (técnico-instrumental e antidogmático; epistemológico; político-afetivo; de carnavalização; e psicanalítico), consultar Mondardo (2000). Sobre as possibilidades de uma concepção emancipatória do Direito baseada em alguns autores, tais como Cornelius Castoriadis, Michel Foucault e Luís Alberto KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 178 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 entendermos e partirmos de um determinado paradigma. Dessa forma as escritas aqui marcadas são, inevitavelmente, frutos de minhas próprias inquietações, angústias, indignação, revolta8. Este é o lugar da minha fala, do meu discurso, da minha situação hermenêutica9. Foi inevitável, como se verá adiante. Falo aqui, pois, como um experimentador, e não como um pretenso teórico. Tomo como minhas as palavras de Foucault (apud BERNARDES, 2012, p. 53): [...] É certo que jamais penso a mesma coisa porque meus livros são para mim experiências [...] Uma experiência é algo do qual se sai a si mesmo transformado [...] o livro me transforma e transforma o livro precedente. Sou um experimentador e não um teórico. Chamo de teórico aquele que constrói um sistema geral [...] e o aplica de maneira uniforme a diferentes campos. Não é meu caso. Sou um experimentador no sentido de que escrevo para me transformar a mim mesmo e não mais pensar a mesma coisa anteriormente. O trecho relatado por Foucault faz lembrar a metodologia empregada por Warat, ao se denominar cartógrafo10. Tal metodologia consistiria numa escrita camaleônica ao se transformar de acordo com as paisagens, sentimentos, desejos, etc, numa tentativa de romper o imaginário instituído. É uma forma de o próprio investigador se ver imerso numa realidade que atribui sentido (MONDARDO, 2000, p. 24-25), e, portanto, com ela dialogar. Conjuga-se, assim, a atribuição de sentido com o contexto existencial no qual o intérprete está inserido, jogado mesmo. O estágio em Parnaíba – mais adiante 8 9 10 Warat, a partir da experiência do espaço Cabaret Macunaíma instaurado por Warat na Unb, Cf. Gonçalves (2007). Revolta aqui no sentido que emprega Albert Camus, como sendo um sentimento solidário (e não solitário) evitando-se, assim, o solipsismo característico, aqui sim, do absurdo. O homem do absurdo é solitário; o da revolta é solidário. Dessa forma, haverá uma reformulação do cogito cartesiano, passando-se a ter não mais o “penso, logo existo”, mas sim “revolto-me, logo somos” (PIMENTEL, 2010, p. 21-22). Sentimos, também, a ideia de solidariedade na “rebeldia” de Warat, onde sempre convocava outras pessoas para formar uma corrente de pensamento (MONDARDO, 2000, p. 27). Como diz Stein (2010, p. 106), ” [...] Sem uma certa situação hermenêutica, não seríamos capazes sequer de escolher um livro”. Por isso, continua o filósofo gaúcho, “cada um que vai estudar uma ciência ou determinada área de ciência, já andou certo pedaço de caminho. Ele se preparou para isso. Passou no vestibular, teve alguns cursos” (ibidem). Assim, inexoravelmente, “todo trabalho científico é um caminho de investigação. Esse caminho de investigação tem muito a ver com a própria biografia, com a própria formação intelectual” (ibidem). O trecho nos remete também à fala de Stein (2010, p. 91), para quem a hermenêutica, nas ciências humanas, faz com que as etapas de uma investigação não fiquem fixadas em um momento, mas sim sejam transformadas sucessivamente. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 179 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 explicitarei tal condição; a obra (cujo relato aborda a vida de parnaibanos) e o autor (Assis Brasil, também parnaibano) se conjugam numa só e mesma coisa. Na medida em que a literatura é o reflexo de uma realidade política, social e econômica – ainda mais quando estamos nos referindo a obras que possuem forte apelo social, abordando a vida de pessoas miseráveis e excluídas do sistema de prestação social, como é o caso de Beira rio beira vida11 – o “experimento” foucaultiano e a “cartografia” waratiana parecem ser, a meu ver, belos vieses de análise literária, pois vai ser precisamente através de uma obra que narre a miséria vista pelos miseráveis, e não pelos patronos intelectuais, que poderemos pensar numa escrita verdadeiramente autêntica e inovadora12; uma escrita, enfim, onde justamente o “experimento” se faz presente. Dito isso tudo, há ainda algo mais – e fundamental – a ser dito: como atermador que fui da Justiça Federal Seção Piauí – Subseção Parnaíba – me vi em muitas 11 12 O livro é escrito na década de 60 do século XX que, em linhas gerais, aborda a história de personagens que viviam na beira do Rio Parnaíba, espaço onde se tinha a continuidade de vidas condenadas a se repetir, somando-se, ainda, a prostituição que parecia ser uma sina (como uma tatuagem) passada de geração para geração. Além disso, temos uma crítica nítida a uma sociedade recortada, onde há efetivamente um apartheid socioeconômico. Nesse sentido, temos a fala do narrador: “Eles nasceram na cidade para dar esmolas, elas nasceram no cais para receber” (BRASIL, 2012, p. 53). Por oportuno, cabe registrar o trecho de um texto feito por Fausto Cunha (2013, p. 5-6) na parte introdutória do livro que, a meu ver, sintetiza com maestria a obra do parnaibano: “É o retrato insolúvel duma comunidade sufocada pelo primitivismo capitalista, um mundo em que a sociedade se estratificou implacavelmente, onde as prostitutas são prostitutas, os pobres são pobres, os ricos são ricos – quase à revelia do eventual saldo financeiro. Não existem vasos comunicantes. Quem quiser realizar-se, terá de fugir, terá de ir para fora. As dobradiças do sistema estão, porém, de tal modo enferrujadas que a fuga é praticamente impossível. O personagem Jessé – sofrido e patético – alimenta a quimera de uma ruptura com o meio, e é por ele destruído. O rio pertence aos ricos, as casas pertencem as ricos, a religião pertence aos ricos. Os descontentes podem sumir simplesmente daquele cenário imutável; mas se não souberem, como Jessé, fugir à atração atávica do lugar de origem, serão consumidos no fogo de sua nulidade social. Não é pelo dinheiro largado pelos homens que a rameira Cremilda – uma das figuras soberbas da nova ficção brasileira – penetrará na sociedade. Num mundo de horizontes compactamente fechados, a miséria passa de pai a filho, de mãe a filha, quem conscientizar a sua desgraça vai sofrer em dobro. Mais uma vez Beira rio beira vida é um livro oportuno, porque aparece no momento em que nosso pais sofre a mais brutal pressão capitalista de sua história, em que de todos os lados o povo vê fecharem-se as janelas da respiração econômica. Entramos num processo de nivelamento por baixo, em que os de baixo serão ainda mais esmagados”. Ao Direito, o livro acaba servindo, patentemente, como uma denúncia à ausência do Estado e da Constituição para com aquelas pessoas. Fausto Cunha (2013, p. 5) afirma que a obra “é uma ironia que, numa época em que tantos poetas e ensaístas brasileiros se arrogaram a formulações de uma literatura popular e de revolta, seja Beira rio beira vida o único livro autêntico dentro dessas ordens de ideias. O diálogo direto, a linguagem alusiva, a miséria vista pelos miseráveis, e não pelos seus patronos intelectuais”. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 180 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 situações envolvido pelos relatos, desde os mais variados, de vivências expostas na minha frente. Pessoas muito(!) pobres que não tinham como viver de forma digna, da forma como promete a Constituição, da forma como promete a Modernidade – aqui entendida como Estado Social – e seu projeto, da forma como prometem os pomposos operadores jurídicos em entrevistas e “presos” em seus escritórios luxuosos13. Aliás, tivesse o ordenamento jurídico brasileiro controle simbólico de constitucionalidade, os escritórios, em grande parte, padeceriam de inconstitucionalidade simbólicodarwiniana (sim, pois quanto à clientela, já na ornamentação arquitetônica dos escritórios, há uma exclusão natural em relação aos que vivem na beira do rio e na beira da vida!)14. Pessoas, enfim, que não possuíam salário digno para sobreviver, sendo que a maioria não tinha a própria palavra salário mínimo (o que seria isto – o salário mínimo?) em seu vocabulário, em seu mundo. Se o limite do nosso mundo acaba sendo o limite da nossa linguagem (Wittgenstein), e, portanto, ter mundo é ter linguagem, podemos dizer, também, que ter um salário (digno) é ter mundo, ainda mais numa sociedade de regime capitalista. E ainda mais mesmo em se tratando de um direito social-fundamental (art. 7º, IV, CF/88). 13 14 Um pequeno obter dictum: é no mínimo ridículo – desculpem-me, mas não encontrei outra palavra – o fato de muitos profissionais do Direito fazerem menção ao luxo, prestígio, poder e “glamour” de suas profissões, quando, na verdade, deveriam se preocupar com a concretização do texto constitucional. Veja-se, nesse sentido, as seguintes falas de alguns juristas numa revista conceituada do Piauí: “O sucesso na carreira de muitos profissionais da área passou a ser objeto de desejo e com isso o glamour da profissão foi inevitável. Escritórios luxuosos, casas cobiçadas, viagens pelo mundo é a realidade de muitos que, com muito trabalho e dedicação, conseguiram construir em torno de si um universo de prestígio” (SOUSA, 2012, p. 30). O outro arremata: “A advocacia pode dar a oportunidade de estar no meio de vários grupos, posso ‘está’ no grupo dos bons advogados, dos bons clientes, no meio social da noite, no círculo acadêmico, permite experimentar vários tipos de glamour, e de alguma maneira elitizado” (ibidem.) – grifo nosso. Daí cair como uma luva a fala de Streck (1999, p. 68), para quem, baseado em Bourdieu, a preocupação do jurista, banalizado em seu habitus, é reverter seu saber profissional em capital simbólico perante a sociedade, combinando-se autoridade, prestígio, conhecimento e reputação. No decorrer deste trabalho quando me referir às pessoas que vivem na “beira do rio e na beira da vida” estarei me utilizando da frase num sentido metafórico, pois não só me refiro aos que vivem literalmente na beira do rio, mas sim aos que, de forma geral, são excluídos pelo Direito, aos que vivem na beira dos direitos, pelas e nas beiradas. Faz-se, assim, uma espécie de “repercussão geral” da expressão. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 181 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Diante disso tudo, o Direito, enquanto promessa de igualdade e justiça, parecia acenar com uma mera promessa de amor (Warat)15, aquelas feitas para não serem cumpridas jamais, aquelas feitas para serem reverberadas retoricamente. Nada mais. De tal forma que a Constituição, vez ou outra, lembrava um mero pedaço de papel (Lassale) que não servia para nada, e condicionada, de fato, pelos “fatores reais de poder”. No entanto tinha que acreditar firmemente que havia saída, e que a Constituição, soerguida no contexto pós-88, deveria de fato transformar a realidade daquelas pessoas. A angústia era gritante. Aquilo me doía profundamente. O artigo 3º da Constituição de 198816, que parece ser uma espécie de bússola hermenêutica, de certa forma me confortava de maneira tal que passei a acreditar (tinha que acreditar!) numa hermenêutica que transforme a realidade a partir e desde o texto constitucional, e não a partir dos fatos, como quer a Tópica17, para não se correr o risco do Direito se tornar uma espécie de “Diário Oficial” dos fatores sociais. Daí a necessidade de uma adequada compreensão do texto constitucional – mormente daqueles dispositivos que dizem respeito a direitos de prestações sociais e positivas. Daí a necessidade, na mesma proporção, de uma vontade18 de constituição proposta por Konrad Hesse (1991). 15 16 17 18 A metáfora, segundo Gonçalves (2007, p. 9), foi identificada por Warat como aquelas promessas feitas pelos amantes no auge de suas paixões, sem nenhum compromisso, contudo, com seu cumprimento. O discurso da modernidade parece ser também uma promessa de amor. Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. O problema da Tópica (Viehweg) é que a gente pode chegar a casuísmos exagerados, tendo-se decisões totalmente ad hoc, ferindo a integridade e coerência do Direito. Então, devemos partir do texto para que possamos atribuir um grau de transformação social ao Direito. Se partirmos da realidade, o Direito será aquilo que os “fatos e a realidade” dizem que é, sendo transformado de forma destrutiva pelos “fatos”, além do fato de ganhar, com isso, um caráter meramente instrumental, ficando a reboque dos fatos sociais. A crítica à Tópica aqui delineada não pode, contudo, como sustenta Luís Roberto Barroso (2010, p. 164), ser identificada a um apego exacerbado a uma visão sistemática do Direito. No mesmo sentido aqui delineado, Cf. Fernandes (2010, p. 53-54). Defendendo a Tópica como um método renovador, antipositivista e antiformalista, Cf. Bonavides (2004, p. 488-517). Penso que uma possível interpretação que fizesse uma relação da vontade constitucional com a vontade solipsista, denunciada por Lênio Streck desde há muito, não seria autêntica. Esta tem que (e deve) ser rechaçada de plano. Que fique bem claro. A vontade, nos termos propostos por Hesse, é de normatividade constitucional, e não solipsista. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 182 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Portanto, e finalizando este primeiro tópico, o que se vivencia estará presente em qualquer trabalho, porquanto estamos inseridos numa realidade histórica que constitui nosso ser. E a escolha da obra Beira rio beira vida, frise-se, não foi de forma alguma aleatória. Escolher algo envolve, para além de um ato aparentemente banal, toda uma inquietação e angústia que, mesmo veladas, manifestam-se em nossas escolhas19. É como se a nossa existência pulsasse e dissesse: é este. Não há ser humano, portanto, que já desde sempre não esteja formado culturalmente, e que já não esteja, desse modo, na historicidade e na facticidade20. 2 O DIREITO NA LITERATURA: EM BUSCA DE HETEROPOLOGIA(S) A proposta de intercalar o direito com a literatura foi uma empreitada surgida no ambiente acadêmico norte-americano, com o intuito de pôr em xeque a tradição positivista do direito, abalando suas estruturas tidas como perfeitas, completas, sistemáticas e seguras21 (não é a toa que temos expressões que remetem a tais ideias, tais como “ordenamento jurídico” – que parece ter surgido na tradição jurídica com Kelsen e Bobbio22 –, “completude” – conceito surgido no contexto do século XIX, materializado e consubstanciado no Código Civil Napoleônico – e “segurança jurídica” – essa palavra que, parafraseando Cecília Meireles, não há ninguém que não entenda e ninguém que explique23. A literatura, pelo seu caráter subversivo, desmorona (ou no mínimo põe seriamente em xeque) muito dos mitos referentes à teoria do direito que aprendemos 19 20 21 22 23 Como assevera Costa (2008, p. 8) “o autor é sempre muito opaco a si mesmo, aos seus motivos inconscientes, aos seus preconceitos silenciosos, às lacunas do seu horizonte de compreensão”. Por isso que “compreender uma obra literária não é uma espécie de conhecimento científico que foge da existência para um mundo de conceitos; é um encontro histórico que apela para a experiência pessoal de quem está no mundo (PALMER, 2006, p. 21). Cf. Hubert e Sartoti (2010, p. 204). Nesse mesmo sentido, Cf. Streck, Oliveira e Trindade (2013, p. 13). Warat (apud MONDARDO, 2000, p. 108), a respeito da tão bem quista segurança jurídica – e até ironizando-a, diz o seguinte: “Os juristas tentam desenvolver um discurso que enuncia a tranquilidade de uma vida social amparada pelas palavras de uma lei que simula prever todas as possibilidades de conflito: a famosa segurança jurídica”. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 183 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 nas faculdades (igualdade, verdade real, imparcialidade do julgador, neutralidade científica, etc.). Com efeito, a denúncia que a literatura faz do jurídico provém, certamente, já do modo mesmo de como o direito é ensinado nas faculdades, aplicado nos tribunais, praticado cotidianamente e daquilo que ele sempre-tem-sido (STRECK, 2009, p. 71). Dessa forma, podemos dizer que a literatura traduz o que a sociedade pensa sobre o Direito, pensamento este que, muito embora possa vir revestido de senso comum – e até mesmo de ingenuidades – apresenta a ciência jurídica de forma nua, crua, e, por isso mesmo, impactante. Penso que essa “cutucada” se dá precisamente através do choque que a dogmática sofre com o fato bruto (o real) – no caso, a literatura –, através daquilo não codificado e simbolizado pelo seu habitus. Talvez aí se encontre um dilema: de um lado o senso comum, o que pensam sobre o direito; de outro, um discurso que se pretende científico. O olhar daquele sobre este se reveste, por vezes, como sustenta Cunha (2010, p. 16), baseado em Louis Altthusser e Braz Teixeira, numa “filosofia espontânea”, conceito que se aplica às pessoas que, mesmo sem intenção, acabam filosofando, e, por consequência, desvelando coisas para nós até então ou complexas ou, à primeira vista, absurdas. O mesmo procede com a literatura: muitas obras, mesmo sem intenção do autor, acabam abordando de forma fantástica, e criativa, temas afeitos ao Direito. Numa palavra: o próprio intercâmbio do direito com a literatura resulta, por si só, nesse “susto”. Há aí, certamente, uma fusão de horizontes. E é nesta fusão que advém o susto, o impacto, o não-dito. Desse modo, poder-se-ia dizer que há uma fusão de absurdo(s). Num sentido amplo, o movimento direito e literatura, segundo Trindade (2012, p. 13-14) possui basicamente três vertentes: o direito na literatura; o direito como literatura; e o direito da literatura. Das três perspectivas, a vertente que interessará a este trabalho será a que estuda o direito na literatura, por nos possibilitar um referencial problematizante e reflexivo. A corrente do “direito na literatura”, surgido na Europa, aborda a maneira pela qual a literatura, em suas narrativas, representa as instituições jurídicas, políticas, a KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 184 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 criminalidade, a democracia, a desigualdade, a república, a ciência, o papel do juiz, etc.; significações estas que resultam, como dito linhas acima, da maneira que o Direito já-oé-mesmo-desde-sempre. Tal fato demonstra que a ciência jurídica não pode ser analisada de forma meramente normativa, fechada, autônoma, estática e isolada do tecido social, pois nele está inserido, e de dentro dele, portanto, deve ser interpretada. A vida pulsa na literatura; no direito, parece estar morta, na medida em que os códigos trabalham com conceitos e ideias estanques24, os doutrinadores falam em hipóteses numerus clausus (como se a realidade pudesse ser aprisionada e enclausurada na lei), em coisa julgada (como se o tempo pudesse ser petrificado e paralisado pela lei), e por aí vai. Frise-se, ademais, que, nessa corrente, a intenção não é de forma alguma sair “catando” nas obras literárias alguns cases, leis ou institutos jurídicos, como se, para que houvesse tal intercâmbio, a obra tivesse que necessariamente abordar questões estritamente jurídicas. A intenção não é essa porque não se objetiva discutir a partir da lei ou do direito, mas para além de seus confins. Ironicamente uma obra literária que não possua nada de direito pode nos ajudar a compreender alguns fenômenos de forma mais dinâmica e global do que alguns manuais jurídicos. E, nesse momento, exsurge o caráter criativo, arrebatador e, de certa forma, transcendental da obra literária e seu viés, portanto, hermenêutico. A ideia de produção de sentidos na literatura é, pois, patente, possibilitando que vejamos a ciência jurídica desde um outro lugar. Dito de outra forma: a literatura possibilita, ao Direito, uma heteropologia. O Direito, assim como precisa de grandes narrativas, necessita, urgentemente, de grandes heteropologias. E é em busca dela(s) que estamos. Por sua vez, a corrente do “direito como literatura”, ainda com Trindade, examina os textos jurídicos levando-se em consideração os métodos próprios da literatura, 24 Não é sem motivo que Cunha (2010, p. 17), problematizando o jurídico na obra “O Pequeno Príncipe”, diz que os nossos doutrinadores, comparando-os ao geógrafo, personagem do livro que dizia escrever coisas eternas, têm a ambição, também, de escreverem ideias sólidas e eternas. O que seria a dita cognição “exauriente” que permeia as tutelas definitivas no processo civil? Não há, aí, no fundo, um desejo de solidez, de perenidade, de certeza absoluta? O mesmo não sucederia com a segurança jurídica? KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 185 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 transpondo a racionalidade da crítica literária às decisões jurídicas25. Parece que aqui também não encontramos um lugar adequado ao nosso propósito, tendo em vista que não queremos transportar uma racionalidade a outra; queremos, antes, destronar, a partir da literatura, a racionalidade jurídica. Criar fissuras. Pedir, com Rosa e Staffen (2011, p. 184), uma licença poética sem compromisso com regras ou epistemologias. Já o movimento do “direito da literatura” não aborda, a rigor, o direito a partir de um olhar crítico, e sim meramente técnico, estando submetido mais a conceitos jurídicos (direitos autorais, por exemplo) do que a um olhar transdisciplinar26. Como dito, não abordaremos tal vertente no presente trabalho. Obviamente que possui sua importância a quem se proponha a estudá-lo; porém, no âmbito de uma reflexão que intente demonstrar a maneira pela qual as obras literárias simbolizam e representam as promessas jurídicas, parece não ser um bom caminho. A aprendizagem interdisciplinar, por outro lado, que podemos retirar da perspectiva que aborda o direito na literatura é nítida. Aqui podemos, a partir da literatura, fazer uma grande metáfora do direito, de seus dilemas e – no que toca ao presente estudo – de suas promessas incumpridas. Podemos também, com Cunha (2010, p. 13), e reafirmando o objetivo de não “catar” em obras literárias assuntos jurídicos, fazer apenas uma transposição simbólica, retirando do literato discussões e problemas que secularmente assolam o Direito. Afora isso, há também, ironicamente – pois a narrativa literária se configura de forma indisciplinada, como se fosse, parafraseando Warat27, um circo mambembe, safado e marginal –, o caráter “didático” da literatura em problematizarmos o Direito. Repetindo: algumas questões são mais bem elucidadas e compreendidas através da literatura do que pelo próprio direito. 25 26 27 Cf. Trindade (2012, p. 14). Aliás, nesse sentido, sobre a racionalidade reinante nas análises literárias, temos as palavras de Palmer (2006, p. 18), para quem “a crítica moderna literária tornou-se cada vez mais tecnológica. Imitou-se cada vez mais a abordagem do cientista. O texto de uma obra literária (mau grado a sua existência autônoma) tende a ser encarado com um objecto – um objecto estético [...] a imagem do cientista, que isola um objecto para ver como ele é feito, tornou-se o modelo dominante na arte da interpretação”. Cf. Trindade (2012, p. 14). Cf. Warat (apud Mondardo, 2000, p. 47). KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 186 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Dentro dessa moldura exposta até aqui, podemos já dizer, com segurança, que as questões levantadas pelo livro Beira rio beira vida podem ser problematizadas no Direito, dentre as quais: a importância que assume a Jurisdição Constitucional perante vidas renegadas pelos poderes públicos, e, igualmente, na concretização e promoção dos direitos sociais-fundamentais (moradia, educação, alimentação, saúde, etc.); as fases pelas quais passou o Estado (e consequentemente o Constitucionalismo) e o seu papel de intervir na realidade; o papel de plus normativo – como quer Streck (2002, p. 18-19 e 127) – assumido pelo Direito no contexto pós-Segunda guerra; os conceitos de subcidadania e sobrecidadania (e o binômio acesso-dependência) trabalhados por Marcelo Neves (2013); e, até mesmo, fazer um paralelo com a parábola “Diante da Lei” de Franz Kafka, na medida em que o camponês pode ser tido como as pessoas que estão nas beiras do Direito, sem que se consiga acessá-lo. Com efeito, as grandes promessas que temos na Constituição de 1988, embora passados 25 anos de sua promulgação, não foram cumpridas/efetivadas. A Constituição, essa Outra desconhecida, embora formalmente vigente, acontece no plano fático (no mundo da vida) como ineficaz – ainda mais no que toca aos direitos de prestações sociais. Isto para não relembrarmos e revisitarmos aqui seu forte caráter simbólico, crítica feita por Marcelo Neves (2011) desde a década de 90. Somando-se a isso, temos ainda o fato de que há na atualidade, segundo Bolzan de Morais e Streck (2014, p. 82), um discurso neoliberal pós-moderno que intenta a todo momento enxugar o Estado e seu caráter assumido, ao longo dos tempos, de Welfare State. A realidade, pelo contrário, não se compatibiliza com esse ideário, na medida em que ainda temos pessoas morrendo de fome, analfabetas, favelados, semtetos, mendigos, indigentes, numa palavra: beiradeiros. Resumindo: as promessas da modernidade ainda não foram cumpridas. Mas para entendermos que tais promessas ainda não foram cumpridas, temos, antes, que termos uma adequada compreensão do que seja esse tal Estado Democrático de Direito – para que não ganhe contornos de um conceito anêmico –, e de como sua conformação se deu ao longo dos tempos. Dessa forma, ficará mais fácil de KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 187 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 visualizarmos o motivo pelo qual o Estado ainda tenha que estatuir e a Constituição ainda constituir28. 