As Vantagens Comparativas de David Ricardo: notas para uma análise crítica Luiz Eduardo Simões de Souza1 1. Introdução Estas breves notas tem por objetivo comentar em perspectiva a teoria das vantagens comparativas a partir do que julgamos ser o seu verdadeiro escopo de análise, ou seja, a troca de trabalho incorporado, conforme a obra de David Ricardo de 1817. Em nosso ver, a troca de produtividades setoriais, evento que parece ser a linha mestra da argumentação ricardiana, não ocorre de maneira recíproca entre as partes envolvidas. 2. David Ricardo e os Princípios de Economia Política e Tributação A Teoria das Vantagens Comparativas aparece pela primeira vez nos Princípios de Economia Política e Tributação, de David Ricardo (1817). No capítulo VII da obra - Sobre o Comércio Exterior - Ricardo afirma: “Se as mercadorias estrangeiras forem mais baratas e, portanto, uma parte menor do produto anual da terra e do trabalho da Inglaterra for utilizado para as importações, uma parte maior sobrará para a compra de outras coisas.2” Justificando sua assertiva, Ricardo faz uso do exemplo hipotético do emprego de uma dada renda em uma demanda específica. A redução do preço de uma mercadoria adquirida através do comércio exterior – ao invés da produção e comércio interno – livraria fatores de produção (capital, terra e trabalho) para 1 Doutorando em História Econômica – DH – FFLCH – USP, Mestre em História Econômica – DH – FFLCH – USP, Graduando em Economia – FEA – USP. 2 Princípios de Economia Política e Tributação. p. 102. atividades mais produtivas, que poderiam, em última análise, aumentar a renda nacional3. Mais adiante, Ricardo generaliza sua hipótese: “Num sistema comercial perfeitamente livre, cada país naturalmente dedica seu capital e seu trabalho à atividade que lhe seja mais benéfica.4” À primeira vista, esse argumento assemelha-se à origem do princípio da divisão do trabalho, desenvolvido por Adam Smith em sua obra principal (A Riqueza das Nações, 1776). Dessa perspectiva, Ricardo teria apenas estendido o trabalho dedutivo de Smith da esfera dos indivíduos às nações. Contudo, as razões de um e outro encontram-se invertidas: para Smith, a busca do aumento da produtividade dos fatores de produção gerado pela divisão do trabalho é explicada, em última análise, pela propensão à troca5; para Ricardo, a propensão ao comércio exterior é explicada pela busca de otimização do uso dos fatores de produção. Essa otimização não seria linear. Segundo Ricardo, o aumento da produtividade de setores menos eficientes de um país não serviria, por si só, para que este abandonasse a política de comércio exterior6. 3. Uma analise das equações de produção 3.1. Formulação do modelo Consideremos duas economias, A e B, sob as seguintes hipóteses: 1. são produzidas apenas DUAS mercadorias em A e B (Vinho e Tecido); 2. A e B maximizam suas funções-demanda com vinho e tecido. 3. As condições de produção A e B são dadas pela função do valor ricardiana7 no estado de maximização (dY/dq, lucro tende a zero), a saber: 3 Princípios de Economia Política e Tributação. p. 102. Princípios de Economia Política e Tributação. p. 104. 5 Smith, op. cit. Livro I. 6 Princípios de Economia Política e Tributação. p. 105. 4 Yn = Cf n+ Cvn, em que: Y = crescimento incremental do produto n (dY/dq) Cfn = idem para custo fixo de n e Cvn = idem para custo variável de n. 4. ceteris paribus, ou seja, as demais variáveis mantêm-se constantes. 5. As ofertas agregadas das duas economias correspondem às suas respectivas demandas, ou seja, a renda é a de equilíbrio (OA = DA) Temos as seguintes condições de produção em A e B: Economia A: YvinhoA = CfvinhoA+ CvvinhoA = a + b*wvinhoA YtecidoA = CftecidoA + CvvinhoA = c + d*wtecidoA, em que wn = valor do trabalho adicionado à mercadoria. Economia B: YvinhoB = CfvinhoB+ CvvinhoB = e + f*wvinhoB YtecidoB = CftecidoB + CvvinhoB = g + h*wtecidoB, em que wn = valor do trabalho adicionado à mercadoria. Atribuam-se: a = g, c = e, b = h e d = f. Isso permite a condição de maximização da hipótese ricardiana (lim ∆ (a...h)/ ∆ (a...h)=0, ∆q → 0). Sejam também (a,g) ≠ (b,h) ≠ (c,e) ≠ (d,f), para fins de comparabilidade. 