O Estado de São Paulo, Segunda-feira, 28 de agosto de.2006 Lições finlandesas MARCELO DE PAIVA ABREU À primeira vista não poderia ser maior o contraste entre o Brasil e a Finlândia. Desde as diferenças entre Helsinque e as grandes cidades brasileiras até o hiato no desempenho econômico no passado recente. É uma surpresa agradável constatar a persistência, na capital finlandesa, da mistura curiosa de modernismo e tradição. A Helsinque tradicional parece resistir bem a possíveis excessos decorrentes do efeito Nokia. O maior problema urbano reflete a difícil relação com o álcool, especialmente da juventude. Apesar de meio chocante, é problema trivial se comparado com a submissão das cidades brasileiras à agenda do crime organizado. No plano econômico, desde 1980 a renda per capita finlandesa cresceu algo em torno de 2% ao ano, comparados a 0,6% no Brasil. Em 1980, a renda per capita finlandesa, em bases de paridade de poder de compra (PPP, na sigla em inglês), era cerca de três vezes maior que a brasileira, hoje é 4,3 vezes maior. E, no entanto, os dois países já fizeram parte de um grupo muito seleto de economias com desempenho destacado em termos de crescimento no período 1900-1973, na companhia de Japão e Coréia do Sul. Depois do início dos anos 1980 o Brasil atolou. O desempenho finlandês decorreu, em parte, de aumento significativo da taxa de investimento, acima de 25% do produto interno bruto (PIB) nos anos 1980, 30% no pico. Mas o bom desempenho vai além do que poderia ser explicado por mais capital e mão-de-obra. Houve contribuição expressiva de outros fatores para o crescimento: economias de escala, melhoria de sistemas de organização e progresso técnico não associado a equipamentos. A política finlandesa de ciência e tecnologia (C&T) desempenhou um papel crucial, com os gastos em C&T alcançando hoje 3,5% do PIB, um dos maiores níveis do mundo juntamente com a Suécia, apesar da inexistência de ciência e tecnologia direcionada a usos militares, como é o caso do vizinho nórdico. O bom desempenho econômico, somado à ativa política de desenvolvimento científico e tecnológico, tornou a experiência finlandesa um paradigma freqüentemente mencionado como digno de imitação. Nas manifestações tropicais, esse interesse vem freqüentemente acompanhado de propostas de “políticas industriais” que não são mais do que requentar políticas de subsídio e de proteção que dominaram a cena brasileira no passado. Seria um erro, entretanto, deixar de levar em conta a experiência finlandesa por causa da contaminação destas idéias retrógradas. Há, em tese, amplo escopo para que sejam adotadas políticas temporárias de estímulo à competitividade para corrigir deficiências relacionadas à operação dos mercados. Não é por outra razão que ciência e tecnologia são exceções explícitas às draconianas regras multilaterais que, desde a Rodada Uruguai, regulam o uso de subsídios. Dúvidas quanto à utilidade do paradigma finlandês para aplicação no Brasil poderiam surgir com base em argumentos de natureza geral associados às peculiaridades da História do país ou à disparidade entre o tamanho das duas economias. A Finlândia é um exemplo muito especial de capacidade de sobrevivência, espremida entre as potências que secularmente disputaram a hegemonia no Báltico: Suécia, Rússia e Alemanha. Flexibilidade e equilíbrio são virtudes nacionais, como atesta a preservação de diversas estátuas de czares e czarinas russos, lembrando os tempos do grão-ducado antes de 1917, apesar das várias guerras desde então. Por outro lado, a economia é pequena. Com população de apenas 5,3 milhões de habitantes, um quarto da Grande São Paulo, a economia é nove vezes menor do que a brasileira. Mas as próprias características do sistema finlandês de ciência e tecnologia sugerem que qualquer tentativa de sua transplantação para as circunstâncias brasileiras teria de ser acompanhada por mudanças radicais nos arranjos institucionais hoje vigentes no País. A operação eficaz de um conselho no mais alto nível, no qual estejam representados paritariamente os Ministérios da Educação e da Indústria, representando as óticas da ciência e da tecnologia, parece inalcançável no Brasil, em particular por causa das limitações do Ministério da Educação como coordenador de uma política de formação de cientistas e tecnologistas compatível com os projetos específicos desenvolvidos por estímulo de outros ministérios, em particular os de Ciência e Tecnologia e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. A cooperação inteligente do Congresso Nacional na formulação da estratégia de C&T, algo essencial ao bom funcionamento do sistema finlandês, parece igualmente muito acima das possibilidades existentes hoje no País. A eficiência operacional das agências de ciência e tecnologia, com o Tekes, a agência nacional finlandesa de financiamento de C&T, em posição destacada, contrasta com a morosidade de suas congêneres nacionais. O prazo médio de tramitação da análise de pedidos de financiamento pelo Tekes é de 90 dias, considerado indevidamente longo pelos finlandeses. A morosidade brasileira se deve, em parte, à fragilidade institucional, caracterizada pela multiplicidade de prioridades, superposição de esferas de atuação, falta de coordenação eficaz. Em parte, à debilidade das relações entre agências públicas, setor produtivo e universidades/centros de pesquisa. Que, por sua vez, resulta do limitado interesse do setor produtivo na inovação tecnológica e, também, da insuficiência técnica dos agentes do Estado para que sejam intermediários eficazes para facilitar o acesso a tecnologias que reflitam o estado da arte mundial. Isto sugere que a formação de tais quadros deve merecer a mais alta prioridade política por parte do governo, em paralelo com o objetivo de universalidade de acesso à educação de qualidade decente. *Marcelo de Paiva Abreu é doutor pela Universidade de Cambridge e professortitular do Departamento de Economia da PUC-Rio.