3 POR UMA CONSTITUIÇÃO QUE AINDA CONSTITUA, POR UM ESTADO AINDA ESTATUINTE! O debate de certa forma remonta a uma velha discussão travada entre aqueles que defendem uma postura substancialista da Constituição e, doutro lado, aqueles que a enxergam através de um viés procedimental. No presente tópico darei ênfase, entretanto, aos aspectos relacionados à Teoria do Estado (um breve relato de sua conformação desde sua feição Liberal até os dias atuais) casados com o Constitucionalismo, sem pretensões, contudo, a-históricas. Em linhas gerais, as Constituições promulgadas desde o século XVIII possuíram o objetivo de conter o poder do rei, assim como o de garantir alguns direitos básicos aos indivíduos – palavra que, naquele contexto, possuía uma forte carga semântica. Como existia uma contraposição entre Estado e Sociedade, sendo aquele visto como ruim e esta como boa, havia a necessidade de se garantir o máximo possível de liberdades e garantias individuais. O Estado e a coisa pública eram vistos, pois, como algo maléfico, ruim29. A propriedade e o indivíduo eram, por consequência, o centro de todas as preocupações. Nessa ordem de pensamento, não caberia ao Estado intervir nas relações particulares, regidas até então por coordenação. Assim, o constitucionalismo liberal se pautava sob valores individuais; baseava-se num Estado Mínimo. Isto possibilitou com que fosse construída uma teoria jusnaturalista para firmar o ser/indivíduo perante o Estado. Naquele contexto, tal ideia seria uma evolução em relação ao ancién regime, na 28 29 Na fala exposta a seguir, fica nítido que Mundoca nunca se apegou a nada, nunca, pois, “constituiu” alguma coisa: “O que foi que você criou, Mundoca? Nada. Nunca se apegou a coisa alguma (BRASIL, 2012, p. 33). Mundoca era niilista, passiva, conformada com a realidade. O que está-aí é assim e pronto. Não muda. Penso que o Direito não deve ser assim. Nesse outro trecho temos a confirmação (niilista) de forma incisiva: “Quando [Mundoca] corresse não seria por desespero, mas porque não estaria certa ainda de nenhum caminho” (BRASIL, 2012, p. 113). Nesse sentido, Cf. Morais; Streck (2014, p. 40 e 44). KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 188 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 medida em que firmava o homem como detentor de direitos, assim como aquele que deteria autonomia perante os dogmas, os mitos e as crenças medievais. Mais ainda: firmava o homem perante o mundo o que, ao fim e ao cabo, impulsionará a filosofia da consciência30, calcada na relação sujeito-objeto. Chegando no século XIX, o Estado, em decorrência das revoluções pelas quais passara no momento, engendradas pelas reivindicações socialistas, começou a dar ênfase a aspectos sociais e incluí-los em sua agenda política. Desse modo, o Estado passou a incorporar em seus textos dispositivos que tratassem de matérias não somente concernentes aos direitos individuais, mas, igualmente, aos direitos ditos de segunda dimensão – sociais –, agindo, portanto, como ator privilegiado31. Aqui já começamos a tratar um pouco do que temos a dizer em relação à obra do parnaibano. As primeiras constituições que incorporaram em seus textos dispositivos sociais foram as do México (1917) e Alemanha (1919). Aqui temos a positivação, por parte dos ordenamentos jurídicos, da ideia de Estado de Bem-Estar Social (Welfare State), cujo projeto passa ser o de promoção social (MORAIS; STRECK, 2014, p. 78-79). O Estado agora, para alem de ordenar, tinha o papel de promover a realidade. Passando pelo século XX, tivemos as duas grandes guerras que, muito embora tenham sido catastróficas, foram para com o Direito generosas, no sentido de que, a partir de então, houve uma preocupação por parte dos juristas em formular novas teorias – pós-positivistas – que dessem conta de uma nova realidade. O Direito, como todos sabemos, não conseguiu barrar as duas grandes guerras, servindo, muito pelo contrário, como fator de legitimidade em relação aos regimes ditatoriais. Nesse contexto pós-Segunda guerra, instaurou-se a ideia de um Estado Democrático de Direito. À feição ordenadora do Estado Liberal e promovedora do Estado Social, agregou-se uma feição transformadora, vale dizer, o Estado Democrático de Direito passou a ser plus normativo em relação às formulações 30 31 Cf., a respeito, Streck, Oliveira e Trindade (2013, p. 8). Cf. Morais; Streck (2014, p. 64). KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 189 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 anteriores32. A Lei aparece, então, como instrumento de transformação social. Daí porque a formulação teórica do Estado Democrático de Direito apontar para o resgate das promessas incumpridas da modernidade, ocasião que ganha relevância em países de modernidade periférica tardia, como o Brasil. Portanto, há, nitidamente, um surgimento co-originário entre a ideia de Estado Democrático de Direito e do Constitucionalismo pós-Segunda guerra33. E é nesse exato momento onde cresce a importância, antes destacada, da Jurisdição Constitucional perante a vida dos “beiradeiros”. E a riqueza da obra Beira rio beira vida está justamente em apontar um fosso jurídico-social, e, a partir daí, problematizar um modelo de Estado e Constituição que se tem, para, então, ir-se em busca de um modelo no qual efetivamente insira em seu arcabouço o papel transformador que o Direito tem(!) que assumir nesses novos tempos. Em última instância, a obra nos leva a refletir até que ponto o capitalismo (excludente) não entraria em choque com um projeto (includente) de democracia social. Diante disso tudo, o que fazer? Cair na armadilha do discurso ideológico neoliberal (de certa forma niilista) ou apostar, com Boaventura de Sousa Santos (apud MORAIS; STRECK, 2014, p. 84), num Estado forte? O que podemos fazer para que as prostitutas e os boêmios que viv(iam)em na beira do rio, não se alimentem uma vez por dia, comendo rapadura e feijão (MORAIS, 2013, p. 14), assim como as personagens Luíza (mãe) e Mundoca (filha)?34 O que podemos fazer para que o Direito não seja “oco”, assim como Mund-oca – personagem que quase não falava e mandava todos irem ao inferno?35 Queremos um Direito mudo, tímido, apático, oco? 32 33 34 35 Cf. Morais; Streck (2014, p. 100). Cf. Morais; Streck (2014, p. 105). Cf. Brasil (2012, p. 27): “Nossa chegada em casa era como uma festa, carregada de coisa, peixe, siri, camarão, era mesmo que uma festa, descascar os bichos, ferver a água, fazer o pirão, comer sentindo a quentura, o gosto bom, era mesmo que uma festa. A gente nem reparava que comia só uma vez por dia, você sabe Mundoca, você bem sabe disso”. Cf. Brasil (2012, p. 18). KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 190 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 As questões levantadas em Beira rio beira vida nos levam a crer que não. Isto porque o Direito, em países periféricos como o Brasil, possui peculiaridades próprias a serem enfrentadas. Para além do (brevíssimo) escorço histórico feito linhas atrás, no caso do Brasil, temos problemas sui generis que não podem ser renegados. Se é certo que um núcleo mínimo pode conformar uma teoria geral da Constituição ou do Estado em países ocidentais que adotaram o modelo político-democrático, é certo também, por outro lado, que um núcleo específico diferencia cada Estado. E este núcleo diz respeito à implementação dos direitos sociais-fundamentais36 e sua variabilidade no tempo e no espaço. Daí a importância de se desenvolver uma Teoria adequada a determinados países. Aliás, o Direito, nesse sentido, podemos dizer, tem que ter um DNA, uma (adequada compreensão da) história que o constitui. Luíza não sabia ao certo quem era seu pai. Nunca soube37. Mundoca, por sua vez, não tinha história, pois não tinha passado, deixava-se passar pela vida, não tinha memória. Não tinha, pois, DNA – não o biológico, mas o historial38. E a memória, no presente texto, significou trazer à baila as fases pelas quais passou o Estado para que seu papel de (ainda) transformar a realidade não seja esquecido. O esquecimento é a barbárie, são pessoas morrendo de fome, sem ter onde morar, sem ter acesso à escola, sem ter acesso ao hospital público de qualidade, morrendo em filas de hospitais, sendo presas por furto de sabonete, de galinha, de bicicleta. O esquecimento é o esquecimento do Estado para com essas pessoas. 36 37 38 Morais; Streck (2014, p. 117-118). A fala de Luíza, nesse sentido, é direta: “[...] Qualquer um ela [Cremilda] dizia que era meu pai [...]” (BRASIL, 2012, p. 34). Cf. BRASIL (2012, p. 113): “Você ontem falou de noite, Mundoca, falou muito e alto. Não me lembro, respondia. Não se lembrava de nada, pois não tinha passado pela vida. Não me lembro, não se lembrava nem da avó, que a torturava, nem dos homens que beliscavam sua bunda, nem das pescarias nas malocas do rio, nem de nada. Sua vida era plana, passava pelo cais de manhã e à noite, não como etapas de cada dia, mas como etapas de um caminho repetido, sem começo nem fim. Não ia nem vinha. Ia sempre para o mesmo lugar, ou vinha sempre da mesma porta”. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 191 ANAIS DO II CIDIL 4 V. 2, N. 1, JUL. 2014 CONSIDERAÇÕES FINAIS: EM BUSCA DAS PROMESSAS PERDIDAS OU DAS RAZÕES PELAS QUAIS SÓ É JUSTO CANTAR SE O NOSSO CANTO ARRASTA AS PESSOAS E AS COISAS QUE NÂO TÊM VOZ39 O presente texto pode(ria) ser tido perfeitamente como um Manifesto de Resistência. Penso que ainda temos que falar sobre Modernidade – e o não cumprimento de sua narrativa de Vida Boa – por diversos motivos. Para citar o principal deles, invoco a fala de Jacinto Coutinho (2002, p. 9), para quem a discussão sobre pós-modernidade caberia, talvez, a um alemão; num país onde se morre de fome, não. E arremata o professor paranaense: “Por isso que cansa o discurso, cansa o gueriguéri, cansa o blablablá. É como se ressoasse pelo país: e daí meu amigo, eu quero comer!” (ibidem). Portanto, se o Estado Social ainda não se efetivou em países periféricos, marginais e “beiradeiros”, o principal agente transformador da sociedade tem que ser exatamente o Estado. Daí porque seja mais adequado defender a Constituição no seu viés procedimental em países nos quais o Estado (Social) se fez efetivamente presente. Mas num país em que se tem um déficit constitucional em relação aos direitos sociais, a alternativa é ainda lutar pelas promessas insculpidas na Constituição. Assis Brasil, que nem jurista é, talvez saiba disso. O movimento direito e literatura nos faz (re)pensar as fronteiras que cindem a “realidade” da “ficção” (e vice-versa). Para citar um exemplo, transcrevo um trecho de um livro (oriundo da dissertação de mestrado) de Erasmo Morais (2013, p.14), cujos relatos abordam a vida de pessoas de “carne e osso”: Este é um livro em que também aparecem como personagens gente como seu Mano Velho, como Maria Marruá, como Vicência, como Soledade, como Augusto, como Resendo, como Baixa o Flande; a 39 Retirado de Gullar (2008, p. 1074): “Disso quis eu fazer a minha poesia, dessa matéria humilde e humilhada, dessa vida obscura e injustiçada, porque o canto não pode ser uma traição à vida, e só é justo cantar se o nosso canto arrasta consigo as pessoas e as coisas que não têm voz. [...] quis fazer [do canto] a expressão desse drama, o ponto de ignição onde, se possível, alguma luz esplenderá: uma luz da terra, uma luz do chão – nossa. [...] Noutras palavras: uma poesia que revelasse a universalidade latente no nosso dia, no nosso dia a dia, na nossa vida de marginais da história”. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 192 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 população da beira rio, os embarcadiços e vareiros, os estivadores e os policiais, as prostitutas e os boêmios; convivendo no dia a dia, trabalhando duro; se alimentando uma vez por dia, comendo rapadura com feijão sentados em mesas cobertas com toalhas quadriculadas; suando embaixo de sacas ou sobre suas embarcações; se amando ao som da música romântica, dançando nos forrós à luz de querosene; bebendo cachaça nos bares de beira de cais e beira de rua; fazendo sexo com os clientes e com suas prostitutas preferidas; trocando tapas, socos, pontapés, e facadas; lutando pela sobrevivência em meio a miséria, a exploração, ao abandono dos poderes públicos; enrijecendo seus corpos e suas almas neste mundo líquido, escorregadio, cheio de precipícios e sorvedouros, de códigos às vezes fluídos e lábeis, às vezes duros e estritos; homens e mulheres tentando domar os escarpados da existência, vencer as barrancas da vida. E então, que zona nebulosa é essa que separa ficção de realidade? Se trocarmos os nomes das pessoas acima citadas pelas personagens de Beira rio beira vida, teríamos, efetivamente, alguma mudança? E, pelo contrário, se trocássemos as personagens do livro pelas pessoas citadas (que existem ou existiram de fato), haveria diferença? Às vezes tenho a impressão, assim como Assis Brasil em sua outra obra intitulada A vida não é real, que, de fato, a vida não é real. Enfim. Todo texto é fruto, no fundo, de algo que nos vem remoendo. É fruto de algo que vem gritando, gemendo, martirizando. E quando gestado, vai embora, vai para o mundo. De tal sorte que talvez não sejamos mais o mesmo, posto que os textos, desde a minha visão, são experiências e vivências que nos transformam. Livrei-me de um. Tinha que ter feito isto: gritado. Mas não só. Tinha que ter trazido todos os co-autores que atendi no serviço de atermação; todos aqueles que, no processo de escrita, sussurram em nossos ouvidos. A angústia, talvez, tenha diminuído. Que venha o próximo. E tudo o mais é ilusão e mentira! REFERÊNCIAS BARROSO, Luís Roberto. Novos paradigmas e categorias da interpretação constitucional. In: FERNANDES, Bernardo Gonçalves (Org.). Interpretação constitucional: reflexões sobre (a nova) hermenêutica. Salvador: Juspodivm, 2010. p. 161-216. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 193 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 BRASIL, Assis. Beira rio beira vida. Teresina: Fundação Quixote, 2012. CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito penal a marteladas: algo sobre Nietzsche e o Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. COSTA, Alexandre A. Direito e método: diálogos entre a hermenêutica filosófica e a hermenêutica jurídica. 2008. 421 f. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade de Brasília, Brasília, 2008. COUTINHO, Jacinto Nelson Miranda. 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Desenvolvendo essa hipótese, o presente trabalho se orienta pelo método fenomenológico hermenêutico, promovendo a revisão bibliográfica e legislativa para especular a (in)efetividade da legislação anti escrava durante o século XIX e XX. Tal denúncia só foi possível por leitura da obra “Negrinha” de Monteiro Lobato. PALAVRAS-CHAVE: direito e literatura; direitos fundamentais; constitucionalismo simbólico. 1 INTRODUÇÃO “Assim foi – e essa consciência a matou”. O final do conto Negrinha, de Monteiro Lobato, a menina negra, de aproximadamente 7 anos, ambientada no início do século XX, no Brasil, morre por adquirir consciência de sua alma. Alma essa que a humanizava, tanto quanto as sobrinhas da patroa. Alma essa morta, talvez, por um 1 2 Doutor e Mestre em Direito Público (UNISINOS). Professor da Escola de Direito da Faculdade Meridional (IMED). Advogado Email: [email protected] Graduanda do curso de Direito da Faculdade Meridional – IMED. Bolsista do Programa de iniciação científica da IMED. Membro do Grupo de Estudos em Direito e Literatura Katharsis. Email: [email protected] KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 197 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 cotidiano social escravocrata que, no papel, garantia constitucionalmente o direito à igualdade. A negrinha, por ser igual, mas diferente, percebeu que a sua alma nunca seria livre para poder brincar com as sobrinhas da patroa porque, na melhor das hipóteses, a coisificação do seu ser, permitiria tão somente a sua condição de boneca. Coisa, objeto, propriedade, mas não pessoa. Antes mesmo de maiores consolidações dogmático-jurídicas sobre o conceito de dignidade da pessoa humana, a obra de Monteiro Lobato coloca em evidência o problema do ser humano numa (in)existente sociedade escravocrata no Brasil. E mais, a dificuldade dessa cultura ser modificada tão somente pelo Direito. Esse ensaio jurídico-literário propõe um estudo que apresenta especulações sobre um Brasil escravocrata muito após as revoluções liberais. Mostra-se, portanto, a segregação político-jurídica ao escravo, negro, que constitucionalmente deveria ser livre. É nesse ponto que se homenageia o fundamento da legitimidade da proteção constitucional à comunidade quilombola brasileira pela Constituição de 1988. Ou seja, este artigo trabalha com a hipótese que a comunidade quilombola brasileira era o único movimento que conseguiu assegurar ao negro a liberdade e igualdade, ideais reclamados pelas revoluções liberais. Essa tarefa se dará num viés negativo, pela idealização do constitucionalismo simbólico do século XIX e XX no Brasil. Assim, apresentar-se-á a tentativa de constitucionalização da proteção ao negro contra a escravidão, bem como a sucessão de leis anti-escravagistas, do século XIX, incapazes de assegurar “o direito à alma da negrinha”. Ou seja, um direito à dignidade. Para cumprir essa tarefa o presente trabalho orientou-se pelo método fenomenológico-hermenêutico, valendo-se dos conhecimentos jurídicos prévios para, numa revisão bibliográfica e legislativa, estabelecer novas conjecturas por força da poises da matriz teórica do Direito e Literatura. 2 A PROPOSTA DO DIREITO E LITERATURA KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 198 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Ao se adotar aquilo que pode ser chamado de matriz teórica do Direito e Literatura, procura-se, na imbricação desses campos do saber, explorar aspectos cotidianamente ocultos ao conhecimento jurídico orientados ao dogmatismo dos imperativos jurídicos Isso porque, não é difícil compreender que grande parte dos teóricos do Direito não se dão conta da necessidade de reorientação do Direito a partir do seu contexto de realização. Um bom exemplo dessa condição é o fato de ainda hoje a transmissão do conhecimento jurídico nas universidades e na pesquisa se limitam, por vezes, ao conhecimento abstrato das normas jurídicas. A utilização de textos literários serve como um meio provocador que acaba por resultar em uma revisão dos conceitos clássicos utilizados tradicionalmente pelas Ciências Jurídicas, ampliando-se, por conta disso, a perspectiva sobre os fenômenos jurídicos, muitas vezes, fechados zeteticamente e descompassados com o atual paradigma vigente no Estado Democrático de Direito. Para além disso, o estudo da tradição jurídica – ou, como se quiser, da história do Direito – pelo viés da literatura permite que fenômenos tidos como juridicamente inexistentes – como era o caso da escravidão no século XIX – acabem sendo reapresentados como um elemento de incapacidade do Direito lidar com o contexto social politico a que se referia. Por isso, a corrente do Direito na Literatura – analisada como direito a partir da literatura – parte da premissa de que algumas questões jurídicas se encontram melhores formuladas e esclarecidas em obras literárias do que em muitos dos manuais jurídicos especializados (TRINDADE; GUBERT, 2008, p. 49). O direcionamento do debate às questões sociais explicitadas pela literatura faz com que o Direito tenha que enfrentar uma complexidade que lhe é estranha (OST, 2005, p. 48-58), diferente daquela tradicionalmente conhecida da subsunção dos fatos à lei. Na literatura, os fatos estão num contexto que denunciam a impossibilidade lógica da simples dedução (ROHDEN, 2009, p. 62). Por meio das narrativas, o jurista se dá KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 199 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 conta que o fenômeno social não pode ser reduzido à lógica formal, mas que demanda uma outra forma de conhecer. Esse conhecer exigido pela Literatura, ensina ao Direito, ou melhor, à Ciência do Direito, que os fenômenos sociais antes de serem descritos, exigem do jurista um ato de compreensão (Verstehen) (STEIN, 2009). E mais, esse compreender pode ser cada vez mais apurado a partir de um movimento fenomenológico-hermenêutico. Na Literatura isso aparece na participação que o leitor possui na constituição do sentido da obra literária, cujo sentido é cada vez é apropriado diante do alargamento da consciência do intérprete sobre as coisas, o âmbito social e político. Entende Trindade que a literatura, enquanto arte, recria cenários do passado, trazendo à tona diversos temas para reflexão do jurista. Nessa esteira, “os juristas vêm recorrendo ao conteúdo e à forma literária na tentativa de superar o desafio de repensar o direito” (TRINDADE, 2008, p. 61). Sob a tutela de Ost a Literatura procura impor desordem às convenções jurídicas, suspender as certezas e liberar os possíveis, enquanto que ao Direito ficaria a função de codificar a realidade (2005, p. 48-58). Essa caracterização de Ost implica em certa ambiguidade. Isso porque, a Ciência do Direito vem fazendo movimentos para ultrapassar as noções jurídicas rasas que acabam equiparando o Direito ao Direito Positivo. Nesse sentido, novos questionamentos sobre a Teoria das Fontes do Direito podem dar vasão à discussão sobre o alcance normativo – codificador – do Direito Positivo e o papel do intérprete nesse processo. A Literatura acaba contribuindo ao Direito, pois permite que questões holísticas sobre o funcionamento ou a legitimidade do Direito – decisão – não tematizadas pela dogmática jurídica tradicional apareçam e mereçam maior atenção do jurista. Assim, particularmente, estudar o Direito na Literatura é recepcionar no âmbito jurídico problemas que, na operacionalidade cotidiana do Direito, não se mostram evidentes. É acreditando nisso que se utilizou a obra Negrinha de Monteiro Lobato, para por em questão o modelo liberal de direito que simbolicamente era vigente no Brasil do século XIX-XX. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 200 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 A obra Negrinha, cuja denominação é igual à personagem principal do conto, foi escrita no início do século XX e apresenta a história de uma menina mulata de sete anos de idade. Deixada por sua mãe escrava para criação pelo seu dono, passou a ser considerada órfã, sendo criada entre insultos e maus-tratos. Conforme relata o conto, o corpo da menina era a prova dessa condição, em que se identificavam sinais decorrentes das agressões reiteradas que lhe eram infligidas pela dona da casa em que morava. Fica evidente pelo conto que a “Negrinha” tinha sido criada entre insultos e maus tratos. A responsável pela Negrinha era Dona Inácia, relatada como antiga senhora de escravos especializada em maltratar as crianças. Na figura da Dona Inácia, especula-se, espelhava-se a consciência da sociedade brasileira escravocrata do final do século XIX e início do XX. Isso fica claro no texto quando, por exemplo, Dona Inácia se manifesta criticando a lei que procurou igualar as condições entre negros e brancos no Brasil. Outra questão que chama a atenção no conto eram os castigos imprimidos à Negrinha. Por certa vez, por ter se desentendido com outro morador da casa – ofendendo verbalmente a pessoa -, a Negrinha foi punida com a ordem de colocar em sua boca um ovo quente, recém tirado da água fervente, devendo assim permanecer até que o ovo esfriasse. A obra relata o marcante episódio em que as sobrinhas de Dona Inácia visitam a fazenda no período das férias. Foi nessa oportunidade que a Negrinha pode brincar com as outras meninas. Todavia, especula-se, diante da impossibilidade de ser criança, mas apenas coisa, tanto quanto as bonecas, Negrinha morre por ter adquirido a consciência de sua alma. Mas nesse condição, talvez, estaria destinada a viver a vida de coisa, tal como as bonecas. Ou seja, não via outro horizonte que não de propriedade. No fim, o conto mostra a triste realidade da época para o negro escravo, o que se atribui ao fato da Dona Inácia sentir saudades da Negrinha após a morte da menina. Todavia, o que motivava essas saudades, seriam apenas o gozo que Dona Inácia possuía quando judiava da menina. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 201 ANAIS DO II CIDIL 3 V. 2, N. 1, JUL. 2014 O PAPEL DO LIBERALISMO E A PROTEÇÃO DOS DIREITOS DE LIBERDADE E IGUALDADE Esta objetiva apresentar o ideal liberal oitocentista que visava obter, pelo Direito, a segurança de liberdade e igualdade. Pode-se falar, aqui, numa doutrina liberal concebida após o processo de industrialização. Seria, portanto, um momento em que o movimento econômico e social referente ao final do século XIX, reflete na alteração substancial no modelo liberal de Estado limitado, até então vigente, para uma concepção de Estado Intervencionista (STRECK, 2004, p. 51). O liberalismo partiu para uma vinculação íntima com o pensamento político e social, convertendo-se numa ideologia do poder, caracterizado, de início, pelo seu conteúdo revolucionário e vanguardeiro. Tomando dimensão histórica, entrava no reino da realidade parar impugnar uma nova ordem de valores (BONAVIDES; ANDRADE, 2008, p. 102). Nesse contexto, entende-se que o conceito de Estado de Direito emerge aliado ao conteúdo próprio do liberalismo, impondo assim, aos liames jurídicos do Estado a concreção do ideário liberal relativo ao princípio da legalidade (STRECK, 2004, p. 89). Naquele momento Estado de Direito significaria o respeito estrito dos poderes soberanos à legalidade, como principal produto de um período histórico de consolidação dos reclames das revoluções oitocentistas. Para tanto, a noção de equiparação entre o Direito e a lei era a forma de manter e assegurar as conquistas das revoluções no século XIX. Seria por força da lei que a liberdade e igualdade seriam assegurados a todos. Essa exigência confiava na figura do legislador como ator protagonista da juridicidade (NEVES, 2008, p. 186). Eram submetidos à Lei, representação máxima da vontade do povo, os Poderes Executivo e Judiciário. A limitação e regulamentação do poder do Estado tornaram-se premissas para que os direitos dos indivíduos fossem garantidos (DIMOULIS, 2003, p. 130). Tem-se a consubstanciação do conteúdo político do liberalismo na forma jurídica do Estado, cuja nota central apresenta-se como uma limitação jurídico-legal negativa, KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 202 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 ou seja, ao Estado cabia o estabelecimento de instrumentos jurídicos que assegurassem o livre desenvolvimento das pretensões individuais, ao lado das restrições impostas à sua atuação positiva (STRECK, 2004, p. 91). No plano político, o ideário do liberalismo evidencia a necessidade de garantia das liberdades fundamentais, consideradas como inerentes à pessoa humana e depois, como um meio de assegurar essa liberdade, configura-se a necessidade de uma constituição e da divisão de poderes, garantindo-se o direito de representação apenas aos setores considerados como “ativos”, isto é, proprietários, empresários e indivíduos de rendas mais elevadas (FALCON, 1989, p. 62). A expansão dos ideais revolucionários oriundos das revoluções liberais do século XVIII evidenciaram a incapacidade das grandes potências europeias, cujos modelos absolutistas monárquicos ainda encontravam-se enraizados na formação estatal, em lidar com o contágio espontâneo referente consciência de novas demandas sociais. Em face deste complexo processo de irradiação do revolucionarismo, reformas não puderam deixar de figurar o cenário mundial. Dentre as três ondas revolucionárias principais no mundo ocidental ocorridas entre 1815 e 1848, aquela que acolhe o período entre 1820 e 1824 representa o emparelhamento do Brasil às tendências mundiais. Em 1822, o Brasil separou-se de Portugal e tornou-se, como doutrina Hobsbawm, o mais importante dos novos Estados. Sendo assim reconhecidos primeiramente pelos Norte Americanos e logo após pelos britânicos, que trataram de concluir tratados comerciais (HOBSBAWN, 1977, p. 128). Com a separação do Brasil de Portugal, a aplicação do ordenamento jurídico português deixa de ser coerente. A emancipação política precisou de uma emancipação jurídica, que foi realizada pela Carta Constitucional de 1824 (AGRA, 2012, p. 59). A primeira Constituição brasileira é marcada, durante o processo constitucional, traduz o conflito entre conservadores e liberais radicais, pelo choque entre o Imperador e os constituintes. Enquanto os primeiros aderiram ao processo constituinte em defesa de uma centralização política e limitação do direito ao voto, os liberais defendiam um KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 203 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 modelo político mais próximo às conquistas burguesas (CATTONI; ALVES, 2011, p. 172). Desse conflito, surge uma legislação muitas vezes incoerente em que pese a proteção de grande parte da população brasileira, uma vez sabido que o liberalismo e a busca de igualdade, desde sua concepção em Locke, um aristocrata, esbarra no conflito de interesses entre dominadores e as demandas dos dominados. 