3.2. A visão ricardiana A um dado nível de emprego dos fatores de produção das economias A e B, seja o emprego setorial à proporção 1:1. Assim, temos: Economia A: 7 Op. Cit. Capítulos I e II. Economia B: 1 = a + b*wvinhoA 1 = c + d*wtecidoA YA 1 = e + f*wvinhoB 1 = g + h*wtecidoB YB Segundo a teoria das vantagens comparativas, a economia A deve trocar seu vinho pelo tecido de B. Estabelecendo-se, arbitrariamente, que os países comerciem 25% de sua referida produção setorial, teríamos: Economia A: Economia B: 0,75 = a ‘+ b’*wvinhoA 1 = e + f*wvinhoB 0,25 = g’ + h’*wtecidoB 0,75 = g’ + h’*wtecidoB 1 = c + d*wtecidoA 0,25 = a’ + b’*wvinhoA Sendo a eficiência de a, b, g, e h maior do que a de c, d, e e f, não é difícil inferir que haja menor esforço no suprimento das demandas das economias A e B. Para maximizar a eficiência do capital inicial existente em cada economia, seria apropriado que A e B renunciassem às suas respectivas produções de tecido e vinho, para obter seu produto, de maneira menos trabalhosa, trocando os excedentes pelas suas necessidades: Economia A: Economia B: YvinhoA = a ‘+ b’*wvinhoA YtecidoB = g’ + h’*wtecidoB YtecidoA = g’ + h’*wtecidoB YA + ∆Y YvinhoB = a’ + b’*wvinhoA YB + ∆Y A troca do trabalho menos produtivo pelo mais produtivo poderia, segundo a concepção ricardiana, gerar, a partir do mesmo nível de emprego, um produto final maior do que o obtido na situação prévia ao comércio entre A e B8. Nada mais adequado. Nada mais enganoso. 8 Não aparece em Ricardo o termo “produtividade marginal do trabalho”, mas os marginalistas incorporam a teoria das vantagens comparativas, atribuindo-lhe os conceitos de produtividade marginal dos fatores de produção. Registre-se que neoricardianos, como Piero Sraffa, esforçaramse em refutar essa visão. 3.3. Crítica à visão ricardiana A prestidigitação, segundo seus praticantes, consiste boa parte na transferência da atenção da platéia para um fato externo, pelo tempo necessário para que se processe o truque. O mesmo acontece na justificação da teoria ricardiana das vantagens comparativas. Compra-se, ao preço da chegada, o produto da origem. Dessa forma, temos o seguinte quadro: Economia A: Economia B: YvinhoA = a ‘+ b’*wvinhoA YtecidoB = g’ + h’*wtecidoB YtecidoA = g’ + h’*wtecidoA YA + ∆Ya YvinhoB = a’ + b’*wvinhoB YB + ∆Yb Desconsiderando-se uma provável diferença entre YA e YB, na qual se dá um ganho de trabalho incorporado para a economia B, produtora de manufatura, há a diferença entre ∆Ya e ∆Yb, com ganho de produtividade para o setor “primário” de B, que importa o coeficiente b da economia A, oriundo de fatores como a produtividade da terra ou de eventuais externalidades do setor “primário”. A economia A, por sua vez, recebe uma barreira no processo de incorporação de trabalho de suas manufaturas. Assim: YA + ∆Ya < YB + ∆Yb e ∆Ya/YA < ∆Yb/YB A tendência de longo prazo é notória: ainda que considerada a renda como sendo de equilíbrio, a economia A é pressionada a adotar um ritmo de crescimento inferior ao visto em B. Assim, a economia B tende ao pleno emprego de seus fatores de produção, e a economia A relega-se à produção de vinho para exportação. Bibliografia RICARDO, David. Princípios de Economia Política e Tributação. São Paulo, Abril Cultural, 1982 (1817). SMITH, Adam. A Riqueza das Nações. São Paulo, Abril Cultural, 1982 (1776), 2 vols. PASINETTI, Luigi. Crescimento e distribuição de renda. Rio de Janeiro, Zahar, 1979 (1974). PASINETTI, Luigi. Lecciones acerca de la teoria de la produccion. Ciudad del Mexico, Fondo de Cultura Económico, 1989. SRAFFA, Piero. Produção de Mercadorias por meio de Mercadorias. São Paulo, Abril Cultural, 1982 (1972).