4 AS RELAÇÕES ESCRAVOCRATAS NO BRASIL IMPERIAL O Brasil, fundado sob ideais do patriarcado rural e escravocrata, permaneceu na condição de colônia de Portugal até o começo do século XIX. A vinda da família real portuguesa, em 1808, foi o principal de uma série de acontecimentos que culminaram com a independência política em 1822. A mudança no cenário político brasileiro não significou transformação de vulto em sua composição social, a despeito do incipiente processo de urbanização verificado. Na monarquia, como adverte Sérgio Buarque de Holanda, permaneciam os fazendeiros escravocratas e seus filhos, educados nas profissões liberais, como os sujeitos que monopolizavam todas as posições de mando, a exemplo de parlamentos e ministérios (HOLANDA, 1971, p. 41). Nessa esteira, “é nítido que os juristas e os legisladores exprimiam o máximo de consciência possível da classe escravista, na busca da legitimação de suas atitudes e valores para si e para a sociedade como um todo” (MALERBA, 1994, p. 17). Nesse passo, a manutenção da escravidão no Brasil, notadamente sob o formato de grandes latifúndios, contribuiu para o atraso do Brasil na corrida industrial. Enquanto a Inglaterra, principal potência mundial do período, já havia iniciado o seu desenvolvimento fabril em meados do século XVIII, o Brasil independente permanecia conservador e aristocrático. Na impossibilidade de formação de uma classe operária, a mão-de-obra escrava sustentava a classe dominante, com o apoio espiritual da Igreja Católica, religião oficial do Império. Joaquim Nabuco, abolicionista e expectador in loco da vida na Corte, KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 204 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 descreve que grande número de padres possuía escravos, sem que o celibato clerical o proibisse (NABUCO, 2000, p. 133). A breve exposição desse cenário se justifica na condição de pano de fundo cultural que marca a edição de leis que procuram regulamentar as relações escravas. Embora já em 1850 houvessem leis que reconheciam a possibilidade de liberdade dos escravos, os valores culturais da sociedade escravista à época não se coadunavam com a ideia progressista de libertação dos escravos (MALERBA, 1994, p. 18). Na próxima seção serão apresentados os principais marcos normativos relacionados a erradicação da relação escrava o que, pelo menos formalmente, fazia do discurso jurídico um campo que apontada para a mudança. 5 A REAÇÃO DO DIREITO POR MEIO DA LEGALIDADE: O MODELO DE PROTEÇÃO CONTRA A ESCRAVATURA No desenvolvimento do regime legal escravocrata considerar-se-á as leis promulgados a partir do Império que regulamentam, direta ou indiretamente, as relações de escravidão para que, na próxima seção seja possível concluir o raciocínio considerando a noção de constituição simbólica. A independência nacional em 1822 não significou mudanças radicais no regime escravista praticado pela antiga colônia portuguesa. “Expressão do regime liberal instituído pelos dominadores” (FREITAS, 1982, p. 85) a Carta Constitucional de 1824, representava uma inovação por introduzir em seu artigo 179 uma declaração de direitos (AGRA, 2012, p. 58) que, embora previsse a inviolabilidade dos Direitos Civis e Políticos dos cidadãos Brasileiros (art. 179, caput), considerando o escravo liberto nascido no país como seu cidadão (art. 6), negava aos escravos a condição de eleitor, pois conforme dispunha o artigo 94, inciso II Poderiam ser eleitores, e votar na eleição dos Deputados, Senadores, e Membros dos Conselhos de Província todos, os que podiam votar na Assembleia Paroquial, excetuando-se os libertos. Muito embora houvesse o signo da igualdade positivado no texto constitucional (art. 179, inciso XIII). KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 205 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Embora a condição de cidadão brasileiro fosse reconhecida constitucionalmente aos filhos dos escravos, a legislação infraconstitucional vigente no período imperial, pouco tratava dos direitos dos escravos, com exceção ao Código Criminal de 1830. Isto porque, o referido marco normativo ao tratar dos “Crimes Justificáveis”, previa ao artigo 14, § 6°, que os senhores que castigassem seus escravos de forma moderada não sofreriam com a persecução penal. O mesmo estatuto previa através do artigo 60 que o escravo poderia ser condenado à pena de até 50 açoites por dia. Cedendo as pressões inglesas que visionavam por fim ao tráfico negreiro, em busca de um mercado consumidor, a legislação infraconstitucional brasileira seguia no sentido de resguardar os direitos dos escravos. No dia 7 de novembro de 1831, foi sancionada a Lei Feijó que, de caráter liberal, determinava a todo o escravo que adentrasse no território Brasileiro a condição de livre, bem como a extensão do tipo penal do art 179, que dizia “Reluzir á escravidão a pessoa livre, que se achar em posse da sua liberdade”, aos importadores de escravos. No entanto, essa lei não passou de um meio de tapear as imposições estrangeiras, uma vez que não encontrava efetividade alguma em terrae brasilis. Já no ano de 1845, mais uma vez sob pressão inglesa, o Brasil assina o tratado de Bill Aberdeen, que atribuiu à Inglaterra a jurisdição sobre as embarcações e escravos, tendo em vista que tal legislação (Aberdeen Act) proibia o comércio de escravos entre a África e a América, tendo como fundamento findar o emprego da mão de obra escrava. Não é possível analisar a intenção inglesa com a promulgação deste ato de forma ingênua, visto que somente embarcações que favorecessem ao Brasil seriam consideradas empregadas ao tráfico e apreendidas pela Inglaterra (NABUCO, 2010, p. 43). A segunda parte do século XIX foi o momento histórico em que a legislação regulamentadora das relações escravagistas inaugurou leis que indicaram a tendência ao abolicionismo. Em 1850, surge a Lei Eusébio de Queiroz (Lei n° 581, de 04/09/1850), que devolve a jurisdição punitiva sobre as embarcações brasileiras ou estrangeiras presentes no mar territorial brasileiro, ao Brasil, procurando da mesma KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 206 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 forma proibir o tráfico negreiro. Pouco mais de vinte anos, a Lei do Ventre Livre (Lei n° 2.040, de 28/09/1971) estabelece que os filhos de mãe escrava, a partir daquele momento, seriam livres. Por sua vez, em 28/09/1885, promulgou-se a Lei dos Sexagenários (Lei nº 3.270, de 28/09/1885), procurando regulamentar a manutenção e prolongação dos serviços escravos até atingirem determinada idade. Nos dois últimos dispositivos citados, é evidente a contradição no próprio texto da legislação. Enquanto a Lei do Ventre Livre estabelecia a alforria dos filhos de escravas, também determinava que caberia ao proprietário da mãe deste, encarar o custeio e criação do liberto até os oito anos de idade, cabendo ao Estado indenizar o “senhor de escravos” por tal ato ou então, o segundo poderia empregar o trabalho do descendente até que este completasse 21 anos de idade. Na Lei dos Sexagenários, era concedido ao escravo que superasse a idade de 60 anos a liberdade, desde que este conseguisse arcar com a indenização da perda de sua propriedade a título de alforria. Essa compensação dar-se-ia pelo emprego de seu trabalho por mais 3 anos, como forma de pagamento de sua liberdade. Aqueles que completassem 65 anos de idade deixavam de ter o dever de serviço. Finalmente, a Lei Áurea foi o instrumento jurídico utilizado para extinguir, formalmente, as relações escravas no território brasileiro. Por ato da Princesa Isabel, promulgou-se a Lei Imperial de n° 3.353, em 13/05/1888, determinado o fim da escravidão do Brasil. Seguindo a reflexão, a próxima seção apresentará a questão do simbolismo na legislação, como meio de evidenciar a situação ordem jurídica brasileira que marcou o século XIX e XX. 6 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO SIMBÓLICA DOS DIREITOS DE LIBERDADE NO BRASIL DO SÉCULO XIX E XX A presente seção serve para sustentar e apresentar argumentos quanto a legislação simbólica como problema do regime escravocrata que predominou no Brasil durante do século XIX e XX. Essa hipótese só tem o seu valor ao se considerar que KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 207 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 naquele momento histórico havia uma luta global para realização dos direitos de liberdade. Também como produto dessa onda dos direitos de liberdade, o Brasil adota uma Constituição (1824) que endossa o modelo liberal mas parece não conseguir lidar de fato com os problemas político-jurídicos da época. Corroborando isso, a Constituição vai inaugurar a figura do Poder Moderador – exercido pelo Monarca – e o controle de interpretação das leis e aplicação da Constituição como função precípua do Poder Legislativo (MENDES, 2009, P. 186). Entretanto, a rotina da época parecia ser outra. Embora a Constituição primasse pelos direitos de liberdade (de imprensa, por exemplo), na prática o poder do Imperador se fazia prevalecer à letra da Constituição, seja por poder controlar os atos dos outros poderes mediante o exercício do poder moderador ou pela possibilidade de determinar o parlamento, condicionado o exercício político na condição de se (VILLA, 2011, p. 18). Aliás, não se pode esquecer que a própria carta constitucional de 1824, no artigo 99 garantia que “a pessoa do imperador é inviolável e sagrada; ele não está sujeito à responsabilidade alguma”. Esse poder na mão do imperador era, inclusive, o que impossibilitava ao judiciário as qualidades ora democráticas da independência, autonomia e imparcialidade. Isso pois, se não houvesse confluência nos entendimentos políticos entre o judiciário e a opção do Imperador, ressonava o poder de império em suspender os juízes por queixas contra eles, conforme previa o artigo 154 daquele constituição. Talvez esteja aqui o ponto nevrálgico. Não havia de fato a separação entre os poderes, especialmente, inexistindo ao poder judiciário a possibilidade de fazer valer a Constituição – competência esta, inclusive, privativa do poder legislativo controlado pelo Imperador. Mesmo não sendo seguro afirmar que o Imperador endossava o modelo escravocrata da época, também não é possível descartar a impossibilidade de ação do império contra os senhores de escravos. Isso pois, era essa a classe dominante que tinha acesso ao sistema eleitoral e que participava do governo. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 208 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Outro ponto um tanto quanto contraditório seria a previsão constitucional de cidadãos brasileiros, fossem eles ingênuos ou libertos (artigo 6°). A própria realidade tomava conta do Direito ao ter como pressuposto a existência de cidadãos filhos de escravos como cidadãos brasileiros (SILVA, 2011, p. 172). Como se viu em seção anterior, mesmo existindo legislação visando a proibição da relação escrava, um quadro de ilegalidade perdurou no Brasil, o que se dava pela “indiferença dos Poderes Públicos e impotência da Magistratura, composta, também, em parte, de proprietários de africanos” (SILVA, 2011, p. 173). É com olhos nisso que se afirma a condição simbólica do Direito à época. A questão da legislação simbólica está usualmente relacionada com a distinção entre variáveis instrumentais, expressivas e simbólicas. As funções instrumentais representam a tentativa consciente de alcançar resultados objetivos mediante a ação. Já no que diz respeito as atitudes expressivas em face das simbólicas, tem-se que esta caracteriza-se pela imediatidade da satisfação das respectivas necessidades enquanto aquela, a simbólica, se relaciona com o problema da solução de conflitos de interesses (NEVES, 2007, p. 22). Na prática dos sistemas sociais estão presentes sempre as três variáveis supracitadas. Assim, "legislação simbólica" representa o predomínio da ação simbólica no que se refere ao sistema jurídico, da atividade legiferante e do seu produto, em detrimento da função jurídico-instrumental (NEVES, 2007, p. 23). Valendo-se da teoria dos sistemas é possível dizer que o Direito como subsistema social não conseguia impor a sua autonomia à sociedade (CLAM, 2005, p. 119), eis que não conseguia cumprir a sua função de proteção aos direitos de liberdade – ou contra escravocrata. Assim, seria apenas através da sua função, notadamente através de processos seletivos, que o sistema parcial institui a forma própria de interagir com a sociedade (LUHMANN, 1983, p. 175). Nesse sentido, não havia interpenetração e acoplamento estrutural entre o Direito da época e a sociedade a que se referida, deixando, portanto, de cumprir com a sua funcionalidade específica (ROCHA, 2005, p. 41) de proteção às liberdades. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 209 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Uma quantidade considerável de leis desempenham funções sociais latentes em contradição com sua eficácia normativo-jurídica, considerando que a atividade legiferante constitui um momento de intersecção entre os sistemas políticos e jurídicos, pode-se definir a legislação simbólica como produção de textos cuja referência manifesta à realidade é a normativo-jurídica, mas que serve a finalidades políticas de caráter não especificamente normativo-jurídico (NEVES, 2007, p. 30). Face a tentativa de produzir confiança no sistema político e jurídico, o legislador elabora diplomas normativos para satisfazer as expectativas dos cidadãos, sem que com isso haja o mínimo de condições para a efetivação de determinadas normas. (NEVES, 2007, p. 36). Segundo Marcelo Neves, as leis não são instrumentos capazes de modificar a realidade de forma direta, uma vez que as variáveis normativo-jurídicas defrontam-se com outras variáveis orientadas por outros códigos e critérios sistêmicos. Dessa forma, parece mais precavido afirmar-se que a legislação-álibi destina-se a criar a imagem de um Estado que reponde normativamente aos problemas reais da sociedade, embora as respectivas relações sociais não sejam realmente normalizadas de maneira consequente conforme o respectivo texto legal (NEVES, 2007, p.39). Analisando o contexto brasileiro à época - inclusive, com resquícios à fase republicana – tem-se que a proteção ao negro mediante o combate legal da escravidão não passou de um recurso retórico e simbólico que caracteriza a ausência de eficácia do Direito como instituição autônoma de regulação do Poder. 7 CONCLUSÃO O conto Negrinha, de Monteiro Lobato, serve de denúncia literária quanto ao simbolismo do sistema legal de proteção do negro contra um modelo de organização social que dependia da mão de obra escrava. Esso modelo repercutiu também no século XX, conforme retrata o conto. Juntamente com a essa conclusão geral acima, este trabalho se mostrou apto para apresentar a fecundidade das relações entre Direito e Literatura, bem como ilustrar como que o simples apego à função legislativa do Direito não resolve os problemas KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 210 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 sociais considerando, principalmente, que a efetividade jurídica é um problema que transcende o campo da normatividade jurídica, exigindo transformações também nos modelos políticos e econômicos da sociedade a que se refere. REFERÊNCIAS AGRA, Walber de Moura. Curso de direito constitucional. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil. 9. ed. Brasília: OAB Editora, 2008. CATTONI, Marcelo Andrade; ALVES, Adamo Dias. As origens do poder moderador na constituição imperial de 1824 – um exemplo de disputa teórica e conceitual segundo a história dos conceitos. 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Partindo-se da análise de conjunturas políticas e sociais que servem para compreender a forma como se dá a construção da sentença judicial, observase como um Estado que, em tese, deveria assegurar o império da Democracia e da Justiça, se curva a conceitos pré-constituídos e pré-julgados, encapados de uma pseudolegalidade, que nada mais fazem que distanciar os indivíduos que apresentam tendências comportamentais diferenciadas, por meio da busca quimérica de homogeneização social excludente e da persecução de um monismo jurídico desumanizador e míope. No conceito apresentado por Albert Camus, em sua célebre obra – marco do existencialismo absurdista que despontara no século XX – tal qual como acontece no processo kafkiano, o indivíduo passa a ser visto despido de sua humanidade, desconsiderando-se sua condição humana e passando a receber o mesmo tratamento que se destina a um mero amontoado de papeis que compõe autos – analisado, nesse cenário, por juízes cada vez mais mecânicos e desprovidos de sensibilidade, que se isolam em suas togas como deuses no Olimpo. PALAVRAS-CHAVE: estrangeiro; processo legal; fatores sociais determinantes; decisão convencida. 1 2 3 Mestra em Estudos Literários pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPI; Graduada em Direito pelo Instituto Camilo Filho – ICF; Professora de Direito e Literatura da Faculdade Santo Agostinho – FSA. Graduando de Direito do 10º Período da Faculdade Santo Agostinho – FSA. Graduanda de Direito do 8º Período da Faculdade Santo Agostinho – FSA KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 213 ANAIS DO II CIDIL 1 V. 2, N. 1, JUL. 2014 INTRODUÇÃO Em O estrangeiro, nos deparamos com um relato inquietante de um homem a parte de seu tempo e de sua sociedade em virtude de suas crenças particulares – para ser mais preciso, pela ausência delas – bem como pelo modo de se relacionar em sociedade. Um indivíduo por vezes perturbado em razão de uma ausência de perspectivas para o futuro, imerso quase que constantemente em um sentimento blasé, que acaba por leva-lo a um fatídico evento ensejador de uma espiral inquisitória e autoritária, na qual a sociedade o discrimina, o acusa, o julga, o condena e o executa, pelo simples fato de ser diferente. Como se depreende da leitura do trecho a seguir, podemos chegar a conclusão de que o processo apresentado por Albert Camus4, tal qual o processo kafkiano, apresenta forte influência de fatores sociais que excluem as garantias jurídicas típicas do Estado Democrático de Direito: Mesmo no banco dos réus é sempre interessante ouvir falar de si mesmo. Durante as falas do promotor e do meu advogado, posso dizer que se falou muito de mim, e talvez até mais de mim do que do meu crime.[...] Resumiu os fatos a partir da morte de mamãe. Relembrou minha insensibilidade, o meu desconhecimento da idade dela, o meu banho de mar no dia seguinte, com uma mulher, o cinema, Fernandel, e por fim a volta com Marie (grifo nosso). Desta maneira, a característica marcante do processo apresentado por Camus é justamente a presença de fatores sociais – alicerçados na Moral particular dos espectadores do fato - a sobreporem-se às garantias fundamentais que são asseguradas à todos os indivíduos. Nesse diapasão, é possível depreender que, embora formalmente trate-se de um processo judicial, a situação vivenciada pelo protagonista afigura-se muito mais como um processo social, no bojo do qual são distorcidos os valores norteadores de um julgamento justo e imparcial, para que se alcance a manutenção do status quo reinante naquele momento, fazendo assim com que a discriminação travestida de legalidade faça seu trottoir; e desvirtue in totum a finalidade do processo como instrumento por intermédio do qual o Estado exerce o seu direito de punir, entregando a cada um a tutela jurisdicional a que faça jus. 4 CAMUS, 2008, p. 102-103. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 214 ANAIS DO II CIDIL 2 V. 2, N. 1, JUL. 2014 A VISÃO SOCIAL CAMUSIANA E A VALORAÇÃO DO SER HUMANO A narrativa camusiana é bastante marcante em face da maneira como o autor expõe de forma crua e com uma sensibilidade própria a falta de perspectivas de seus personagens, bastante marcados pela frieza e pela indiferença, elementos característicos de um mundo onde impera a desolação e a desesperança; em que a vida, em todas as suas nuances, não passa de meras frivolidades de uma sociedade que insiste em viver de forma não autêntica. Visão esta que é amplificada no conjunto de obras que formam o ciclo do absurdo, da qual O estrangeiro faz parte: Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: “Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentimos pêsames.” Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido ontem5. Em face do trecho extraído da referida obra, é possível vislumbrar a característica mais marcante da obra camusiana, que é precisamente a presença do absurdo e do pessimismo, tão típicos de um momento histórico no qual a sociedade vivia imersa na descrença e no ceticismo; conforme se pode deduzir pelo que diz Horácio González6, quando da análise do escritor franco-argelino: Antes de um ilustrador literário das teses filosóficas, Camus pertence à ordem da literatura. A tentativa de traduzi-lo filosoficamente nunca o completa. Esse programa de equivalências e traduções foi Sartre, na verdade, quem percorreu cabalmente. E ele não deixa de ter razão quando diz que Camus, em O Mito de Sísifo, parece não ter compreendido bem Keirkegaard, Jaspers ou Heidegger. Pode-se acrescentar também Husserl. Porém, essa “não compreensão” dos filósofos da existência ou dos fenomenológos é decorrente de sua intenção de literaturizá-los, de fazê-los colaborar em uma outra montagem comandada pela ideia de absurdo retirada de seu exercício de mediterraneidade. A partir desse panorama, observamos que impera na obra camusiana o sentimento de inadequação do homem ao meio em que se insere, ou que, no muito, este meio está indiscutivelmente fora do controle do indivíduo, posto que, no mesmo, tudo é 5 6 Id., p. 7. GONZÁLEZ, 2002, p. 52-53. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 215 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 um absurdo. Não existe uma lógica, não existem perspectivas que orientem a vida que deve ser vivida. É como se tudo houvesse sido jogado no ventilador – estruturas PR-efabricadas de modos de vida, montadas ao acaso, quase como quadros de vida que não aparentam ter nenhuma conexão lógica; o que nos permite arrematar que o próprio homem, com suas paixões e dissimulações, é o ser mais absurdo de todos (mais até que os seus próprios arquétipos sociais). O ser humano para Camus, portanto, passa a ter um valor relativizado, sendo, pois, nesse sentido, a maioria dos valores postos em sociedade valores inventados por esse mesmo homem que, a contrario sensu de constituir-se como o mentor dessa mesma sociedade, também se constitui com ser inventado – e que se sujeita às agruras e benesses que o modelo de sociedade por ele concebido proporciona. Apresentando então sempre a busca por um sentido, que se constitui humanamente impossível de ser alcançado, o homem digladia-se diariamente com sua própria consciência e com a consciência da existência “do outro” - embora não se possa ter certeza sobre serem esses sentidos inteligíveis ou não por parte do ser. Desta maneira, para Camus, a tentativa da sociedade de dar sentido à vida por meio da religião ou qualquer outra resposta em um primeiro momento satisfatória, na verdade, consubstancia-se como um ato de ilusão – uma quimera que para nada mais presta-se além de adiar momentaneamente o confronto com o absurdo, e, portanto, com a própria essência humana que é pontuada por lacunas de sentido. 3 O DEVIDO PROCESSO LEGAL COMO GARANTIA DE LIBERDADE DO INDIVÍDUO O que é o processo, especialmente o de natureza penal? Como se chegar a paradigmas válidos de ponderação valoratícia que permitam um julgamento justo e equânime para aquele que se encontra no banco dos réus? Estes e muitos outros são questionamentos bastante pertinentes no atual momento social, em que o crime antes de mais nada, se tornou um evento midiático, em que o importante é o “furo”, a notícia KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 216 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 em tempo real, o recrudescimento da violência e a superexposição do sangue como produto de consumo de massa. Pensar em processo penal, antes de mais nada, não nos remete a um simples meio para aplicar o direito penal e punir os cidadãos acusados da prática de um delito? Muito antes disso, pensamos em um instrumento imprescindível para a aplicação dessa punição. Como o caminho necessário a ser percorrido quando se pretende acusar, condenar e (se for o caso) punir alguém. Com base no que nos informa Daniel Achutti7, observa-se um ponto de vital importância do modo como o processo vai se desenrolar - qual seja, o modo como o processo é visto em si e a sua finalidade -, é que quando apercebe-se o processo como mero objeto de aplicação do direito material, corre-se o perigo de cair no lugar comum do simples positivismo legalista que aplica a lei de maneira cega e irresponsável, desconsiderando o caso concreto com suas peculiaridades e nuances; e que tornam o processo “o algo” que ele realmente é: a garantia de uma aplicação efetiva da justiça social pretendida pelo constituinte e pelo legislador infraconstitucional. Fato este que não se observa ao longo da leitura do estrangeiro, de modo que cumpre, nesse momento, ressaltar um dos perigos que sempre rodeiam o ordenamento jurídico e seus instrumentos - a utilização dos meios coercitivos do Estado para o tolhimento da liberdade individual, bem como para a imposição de um único padrão social de “normalidade”; sendo o diferente, nessa toada, visto como um estranho, perigoso ao status quo, de modo a caracterizar-se, assim, como um verdadeiro “estrangeiro” entre seus semelhantes. Como salienta Renata Almeida da Costa8, quando nos informa da natureza do interrogatório de Mersault: Por ser um desigual, não só pelo fato de ser um estrangeiro (ou de sentir-se um estrangeiro) o personagem é submetido ao procedimento inquisitorial. Nos interrogatórios, não se analisa o fato por ele praticado (a princípio tão simples de ser entendido), mas sim, sua personalidade e moralidade. Como exemplo há os questionamentos acerca do comportamento do réu perante a morte de sua mãe e diante 7 8 SÖHNGEN, 2010, p. 21. TRINDADE; SCHWARTZ, 2008, p. 222. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 217 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 da fé católica (crença em Deus, imagem do crucifixo, noções sobre o suplício de Jesus). Para Alexandre de Moraes9, a garantia assegurada pelo princípio do Devido Processo Legal apresenta duas vertentes que permitem ao indivíduo que este possa se salvaguardar de possíveis desmandos da entidade Estatal, como se observa a seguir: O devido processo legal configura dupla proteção ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade, quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado-persecutor e plenitude de defesa (direito a defesa técnica, à publicidade do processo, à citação, de produção ampla de provas, de ser processado e julgado por juiz competente, aos recursos, à decisão imutável, à revisão criminal). Mas para que esta dupla proteção possa ser efetivada, é necessário que, antes de qualquer coisa, se observe a imparcialidade daquele que julga, bem como o senso de justiça daqueles que atuam no processo; pois de nada adianta a garantia de tais instrumentos de proteção se aqueles que fazem parte da relação processual atuam de forma míope, guiados por uma moral distorcida e excludente, como nos mostra Renata Almeida da Costa10: Mesmo assim, não obstante a existência de algumas características acusatórias no processo de “O estrangeiro”, não se pode negar a forte reprovação legal e moral que recai sobre o réu, através dos atos do juiz e de seu próprio advogado. Ambos se detêm a analisar a conduta do acusado através de fatos pretéritos ao cometimento do crime. Vejamse as narrativas dos diálogos entre o réu e o advogado e entre o réu e o juiz. Nas primeiras, os fatos versam sobre a morte da mãe do acusado; nas segundas, sobre a fé do acusado nos símbolos da Igreja Católica. 4 A PRESSÃO SOCIAL NOS RUMOS DO PROCESSO: A DECISÃO CONVENCIDA DO JUIZ Para Daniel Achutti11, o aspecto humano do profissional do Direito é elemento extremamente relevante na sua práxis, uma vez que não é concebível dissociar tal 9 10 11 MORAES, 2010, p.107. TRINDADE; SCHWARTZ, 2008. p. 227. SÖHNGEN, 2010, p. 25. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 218 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 aspecto para a hipotética consecução de um modelo jurídico estritamente legalista e frio, que só existe no campo das ideias e das ficções jurídicas: Devemos pensar nos operadores jurídicos como seres humanos que, definitivamente, o são. Conforme as lições de Ricardo Timm de Souza, podemos pensar que o “‘humano’ é o que, penetrado de temporalidade, não é absolutamente concebível sem ela”. Um operador jurídico que se julgue fixado à lei e que se pensa isento de influências subjetivas quando das suas considerações jurídicas, dentre outros mitos, certamente não está inserido no tempo, ou seja: poderia ser considerado uma máquina, ou, para lembrar Montesquieu, “la bouche de la loi”. Por assim se considerar, estaria fora da temporalidade humana, algo próximo a um semi-Deus – intangível, pois não sujeito a intempéries temporais. Partindo-se do que foi proposto acima, é imprescindível que se observe como a sociedade com as suas diversas formas de manifestação, acaba por induzir, mesmo que inconscientemente, o julgador a decidir de maneira A ou B; e aqui é oportuno destacar o papel que a mídia tem exercido ultimamente – que, nos mais das vezes, por ser veículo tendencioso e sem uma adequação com a realidade fática, cria um clamor social tão maciço que condena o acusado antes mesmo do início do processo; atuando, assim como fator determinante de muitas das decisões judiciais, que quase que em sua totalidade não passam de escolhas arbitrárias do magistrado, posto que a decisão em si é algo pensado, que surge de uma fundamentação trazida à luz pelo conjunto probatório que é apresentado ao magistrado, ou no muito assim o deveria ser. É certo que uma das garantias para que o processo seja justo e equânime é aquela assegurada pelo princípio do livre convencimento motivado, segundo a qual, o magistrado, na análise do caso concreto, tem liberdade para proferir sua decisão desde que esta seja justificada. Nessa esteira, então, entender-se-ia que no processo devem ser apresentadas diversas provas que vão orientar e motivar o juiz para que decida de maneira A ou B; mas o que realmente pode ocorrer, e aqui surge a “Decisão Convencida” do juiz, é um verdadeiro perigo que ronda o devido processo legal, posto que o juiz corre o risco de que primeiro decida independente do que venha a ocorrer no processo – concretizando o famigerado “primado da hipótese sobre o fato -, sendo orientado por convicções de cunho pessoal, moral e filosóficas que dizem apenas KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 219 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 respeito à sua pessoa, ou a parcela social da qual este faz parte; de modo a apenas fazer depois um malabarismo hermenêutico para que sua decisão, desde sempre convencida por fatores alheios ao processo – diga-se fatores sociais determinantes – torne-se travestida de uma aparente legalidade, como acontece na obra em análise, na qual todo o processo por qual passa Mersault é orientado por convicções morais e religiosas do juiz e demais sujeitos processuais – ocorrendo, desta feita, uma juridicidade vazia de sentido, ou de pelo menos um sentido realmente jurídico de um Estado Democrático de Direto; configurando, assim, valores processuais vazios de valor efetivo. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante de todo o exposto no presente trabalho, percebe-se que embora o Direito constitua-se como uma ciência que busca a ordenação social e a implantação de um plano de pacificação com a resolução efetiva dos conflitos que surgem no seio da sociedade, o que realmente (e infelizmente) influi decisivamente são os fatores sociais, que se configuram como determinantes e, no mais das vezes, acabam por intensificar as discriminações e a segregação entre os indivíduos. Devendo então o Direito e, principalmente, o profissional do mundo jurídico, valer-se de um conjunto de valores que traduzam os verdadeiros anseios de justiça (valores estes que só são alcançados por meio de uma reflexão filosófica e sociológica da própria sociedade); sabendo sim da importância dos conceitos morais e religiosos que estão compreendidos no seio da sociedade, mas sem permitir que estes conceitos determinem a segregação de indivíduos por seguirem conceitos diferentes dos da maioria de modo a, assim, evitar que se reproduzam em nosso ordenamento jurídico processos tais quais como o que Mersault sofreu – o qual, a bem da verdade, em um Estado Democrático de Direito, pode ser chamado de tudo, menos de processo. REFERÊNCIAS ACHUTTI, Daniel. O processo penal entre a clareza da racionalidade jurídica e a complexidade da cultura contemporânea: apontamentos desde o Ensaio sobre a cegueira e O estrangeiro. In: SÖHNGEN, Clarice Beatriz da Costa; PANDOLFO, KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 220 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Alexandre Costi. (Org.) Encontros entre Direito e Literatura II – ética, estética e política. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2010. p. 21-35. CAMUS, Albert. O estrangeiro (1957). Trad. de Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 2008. COSTA, Renata Almeida da. Albert Camus e o processo penal: aporte garantistas ao interrogatório do “estrangeiro”. In: TRINDADE, André; SCHWARTZ, Germano (Org.) Direito e literatura: o encontro entre Themis e Apolo. Curitiba: Juruá, 2008. p. 221236. GONZÁLEZ, Horacio. Albert Camus: a libertinagem do sol. São Paulo: Brasiliense, 2002. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2010. SÖHNGEN, Clarice Beatriz da Costa; PANDOLFO, Alexandre Costi. (Org.) Encontros entre Direito e Literatura II: ética, estética e política. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2010. TRINDADE, André; SCHWARTZ, Germano (Org.) Direito e literatura: o encontro entre Themis e Apolo. Curitiba: Juruá, 2008. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 221 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 A DEFESA DA DEMOCRACIA E A CRÍTICA AO DECISIONISMO: A REVOLUÇÃO DOS BICHOS E A REVOLUÇÃO DO DIREITO Â NGELA A RAÚJO DA S ILVEIRA E SPÍNDOLA F ABIANE C ARLA P ILATI M ARINA T EIXEIRA M ONTEIRO 1 2 3 RESUMO: Existem inúmeras relações entre o Direito e a Literatura. A obra "A revolução dos bichos", de George Orwell, publicado em 1945 traz uma crítica intensa às relações de poder, conectando-se irrefutavelmente com a dimensão do Direito. A obra é uma defesa da democracia e um ataque ao autoritarismo e às arbitrariedades. O Estado Democrático de Direito consagrou direitos e garantias fundamentais, pretendendo romper com a tradição do Estado liberal. Entretanto, em decorrência, especialmente, do histórico jurídico-político brasileiro, não raras vezes, verifica-se uma verdadeira politização do direito, o que faz com que a criação, interpretação e modificação das normas jurídicas fiquem condicionadas à ideologia de determinados grupos de indivíduos. E, mais do que isso, muitas vezes a máquina judiciária serve de mecanismo para obtenção de vantagens desses poucos indivíduos, em detrimento da coletividade. É nesse contexto, que a “A Revolução dos Bichos” encontra correlação com a sociedade contemporânea, isto é, na trama, os animais de determinada fazenda promovem uma revolução e criam seu próprio sistema legal, ao qual denominam “Animalismo”, estabelecendo, para tanto, um arcabouço de regras a serem seguidas. Contudo, ao longo da história, os porcos, únicos plenamente alfabetizados, vão modificando os artigos do código que criaram de acordo com seus interesses, aproveitando-se, principalmente, da ignorância e analfabetismo dos outros animais, quebrando com ideal inicial da 1 2 3 Doutora em Direito pela UNISINOS. Professora e Pesquisadora da Escola de Direito da IMED/Passo Fundo. Professora Adjunta do Departamento de Direito da UFSM. Coordenadora e Orientadora do grupo de pesquisa “O Neoconstitucionalismo e o processo civil como um tempo e um lugar possíveis para concretização efetiva e democrática dos Direitos Fundamentais”. Advogada. Acadêmica de Direito do VIII nível na IMED – Faculdade Meridional, Grupo de Pesquisa “O Neoconstitucionalismo e o processo civil como um tempo e um lugar possíveis para concretização efetiva e democrática dos Direitos Fundamentais”. Acadêmica de Direito do VIII nível na IMED – Faculdade Meridional, Grupo de Pesquisa “O Neoconstitucionalismo e o processo civil como um tempo e um lugar possíveis para concretização efetiva e democrática dos Direitos Fundamentais”. Bolsista de Iniciação Científica PROBIC/FAPERGS. Estagiária da Procuradoria-Geral do Estado do Rio Grande do Sul. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 222 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 revolução de criação de uma comunidade igualitária e que propiciasse bem-estar a todos. PALAVRAS-CHAVE: A Revolução dos Bichos - Estado Democrático de Direito – Democracia - Decisionismo 1 INTRODUÇÃO Escrita por George Orwell e publicada no ano de 1945, a obra A revolução dos bichos permite a análise de diversos temas relacionados ao direito, principalmente no que tange a críticas aos regimes totalitários. O presente artigo, longe de esgotar as inúmeras leituras que podem ser feitas da obra em comparação com o direito, irá abordar três temas específicos. Tendo em vista que a sociedade está em constante mudança, e que, ao longo do tempo, a maneira com que se estabelecem as relações sociais assumem novos formatos, o direito entra para regular e estabelecer o contrato social assumido pela população em determinado espaço de tempo. Nesse viés, o primeiro tema que será abordado é a revolução do direito, que acontece com as mudanças paradigmáticas. A partir da constituição de 1988, o Brasil estabeleceu o Estado Democrático de Direito, e desde lá vem criando mecanismos para efetivar os ideais desse paradigma. No livro em análise, os bichos também estabelecem um novo paradigma, o Animalismo, uma vez que o anterior não se mostrava suficiente para atender suas necessidades. O livro narra a adaptação dos animais frente ao sistema estabelecido e as dificuldades que vem surgindo para consolidá-lo. Faz-se necessária a comparação da revolução narrada com a transformação que o direito brasileiro vem enfrentando para adaptar-se aos ideais do Estado Democrático de Direito estabelecidos na constituição. O segundo e terceiro tópico que serão abordados se complementam. A democracia e o decisionismo. A partir do momento que os animais estabeleceram as regras do novo paradigma, com a concordância de todos, estabeleceu-se um contrato social, o qual todos ficariam comprometidos a efetivar. Tanto é que no livro os animais KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 223 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 auxiliam e trabalham incansavelmente nas tarefas necessárias ao bom funcionamento da fazenda e cujos benefícios se converteriam em prol de todos. Também, no início do novo paradigma, participavam das reuniões que eram realizadas para estabelecer tarefas e atividades. A partir do momento em que os porcos (principalmente o personagem Napoleão), que ficaram no comando da fazenda, começam a decidir de forma adversa aos mandamentos do Animalismo, alterando as leis conforme seus interesses, há uma quebra com o contrato social, e, portanto, com a democracia. O decisionismo judicial é denunciado nesse momento da obra, uma vez que os porcos começam a decidir de forma desvinculada ao “ordenamento jurídico” estabelecido. Também não há força que barre as arbitrariedades dos porcos, o que significa que não há coercitibilidade nas regras estabelecidas. A análise desses temas a partir da obra é elementar para a compreensão da mudança de paradigma pela qual está passando o ordenamento jurídico brasileiro. O autor descreve com propriedade as dificuldades que surgem a partir do estabelecimento de um novo sistema quando trata do Animalismo. A literatura vem para propor uma análise complexa e objetiva da dinâmica da sociedade, e a partir desta o direito vai ser estabelecido. É a partir da reflexão dessa obra literária que inferimos o quanto é preciso pensar um novo sistema para que ele tenha coercitibilidade e não fuja do interesse da maioria em detrimento dos ideais de minorias. 2 DIREITO E LITERATURA: UMA INTERSECÇÃO POSSÍVEL E NECESSÁRIA O estudo do direito exige uma visão ampla e crítica dos fatos e da sociedade, tendo em vista que seu objeto de análise reside, justamente, nas interações sociais. Entretanto, o que se percebe, hodiernamente, é a expansão de uma cultura jurídica dogmática, sendo que, não raras vezes, durante o estudo jurídico, questões hermenêuticas, filosóficas e sociológicas ficam em segundo plano. É nesse contexto, portanto, que surge a importância do direito e literatura ou direito na literatura, como KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 224 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 mecanismo de ampliação da compreensão da ciência jurídica para além das concepções meramente dogmáticas ou restritas. Assim, tem-se que cada obra literária, mais do que “contar uma história”, transporta o leitor para determinado momento histórico, que pode ser no passado, futuro e mesmo no presente, porém, apresentando-lhe, via de regra, perspectiva diferenciada daquela a qual ele está habituado. Nesse contexto, ao longo de cada narrativa, a todo instante, analisa-se o comportamento dos personagens e contexto social, político e até mesmo jurídico em que se passa a história, permitindo e incentivando-se a noção crítica acerca do comportamento humano, das relações de poder, convenções sociais, etc. Nesse sentido, ao apresentar um “parâmetro revolucionário” para o paradigma jurídico através da idéia do Direito curvo (GONZÁLEZ, 2003, p.36), descreve a importância da Investigação narrativa da direito e, nesse contexto, a relevância do estudo de direito e literatura: A investigação narrativa em direito se conservou plenamente, e inclusive incrementou, seu originário vínculo com as Humanidades, em particular com a Literatura, de modo que a maioria dos atuais desenvolvimentos narrativos que envolvem o fenômeno jurídico se ressituam no terreno Direito e Literatura e, como modalidade estrutural de intersecção , dentro do que concretamente se apresenta por Direito e Literatura (GONZÁLES, 2013, p. 45). E, dessa forma, a literatura no direto incentiva à interdisciplinariedade, à compreensão crítica dos fatos sociais, ressalta a importância da linguagem e hermenêutica jurídica, possibilitando, ainda, que se repense o direito a partir de casos concretos (mesmo que fictícios) e não mais concepções somente teóricas. Conforme se verifica na prática cotidiana, a arte – literatura, pintura, musica, etc.- desempenha papel fundamental no estímulo à criatividade, à imaginação, à discussão, à perspectivas diversas dos fatos, agregando ao leitor idiossincrasia diferenciada a cada leitura, ampliando sua visão do mundo. E, na esfera jurídica, da mesma forma, a literatura, cada vez mais tem sido reconhecida como tendo KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 225 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 importância cabal no desenvolvimento de uma visão mais crítica e menos dogmática do estudo do direito. Consoante ponderam TRINDADE e GUBERT (2008, p. 13): Quando se considera o caráter desruptor e crítico da obra literária, há de se levar em conta que ela – ao contrário da obra jurídica – é uma obra de arte, na medida em que se caracteriza pela maravilha do enigma e por sua inquietante estranheza, que são capazes de suspender as evidências, afastar aquilo que é dado, dissolver as certezas e romper com as convenções. A obra de arte produz, mediante a imaginação, um deslocamento no olhar, cuja maior virtude está na ampliação e fusão dos horizontes, de modo que tudo se passa como se através dela, o real possibilitasse o surgimento de mundos e situações até então não pensados (grifo nosso). Nesse contexto, tem-se que a crescente complexidade social, reclama novas posturas dos operadores jurídicos (STRECK, 2009, p. 17), assim como novéis mecanismos que auxiliem dos fenômenos sociais. E, nesse sentido, verifica-se que a literatura apresenta-se como importante ferramenta de fomento à interdisciplinaridade no estudo do direito, “na medida em que se baseia no cruzamento dos caminhos do direito com as demais áreas do conhecimento – fundando um espaço crítico por excelência” (TRINDADE e GUBERT, 2008, p. 12), permitindo, portanto, uma análise mais profunda da conjuntura social, o que possibilita, no âmbito jurídico, a discussão e solução das demandas judiciais. Em outras palavras, a literatura é indispensável para uma compreensão mais profunda da realidade social, o que na esfera jurídica, culmina na superação da dogmática jurídica, conquanto retira do operador do direito a possibilidade um “prêt – à – porter significativo contendo uma resposta pronta e rápida” (STRECK, 2009, p. 32) para o caso (fictício) em análise e apresenta-lhe a possibilidade de discussão mais profunda e completa da questão em pauta. 3 A REVOLUÇÃO DOS BICHOS: BREVE RESUMO DA OBRA A obra A revolução dos bichos4 foi escrita por George Orwell e publicada no ano de 1945. A narrativa tem como cenário uma fazenda, controlada por humanos, na qual 4 ORWELL, 2003. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 226 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 os animais sustentam a economia do local. Isso tanto através da força física (como no caso dos cavalos) quanto através de recursos naturais, como lã, ovos e carne. Embora sejam diretamente ligados à renda da fazenda, não participam dos frutos e rendimentos dela, pois recebem pouca comida e são muito explorados. Certo dia, um porco chamado Major reúne todos os animais da fazenda e faz uma reflexão sobre o sistema que estão vivendo, onde os animais são fonte de renda e os humanos os que usufruem e exploram. Propõe, portanto, uma rebelião, a tomada do poder por parte dos animais. Dias depois dessa reunião, o porco morre. Os animais, entretanto, não abandonam as ideias propostas por Major, principalmente os demais porcos. Na oportunidade em que o dono da fazenda bebe demais, esquecendo-se de alimentar os animais, estes, cansados desse sistema, avançam contra o humano e o expulsam da fazenda. A mulher dele também foge do local. Os porcos, dotados de inteligência superior à dos demais animas da fazenda, aprendem a ler e aos poucos vão tomando a frente na revolução. São os porcos, principalmente Bola de Neve e Napoleão os responsáveis pelas decisões a partir daquele momento. Bola de Neve, entretanto, busca incluir os demais animais da fazenda, possibilitando que votem nas reuniões e também promove diferentes atividades para eles, entre as quais a alfabetização. Quanto a esta atividade, embora alguns animais tenham aprendido a ler (superficialmente), não havia o domínio da língua tal como os porcos. Após a revolução ter se instaurado, os animais reuniram-se (sempre a partir da iniciativa dos porcos) para decidir quais seriam os mandamentos primados por todos, os quais foram escritos em uma parede da granja. Em suma, os mandamentos afastavam todas as condutas propriamente humanas, as quais eram repudiadas pelos animais, e idealizavam a igualdade entre estes. Para citar alguns: “Nenhum animal dormirá em camas”; “Nenhum animal beberá álcool”; e, “Todos os animais são iguais”. Tais mandamentos foram resumidos na máxima “Quatro pernas bom, duas pernas ruim” para facilitar a compreensão do contrato social por aqueles que não tinham o domínio da leitura. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 227 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Muito embora Bola de Neve concentrasse sua liderança na finalidade de melhorar as condições de vida dos animais, primando pela efetivação dos mandamentos, Napoleão sempre se mostrava contra suas ideias, o que gerava discussão entre os dois porcos. E, no momento em que os humanos tentaram retomar a posse da granja, foi Bola de Neve quem lutou junto com os animais para impedir tal ato. Em uma das reuniões da fazenda, Napoleão expulsa Bola de Neve com o auxílio de cães ferozes, os quais havia secretamente treinado para defendê-lo. A partir desse momento há uma reviravolta, pois os animais começam a ser manipulados segundo os interesses de Napoleão. Ademais, todos os atos do porco são justificados pela ideia de que ele sempre está defendendo os interesses dos animais e que as atitudes que vão sendo tomadas são essenciais para manter a fazenda longe dos humanos. Napoleão também constrói a ideia de que todos os planos e propostas de Bola de Neve tinham como pano de fundo auxiliar os humanos na retomada da granja, criando a imagem de que Bola de Neve seria na verdade um traidor. Os animais da fazenda, com exceção dos porcos, trabalhavam arduamente para construir o novo sistema. Quem mais trabalhava era o cavalo Sansão, que tinha certeza de que as decisões dos porcos eram voltadas para o bem comum e detinha, inclusive, o lema “trabalharei mais ainda”. É possível inferir, ao longo da narrativa, que por mais que os animais tivessem estabelecido o Animalismo, o pensamento de Napoleão – que se tornara o líder na granja-, continuava permeado pela estrutura do sistema antigo, qual seja, os animais trabalhavam e moviam a economia da fazenda e um pequeno grupo liderava e usufruía dos rendimentos. Com o passar do tempo, Napoleão vai assumindo as posturas tanto repudiadas pelo Animalismo, as quais são características do regime anterior. Fornece pouco alimento ao restante dos animais e começa alterar arbitrariamente a legislação na medida em que vai assumindo a postura dos humanos. Quando começa a ingerir bebida alcoólica, o mandamento referente a tal prática passa a ser “nenhum animal beberá álcool em excesso” Quando passa a morar na casa dos humanos e dormir nos quartos o KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 228 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 mandamento passa a ser “Nenhum animal dormirá em camas com lençóis”, quando os animais começam a interagir com os humanos e andar sobre quatro pernas a antes máxima passa a ser “quatro pernas bom, duas pernas melhor”. E assim por diante. O contrato social é modificado de tal forma que a fazenda não só volta a manter os padrões anteriores ao Animalismo como a situação dos animais passa a ser pior que outrora. Tanto é que, em uma conversa com Napoleão (mais ao final da obra), um dos humanos se mostra admirado com a sistemática do porco, uma vez que na granja dos animais estes trabalham muito mais e com muito pouca comida, chegando a dizer que irá implantar na fazenda do qual é dono várias das técnicas de Napoleão. O último mandamento que é modificado é o da igualdade, que irá aparecer no muro da granja no lugar de todos os outros: “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros”. Em suma, esse mandamento embasa o sistema primado por Napoleão e que, na realidade, acaba por ser similar ou pior que aquele dos humanos. No final da narrativa, os animais assistem uma briga entre humanos e porcos, decorrente de um desentendimento em um jogo de cartas que estava acontecendo na casa de Napoleão, onde as expressões, a aparência e as atitudes porcas e humanas eram tão semelhantes que os animais não conseguiam distinguir mais quem era porco, quem era humano. 4 A REVOLUÇÃO DO DIREITO E A REVOLUÇÃO DOS BICHOS: A MUDANÇA DE PARADIGMAS Passados mais de vinte anos da promulgação da Constituição Federal, é visível que, quanto ao ordenamento jurídico infraconstitucional, ainda se tem muito a fazer para efetivar os ideais do Estado Democrático de Direito, paradigma estabelecido pela CF/88. A comparação (e reflexão) que se faz a partir da obra de George Orwell parte da revolução que tentou implantar o Animalismo. As dificuldades para assumir um novo sistema são inerentes ao momento de transição paradigmática, uma vez que ainda estão presentes muitos dos pensamentos e da estrutura do anterior. É preciso, KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 229 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 entretanto, mudanças institucionais e ideológicas para a superação do paradigma em decadência, sob pena de se continuar com a mesma dinâmica anterior (que é o que acontece no livro), mesmo que as relações sociais e jurídicas tenham mudado. Ovídio Baptista aponta que há elevadíssimo sentido de autopreservação das instituições5. Há “uma tendência que nos leva a ter o status quo como racional”6.O autor aponta, que “quando indagamos a respeito das coisas, já temos uma ideia prévia de sua essência, ‘fala já a história’”7, o que demonstra a dimensão de nossas pré-compreensões. Ademais, “somos induzidos a supor que o status quo, as coisas, sempre existiram, tal como nós as vemos agora. Mesmo as “coisas” criadas pela cultura. Temos uma tendência a naturalizá-las”8. As instituições e o significado que elas assumem são criações da própria sociedade, da coletividade, que, depois de criadas, são tidas como dadas, tornam-se fixas, rígidas9, “sempre há, nas instituições um elemento central, potente e eficaz de autoperpetuação”10. Daí denota-se a dificuldade de abandonar o antigo paradigma, de romper com antigos dogmas, com pré-compreensões e construir novas instituições. Para efetuar mudanças no cenário jurídico e adaptar (ou criar) instituições aos novos ideais, é necessário reconhecer o tempo do direito11, é preciso reconhecer o momento temporal o qual a sociedade está vivenciando, nesse sentido: O tempo é uma instituição social, uma construção social: o tempo temporaliza-se, diz Ost. Temporaliza-se conforme a cultura de uma determinada sociedade. Daí falar-se que há uma interação dialética entre o tempo e o direito: há um elo entre a temporalização social do tempo e a instituição jurídica da sociedade, eis que o direito contribui para a instituição do social, ou seja, contribui para estreitar o elo social e oferecer pontos de referência (sentido e valor) à sociedade (ESPINDOLA, 2008). 5 6 7 8 9 10 11 SILVA, 2013. MARCUSE apud SILVA, 2013. Ibidem. Ib. CASTORADIS apud SILVA, 2013. SILVA, 2013. ESPINDOLA, 2008, p. 37. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 230 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 O tempo no qual estamos inseridos, entretanto, é um tempo de mudanças, que irão, inevitavelmente, atingir o cenário do direito na sociedade12: Não se pode negar que a humanidade testemunha um período histórico marcado pela aceleração do tempo e pela compreensão do espaço. Informática, realidade virtual, cibernética, robótica, bioética, biotecnologia, capitais, mercadorias, mercados, enfim, as informações contemporâneas, em uma velocidade instantânea, rompem as fronteiras tradicionais (ESPINDOLA, 2008). As mudanças nas relações sociais precisam ser observadas para criação de mecanismos que efetivem e concretizem direitos. Entretanto, os ideais do paradigma dominante da modernidade, o racionalista, continuam a permear o direito brasileiro. Muitas das concepções do antigo modelo continuam arraigadas em nosso ordenamento jurídico e em nos nossos sistemas processuais13. Aí encontra-se boa parte da dificuldade de concretização do Estado Democrático de Direito. A estrutura do paradigma anterior vem sendo mantida (!). Para a compreensão do paradigma racionalista, cabe utilizar a explanação de Angela Espindola: O paradigma dominante da modernidade – o modelo de racionalidade científica que cobre a ciência moderna – constituiu-se, em especial, a partir da revolução científica do século XVI, quando se deu o rompimento com o tradicional pensamento aristotélico-medieval, assumindo-se como um ambicioso e revolucionário paradigma sociocultural assente numa tentativa dinâmica entre regulação social e emancipação social. O espectro do paradigma dominante apresentava o método científico baseado na observação, descrição e sistematização das informações da natureza, mediada pelo crivo da razão e da lógica. [...] A razão e o método científico eram tomados como as únicas fontes de conhecimento válido (ESPÍNDOLA, 2008). A influência desse paradigma no direito atual está presente principalmente nas instituições de direito processual civil, que ainda mantêm muitas das concepções do racionalismo intrínsecas à dinâmica processual. Ovídio Baptista aponta inúmeras vinculações ao paradigma anterior, cabendo citar: o princípio da “separação de poderes”, que vincula o juiz a buscar a intenção do legislador quando criou determinada norma e, assim, aplicar a “vontade da lei” ao caso concreto; a opção pelo 12 13 Id., p. 275. Nesse sentido, consultar Silva (2006). KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 231 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 rito ordinário no processo civil; a utilização da “cognição exauriente” que faz com que o juiz busque a certeza, a “vontade da lei”, que fique vinculado aos fatos conhecidos e provados no decorrer do processo; a opção pelo contraditório prévio, entre outros14. Entretanto, a partir das concepções do paradigma racionalista, a tutela estatal apresenta-se de forma repressiva e reparadora, o que denota dificuldade em aplicar tutelas preventivas e concretizar direitos. Tal como explana Angela Espíndola: Não se pode imaginar a concretização de direitos, pensando-se exclusivamente sob a órbita de uma jurisdição repressiva ou do processo de conhecimento do rito ordinário, calcado sobre o mito da certeza jurídica e da universalização da obrigação. Não são raros os direitos que não podem ser traduzidos a uma conotação patrimonial e que a reparação do dano consiste em mero consolo e não em efetiva concretização de direito (a exemplo dos direitos ligados à honra, à educação, à saúde, à intimidade...). Pensar em concretização de direitos é pensar em um processo jurisdicional efetivo, célere e democrático; é pensar em jurisdição protetiva, logo preventiva, além de repressiva (ESPINDOLA, 2008). Muito embora nosso ordenamento jurídico ainda carregue muito dos dogmas do paradigma anterior, é evidente a movimentação legislativa na tentativa de consolidar os ideais do Estado Democrático de Direito. Entre essas mudanças, cabe citar lei 11.419/06, que normatiza a virtualização do judiciário e regulamenta o processo eletrônico. O processo eletrônico trouxe inúmeros benefícios para a processualística brasileira, cabendo citar a publicidade dos atos processuais, a acessibilidade a documentos do processo, a possibilidade de os servidores ficarem adstritos a tarefas próprias do andamento processual e não meramente burocráticas (como grampear e numerar folhas, por exemplo) e também contribui para a efetivação da garantia do acesso à justiça15. Também cabe citar que foi firmado um pacto entre os três poderes do Estado, objetivando tornar o judiciário mais eficiente e acessível à população, no qual foram firmados onze compromissos. Tanto nas reformas legislativas como no referido pacto o ponto em comum que pode ser observado é a “atenção ao tempo, ou seja, na luta contra 14 15 Id. ESPINDOLA; MONTEIRO; PILATI, 2012. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 232 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 a morosidade do Judiciário, contra a intempestividade da prestação jurisdicional e a efetividade das suas decisões”16. Quanto ao pacto entre os três poderes: A parte infraconstitucional da Reforma do Judiciário possui mais de 20 projetos de lei em tramitação, incluindo, além do processo civil, os processos trabalhista e penal. Na verdade, são projetos que se inserem no compromisso assumido, em conjunto, pelos três poderes do Estado e que recebeu o nome de Pacto de Estado em favor do Judiciário mais Rápido e Republicano, assinado em 15/12/2004, [..]. Esse pacto enumera onze compromissos com o objetivo de tornar o Poder Judiciário mais eficiente e acessível à população. Estes onze compromissos são: (1) Implementação da Reforma Constitucional do Judiciário; (2) Reforma do Sistema Recursal e dos Procedimentos; (3) Defensoria pública e Acesso à Justiça; (4) Juizados Especiais e Justiça Itinerante; (5) Execução Fiscal; (6) Precatórios; (7) Graves Violações contra Direitos Humanos; (8) Informatização; (9) Produção de Dados e Indicadores Estatísticos; (10) Coerência entre Atuação administrativa e as Orientações Jurisprudenciais já Pacificadas; e, (11) Incentivo à Aplicação das Penas Alternativas (ESPINDOLA, 2008). As dificuldades narradas por Orwell na “Revolução dos bichos” para atingir os ideais do Animalismo são inerentes às transições paradigmáticas. É importante, portanto, o reconhecimento do tempo em que se está inserido para que se construam as instituições jurídicas capazes de concretizar os ideais propostos no contrato social. Sem dúvida, se o paradigma anterior foi esgotado e não se mostra eficaz para atender os novos direitos, algumas das concepções que se tinham à época terão que ser abandonadas ou modificadas. Napoleão, no livro, buscou manter a mesma estrutura e concepções do paradigma anterior, afastando, inclusive, o contrato social firmado pelos animais. E foi tal postura impossibilitou a perpetuação do Animalismo. 5 A DEFESA DA DEMOCRACIA E A CRÍTICA AO DECISIONISMO De fato, o livro de George Orwell permite inúmeras compreensões a partir da temática jurídica, política, sociológica, filosófica, etc. Entretanto, em decorrência, especialmente do contexto histórico em que foi escrito, isto é, em 1945, no mundo pósGuerra, sua narrativa contempla uma intensa crítica às relações de poder, combatendo 16 ESPINDOLA, 2008, p. 190. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 233 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 o autoritarismo e às arbitrariedades, constituindo,o a obra, sobremaneira, uma defesa à democracia. Assim, “A revolução dos bichos” apresenta, de forma geral, uma crítica ao totalitarismo, à opressão, arbitrariedade e discricionariedade. Isso fica notório, inclusive tendo em vista que não é somente nesta narrativa, particularmente, que o autor reafirma sua preocupação para com a democracia, ao contrário na obra 1984, por exemplo, essas questões são trazidas à baila. Consonante pondera SANDRA REGINA MARTINI VIAL: George Orwell nos encaminha e/ou desencaminha para várias reflexões, como a que versa sobre as relações sociais em um mundo onde tudo e todos são controlados por alguém incontrolável. Este alguém ora aparece como Estado, ora aparece como chefe; contudo é um aparecer não aparecendo, é algo ou alguém onipresente na ausência e na presença [...]. As revelações feitas por Orwell, em muitos momentos, trazem par nosso pensamento diversas situações que identificamos em nossa sociedade. Ao lê-lo, tem-se o sentimento de estar revendo o nosso passado, vendo o presente e imaginando o futuro (VIAL, 2008, p. 180). A partir dessas rápidas considerações, percebe-se que “A revolução dos bichos” encontra-se irrefutavelmente atrelada à dimensão do direito. Nesse ínterim, com a ultrapassagem do Estado Liberal, o Estado Democrático de Direito traz ínsito em suas premissas a noção de constitucionalização do direito, primando, ainda por uma compreensão do direito a partir de direito e garantias fundamentais, com o escopo de garantia do bem-estar geral. E, nesse caso, pode-se dizer que a revolução do direito pode ser compreendida, também no sentido de que, pós-positivismo, há a necessidade de inclusão no estudo jurídico da hermenêutica, filosofia do direito, etc. Entretanto, não raras, vezes, ainda que com o advento do Estado Democrático de Direito, ainda reside a compreensão restrita do estudo do direito, e nesse contexto preleciona STRECK (2007, p. 1/2)17: É necessário ter em conta que o novo constitucionalismo e a revolução copernicana proporcionada pela invasão da filosófica da linguagem [...] não consegue superar a relevante circunstância de que ainda 17 Prefácio da obra de Hommerding (2007). KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 234 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 vivemos em um mundo jurídico que busca exorcizar os fatos e conflitos tratados pelo direito. Conectando-se essas premissas à “Revolução dos Bichos”, verificamos que na obra em comento, após a tomada de poder pelos animais, os mesmos instituíram o “Animalismo” e, como forma de regramento social, elencaram os chamados “Sete Mandamentos” que deveriam ser observados por todos os integrantes da fazenda. Assim era constituídos “Sete Mandamentos”: Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo. O que andar sobre quatro pernas, ou tenha asas é amigo. Nenhum animal usará roupa. Nenhum animal dormirá em cama. Nenhum animal beberá álcool. Nenhum animal matará outro animal. Todos os animais são iguais (ORWELL, 2003, p. 19). Percebe-se, portanto, que os animais acabaram por ratificar um contrato social, através do estabelecimento parâmetros para que sua conduta não se assemelhasse às atitudes tipicamente humanas, haja vista que a revolução visava, justamente, a superação da realidade à que estavam submetidos quando sob as ordens do fazendeiro Jones. Entretanto, ao longo da história, os porcos, únicos animais plenamente alfabetizados, acabam por modificar as ordens de acordo com seus interesses individuais, em detrimento do bem-estar da coletividade, aproveitando-se, sobretudo, da ignorância e do analfabetismo dos demais animais. No trecho que transcrevemos abaixo, fica notória essa conjuntura: Foi mais ou menos por essa época que os porcos, de repente, mudaram-se para a casa-grande, onde fixaram residência. Novamente os bichos julgaram lembrar-se de que havia uma resolução contra isso, aprovada nos primeiros dias e, novamente Garganta conseguiu convencê-los do contrário. [...] Quitéria, que tinha a impressão de lembrar-se de uma lei específica contra camas, foi até o fundo do celeiro e tentou decifrar os Sete Mandamentos que lá estavam escritos. Sentindo-se incapaz de ler mais do que algumas letras separadamente, foi chamar Maricota. - Maricota – pediu ela -, leia para mim, por favor, o Quarto Mandamento. Não diz qualquer coisa de nunca dormir em camas? Com alguma dificuldade, Maricota soletrou o mandamento: KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 235 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 - Diz que “Nenhum animal dormirá em cama com lençóis. Interessante, Quitéria não se recordava dessa menção a lençóis no Quarto Mandamento. Mas se estava escrito na parede, devia haver. E Garganta que por acaso passava nesse momento, acompanhado de dois cachorros, colocou tudo na perspectiva adequada (ORWELL, 2003, p. 49). A partir dos trechos narrados é possível fazer uma analogia entre “Os Sete Mandamentos” e a Constituição Federal, haja vista que estes primeiros faziam as vezes de normas constitucionais, no contexto da história. E, dessa forma, se fazenda dos bichos, era possível a modificação de suas normas sem maiores critérios, isso denunciava a pouca força normativa desses institutos, visto que poderiam ser alterados a qualquer tempo. E, da mesma forma, no direito brasileiro, é necessário cautela quando da criação de mecanismos de alteração das normas constitucionais, sob pena de fragilidade da Carta Magna e do Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, preceitua STRECK (2009, p. 327) que: Quando tramitam emendas constitucionais no parlamento da República que buscam estabelecer mini-reformas constituintes – a mais recente diz respeito ao aproveitamento da eleição municipal de 2008 para autorizar que o Congresso Nacional, por maioria absoluta em votação unicameral, promova alterações na Constituição acerca do poder político e do judiciário – ou outras que até mesmo, em plena democracia, pretendem a instalação de uma assembléia constituinte, é necessário explicitar que qualquer perspectiva hermêutica, na matriz aqui defendida, depende fundamentalmente do respeito à Constituição e das regras impostas por ela mesma para sua alteração. [...] Quaisquer teses em contrário são exercícios de golpismo. Isso quer dizer que, assim como na fazenda dos Bichos, “Os Sete Mandamentos” constituíam um contrato social, Constituição Federal é a norma basilar de todo o ordenamento jurídico brasileiro, o que lhe confere força normativa suficiente para determinar os princípios diretivos, segundo os quais devem-se formar a unidade política e as tarefas estatais a serem exercidas, regulando procedimentos de pacificação de conflitos no interior da sociedade, criando bases e normalizando traços fundamentais da ordem total jurídica18, sendo também, portanto um contrato social. 18 NERY JR., 2010, p. 38. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 236 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 E, para garantia do Estado Democrático de Direito é indispensável que a criação, interpretação e modificação das normas jurídicas estejam em consonância com os ditames constitucionais, inclusive, quando estas digam respeito à Propostas de Emendas Constitucionais19, tendo em vista que “uma democracia só se consolida quando todos os Poderes da República apreendem que a constituição é a explicitação do contrato social e o estatuto jurídico do político” (STRECK, 2009, p.328). Ademais, assim como na obra de George Orwell onde a modificação das regras estabelecidas favorecia atendia apenas aos interesses dos porcos, não se pode, em um regime democrático aceitar a criação ou modificação das normas jurídicas que favoreçam determinados grupos de indivíduos em detrimento da coletividade, sendo necessária a aplicação das leis de forma a contemplar todos os cidadão. Pondera Hommerding (2007. p. 29) que: Somente as condições processuais da gênese democrática das leis asseguram a legitimidade do direito. [...] Assim, é indispensável a institucionalização de espaços imparciais que viabilizem a conversão das pluralidades e a produção de consensos, a partir de um procedimento que permita a inclusão de todos os cidadãos nos ambientes discursivos. Desse modo, numa sociedade pluralista, a fundamentação das normas jurídicas é resultado de um procedimento democrático que garanta a participação de todos na formulação do Direito (grifo nosso). Frise-se que essa ideia de direcionamento das normas jurídicas a determinados grupos indivíduos ocorre, sobretudo, a partir das interferências econômicas, sociais e principalmente em decorrência da politização do direito, o que igualmente demonstra fragilidade dos institutos constitucionais. Nesse caso, para defesa da democracia e da Constituição seria necessário, cada vez mais, atribuir autonomia ao direito, desvencilhando-o, o quanto possível, de interesses econômicos, políticos, dentre outros, que não tenham como objetivo um bem-estar coletivo, ratificando, dessa forma, as premissas do Estado Democrático de Direito. 19 Conforme preceitua Lênio Streck (2009, p. 327): “Como se sabe, a Constituição somente pode ser alterada por emenda constitucional que obedeça ao quorum de 3/5 em votação bicameral e em dois turnos, respeitadas ainda, as proibições explícitas e implícitas do poder reformador. [...] A vingar qualquer das propostas de emendas [...] que estabeleçam autorizações plebiscitárias[...], o Brasil será a primeira democracia que se autodissolve, fazendo um haraquiri institucional.” KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 237 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 A partir dessa concepção de autonomia do direito infere-se que “a constituição [...] é, assim, a manifestação desse grau de autonomia do direito, isto é, deve ser compreendido como a sua dimensão autônoma face às outras dimensões com ele intercambiáveis, como por exemplo, a política, a economia e a mora.” (STRECK, 2009, p. 330), com o intuito, justamente, de que a norma jurídica atenda o ideal de pacificação dos conflitos e bem-estar geral, a que pretende o Estado Democrático de Direito20. A calhar a visão de STRECK (2009, p. 331) acerca das interferências do direito na criação, aplicação e interpretação das normas jurídicas: Não é demais referir, nessa altura, que a autonomia adquirida pelo direito implica o crescimento do controle de constitucionalidade das leis, que é fundamentalmente contramajoritário. Mas, se diminui o espaço de poder da vontade geral e se aumenta o espaço da jurisdição (contramajoritarismo), parece evidente que, para a preservação dessa autonomia do direito, torna-se necessário implementar mecanismos de controle daquilo que é o repositório do deslocamento do pólo de tensão da legislação para a jurisdição: as decisões judiciais. E isso implica discutir o cerne da teoria do direito, isto é, o problema da discricionariedade da interpretação (grifo nosso). Dessa forma, verifica-se que uma das principais maneiras de conferir autonomia ao direito, efetuando um maior controle de constitucionalidade é, justamente, combater decisionismos e discricionariedades nas decisões judiciais, tendo em vista que a autonomia do direito não pode implicar indeterminabilidade desse mesmo direito construído democraticamente, se assim se pensar, esta será substituída pelo pragmatismo jurídico que coloca o direito em permanente estado de exceção (STRECK, 2009, p. 331), haja vista a falta de balizar para aplicação das normas jurídicas. Nesse ínterim, a despeito do que ocorria na trama de “A revolução dos bichos”, o direito brasileiro não pode ficar adstrito à decisões judiciais arbitrárias, sem vinculação com os textos legais, em especial, com as normas constitucionais, sob pena de enfraquecimento das bases democráticas estabelecidas. Em outras palavras, “ o grande dilema contemporâneo será, assim, o de construir as condições para evitar que a justiça 20 Conforme preceitua Lênio Streck (2009, p. 330): “Às faceta ordenadora (Estado Liberal de Direito) e promovedora (Estado Social de Direito), o Estado Democrático de Direito agrega um plus, representado por sua função nitidamente transformadora, uma vez que os textos constitucionais passam a institucionalizar um ‘ideal de vida boa’[...]” (grifo nosso). KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 238 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 constitucional (ou o poder dos juízes) se sobreponha ao próprio direito” (STRECK, 2009, p. 339), comprometendo, assim como na narrativa de Orwell, o ideal de uma sociedade justa, democrática e igualitária. 6 CONCLUSÃO A obra de George Orwell permite a reflexão dos três temas propostos através de um viés literário. É um estudo do direito para além dos livros e doutrinas dos quais estamos acostumados a extrair nossas compreensões. O livro estimula a liberdade de interpretação da narrativa, a análise de uma ficção, onde cada leitor pode encontrar elementos novos dos quais podem ser extraídas comparações com o direito. Quando analisamos a mudança paradigmática ocorrida a partir da “positivação” do Animalismo, é possível extrair várias lições aplicáveis às concepções jurídicas. Entre elas, o quanto a vinculação às instituições, aos ideais e à estrutura do paradigma anterior barra a concretização de um novo sistema. E no caso prático, exposto ao longo do item “A revolução do direito e “A revolução dos bichos”: A mudança de paradigmas” também é possível verificar que ainda estamos vinculados a muitos dos conceitos primados pela racionalidade científica. A importância de ter-se claro o tempo do direito, e as necessidades primadas pela sociedade, é o que vai direcionar a criação de mecanismos, de instituições que sejam eficazes para concretizar os direitos. As relações sociais e jurídicas vão se transformando ao longo do tempo, a forma de tutela estatal e das próprias instituições jurídicas precisam se adaptar às transformações. Muitas concepções próprias do sistema anterior terão que ser superadas. Da mesma forma, o Estado Democrático de Direito visa o rompimento com as premissas do Estado Liberal, entretanto, não raras vezes, observa-se ainda um sistema legal repleto de decisionismos e discricionaridades, que atentam contra o próprio regime democrático e demonstram, em última instância, uma baixa constitucionalidade. Portanto, é necessário, sobretudo que as normas constitucionais sirvam, de fato, como balizas para todo o ordenamento jurídico, tendo em vista sua inexorável força KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 239 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 normativa e que, para tanto, qualquer mecanismo de modificação de quaisquer diplomas legais seja observado com cautela, para que não se ponha em risco o Estado Democrático de Direito e a Constituição Federal, que primam pela concretização de direitos e garantias fundamentais, visando o bem-estar comum. E isto pressupõe a superação do positivismo pela compreensão hermenêutica do direito e, em última análise, verdadeira reformulação do paradigma jurídico pátrio. REFERÊNCIAS ABRÃO, Carlos Henrique. Processo eletrônico: lei 11.416 de 19 de dezembro de 2006. 2. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2009. ATHENIENSE, Alexandre. 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Tal forma de tratar o direito acarreta numa completa dissociação entre o mundo jurídico e o mundo real, sendo que o primeiro passa a ser visto apenas como meio de satisfazer as suas ambições arrivistas e de seus colegas. Porém, ao ver-se diante da morte, as angústias de Iván Ilitch quanto ao sentido de sua vida nos proporcionam contestar também sua visão restrita e hegemônica acerca do direito, frequentemente empregada de forma monótona pelos operadores jurídicos. PALAVRAS-CHAVE: Tolstói; hegemonia; monotonia; direito. 1 INTRODUÇÃO: ENTRE AUTOR E PERSONAGEM Em 1886, ano de publicação da novela A morte de Iván Ilitch3, Tolstói era já um autor consagrado e reconhecido nacional e internacionalmente. Mais do que isso, o 1 2 3 Acadêmico do 8º semestre do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS, com estágio de doutoramento na Universidade de Coimbra, Portugal. Mestre em Direito pela mesma IES. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria. Atualmente é Professora da IMED Escola de Direito e Professora Adjunta do Departamento de Direito da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Tolstói havia começado a escrever a obra ainda em 1881 e, após tê-la deixado de lado em 1883, retomoua no ano seguinte (BARTLETT, 2013, p. 381). KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 242 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 escritor já havia passado por incontáveis experiências, empreendido múltiplos projetos e modificado diversas vezes sua forma de enxergar o mundo – especialmente no que tange às relações humanas, que sofriam agudas transformações na Rússia do século XIX. Seu ímpeto acentuado e a desmedida paixão que colocava em suas realizações podem ser, ao menos em parte, explicados por algo que o próprio Tolstói identificava como uma qualidade de sua família: dikost – vocábulo com significados variados na língua russa. Ainda que o termo possa ser mais bem traduzido por “espírito selvagem”, excentricidade ou estranheza – atributos normalmente relacionados a indivíduos antissociais – Tolstói o definia de forma positiva, como “paixão e ousadia, ardor e veemência”, algo que “denotava originalidade e independência de pensamento, bem como a propensão para fazer o contrário do que fazem todas as outras pessoas”.4 Não deixa de ser elucidativa da presença desta qualidade a imensa dificuldade de se enquadrar a obra do escritor, seja no todo ou em singularidades, dentro de alguma escola ou movimento literário – seu estilo único costuma levar à conclusão de que Tolstói era, mais do que qualquer coisa, um “tolstoísta”. Aos 58 anos de idade, quando conclui A morte de Iván Ilitch, Tolstói já havia passado de nobre aristocrata que frenquentava requintados bailes e perdia fortunas em mesas de jogo a sectário religioso preocupado com a educação dos camponeses, classe marcada pelo estigma da servidão. Neste ínterim, entre outras atividades paralelas, estudou direito (não chegando, no entanto, a concluir o curso), serviu ao exército russo (momento em que escreveu os Contos de Sebastópol, que lhe granjearam fama de escritor na Rússia), publicou os célebres Guerra e paz e Anna Kariênina (que o lançaram à consagração), escreveu uma Cartilha com um método inovador de ensino voltado especialmente à erradicação do analfabetismo camponês, traduziu e interpretou os Evangelhos e, sobretudo, tornou-se uma espécie de “czar espiritual”, a 4 Ibid., p. 74. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 243 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 quem o governo russo cautelosamente vigiava, incapaz de responder de forma enérgica a suas constantes afrontas.5 Ao relevar tais informações, percebe-se que a importância de contextualizar o histórico do autor – fundamental para a compreensão de uma obra literária – possui, no caso de A morte de Iván Ilitch, uma interessante particularidade. É possível afirmar que, em maior ou menor medida, a história de vida do personagem que protagoniza a novela parece ser uma verdadeira antítese daquilo que foi a vida de seu autor. Enquanto vemos Iván Ilitch idolatrar a alta sociedade e copiar fielmente seus costumes, Tolstói refuta os hábitos aristocráticos e busca uma aproximação constante com o estilo de vida camponês. Se, de um lado, o personagem busca uma vida marcada pela leveza e pelo decoro, o escritor, de outro, clama por confronto e por mudanças. Estas considerações iniciais, tanto como outros paralelos entre autor e personagem a serem desnudados ao longo deste artigo, contribuem para que lancemos luz sobre a vida deste juiz simples e obtuso a quem Tolstói imprimiu, além de uma personalidade essencialmente contrária a sua, o nome de Iván Ilitch. 2 A SAGA BUROCRÁTICA DE IVÁN ILITCH Se Tolstói, como dissemos, orgulhava-se de seu modo de pensar e agir de forma diferente aos demais, Iván Ilitch, por sua vez, não se envergonha de trilhar o mesmo caminho que fora seguido por seu pai. Este último, incompetente para exercer qualquer função substancial e não podendo ser demitido pelo governo, recebia “postos inventados e fictícios, percebendo vencimentos em rublos não fictícios”6. Eis aqui o primeiro aspecto marcante na narrativa da vida do personagem: a linearidade de sua história, intimamente ligada a de seu pai. Embora ao longo da obra seja possível inferir 5 6 Talvez porque temesse reações adversas, o governo jamais ousou prender Tolstói – diferentemente do que fez com diversos amigos e colaboradores do escritor. TOLSTÓI, 2011, p. 29. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 244 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 que Iván Ilitch talvez não fosse tão burocraticamente inútil como seu progenitor o era, não irá se perceber “nenhuma evolução no sentido humano”7. Característica fundamental de Iván Ilitch é a constante ideia de mediocridade que atravessa praticamente toda a sua vida, a começar pelo fato de que era o segundo entre três filhos, nem “tão frio e metódico como o mais velho nem tão impetuoso como o caçula”8. Iván Ilitch coloca-se, entre o irmão mais velho, que está prestes a assumir a mesma situação do pai, e o mais novo, que fracassara em diversos empregos e era ignorado pela família, como um perfeito termo médio entre os dois, equilibrado e correto. Com efeito, ao longo de sua carreira este estigma da mediania irá prendê-lo de tal modo que o desestimulará a buscar o real sentido de sua própria vida, que passa a ser uma eterna cópia das maneiras, das ações e dos pontos de vista das pessoas consideradas importantes. Assim, sem se dar conta, Iván Ilitch se converte em padrão, adotando um modo de vida comum em todos os aspectos, impossível de ser destacado em meio à multidão de indivíduos que o circunda. Tal efeito fica evidente no seguinte trecho, onde Tolstói – ao narrar a decoração da casa realizada pelo personagem – também lança uma crítica sagaz à aristocracia russa de posições inferiores: Na realidade, isso é o que acontece com todas as pessoas que não são muito ricas, mas que querem se parecer com os ricos e, por isso, só ficam parecidas umas com as outras: tapeçaria, madeira negra, tapetes e bronzes, o escuro e o brilhante – tudo aquilo que todas as pessoas de certo tipo fazem para ficarem parecidas com todas as pessoas de certo tipo. E aqui, com ele, era tudo tão parecido que não dava sequer para chamar a atenção, mas para ele tudo isso parecia algo muito especial.9 A fim de saciar seus desejos arrivistas, Iván Ilitch adere ao serviço burocrático – para um homem da sua condição, cuja linhagem familiar não pertence à nobreza, o único meio possível para conquistar riqueza. 2.1 7 8 9 Os “homens novos” BEZERRA, 2010, p. 139. TOLSTÓI, 2011, p. 30. Ibid., p. 47. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 245 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Se, quando ainda na faculdade, Iván Ilitch “cometera atos que na época lhe pareciam grandes imundícies”10, a partir do seu primeiro emprego a aprovação dos extratos sociais mais elevados e a tentativa de fazer com que sua vida transcorra da forma mais agradável possível passam a ser os únicos dois princípios que norteiam sua conduta. Desde logo, Iván Ilitch começa a mostrar pontualidade, honestidade e decoro, além de uma enorme “habilidade de separar o lado oficial, sem misturá-lo com sua vida real”11, qualidades muito apreciadas na burocracia e que o levarão a progredir rapidamente na carreira. Após concluir seus dez longos anos de estudos em Direito, Iván Ilitch parte para a província, onde assume o posto de funcionário do governador, conseguido por indicação do pai. Ironicamente, um dos encargos assumidos pelo personagem é o de cuidar de causas envolvendo dissidentes religiosos – perseguidos pela Igreja Ortodoxa Russa, esses numerosos grupos contavam com grande apoio de Tolstói, ele próprio um dissidente12. O contato com os dissidentes é também significativo por ser a única situação em que Iván Ilitch terá a sua frente indivíduos cujo estilo de vida excêntrico é incapaz de despertar nele qualquer admiração. Nos cargos seguintes, o personagem terá diante de si pessoas cada vez mais importantes, o que lhe proporcionará uma sensação de poder bastante peculiar. Mesmo que em seu posto provinciano, quando lidava com pessoas consideradas inferiores por ele, as tratava amigavelmente, sem “246anda246-las”, cinco anos depois, ao assumir o cargo de juiz de instrução, Iván Ilitch passa a sentir que, [...] sem exceção, todas essas pessoas importantes, autossuficientes, estavam em suas mãos; e que bastaria apenas escrever certas cartas num papel de cabeçalho oficial para que uma pessoa importante, autossuficiente, fosse trazida à sua presença na qualidade de acusado 10 11 12 Ibid., p. 30. Ibid., p. 49. É ilustrativo o fato de que Tolstói teve papel fundamental na migração de mais de 7.500 integrantes da seita dos Dukhobors – vítimas de perseguição religiosa na Rússia – para o Canadá. Além de ajudar a arrecadar fundos junto a colaboradores, o escritor custeou boa parte do valor necessário para a viagem graças aos royalties oriundos da publicação de seu último romance, Ressurreição (BARTLETT, 2013, p. 467-468). KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 246 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 ou de testemunha; e essa pessoa, caso ele não quisesse 247anda-la sentar-se, ficaria de pé diante dele, respondendo às suas perguntas.13 Talvez porque abusar de seu poder fosse algo indecoroso, mal visto pela sociedade, Iván Ilitch gostava de atenuar sua importância em relação às demais pessoas, guardando somente para si toda a satisfação que o poder latente pode proporcionar ao ocupante de um importante cargo14. Contudo, na transição de Iván Ilitch para o cargo de juiz de instrução, talvez o fato mais relevante seja a motivação para que tal promoção acontecesse. De acordo com a narrativa, haviam sido criadas novas instituições judiciárias, onde “eram necessários homens novos”15. A criação de tais instituições guarda íntima relação com as reformas liberais implantadas pelo czar Alexandre II, iniciadas sobretudo em razão do novo panorama social estabelecido desde que a servidão da gleba fora abolida, em 1861. Uma dessas “Grandes Reformas” – conforme ficaram conhecidas – foi a do sistema legal russo, que, a partir de 1864, ganhou feições mais ocidentais, com a instituição de novos tribunais e a proeminência de figuras até então desconhecidas, tais como advogados e outros profissionais da área jurídica. Anos depois, quando se viu forçado a comparecer em juízo diante de “um jovem insignificante e pretensioso que cerceava suas liberdades”16 e que o responsabilizou pela morte suspeita de um camponês de Iásnaia Poliana17, Tolstói demonstrou profundo desagrado pelo novo ordenamento jurídico da Rússia. Na ocasião, revoltado com as novas leis e instituições, chegou a começar um artigo onde expressaria seu total desprezo por elas – mas acabou por abandoná-lo18. 13 14 15 16 17 18 Ibid., p. 34. Poucas coisas desagradavam tanto a Tolstói, um pacificista, como uma autoridade que abusava do exercício de seus poderes. Este tema é tratado especialmente na última fase de sua obra de ficção, sendo talvez no conto Depois do baile, publicado postumamente, onde seu desprezo por esta espécie de despotismo se revela com maior contundência. Ibid., p. 33. BARTLETT, 2013, p. 288. Embora tenha intercalado períodos morando em Moscou ou São Petersburgo, Tolstói viveu praticamente toda a sua vida em Iásnaia Poliana, propriedade que recebeu como herança. “As novas leis e sua aplicação” seria o nome deste artigo. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 247 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Em sentido contrário ao da indignação de Tolstói, Iván Ilitch aproveita-se das reformas liberais da melhor forma possível, colocando-se como um dos “homens novos” de que o governo tanto necessitava. Neste âmbito, é provável que o fato do personagem possuir ares de um liberalismo comedido não seja mera coincidência, mas carregue certo tom de crítica por parte do autor – afinal, o novo sistema jurídicoadministrativo russo que tanto o desagradara era composto fundamentalmente por adeptos de concepções liberais, os quais jamais ousariam, todavia, por em dúvida a autoridade do czar. Embora seja muito improvável que Tolstói tenha se inspirado no juiz19 que o colocou sob prisão domiciliar pelo suposto assassinato de um camponês ao criar Iván Ilitch, o personagem pode bem representar o tipo de autoridade que o escritor repudiava: [...] Iván Ilitch logo adquiriu o hábito de afastar de si todas as circunstâncias alheias ao serviço, e circunscrever o mais complicado dos casos de tal forma que ele só externamente se refletia no papel, excluindo totalmente seu ponto de vista pessoal e, sobretudo, observando todas as formalidades exigidas. Isso era coisa inteiramente nova. E ele foi um dos primeiros a colocar na prática o apêndice dos Códigos de 1864.20 Pioneiro, Iván Ilitch emerge como símbolo das novas reformas do sistema legal russo. Mas essa novidade parece de certa forma contaminada com algo bem anterior a ela, que a reprime e a modifica, impedindo que ela seja, de fato, “nova”. Iván Ilitch, ao mesmo tempo em que se coloca como um “homem novo”, na verdade é um homem com opiniões previamente formuladas e uma filosofia de vida imutável, e que acaba por aplicar suas restritas concepções acerca da vida também no âmbito de seu trabalho. Sua tarefa como juiz, da mesma forma que sua vida, tem de ser agradável, sem espaço para dúvidas ou angústias. E esse modo de lidar com a função que lhe é delegada, nos faz ver Tolstói, parece estar muito longe daquilo que os cidadãos russos realmente necessitavam. O sistema vigente precisava apenas de homens novos, não de homens 19 20 Na verdade, tudo indica que Tolstói tenha se inspirado em Iván Ilitch Miétchniknov, “um promotor de justiça que falecera de câncer em 1881, aos 45 anos” (ALMEIDA, 2011, p. 62). TOLSTÓI, 2011, p. 34. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 248 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 inovadores. Assim, muito embora as instituições houvessem mudado, e até mesmo as formalidades já não fossem as mesmas, nada de essencial parece mudar entre o que faz Iván Ilitch e aquilo que seu pai fazia, transformando o serviço burocrático numa eterna continuação do mesmo. 2.2 Sistema injusto ou indivíduo injustiçado? Ao encontrar uma moça “agradável, bonitinha e absolutamente correta”21 que se enamora dele, Iván Ilitch, ainda que sem demonstrar intenções muito claras, decide por casar-se. O casamento, que lhe parecera tão conveniente no princípio, origina, entretanto, situações complexas e penosas. Especialmente após a gravidez de Prascóvia Fiódorovna, sua mulher, Iván Ilitch percebe que o ambiente familiar é lugar de discussões frequentes, de problemas, de angústias – coisas com as quais ele jamais se deparara nas relações sociais advindas do pequeno círculo social que frequentava, onde inclusive conhecera sua esposa. Como forma de escapar dos constantes e cada vez mais insuportáveis conflitos dentro de casa, Iván Ilitch busca refúgio no trabalho, único local onde ainda era possível preservar “a independência do seu próprio mundo”.22 É somente através do serviço público que o personagem resgata seu ideal de uma vida leve e agradável que, diga-se de passagem, era “considerado por ele como próprio da vida em geral”.23 Durante dezesseis anos, Iván Ilitch concentra a maior parte de seu interesse no serviço público, o que parece ser uma fórmula infalível a fim de garantir a tranquilidade que almeja. É quando então sofre um primeiro golpe, justamente no ambiente do trabalho, lugar até então insuspeito como fonte de preocupações: Já era um velho procurador, que recusara diversas transferências aguardando um posto mais desejável, quando, inesperadamente, surgiu uma circunstância desagradável que quase abalou a tranquilidade de sua vida. Iván Ilitch esperava por um cargo de presidente numa cidade universitária, mas Hoppe, não se sabe como, passou-lhe à frente e conseguiu esse posto. Iván Ilitch irritou-se, pôs21 22 23 Id., p. 36. Id., p. 37. Id., p. 36. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 249 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 se a censurá-lo e acabou por desavir-se com ele e com a chegia mais imediata. As relações esfriaram e, na promoção seguinte, ele foi novamente ignorado.24 Coincidentemente, no mesmo ano, Iván Ilitch constata que seu salário já não dava conta de suas despesas, e, juntando os dois fatos como se conexos fossem, se sente vítima de enorme injustiça. Ao ser ultrapassado na promoção que julgara ser-lhe devida, havia sido abandonado por todos, fossem chefes ou familiares – nem seu pai reconhece qualquer obrigação em ajudá-lo. No verão, Iván Ilitch parte com a mulher rumo à aldeia de seu cunhado – a fim de evitar possíveis interpretações de que o personagem tenha se retirado para o interior a fim de procurar sossego e reflexão para sua vida, o narrador já assevera que o motivo da viagem era apenas aliviar despesas. Pouco afeito ao ambiente bucólico, acaba por entediar-se rapidamente. O tédio evolui aos poucos para uma angústia terrível e, antes que ela o consuma, Iván Ilitch resolve tomar uma atitude a fim de que o estado de coisas não permanecesse o mesmo. Cansado de lamentar sua própria sorte, parte para Petersburgo com o intuito de arrumar um cargo com melhor salário, não importava em que ministério ou departamento fosse. Por obra do acaso, a viagem é bem sucedida: Iván Ilitch consegue um posto cujos vencimentos superam suas expectativas, e então, da mesma forma súbita com que aparecera, esvai-se “todo o ressentimento em relação aos seus antigos desafetos e a todo o ministério”.25 A consciência do personagem em relação a seu revés, bem como a lição proporcionada pelo seu posterior sucesso, formam, juntos, um elemento essencial para compor o quadro de sua personalidade, e que servirá muito bem como aporte para a reflexão a ser proposta. Em momento algum Iván Ilitch cogita se o sistema é, em si, justo ou injusto. Ele se considera injustiçado, mas considera que o sistema está posto e que seu funcionamento não guarda qualquer relação com um fato cuja causa é, para ele, um infortúnio absolutamente individual. Assim, tão logo recebe um ótimo cargo e as coisas voltam ao normal, a consciência da injustiça sofrida, em função de um mero 24 25 Id., p. 41. Id., p. 43. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 250 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 acaso, se desfaz – quem antes o humilhara, agora distribui-lhe lisonjas. Com um novo cargo, numa nova cidade, Iván Ilitch sente-se, enfim, feliz – ainda que tal felicidade somente signifique ter aquilo que já era de se esperar. 2.3 Alienação de si mesmo Superado o episódio da promoção devido às circunstâncias extremamente favoráveis, Iván Ilitch pode enfim viver com o conforto pelo qual ansiava – além de menos angústias, havia mais dinheiro. Encontra uma casa encantadora para morar na nova cidade, tão adequada quanto ele e sua mulher poderiam imaginar – “como se tudo tivesse sido planejado de propósito para eles”26, narra Tolstói com um breve acento irônico. A partir daí, entrega-se à arrumação do lar, em seus mínimos detalhes. Milhares de rublos são gastos em móveis, tapeçarias, bronzes. Incapaz de elevar sua própria personalidade, mas ávido por destacar-se de alguma forma perante seus pares, Iván Ilitch entrega-se ao “culto dos objetos materiais e do conforto”27, e reencontra nesta atividade muito da satisfação que há algum tempo lhe fugira. Antes o trabalho, agora o planejamento e a decoração da casa – é sempre premente a necessidade de Iván Ilitch em se concentrar em algo, mas desde que essa fixação recaia sobre um objeto valorizado aos olhos da alta sociedade. Assim, embora o objeto de interesse não seja o mesmo, o processo de alienação é bastante semelhante àquele operado no âmbito do serviço burocrático, estrutura monótona que dispensa personalidades. Por meio de mobílias, tapetes e cortinas, Iván Ilitch se reifica – assume a forma daquilo que compra. Graças a essas preocupações materiais, somadas às práticas cotidianas no trabalho, onde simplesmente “lia documentos, examinava processos, confrontava depoimentos e aplicava as leis”28, Iván Ilitch não apenas transforma o direito num lugar estéril, mas também “extingue-se como individualidade 26 27 28 Id., p. 44. BEZERRA, 2010, p. 144. TOLSTÓI, 2011, p. 49. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 251 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 e esteriliza-se como agente de sua própria vontade”.29 Inteiramente alheio a esse fenômeno, escreve à esposa: “sinto que rejuvenesci uns quinze anos”.30 3 A PROCURA POR DIAGNÓSTICOS A esta altura dos acontecimentos, a narrativa certamente já permite ao leitor uma estimável tomada de consciência acerca das situações narradas e o que elas representam – o leitor mais consciente até mesmo já as relacionou com sua própria vida. Mas isto, embora seja um dos objetivos de Tolstói, não é o suficiente: é preciso que o personagem, também ele, tome consciência de sua situação. E então o gênio do escritor se encarrega de fazer com que uma experiência profundamente reveladora comece a partir de um incidente aparentemente patético. Ao subir uma escada enquanto mostrava ao tapeceiro o jeito como queria o drapeado da cortina, Iván Ilitch sofre uma queda à primeira vista insignificante, mas posteriormente fatal. Tudo começa com um mal-estar, que evolui para um constante desconforto, que acarreta um terrível mau-humor, que afeta as relações com as outras pessoas, que por sua vez provoca angústias – o que também desencadeia uma dor aguda – até que, ao final de tudo, quando finalmente dá por si, nosso juiz da Corte Judiciária já está em seu leito de morte, sem muito compreender de que forma chegara até ali. No decorrer dos últimos nove capítulos da novela, Iván Ilitch vê o mundo que construiu a sua volta desmoronar por completo em razão, por incrível que lhe pareça, de uma insignificante cortina. Mas, antes de analisarmos a questão da morte, de importância fundamental no contexto da obra, faz sentido que se coloque a seguinte pergunta: que mundo foi esse que Iván Ilitch supostamente construiu? As características apontadas no capítulo anterior poderão ser úteis para compreender o processo de formação não só do mundo fictício de Iván Ilitch, como do mundo jurídico em geral, que com o primeiro demonstra notável semelhança. 29 30 BEZERRA, 2010, p. 141. TOLSTÓI, 2011, p. 46. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 252 ANAIS DO II CIDIL 3.1 V. 2, N. 1, JUL. 2014 A sensação de vazio Havíamos começado por destacar a questão da novidade – ou, melhor dizendo, da ausência de inovação. O sistema que aliena Iván Ilitch em seu presente – e que também o conecta ao passado de seu pai, em razão de sua linearidade – parece tão hermeticamente perfeito, tão cheio de si, que qualquer tentativa de interferir em seu funcionamento soa como perda de tempo. Basta notar que nem Iván Ilitch, nem qualquer um de seus colegas, sequer cogitam algo do tipo – optam, isso sim, pelo liberalismo vazio típico dos altos círculos sociais. Parte desta engrenagem imutável, o meio jurídico aparece não como um lugar de construção de sentidos, mas como um território vazio – como a mente daqueles que o alimentam – a ser facilmente colonizado pela burocracia e suas formalidades. O direito emerge como mera forma de estabilizar as expectativas de um grupo dominante que se traduz, superficialmente, por “hábitos e valores estéticos”31, os quais Iván Ilitch, atraído “como uma mosca pela luz”32, desde muito cedo procura copiar. A visão do Outro, daquele que não faz ou não quer fazer parte do sistema, visão esta fundamental para que se introduza algo de verdadeiramente novo no direito, inexiste para Iván Ilitch. Quando dirige seu olhar aos demais indivíduos, só consegue divisar pessoas iguais a ele. Tolhido de sua personalidade, acaba por ver nos outros somente a si mesmo e, quando procura o que seria a própria essência de seu ser, não enxerga ninguém. No tribunal onde trabalha, para todas as direções que se aponte, Iván Ilitch só avista homens “novos” como ele, agindo da mesma forma, de acordo com os mesmos hábitos, seguindo os mesmos costumes – e considera tudo isso perfeitamente adequado. Para ele e seus colegas, o Outro é uma figura assaz distante, que só serve, quando muito, para elucidar a lógica de Kiesewetter33 (eles, contrariamente, jamais poderiam se imaginar substituindo Caio na equação mortal). 31 32 33 BEZERRA, 2010, p. 144. TOLSTÓI, 2011, p. 30. “Caio é um homem, os homens são mortais, portanto Caio é mortal” (Id., p. 69). KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 253 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 À exceção dos encontros com os dissidentes religiosos que anteriormente mencionamos e dos quais não há qualquer relato minimamente preciso, a narrativa não nos proporciona inferir qualquer espécie de contato, fora dos trâmites burocráticos, entre Iván Ilitch e aqueles que se encontram sob seu poder de decisão. O único direito que Iván Ilitch e seus colegas conhecem é o da sala de audiências ou das páginas dos processos – locais onde o direito termina, mas onde jamais começa. Este direito estéril, que refuta o contato com a realidade porque o considera desnecessário, este direito que se autolegitima na repetição de suas próprias práticas, é o direito das meras formalidades burocráticas, que nada de novo tem a prescrever para os problemas dos indivíduos, senão equacioná-los e redistribuí-los. Com efeito, a imperfeição deste método se revelará diante de Iván Ilitch por ocasião de sua doença, que pode ser concebida como espécie de metáfora para demonstrar a decrepitude do sistema que alimenta. 3.2 O processo fatal Ao tratar com um médico à procura de um diagnóstico para a doença que lhe aflige, Iván Ilitch tem um lampejo de consciência que, mesmo incipiente, é suficiente para ao menos desestabilizar suas antigas seguranças e reavaliar suas próprias ações. Tal episódio é contado pelo narrador da seguinte forma: Tudo se deu como ele esperava; tudo aconteceu como sempre: tanto a espera como os empolados modos doutorais, seus velhos conhecidos, aqueles mesmos que ele próprio assumia no tribunal, e a apalpação, e a auscultação, e as perguntas que exigiam respostas já conhecidas e obviamente desnecessárias, e ao ar significativo que queria dizer ‘trate de submeter-se que nós cuidaremos do assunto, nós cá sabemos sem sombra de dúvida como resolver tudo, e resolvemos de uma única forma qualquer que seja a pessoa’.34 Para o juiz ou para o médico, não importa o homem – só importa a conveniência do procedimento a ser adotado. Como Iván Ilitch costumava fazer diante dos réus, agora “o médico famoso posava e representava diante dele.”35 Era ele agora também 34 35 Id., p. 54-55. Id., p. 55. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 254 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 réu, mas num processo muito diferente daqueles em que sabia perfeitamente como proceder: no processo de sua própria vida. Vieram outros médicos, mais ou menos famosos, mas todos eles diziam a mesma coisa: pode ser um apêndice, um rim flutuante, não se descarta também outra coisa – aos ouvidos do doente, tudo quanto eles diziam soava como nada. Receitados diversos medicamentos, empreendidos vários tratamentos, ainda restava algo de incurável – senão no corpo, talvez na alma. Através dos médicos, Iván Ilitch sequer soube se seu caso era ou não grave: foi sabê-lo apenas por experiência própria. E é também através de uma espécie de delírio, trazido pela dor e pela insônia, que o personagem descobre a verdadeira natureza do mal que lhe atormenta: Não é do apêndice, nem do rim, que se trata. Trata-se da vida... e da morte. Sim, houve a vida, e eis que ela se esvai, vai-se embora e eu não posso segurá-la. Para quê me iludir? Pois não está evidente para todos, menos para mim mesmo, que estou morrendo, que tudo é apenas uma questão de semanas, dias; ainda hoje, quem sabe? Havia luz e agora são trevas. Eu estava aqui, e agora, para lá!36 Após um duro processo de aceitação da morte, Iván Ilitch concebe-a como mais do que o fim da vida, ponto de vista pouco tradicional em seu meio. Com a ajuda de Guerássim, o camponês de ar leve e aparentemente ingênuo37 despojado da falsidade dos indivíduos entregues aos caprichos do decoro injustificável, Iván Ilitch enxerga sua proximidade com a morte como a oportunidade de desconstrução das coisas pelas quais vivera. Entre o sistema, que lhe imprimiu determinados hábitos e costumes, e a família, que cresceu à sua imagem e semelhança, Iván Ilitch coloca-se ao mesmo tempo como produto e como legitimador de um modo de vida que nunca achou por bem questionar – por definição, um modo de vida hegemônico. Como bem constata Paulo Bezerra, “família e burocracia, juntas, fazem parte de um mesmo sistema de valores, do mesmo 36 37 Id., p. 66. Como bem interpreta Gramsci, “característico em Tolstói é precisamente que a sabedoria ingênua e instintiva do povo, enunciada mesmo através de uma palavra casual, ilumine e determine uma crise no homem culto” (GRAMSCI, 2002, p. 119). Tal expediente é retomado, por exemplo, na novela Senhor e Servo, onde o proprietário de terras Vassili Andrêitch morre de frio em meio a uma nevasca na estrada, mas, devido ao calor de seu corpo, acaba por salvar a vida de seu serviçal, Nikita. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 255 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 ciclo da morte no qual Iván Ilitch imolou-se em vida”.38 Criado longe desse sistema funesto, Guerássim é o único ser humano que o protagonista deseja ter ao seu redor, dispensando até mesmo a presença da mulher junto ao seu leito de morte: “Sai! Sai! Deixa-me”39, diz a ela. Em razão do terrível diagnóstico feito por sua própria conta, Iván Ilitch prescreve a si mesmo, como uma espécie de cura, o total afastamento de tudo que remeta ao modo como vivera. Deste modo, supera a banalizada concepção de morte recorrente em seu antigo círculo social, “onde ela é reduzida a um desagradável acaso, a algo indecente que só provoca dor e pavor.”40 Sem que houvesse tempo hábil para curar sua vida, o que resta é conquistar uma morte que seja verdadeiramente sua, de um modo como a vida, agora perdida, nunca fora: [...] só depois de se sentir bem consigo mesmo, de reencontrar sua real essência humana e superar a dor e o pavor da morte é que [Iván Ilitch] conquista sua própria concepção de morte e consegue morrer. Tem sua própria morte, sem afetação macabra, natural, totalmente contrária à outra morte concebida em seu meio.41 Através do raciocínio que compara o diagnóstico da doença de Iván Ilitch ao diagnóstico do sistema mórbido que se apropriou de sua vida e retirou sua essencialidade humana, abre-se a possibilidade de se tecer algumas considerações acerca do papel relegado ao direito em meio a esta encenação dramática. Quaisquer ponderações desta natureza estão, evidentemente, à sombra de meras interpretações da obra, em que pese as circunstâncias aludidas no primeiro capítulo. Bem antes de questionar o direito vigente, a novela de Tolstói tem a clara intenção de trazer ao leitor um homem cuja história de vida é “a mais simples e comum, e a mais terrível”.42 Porém, 38 39 40 41 42 BEZERRA, 2010, p. 138. TOLSTÓI, 2011, p. 100. BEZERRA, 2010, p. 148. Id., ib. TOLSTÓI, 2011, p. 29. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 256 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 se o fato de Iván Ilitch ser um profissional da área jurídica constitui ou não um puro acaso isso é algo que, na presente análise, pouco nos interessa.43 Nosso intuito a partir de agora é, com base nos apontamentos anteriores, ligar alguns dos pontos existentes entre narrativa e realidade, entre o trabalho realizado por Iván Ilitch e a aplicação do direito de um modo mais geral. Para tanto, faz-se imperiosa uma breve abordagem em relação a aspectos da teoria jurídica, fazendo-se referência, sobretudo, à introdução da problemática da hegemonia no estudo do direito. 4 A HEGEMONIA NO DIREITO A noção de hegemonia, aqui empregada a partir de uma perspectiva gramsciana, se refere a uma Weltanschauung (visão de mundo) que exerce uma espécie de dominação sobre as preferências de um grupo de indivíduos, e que se consolida através da prática permanente levada a efeito pelos mesmos agentes que são por ela orientados. Em outras palavras, a hegemonia pode ser expressa como um processo sutil de dominação onde os próprios “dominados” contribuem para que o mesmo se mantenha, na medida em que simplesmente reproduzem aquilo que lhes é prescrito – ideologias, costumes, juízos morais etc. Ainda que pareçam antiquíssimas, oriundas de tempos imemoriais, tais práticas são muitas vezes oriundas de contextos específicos recentemente formados, e é tão somente a exaustiva repetição com que são empregadas que lhes sedimenta. Disseminada por diversas fontes, na arte, na economia, na política e até mesmo no direito, a hegemonia é uma espécie de substância invisível – como uma doença que foge a qualquer possibilidade de diagnóstico. A fim de que sejam obedecidos, os hábitos e costumes reproduzidos por Iván Ilitch, por exemplo, não advém de um manifesto poder coercitivo. Entretanto, onde a hegemonia é mais fortemente sentida – como no recém reformado judiciário russo do século XIX – as práticas dominantes tendem a se 43 De fato, nem mesmo ao personagem isso parece interessar, como já anteriormente mencionamos por ocasião de sua viagem à Petersburgo: “Viajava com um só fim: conseguir um posto de cinco mil rublos de ordenado. Ele já não se atinha a nenhum ministério, diretório ou tipo de atividade. Só procurava um cargo, um lugar para ganhar cinco mil rublos [...]” (Id., p. 42). KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 257 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 consolidar de tal forma que passam a valer quase como lei, e então dificilmente alguém se mostra capaz de contestá-las. Considerando que o direito, “como a moralidade, a religião, ou a cultura, encontra-se em sua totalidade na esfera do ideológico”44, a suposta neutralidade assumida por Iván Ilitch no exercício do cargo é, na verdade, um posicionamento a favor das formas dominantes – ou seja, por mais que pareça vazia, não é totalmente desprovida de conteúdo. Mesmo que carregue o espectro da neutralidade, a prática jurídica, em cujo emprego burocrático Iván Ilitch se revelará um mestre, “gera entre os sujeitos uma concepção específica sobre a maneira correta de viver, sobre o que é o direito”.45 Ao condenar o mundo exterior que jamais teve a curiosidade de conhecer, desprezando-o como uma desnecessária perturbação do decoro, Iván Ilitch está de fato afastando a possibilidade de se pensar além do que está posto pelo sistema. Aquilo que está mais próximo da natureza, e portanto mais complexo e incalculável do que a lei criada pelos homens, não cabe na funesta ritualística judiciária que emprega. Com efeito, seria um erro acreditar que Iván Ilitch, individualmente, pensa o direito desta ou daquela maneira. Iván Ilitch enxerga o direito através da maneira que crê ser a única existente, a mesma que todos ao seu redor não cansam de compartilhar. Seguindo este raciocínio, quem pode dizer que seu ideal de uma vida agradável contém qualquer imperfeição? Obviamente ninguém que reconhece seu sucesso na carreira poderia dizê-lo. Mas então se contrai uma doença misteriosa e se procuram inúmeros médicos, todos eles indiferentes às suas aflições. A esta altura, Iván Ilitch tem diante de si a seguinte questão: afinal, não têm eles também o direito de executar seu trabalho da forma mais agradável possível, sem realmente se preocuparem com a saúde dos doentes que lhes acorrem? Iván Ilitch se submete às suas práticas, e acha que todas elas não passam de encenações fajutas, irritantemente monótonas – mas, e seus procedimentos como juiz, o que são eles senão o lamentável exercício da manutenção do mesmo? Se para o 44 45 BUCKEL; FISCHER-LESCANO, 2009, p. 474. Id., p. 481. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 258 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 médico “tanto fazia, que ele, Iván Ilitch, estivesse mal”46, que mais se poderia fazer? O que é o direito, ou a medicina, quando os homens não importam? A aplicação da teoria da hegemonia no direito parece ser capaz de fornecer ao menos uma resposta. Quando o homem não importa, certamente algo superior a ele deve importar. A tarefa principal consiste então em determinar o que importa – no caso de Iván Ilitch, seu modo de viver agradável e decoroso. Mas isso, conforme já sublinhamos, não é matéria inata de sua personalidade, ou então nada teria lhe parecido uma “imundície” nos tempos da Faculdade de Direito. Por mais que réus e processos sejam diferentes, torna-se preciso manter o foco. A hegemonia assume o papel de direcionar o interesse de seus agentes para aquilo que considera essencial. Seu recado parece ser: “preocupe-se com os rublos, com a decoração da casa, com o drapeado da cortina” – o trabalho, ao contrário, não é lugar de preocupações, é só fazer aquilo que é de praxe, sem fugir do esperado. E então Iván Ilitch, concentrado no que importa, cai de uma escada, e morre. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A literatura, muito em função de sua capacidade de expressar situações tão amplas (lembremos o absurdo em Camus, os labirintos sem saída em Kafka, ou mesmo o realismo mágico latino-americano), pode ser caracterizada – sobretudo ao se falar em interações próprias da teoria sistêmica – como uma perfeita “observação de segunda ordem”.47 Se a produção de hegemonia é mesmo invisível aos olhos dos que por ela são constrangidos, a literatura emerge como uma lente capaz de revelar suas práticas ou desmistificar suas fontes, sem que seja preciso recorrer, por exemplo, a categorias teóricas próprias das ciências sociais. Ao retratar o real sob um enfoque particular, a obra literária nos mostra que o próprio real, por mais esmagador que seja, “não é senão uma modalidade do possível”.48 46 47 48 Id., p. 55. KORFMANN, 2003, p. 52. OST, 2005, p. 34. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 259 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Tolstói, sobretudo em sua última literatura, se propõe a escrever obras acessíveis aos leitores nos mais distintos estágios de leitura, mas ao mesmo tempo sem deixar de lado seu enorme talento em retratar a condição humana. Neste quesito, A morte de Iván Ilitch é uma novela exemplar, pois possibilita, através de um texto aparentemente simples, diversos níveis de interpretações. O panorama da obra aqui proposto, na esteira das conexões possíveis entre Direito e Literatura, foi balizado, de um lado, pelos significados atribuíveis às ações do sujeito, Iván Ilitch; de outro, pela relação destas com a prática jurídica generalizada, ou seja, o objeto. Com aporte no conceito de hegemonia, tomado a partir de uma releitura de Gramsci, empreendeu-se uma busca pelas fontes do “imaginário jurídico”49 que permeia as práticas de Iván Ilitch e seus pares. Dito imaginário – mais monótono do que imaginativo – pode ser descrito como um lugar estéril, solo infértil que guarda a menor relação possível com a realidade fática. Não somente há uma separação aguda entre real e formal, mas nota-se também uma supervalorização do último em detrimento do primeiro. Diante de uma natureza morta, cuja existência só é percebida quando as funções vitais do corpo começam a falhar, a dogmática aparece como soberana. Neste contexto, o direito emerge como “relação social congelada e opaca”50, de onde nada se pode esperar além da reprodução da mesmice – mesmos hábitos, mesmos métodos, mesmos ritos. Essa monotonia, que não pode ser confundida com a neutralidade, nada mais é do que um produto da cultura hegemônica, cuja capacidade de atuação está sujeita ao trabalho de indivíduos como Iván Ilitch, que sempre procuram evitar incômodos naquilo que fazem. Operadores assépticos do sistema, são eles os responsáveis por difundir a concepção dominante, trabalho que prescinde de qualquer inventividade, e que exatamente por isso pode ser tão agradavelmente executado, sem problemas e sem angústias. Não passa pela cabeça de qualquer um deles, por exemplo, que o direito pode, paradoxalmente, se encontrar fora do próprio 49 50 Noção formulada pelo sociólogo do direito A. J. Arnaud e tomada de empréstimo por François Ost (2005, p. 20). BUCKEL; FISCHER-LESCANO, 2009, p. 479. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 260 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 direito – não só em outras áreas do conhecimento, mas também nas distintas faces do cotidiano. Iván Ilitch é forçado a alimentar o sistema, mas de um modo substancialmente diferente ao do regime servil. Trabalha naquilo que acredita ser o correto, mas que na verdade é tão somente aquilo que os homens bem sucedidos pensam ser o correto. Destituído da imagem de um Outro, paga o preço de, ao se olhar no espelho, não reconhecer a si próprio. Tão certo quanto ao modo como a vida deve correr, somente à hora da morte se mostra capaz de se questionar: “E se de fato toda a minha vida, a vida consciente, não foi ‘como devia ter sido’?”.51 REFERÊNCIAS ALMEIDA, Luiza Nascimento. A representação da morte na obra de Tolstói. 2011. Dissertação (Mestrado em Língua e Cultura Russa) – Universidade de São Paulo, FFLCH, São Paulo, 2011. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8155/tde-16082012-120919/>. Acesso em: 10 nov. 2013. BARTLETT, Rosamund. Tolstói: a biografia. Trad. de Renato Marques. 1. ed. São Paulo: Globo, 2013. BEZERRA, Paulo. Alienação a auto-imolação em “A morte de Ivan Ilitch”. Fragmentos, Florianópolis, v. 21, n. 1, p. 137-149, jan./jun. 2010. BUCKEL, Sonja; FISCHER-LESCANO, Andreas. Reconsiderando Gramsci: hegemonia no direito global. Rev. Direito GV, São Paulo, v. 5, n. 2, p. 471-490, jul./dez. 2009. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. v. 6. KORFMANN, Michael. A literatura moderna como observação de segunda ordem: uma introdução ao pensamento sistêmico de Niklas Luhmann. Pandaemonium Germanicum, São Paulo, v. 6, p. 47-66, 2003. OST, François. Contar a lei: as fontes do imaginário jurídico. São Leopoldo, RS: Unisinos, 2005. TOLSTÓI, Lev. A morte de Iván Ilitch e outras histórias. Trad. de Tatiana Belinky. Barueri: Manole, 2011. 51 TOLSTÓI, 2011, p. 98. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 261 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 A MULHER MACHADIANA ESTREITANDO AS RELAÇÕES ENTRE DIREITO E LITERATURA V ANESSA S ANTOS D E S OUZA 1 S ILVANA M ARIA P ANTOJA D OS S ANTOS 2 RESUMO: A violência contra a mulher perdura ao longo dos séculos como uma espécie de pandemia e um mal banalizado, repassando valores patriarcais e culpando a vítima pelas agressões sofridas – sejam elas físicas ou morais. O tema repercutiu na produção de muitos escritores do século XIX, incluindo Machado de Assis. Assim, com este trabalho objetivamos analisar a violência contra a mulher a partir dos contos Mariana e O relógio de ouro publicados em Jornal das Famílias em 1871 e 1873, respectivamente. Os contos em questão deixam transparecer que a sociedade estruturada nos moldes patriarcal impõe valores, comportamentos e penalidades à mulher que se desviam das normas de conduta. Apesar de o Estado criar medidas de proteção à mulher, na contemporaneidade ainda é grande o número de abusivas violências contra a mulher. Muitas ainda permanecem resistindo à denúncias ou por darem crédito a ineficácia da lei, ou por se resignarem no que julgam inerente a sua condição de mulher. PALAVRAS-CHAVE: direito; literatura; gênero; Machado de Assis. 1 POR QUE DIREITO E LITERATURA? A literatura possui uma plurisignificância que abrange diversas áreas do conhecimento. Mais do que “imitar a vida”, a literatura “antecipa a vida”, quando em uma obra consegue antever acontecimentos sociais, intelectuais ou filosóficos, partindo da premissa da sensibilidade artística. O direito, por sua vez, também se agarra a 1 ² Graduanda do Curso de Letras/Português da Universidade Estadual do Piauí – UESPI. Profª de Literatura de Língua Portuguesa da Universidade Estadual do Piauí – UESPI. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 262 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 diversas pontes do conhecimento, pois ele por si só não efetiva seu objetivo de jurisprudência. Para tanto, a ligação com outras áreas são necessárias: a filosofia, a história, a economia, a lingüística, a psicanálise, a sociologia e a literatura servem para repensar a moralidade e os valores éticos além da normatividade Constitucional. Já a literatura, além dos laços correlatos com as outras áreas citadas acima, ainda dispõe da autenticidade e expressividade individual; por essas vias se percebe que o encontro do direito com a Arte literária institucionalizam um estudo que é conveniente para ambas as mesmas. A literatura denotando uma função social ao engajar sua linguagem ficciosa no que podem os operadores do direito compreender a aplicabilidade de suas leis sem o prisma da não-normatividade. Não obstante, apesar das diferenças, o encontro não casual da literatura com o direito decorre por uma razão explícita: os anseios que tais possuem por justiça. A primeira, sob o discurso velado da poesia, e a segunda, na difusão do estabelecimento de uma ordem utópica contra as desigualdades. Esse estudo parte de um tripé ramificado: O direito na literatura, que procura extrair temas jurídicos numa obra literária e a partir dela compreendê-los; o direito como literatura, que é a própria produção jurídica em termos literários; e o direito da literatura, que cuida dos direitos do autor, do ponto de vista da garantia e certificação de sua obra. Para nós interessa-nos somente o primeiro, pois a partir dessa noção de direito na literatura é que poderemos compreender, em vias de fato, a iniqüidade de uma época em que as leis defendiam os homens que matavam “por amor”. Para o presente artigo foram escolhidos dois contos Machadianos que deslindam o viés moral do século XIX, ainda que se apresentem no seu caráter atemporal, visto que apesar de tais legislações já terem sido banidas, a violência contra a mulher é um fato atual e preocupante. O relógio de ouro e Mariana foram publicados originalmente em jornal no ano de 1873 e 1891, respectivamente. Ambos os contos trazem mulheres que sofreram algum tipo de violência. A primeira uma violência física e a segunda um mal psíquico, KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 263 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 provocado justamente pela guia de comportamento que a sociedade impõe para a mulher, sobretudo se ela for viúva. Mais desses causos Machadianos serão deslindados no decorrer deste artigo, por enquanto esclarecemos que com esta pesquisa temos o propósito de analisar como a literatura pode contribuir para desvendar as carências legislativas de uma época, ou mais ainda como a literatura é capaz de subsidiar a vida através do terreno fictício. 2 A APLICABILIDADE DAS LEIS NUMA REBOBINADA HISTÓRIA: INVERSÃO DE PAPEIS. Durante a passagem do Brasil Colonial para um país republicano as agressões movidas por “amor” não era tão comuns. Entretanto, com a difusão da imprensa as manchetes de jornais passaram a sobressaltar a sociedade carioca com algumas notícias sangrentas. Isso porque no século XIX as Ordenações Filipinas que ainda vigoravam na época defendiam o homem que matava a esposa e o amante. Em 1830, com a implantação de um Código Criminal do Império, o adultério passou a ser punido em termos legislativos – com pena de um a três anos de prisão com trabalho forçado. Embora a punição fosse a mesma para o homem ou mulher adúltera, a mulher sempre sofria mais moralmente; um reflexo disso está na produção de crônicas da época, em que tratavam a imagem da mulher como ser tentador que impulsiona o homem ao erro. No Código Penal de 1890 começou uma pequena abertura que amenizavam os crimes passionais, sobretudo perante o argumento de privações de sentidos no momento do crime. No entanto a mulher, nestes casos, era sempre vista como culpada, mesmo quando vítima. Na literatura, os adjetivos atribuídos as personagens femininas denotavam qualidades um tanto depreciativas no âmbito da moral, valendo ressaltar a descrição dada por Bentinho a Capitu, impossível de esquecer “seus olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, revelando uma das várias características “típicas femininas” que os escritores costumavam batizar em suas personagens. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 264 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 A tendência da época era defender os homens nesses crimes, sendo que “a outra parte das partes” nunca era ouvida. A punição vinha para mulher normalmente sem possibilidade de defesa, já que até a produção dos cronistas também não era a favor da “impunidade em casos de infidelidade”. Em 1889, entretanto, se passou a questionar a postura e a impunidade dos assassinos “por amor” – ou seriam assassinos do amor? Nota-se a mudança de visões refletidamente através das crônicas desse período, em que até os autores que antes defendiam os agressores agora os condenam, como é o caso de Raul Pompéia. Outros autores como João Luso, Coelho Neto e Lima Barreto acatavam sem piedade os uxoricidas. Indo além, Lima Barreto até provocava o feminismo por não ir avante a favor da própria defesa. Apesar das muitas controvérsias inseridas nessa época, tanto legislativa quanto literária, começou-se aí a tentativa do início de uma liberdade – o amor além do senso não contratual e outras vertentes. Em 2006 entrou em vigor a Lei nª 11.340/2006, mais conhecida como Maria da Penha, que trata de punir a violência doméstica e familiar contra a mulher, seja ela de qual for a intensidade, fato que contribuiu para que passasse a existir, pelo menos no terreno legislativo, a consciência de que crime cometido contra a mulher é também um atentado contra os direitos humanos, conforme estatui o art. 6ª da LMP. De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2011 mais de 26 mil prisões em flagrante e quatro mil prisões preventivas após a execução da Lei Maria da Penha. Porém, em muitos estados o Ministério Público dá prioridade à conciliação, não à denúncia, além do fato de muitas delegacias da Mulher não estarem aptas ao devido funcionamento. Apesar de ser referência para o mundo, a Lei Maria da Penha falha no quesito denúncia: muitas mulheres ainda permanecem sofrendo agressões por acharem que isso diz respeito a sua condição de mulher. O problema não é legislativo, mas também cultural, pois faz parte de uma cultura patriarcal que continua se alastrando, mesmo estando já bastante disseminada e arraigada na sociedade. É bem difícil convencer a essas mulheres que o Estado as protege, pois há muitas lacunas e KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 265 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 ineficácias nas leis em não cumprir algumas medidas preventivas que de fato previnem um mal premeditado nestes casos. Neste sentido, as mesmas mulheres se desarmam da condição de vítimas e vão as ruas reivindicar a ruptura do silêncio e exigir punições mais severas para os agressores. O século XXI está sendo marcado por manifestações feministas que agora não reivindicam mais igualdade salarial, direito de voto, ou mesmo a oportunidade de estudar ou trabalhar. A mulher do século XXI já tem tudo isto, mas se mantém presa aos moldes culturais dos séculos anteriores, de onde a sociedade ainda perpetua muitos valores de submissão e dominação sexual. Portanto, o que vale agora é se ver livre das ameaças de estupro, de agressões, de torturas pelo simples fato de ser mulher. Um grito de “Agora ou Nunca” vai às ruas para dizer que não quer mais assistir os índices de violência contra a mulher dando ibope na TV pelo número espantoso que estampa a chamada das reportagens – e muito menos protagonizá-lo. Se não dá para mudar o passado, ou dar “direito ao esquecimento”, que pelo menos a conscientização dos homens comece a não trazer vítimas futuras – que não sejam elas suas próprias filhas ou suas próximas esposas. 3 O DIREITO NA LITERATURA: CONTOS MACHADIANOS DESLINDANDO ‘CAUSOS’ DE INTERESSE JURÍDICO A obra de Machado de Assis inclui-se na representação da sociedade carioca do século XIX. Como vimos, a lei ainda protegia o homem agressor, e alguns literatos da época transformavam a vítimas em algozes em suas crônicas de jornais. Machado, entretanto, sempre se utilizou da ironia para retratar o que decerto o incomodava. Os dois contos escolhidos para uma breve análise nesse artigo revelam o caráter desinibidor de um assunto ainda pudico para o período em que se instaurava. A estética da recepção explica: na época em que foi publicado, a interpretação pode não ter sido a mesma de quando hoje, alertados sobre a violência mais visível e desmascarada contra a mulher. Mas aí vai dois “causos” Machadianos que contribuem para a discussão do KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 266 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 direito, sobretudo no que diz respeito à perpetuação da idéia de que a violência se inicia com os valores patriarcais dogmáticos. 3.1 Mariana: Viuvez é atestado de infelicidade? “O que será feito de Mariana?” Assim começa o conto de Machado de Assis escrito em 1891 na principal via de comunicação da época: Os Jornais das famílias. Foi justamente no século XIX que o gênero conto começou a se popularizar, já que antes prevaleciam as publicações de romances em folhetins. Machado costumava publicar seus contos em jornais para depois reuni-los em coletânea. “O que será feito de Mariana?” A pergunta de Evaristo se repete também duas vezes ainda no primeiro capítulo. Na condição de “ex amor”, após ter passado ausente dezoito anos na cidade parisiense, Evaristo retorna ao Brasil sob a desculpa de “ver o novo aspecto das cousas”, depois de um repórter lhe falar da revolução no Rio de Janeiro, referindo-se mais uma vez ao relato documental de Machado sobre a transição do Brasil-Colônia para a república. A dúvida de como se encontrava Mariana o faz procurar informações sobre ela: soube que ainda morava na mesma casa, encontrava-se bem casada e ainda bem disposta, apesar dos seus quarenta e oito anos. A partir daí, como narra o autor, a Evaristo: ... Crescera-lhe o desejo de ver Mariana. Que olhos teriam um para o outro? Que visões antigas viriam transformar a realidade presente? A viagem de Evaristo, cumpre sabê-lo, não foi de recreio, senão de cura. Agora que a lei do tempo fizera sua obra, que efeito produziria neles, quando se encontrassem, o espectro de 1872, aquele triste ano da separação que quase o pôs doido, e quase a deixou morta? (MACHADO, 2011, p.81). Mariana, após a separação do amado, ingeriu veneno. O outro não pode se despedir nem saber o que acontecera: já embarcava. Depois anos após ela se casa com Xavier, a quem diz não amá-lo. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 267 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 No segundo capítulo do conto os dois se reencontram na casa de Mariana, vertendo um diálogo de saudades e revelações. Mais ainda porque: Nenhum perguntou nada que se referisse ao passado, porque ainda não havia passado; ambos estavam no presente, as horas tinham parado, tão instantâneas e tão fixas, que pareciam haver sido ensaiadas na véspera para esta representação única e interminável (MACHADO, 2011, p. 82). Num primeiro momento, Mariana diz: “Morria por ti. Há uma hora que te espero, ansiosa, quase chorando, mas bem vês que estou risonha e alegre, tudo porque o melhor dos homens entrou nesta sala”. A todo instante a personagem revela um amor incandescente por Evaristo, o que lhe parece ser recíproco, pois o mesmo insiste que ela ama o marido, e se entristece por isso, ao que ela desponta: “Xavier é meu marido; não hei de mandá-lo embora, nem castigá-lo, nem matá-lo, só porque eu e você nos amamos”. E por fim, as desconfianças do antigo amor se findam após o juramento da perpetuidade do sentimento, assomado a reconciliação de beijos e contatos, que são interrompidos por um chamado na porta. Era o anúncio de um mau súbito de Xavier. A esposa vai socorrê-lo; Evaristo acha prudente se abster da situação. Despede-se e já encontra Mariana terminantemente mudada, como se percebe no seguinte trecho: Nem os olhos nem a mão de Mariana revelaram em relação a ele um impressão qualquer, e a despedida fez-se como entre pessoas indiferentes. Certo, amor acabara, a data era remota, o coração envelhecera com o tempo, e o marido estava a expirar; mas, refletia ele, como explicar que, ao cabo de dezoito anos de separação, Mariana visse diante de si um homem que tanta parte tivera em sua vida, sem o menor abalo, espanto, constrangimento que fosse? Eis aí um mistério (MACHADO, 2011, p. 86). Após a morte de Xavier, Evaristo ainda tentou fazer visitas a Mariana, mas ela encontrava-se incomunicável. Observou os comentários dos parentes, sobretudo quando diziam: “vê-se que se amavam muito”, acreditando no real estado de abalo da viúva. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 268 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Porém, ainda assim, quis fazer uma última tentativa após dois meses da morte do marido. Não tendo sucesso, a encontrou na rua, mas ela fez que não viu, tal como revela o trecho: A pouca distância viu sair da igreja do Espírito Santo uma senhora de luto, que lhe pareceu Mariana. Era Mariana; vinha a pé, ao passar pela carruagem olhou para ele, fez que o não conhecia, e foi andando, de modo que o cumprimento de Evaristo ficou sem resposta. Este ainda quis mandar para o carro e parou quando já havia passado a igreja e Mariana ia um grande pedaço adiante. Apeou-se, não obstante, e desandou o caminho; mas, fosse respeito ou despeito, trocou de resolução, meteu-se no carro e partiu (MACHADO, 2011, p. 86). No fim, Evaristo divaga com um amigo a respeito das peças que “caem e outras que ficam no repertório”, reafirmando o valor da obra Machadiana que não termina com o fim de sua estrutura. Em nenhum momento o autor deixa com clareza o que ficou na vida de Mariana e Evaristo, mas deixa pistas suficientes para que o leitor saiba que não ficaram juntos por uma convenção social, sobretudo no que diz respeito a viuvez do século XIX. Retomando a pergunta inicial do tópico, se viuvez é atestado de infelicidade, o que se pode dizer é que: o causo de Mariana, embora esteja ilustrado no terreno ficcioso do conto, não se distancia da realidade. Mariana, vencendo as vontades do amor, se vestiu do luto convencional, o que se espera de uma recém viúva. A violência e as imposições às mulheres começam no que dizem respeito aos postulados sociais que se direcionam a elas com interesse de conduta. Um comportamento diferente do de Mariana abriria espaço para especulações de traições ou outras atitudes reprovativas. Uma mulher do século XXI tem que ser fiel ao marido quando vivo e quando morto, mesmo que o contrário teste de fidelidade não aconteça no inverso, como veremos na análise do conto a seguir. 3.2 Agressão por cogitação de traição: quando há o medo de prognosticar na companheira uma atitude habitual nele próprio O relógio de ouro trata de um terrível impasse entre Luís Negreiros e Clarinha. O autor do Otelo Brasileiro acertou novamente ao criar esse conto: o ciúme retumbante KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 269 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 do personagem assusta, e faz até com que o leitor possa cogitar realmente na traição da mulher. O relógio lustroso e elegante que aparece sobre uma mesa do quarto desde já causa desconfiança. Primeiramente Luís Negreiros tem uma reação colérica, para só depois reatar a paciência e perguntar de quem era o relógio. Como ela não responde o homem fica terrivelmente enfurecido, e após atirar o relógio ao chão ele continua a perguntar, mas ela permanece negando saber de onde vem o ‘fatal relógio’. A agressão se evidencia no seguinte trecho: Luís Negreiros fez um gesto como de quem queria esganá-la; contevese. A mulher levantou-se, apanhou o relógio e pô-lo sobre uma mesa pequena. Não se pôde conter Luís Negreiros. Caminhou para ela, e, segurando-lhe nos pulsos com força, lhe disse: — Não me responderás, demônio? Não me explicarás esse enigma? Clarinha fez um gesto de dor, e Luís Negreiros imediatamente lhe soltou os pulsos que estavam arrochados. Noutras circunstâncias é provável que Luís Negreiros lhe caísse aos pés e pedisse perdão de a haver machucado. Naquela nem se lembrou disso; deixou-a no meio da sala e entrou a passear de novo, sempre agitado, parando de quando em quando, como se meditasse algum desfecho trágico (MACHADO, 2013). Depois, ao jantar, Luís Negreiros ainda se torna esperançoso de que o relógio viera do sogro, mas Clarinha continua indiferente sobre a origem daquele instrumento horário. Durante a ceia, o visível silêncio de Clarinha prossegue e causa desconforto até ao pai, Sr. Meireles: — Não te entendo hoje, Clarinha, disse o pai com um modo impaciente. Teu marido está alegre tu pareces-me abatida e preocupada. Que tens? Clarinha não respondeu: Luís Negreiros, sem saber o que havia de dizer, tomou a resolução de fazer bolinhas de miolo de pão. Meireles levantou os ombros. — Vocês lá se entendem, disse ele. Se amanhã, apesar de ser o dia que é, vocês estiverem do mesmo modo, prometo-lhes que nem a sombra me verão. — Oh! há de vir, ia dizendo Luís Negreiros, mas foi interrompido pela mulher que desatou a chorar (MACHADO, 2013). Terminado o jantar, Luís Negreiros ainda tencionou saber o que afinal se passava, já que desde cedo o misterioso relógio causava discórdias entre o casal, e até Sr. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 270 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Meireles percebera que havia algo de estranho com a filha. O próprio Luís Negreiros havia, por algum momento, pensado que o relógio seria de presente para ele, já que no dia seguinte completaria anos. Porém, estando enganado e a esposa ainda mais reclusa no aposento noturno, ele chegou-se a ela ainda mais colérico e impaciente, proferindo: — Clarinha, disse ele, este momento é solene. Responde-me ao que te pergunto desde esta tarde? A moça não respondeu. — Reflete bem, Clarinha, continuou o marido. Podes arriscar a tua vida. A moça levantou os ombros. Uma nuvem passou pelos olhos de Luís Negreiros. O infeliz marido lançou as mãos ao colo da esposa e rugiu: — Responde, demônio, ou morres! Clarinha soltou um grito. — Espera! disse ela. Luís Negreiros recuou. — Mata-me, disse ela, mas lê isto primeiro. Quando esta carta foi ao teu escritório já te não achou lá: foi o que o portador me disse. Luís Negreiros recebeu a carta, chegou-se à lamparina e leu estupefato estas linhas: Meu nhonhô. Sei que amanhã fazes anos; mando-te esta lembrança. Tua Iaiá (MACHADO, 2013). Aí terminado o conto, percebe-se que a razão da desconfiança foi invertida e justificada: quem afinal tivera uma amante era Luís Negreiros, o agressor. O conto não toma partido de nenhum dos lados e não faz discurso panfletário. Pelo contrário, reflete apenas, com lealdade e fealdade a situação em que muitas mulheres se encontram desde a virada dos séculos: as traições dos maridos e a total desconfiança que as esposas façam o mesmo, partindo para agressões fundadas em ciúmes e precipitações. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Enquanto em O relógio de ouro há a execução da violência física, em Mariana se extrai uma tortura de teor psicológico, quando a sociedade impõe valores e comportamentos que se desviam do desejo natural do ser humano (neste caso ainda mais subjugada por ser mulher]. No segundo conto há a explícita agressão narrada nos KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 271 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 trechos citadas acima, justificáveis por momentos de furor do personagem ao imaginar a esposa sendo presenteada pelo amante. Tudo não passava de um prognóstico mal dado: Luís Negreiros é quem tinha uma amante, fato que Clarinha descobriu e a fez se calar em sofrimento, manifestando-se enfim apenas em defesa a própria vida, quando o marido resolve ameaçá-la por ter perdido a paciência com tanto silêncio e mistério. Machado de Assis, com o artifício do não-dito literário, conseguiu “inocentar” Clarinha, quando ao final do enredo se confirma a traição por parte do agressor, passando-a da sua caracterização de dissimulada a vítima. A leitura dos contos Machadianos contribui para uma reflexão crítica a respeito da condição da mulher na contemporaneidade, cujas pesquisas recentes divulgadas pela ONU trazem dados alarmantes sobre a violência contra a mulher: “7 a cada 10 mulheres no mundo todo sofrerão algum tipo de violência durante a vida”, afirma a Revista ISTO É. É possível dizer por fim que a mulher sofre violência antes mesmo de nascer, a partir do momento em que foi concebida num mundo de valores arraigados na supremacia incontestável do ‘provedor’, virando séculos em permanência e resistência. Cabe a literatura, na sua função formadora do homem, de tornar público tais relatos de violência, inserir a conscientização no leitor da ruptura do silêncio, e assim evitá-los que continuem banais ou intrínsecos da condição feminina. E ao direito, a partir do tripé literário (autor, obra, leitor), buscar soluções além do que já foi dito na legislação ou no poder judiciário. A literatura, embora não seja realidade, “imita a vida”, a e vida de muitas mulheres encontram-se ainda em situação de descaso por elas não saberem como usar as leis que a favorecem, ou porque não acreditam na existência de um Estado que de fato as protejam, ou porque absorveram os valores patriarcais de tal forma que acabam considerando essa violência parte comum da vida. REFERÊNCIAS ASSIS, Machado de. Contos escolhidos. São Paulo: Martin Claret, 2011. ASSIS, Machado de. O relógio de ouro. Disponível em: <http://machado.mec.gov.br/ images/stories/html/contos/macn002.htm#orelogiodeouroPEREIRA>. Acesso em: 13 nov. 2013. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 272 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 MONDARDO, Dilsa de. 20 anos rebeldes: o direito à luz da proposta filosófica pedagógica de L. A. Warat. Florianópolis: Diploma Legal, 2000. PEREIRA, Gilene Margarete. Resignação feminina ou disseminação?: Uma leitura de "O relógio de ouro", de Machado de Assis. Disponível em: <http://www.assis.unesp.br /Home/PosGraduacao/Letras/RevistaMiscelanea/v4/v4cilene.pdf>. Acesso em 13 nov. 2013. ROCHA, Francisco Idílio Ferreira. Constitucionalidade da Lei Maria da Penha. Disponível em: <http://www.uniaraxa.edu.br/ojs/index.php/juridica/article/view /61/53>. Acesso em: 13 nov. 2013. DAUDÉN, Laura. Mulheres sobre ataque. Disponível em: <http://www.istoe.com.br/ reportagens/279673_MULHERES+SOB+ATAQUE>. Acesso em 5 set. 2013. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 273 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 OS MISERÁVEIS: O CICLO QUE OS TORNAM F ELIPE DA S ILVA A NTUNES 1 N EURO J OSÉ Z AMBAN 2 RESUMO: O presente artigo tem por objetivo abordar a relação entre a miséria e atos infracionais. Em um primeiro momento, talvez, soe como uma afirmação de certo modo preconceituosa, na verdade este preconceito é real. Para tanto, basta observar-se as proporções que chegaram as casas penitenciárias, que estão superlotadas de infratores pobres, com pouca ou nada de escolaridade, e miseráveis, resultando em que “não se tenha lugar para os criminosos de colarinho branco”. As gritantes desigualdades que assolam a sociedade brasileira, que embora tenham diminuído sensivelmente, estão materializadas na perversa situação em que se encontram as penitenciárias do país. Eventualmente são divulgadas estatísticas estarrecedoras que impressionam e reportagens de forte repercussão. A reação do Estado é tímida e insuficiente, como será destacado a seguir. Porque situações dessa natureza persistem no decorrer das décadas sem ações ou preocupações sérias e exequíveis? E ainda, por fim, tentar-se-á indicar meios, práticos e eficazes, para a inclusão destes que a sociedade, há muito tempo, tem rejeitado. PALAVRAS CHAVE: sistema prisional; identidade infracional; infrator. 1 INTRODUÇÃO Uma família, muito pobre – no sentido material da palavra – vê-se sem mantimentos em sua dispenssa e sem dinheiro para comprar. Tal familia, cuja é 1 2 Acadêmico do Curso de Graduação em Direito - Faculdade Meridional (IMED) de Passo Fundo/RS. Membro do projeto de pesquisa: Multiculturalismo, Minorias e Espaço Público, Coordenado pelo Prof. Dr. Neuro José Zambam. E-mail: [email protected]. Doutor em Filosofia pela PUCRS. Professor dos Cursos de Direito e Administração da Faculdade Meridional – IMED de Passo Fundo. Membro do Grupo de Trabalho, Ética e cidadania da Anpof (Associação Nacional dos Programas de Pós-graduação em Filosofia). Pesquisador da Faculdade Meridional. Coordenador do Grupo de Pesquisa: Multiculturalismo, minorias e espaço público. E-mail: [email protected] KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 274 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 composta pela mãe, seu filho e seu irmão, não encontra subterfúgios para saciarem a sua fome. O tio, que já não aguenta mais tal situação, obriga-se a roubar um pedaço de pão, sendo então, após isso, preso. Durante o cumprimento de sua pena, que já era árdua o bastante pelos motivos que a causaram, é ainda mais desumana pela maneira que são impostos os trabalhos, bem como pela arbitrariedade dos comandantes da penitenciária, então, Jean Valjean – o homem que fora preso – decide que o melhor a fazer é tentar fugir do restante da pena. Recapturado pelos guardas, tem a sua pena majorada, totalizando, desta forma intermináveis 19 anos de prisão, com trabalhos desumanos e com o mínimo de alimento, o suficiente para manter os detentos com força para trabalhar. Pois bem, o fato supranarrado retrata-se no filme Os miseráveis de Bille August, drama que serve como um dos embasamentos para a confecção deste artigo. Analisando o ocorrido, pode-se concluir que a situação caótica pela qual a família de Jean Valjean enfrentava já era infeliz o bastante, por não terem trabalho nem ao menos o que comer. Ele roubou – ainda que um pedaço de pão – é verdade, mas seria o suficiente para encarcerá-lo por quase 20 anos? Não esquecendo que o fato deu-se na França, mudaremos o cenário do ocorrido, trazendo a situação para o nosso Estado brasileiro, mudando, de igual forma, o tempo do ocorrido – que no filme se dá em meio à revolução protagonizadora do início do século XIX – e tentaremos colocar nos dias de hoje, haja visto que não existem “porquês” para ánalise estrita do filme, ou seja, a legislação francesa e de mais de dois séculos, isto por que o presente estudo direciona-se à estudantes da nossa legislação. 2 UMA VIDA MISERÁVEL: A PORTA FECHADA PARA AS OPORTUNIDADES Obviamente é necessário e imprescindível lutar contra o crime, mas a luta somente será eficiente, de modo a dar uma resposta positiva, a partir do momento em que combater o crime passe a ser uma “segunda prioridade”, redirecionando, deste modo, as forças estatais para combater as causas que resultam no crime. Proporcionar melhores condições de vida para a população, dando-lhe saúde, trabalho, educação e KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 275 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 lazer – como se pode afirmar, tais garantias estão previstas na nossa Constituição Federal de 1988, elencadas como Direitos Fundamentais, que são, destaca-se, a essência do DNA de um Estado Democrático de Direito, e não meras “regalias” que ficam à discricionariedade da boa vontade estatal. Parafraseando o supra explicitado, um paciente procura um especialista porque sente fortes dores abdominais. O médico, sem dar muita atenção à exames a fim de diagnosticar as causas da moléstia, receita analgésicos extremamente fortes. As dores passam, corolário da grande quantidade de medicamentos que amenizam a dor. Porém, enquanto isso, a causa das dores vão se proliferando no organismo do paciente, silenciosamente, pois este já não sente mais as dores, que vinham para informar que algo não estava certo. O medicamento, com o passar do tempo, não surte mais os efeitos esperados, o que faz o paciente procurar um outro médico. Este, por sua vez, antes de diagnosticar qualquer droga farmacêutica, examina incessantemente o paciente, até que descobre o que estava causando as dores. E aquilo, que no princípio de tudo era um pequeno tumor, já tomou conta de praticamente todos os órgãos do paciente, ao qual só resta agora, esperar os seus últimos dias de vida. Trazendo a paráfrase para o nosso tema, estabelecemos o paciente como a sociedade, o médico como o nosso Estado, e o câncer como as mazelas sociais – e aqui incluem-se a miséria, os crimes e os criminosos. Pois bem, se o Estado se preocupar, efetivamente em buscar as causas das lotações penitenciárias - por exemplo, o presídio central de Porto Alegre – considerado o pior do Brasil em 2012, segundo Machado (2012) ultrapassa os 200% de sua capacidade3 - indubitavelmente a situação da sociedade irá melhorar. Isso porque basta olharmos para o interior das celas, onde, segundo a estatística supra, um espaço que é destinado a dez detentos existem mais de vinte, veremos que a grande maioria já encontrava-se em uma situação de miséria e sofrimento, pobre no sentido material da palavra e ainda, por vezes, sem uma base familiar para lhe prestar auxílio. Sem oportunidade, pois lhe faltaram ensinamentos, educação e outras coisas indispensáveis à toda e qualquer criança, esta tornar-se-á um adulto sem ambições, que preocupa-se somente em conseguir o sustento de hoje, 3 MACHADO, 2012. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 276 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 conseguindo colocar comida na mesa da sua família. A miséria é fruto do próprio capitalismo, visto que o poder econômico, indubitavelmente acaba por se acumular em pequenos percentuais da sociedade, enquanto a grande maioria carece até mesmo dos serviços básicos. Esse fruto capitalista tem sua consequência explicada por Augusto Jobim do Amaral4: Quando determinadas pessoas tornam-se incapazes de gozar o jogo consumista, elas são os “objetos fora do lugar” e agora figuram como “novos impuros”. Duas políticas estatais contraditórias, no viés de Bauman5, são difundidas para a preservação da pureza da vida consumista. Por um lado, exige-se o aumento da liberdade de consumo, e nada pode obstar (vide privatizações, desregulamentações...); contudo, por outro prisma, deve-se lidar com as conseqüências da primeira postura e a isso o discurso público dá o nome de “lei e ordem”. Aqueles que não se encaixam no modelo agora devem ser “administrados” e mantidos em xeque, e a sua remoção deve ser desempenhada ao menor custo possível. Como se sabe que a remoção do excedente, do refugo, mostra-se menos custosa do que seu reaproveitamento, a isso deve ser dado prioridade. Assim é mais barato excluir e encar(cer)ar os consumidores falhos (grifo nosso). A partir do momento em que o Estado passar a se preocupar em qualificar a mão de obra da sociedade, principalmente daqueles que estão mais excluídos desta, aqueles, na medida em que se qualificam, conseguiram um bom emprego, e terão meios para a subsistência sua e de sua família. Trabalhando, este terá um certo poder aquisitivo, que por sua vez, gerará impostos para o Estado. Desta forma, não se pode dizer que seriam “gastos” tantos reais com a educação, e sim que o Estado estaria fazendo um investimento, do qual, logo mais será recompensado. E ainda, evidentemente iria diminuir os índices de criminalidade. Proporcionar novas oportunidades àqueles que de muito vem sendo excluídos pela sociedade, é um progresso que, a um Estado que se DIGNA Democrático de Direito, não surge como uma opção, e sim como uma obrigatória necessidade. Prevenir é melhor que remediar, como já nos mostrava Beccaria6 (1763): 4 5 6 AMARAL, 2008, p. 49. BAUDRILLARD apud AMARAL, 2008. BECCARIA, 2002. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 277 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 É preferível prevenir os delitos a ter de puni-los; e todo legislador sábio deve antes procurar impedir o mal que repará-lo, pois uma boa legislação não é mais do que a arte de proporcionar aos homens a maior soma de bem-estar possível e livrá-los de todos os pesares que se lhes possam causar, conforme o cálculo dos bens e dos males desta existência. Cabe à sociedade como um todo, e a cada um de nós, individualmente lutarmos pela melhorar social do nosso Estado Democrático de Direito. O fato de vivermos em sociedade ressalta a importância que cada um exerce para o crescimento desta, pois ela é composta, não pelo seu todo em si, mas por cada unidade. Seria uma espécie de “bem contra o mal”, na qual a família deve ensinar a luta contra os desejos errôneos do nosso “id”. Freud, no século XIX, em O mal estar da civilização7 conduz: [...] é impossível desprezar o ponto até o qual a civilização é construída sobre a renúncia ao instinto, o quanto ela pressupõe exatamente a não-satisfação (pela opressão, repressão, ou algum outro meio?) de instintos poderosos. Essa ‘frustração cultural’ domina o grande campo dos relacionamentos sociais entre os humanos e, como já sabemos, é a causa da hostilidade contra a qual todas as civilizações têm que lutar. E, quando essas medidas não forem suficientes para reprimir e coagir a execução das atitudes infracionais, é necessário punir, mas punir como inteligência, propiciando meios para que o infrator possa se recuperar e mudar o seu destino, que hodiernamente, não mostra nenhuma mudança de diagnóstico, ou seja, a dor estará “amenizada” enquanto o detento estiver preso, mas o que se tem feito para “exterminar com este câncer social?”. 3 A IDENTIDADE INFRACIONAL QUE IMPREGNA NO DNA DO INFRATOR Não havendo outro meio eficaz para reprimir os índices de violência e inibir a criminalidade, se faz necessário uma punição mais severa. Destas cabe ressaltar a pena privativa de liberdade, que, no sistema penal brasileiro, constitui a medida mais gravosa de punição. Então, cabe, agora, uma análise, não só durante a aplicação desta, 7 FREUD apud CARVALHO, 2008. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 278 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 mas também, e principalmente, como deveria, o Estado proceder após o término da pena. Esta pena constitui o máximo de poder punitivo do Estado – jus puniendi. Isto ocorre porque é um direito que confronta diretamente com o jus libertatis, ou seja, o direito de liberdade do indivíduo. Deste modo, é necessário uma “remodelação” das normas que acabam por eleger os indesejados da sociedade, ou seja, aquelas pessoas das quais queremos nos livrar, e pelo fato da sociedade ser demasiadamente “boa”, “civilizada” e “cristã”, opta por não aniquilar estes fisicamente, pois seria algo muito indigno, é melhor lançá-los “em um local melhor”, qual seja, o cárcere8. Cabe, primeiramente, se é que existe a possibilidade de escalonamento dessas obrigações, à família reprimir a violência, introduzindo valores morais no caráter de seus descendentes. Não afastando, em momento algum, a responsabilidade estatal em prestar assistência, educação, dar emprego e condições viabilizadoras de um desenvolvimento pleno. O fato de vivermos em sociedade ressalta a importância que cada um exerce para o crescimento desta, pois ela é composta, não pelo seu todo em si, mas por cada um de nós. Seria uma espécie de “bem contra o mal”, na qual a família deve ensinar a luta contra os desejos errôneos do nosso “id”. Freud, no século XIX, em O mal estar da civilização9 conduz [...] é impossível desprezar o ponto até o qual a civilização é construída sobre a renúncia ao instinto, o quanto ela pressupõe exatamente a não-satisfação (pela opressão, repressão, ou algum outro meio?) de instintos poderosos. Essa ‘frustração cultural’ domina o grande campo dos relacionamentos sociais entre os humanos e, como já sabemos, é a causa da hostilidade contra a qual todas as civilizações têm que lutar. E ainda, esse mesmo renomado autor, conclui, a sua linha de raciocínio, em O futuro de uma ilusão10: “toda civilização tem de se erigir sobre a coerção e a renúncia aos instintos”. 8 9 10 CARVALHO, 2008. FREUD, apud CARVALHO, 2008. Id. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 279 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 Quem tem o poder de fazer a sociedade se erigir sobre a coerção aos instintos, da qual Freud fala, é justamente a família, pelo fato de que esta está mais próximo do indivíduo, é ela quem passa as primeiras “regras da vida”, bem como o dever ser que necessita ser seguido para que se tenha uma sociedade harmônica. É preciso, primeiramente saber dosar as penas, não as definindo nem além, nem aquém daquilo que se faz necessário em cada caso, prezando-se sempre pela reabilitação social, de modo que a pena tenha um caráter ressocializador do indivíduo infrator, possibilitando, desta forma, que, ao término do cumprimento da sua sentença, ele possa conviver novamente em sociedade. Para que isto ocorra, é necessário um “evoluir” por parte da sociedade, deixando de lado os preconceitos, que tentem a rotular um ex detento, de modo que ele fique marcado para sempre. Mas também, se faz necessária, uma intervenção estatal, de modo que se criem políticas voltadas para esta fase da vida do detento, que pode ser considerada o marco “x”, onde ele pode deixar a vida criminosa ou voltar para ela. As políticas de egresso podem, até mesmo, ser consideradas mais importantes que a própria pena, pois é justamente ela que, oferecendo, principalmente, educação e emprego. Obviamente também devem-se preocupar com outros problemas, como dar um acompanhamento psicológico à família, para que aceite o delinquente novamente em seu seio, por exemplo - aos detentos, irá garantir uma ressocialização daquele que cometeu um crime. Se o detento, ao sair da prisão, não encontra emprego, pelo fato das pessoas não empregarem um ex-presidiário em sua empresa, casa ou escritório, seja por preconceito ou não, mas o fato é que ninguém se propõe a isto, ele terá que encontrar outro meio para sobreviver, garantir o seu sustento e ainda, em repetidos casos, dar comida e suprir as necessidades básicas de filhos e mulheres, ao não conseguir um emprego, em grande maioria das vezes, terá que cometer os mesmos delitos, ou delitos ainda piores que os que já levaram a privação da sua liberdade. Isto tudo serve para que, ao invés de o infrator voltar a cometer delitos, ele tenha uma nova oportunidade. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 280 ANAIS DO II CIDIL 4 V. 2, N. 1, JUL. 2014 INCLUSÃO DOS EXCLUÍDOS: A PORTA ABERTA PARA AS OPORTUNIDADES Desta maneira, é evidente a necessidade de se encontrar meios eficazes para sanar essa problemática, que não fica limitada somente à vida daquele que, com o findar do cumprimento de sua sentença, não encontra meios que o possibilitem viver fora da criminalidade, porquanto este voltará a delinquir, mas também quem sofrerá será a sociedade, pois terá a paz e o bem comum violados pela quebra da norma penal. Colocando Valjean em outro contexto, imagina-se que este, ao sair da prisão, fosse contemplado com uma política Estatal de egresso para a sociedade. Tal política, como já supra mencionada, preocupada em empregar este ex-detento, mas não sem antes ter o profissionalizado, isto ainda dentro da prisão, possibilitando, desta forma, a este encontrar um emprego digno, com o qual possa garantir o seu sustento e o de sua família. É ao menos reprimida a possibilidade dele voltar para o mundo do crime, haja visto que este só entrou neste meio cruel pela necessidade, pois não tinha com o que alimentar-se, nem a sua irmã ou sua sobrinha. A propósito, trazendo tal situação para dentro do ordenamento jurídico brasileiro, tal situação não seria merecedora da excludente de ilicitude “estado de necessidade”? Ainda que não a fosse, seriam necessários quase 20 anos de reclusão para corrigir este erro, se é que podemos chamar assim a luta de alguém para não perecer em inanição. Essa mudança deve começar ainda dentro das penitenciárias, nas quais os detentos devem receber educação e ainda, cursos profissionalizantes, a fim de não deixar ociosos os detentos, porquanto, custará mais caro ao Estado e ainda não transformará em nada o quadro da criminalidade. Hodiernamente os detentos e exdetentos são uma espécie de sociedade dentro de outra sociedade, pois são vistos não como sujeitos de direitos, “porque ao violarem o direito de outra pessoa, têm suprimidos todos os seus”. De modo algum estamos pregando contra a punição àqueles que infringiram a norma penal. Pelo contrário. Sustenta-se que se deve, sim, ser punido por cada erro KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 281 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 cometido, porém, punido de maneira racional, oferecendo meios para que aqueles que erraram possam mudar o seu destino, que hoje, está fadado a permanecer na exclusão social e perecer na miséria. É ilógico dizermos que se a Valjean fosse oportunizado trabalhar, recebendo um salário digno, de modo que garantisse o seu sustento, este optasse por viver no mundo do crime. Logo, conclui-se que oportunizar uma mudança por parte do detento, estará se corroborando diretamente para a diminuição dos índices de criminalidade. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Após a análise dos elementos expostos, concluí-se que as políticas de egresso dos detentos se fazem tão, se não mais importantes que a própria punição. Isto por se tratar da parte mais delicada do cumprimento da pena, pois consiste no retorno do detento à sociedade, é o momento em que se determinará as condições de convivência entre esta e aquele. É o instante em que vai se direcionar a nova trajetória daquele que violou as normas penais, se continuará no mundo do crime ou não. Definirá se o meio para garantir a sobrevivência dele e de seus dependentes será o trabalho ou continuará sendo os delitos. É necessário e inevitável punir aquele que não respeita as regras do nosso ordenamento jurídico; Caso contrário se estaria impossibilitando a convivência em sociedade, de modo que não se faria mais obrigatório o respeito a legislação que regula nossas vidas. Porém, a punição deverá ser racional, isto é, pensada em todas as suas fases. Primeiro é mais importante buscar-se meios a fim de evitar que ocorram as condutas típicas ilícitas, pois se deletaria todos os problemas resultantes de tal, isto é, a violação dos bens jurídicos, a traumatização das vítimas, bem como a punição do infrator, que no caso, não existiria. Sucessivamente, caso não se consiga reprimir o crime, de modo que este não ocorra, se faz necessário a supramencionada punição. Porém, esta não deve ser vista de modo singular, isto é, não consiste somente em colocar o infrator em uma cela penitenciária. A punição não é definida com o binômio errou e prendeu. Ademais, esta punição deve ser impessoal, de modo que, ainda nas KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 282 ANAIS DO II CIDIL V. 2, N. 1, JUL. 2014 tipificação, criada pelo legislador, se faz necessária a qualidade de impessoalidade, de modo que não se criem tipos para pessoas pré-definidas, de modo que acabe por se instigar os chamados “crimes de colarinho branco”. A conscientização de que estamos lidando com o maior bem jurídico tutelado em nosso ordenamento é inescusável. A liberdade do indivíduo é sobre todos os outros direitos, o bem mais tutelado, mesmo pela magna carta de 1988. Tirar a liberdade as vezes é inevitável, porém, junto com a repressão deve-se pensar em como possibilitar que o infrator não volte a errar, a fim de se evitar nova punição e danos aos bens jurídicos das possíveis vítimas. As políticas de egresso devem andar de mãos dadas com a execução das penas, afim de possibilitar que o detento se ressocialize e se possibilite o seu retorno e convivência em sociedade, de modo pacífico. REFERÊNCIAS CARVALHO, S. Freud criminólogo: a contribuição da psicanálise na crítica aos valores fundacionais das ciências criminais. Revista Direito e Psicanálise, v. 1, p. 107-137, 2008. BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2002. MACHADO, Wagner: Fórum da Questão Penitenciária elabora carta relatando limitações do Presídio Central de Porto Alegre. Rádio Guaíba, Porto Alegre, 02 ago. 2012. AMARAL, Augusto Jobim do. Violência e processo penal: cítica transdisciplinar sobre a limitação do poder punitivo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito penal a marteladas: algo sobre Nietzsche e o direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. KATHÁRSIS - CENTRO DE ESTUDOS EM DIREITO E LITERATURA DA IMED 283