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Os Paradoxos de Dioniso
n’As Bacantes de Eurípides
Krishnamurti Jareski
Krishnamurti Jareski1
Resumo: Valendo-se da relação entre mito e lógos como hipótese para a
interpretação da peça As Bacantes, de Eurípides, o presente artigo intenta
demonstrar: (1) a confluência de filosofia e sofística em seu texto; (2) as
contradições da epifania dionisíaca como símbolo das contradições da
época de sua elaboração e encenação, e (3) as insuficiências das interpretações que compreendem a peça como uma retratação de seu autor, ou
como denúncia da tradição báquica.
Palavras-chave: Eurípides, Dioniso, movimento sofístico, filosofia, mito e
lógos, tragédia.
“Cierto que no faltan las
contradicciones en los
reinos de otros dioses.
Pero ninguno está tan
atenazado por ellas
como el de Dioniso.”
215
(Walter F. Otto)
Dioniso é o deus cuja epifania reveste-se dos contornos mais
paradoxais, sobressai pela sua natureza contraditória e sua
capacidade em subverter os ditames da realidade. Ele é simultaneamente benfeitor aos homens - faz deles donatários das graças da música e do vinho - e senhor da vida que acolhe, em seus
aspectos mais aterrorizantes, o dilaceramento e a ingestão de
vítimas sacrificiais. Intentar-se-á, a partir do exame de algumas
passagens da peça As Bacantes, de Eurípides, tornar manifesta
a dualidade essencial do mundo representada por esse deus. E,
como conclusão do presente artigo, serão discutidas brevemente
algumas questões que emergem de seu texto, bem como a sua
posição na história do pensamento, na tentativa de demonstrar
que a “questão de As Bacantes” é, na verdade, o impasse fundamental, à época, entre mito e discurso racional.
Doutorando em filosofia pela PUC-SP; professor do Departamento de Filosofia da Universidade
Federal do Espírito Santo.
1
Contexto - ano XV - n. 14 - 2007
Os Paradoxos de Dioniso n’As Bacantes de Eurípides
Eurípides apresenta Dioniso, em sua fala inicial, como um
deus estrangeiro, que, ao infiltrar-se na Grécia, mais especificamente em Tebas, encontra a resistência de seu jovem rei,
Penteu, em aceitar a sua condição divina (1-5; 45-54)2:
Venho a esta terra tebana, filho de Zeus,
Dioniso, que nasce da filha de Cadmo,
Sêmele, partejada por relampeado fogo.
Troquei a forma de Deus pela humana,
presente às águas de Dirce e às de Ismeno.
(...)
Este combate o Deus em mim e repele-me
das libações, nem de mim se lembra nas preces.
Por isso mostrar-lhe-ei que Deus nasci
e aos tebanos todos. Após bem me pôr aqui
voltarei o pé para uma outra terra
a mostrar-me. E se a cidade tebana irada
tentar com armas expulsar da montanha
as Bacas, atacarei chefiando as Loucas.
Por isso alterado tenho aspecto de mortal
e minha forma transmutei em ser humano.
216
Na própria concepção de Dioniso faz-se presente o extraordinário, pois é o deus nascido duas vezes, vindo à luz pela primeira vez por Sêmele fulminada, sendo a seguir protegido até
o seu pleno desenvolvimento no corpo de seu pai Zeus, potência masculina que cumpre a função feminina de novamente
partejá-lo.
Enquanto filho de mãe mortal e pai imortal, Dioniso é um
deus singular. Não pertence à estirpe dos deuses olímpicos,
assim como sobrepuja aos semideuses,3 encontrando, na terra
e no mar, a sua morada, bem distante das alturas do Olimpo,
fazendo parte da estirpe dos deuses ctônios. Sua proximidade
com o mundo humano traduz-se na veemência de sua epifania, na força transbordante de sua aparição entre os homens,
ora teriomórfica, ora antropomórfica, de modo mais intenso que
a habitual aos outros deuses.4 É como um deus errante que
Dioniso chega a Tebas, sob forma humana, depois de instaurar
Utilizamos a tradução de J.A.A. Torrano. EURÍPIDES. Bacas. Estudo e tradução de Jaa Torrano.
São Paulo: Editora Hucitec, 2005.
3
Um semideus como Hércules também provém da união de Zeus com uma mortal; porém, Dioniso renasce a partir do corpo de Zeus.
4
Como exemplo, pode-se indicar o terremoto que destrói o palácio de Penteu (verso 585).
2
Contexto - ano XV - n. 14 - 2007
Krishnamurti Jareski
seu culto nas mais diversas regiões da Ásia.
Se Dioniso arrebata a fidelidade das mulheres tebanas,
levando-as a abandonar seus lares, o faz em oposição às determinações do rei de Tebas que, baseando-se na tradição familiar,5 não reconhece a divindade do filho de Sêmele. Penteu é
insolente e ímpio para com os deuses, representando o âmbito
da pólis,6 seja do ponto de vista espacial-geográfico ou da mentalidade daqueles que nela habitam, com seus expedientes intelectuais e suas práticas culturais.
O não-reconhecimento por parte da pólis de uma região para
além de seus domínios, a partir da expulsão das bacantes das
montanhas (51), advém de uma nova modalidade cultural, cujo
pensamento, fundado em argumentos e sutis raciocínios, investe
contra as tradições herdadas dos antepassados. Eurípides
esboça, em traços dramáticos, o ânimo confrontador das tendências intelectuais de seu tempo diante da sabedoria antiga na
relação de Penteu com seu avô Cadmo. Este representa a velha
sapiência daqueles que, como Tirésias - a quem dá as mãos em
apreço ao deus (199) - reconhecem a duplicidade na qual está
assentada a vida humana, devedora tanto das dádivas alimentares de Deméter quanto do vinho inebriante de Dioniso.7
Cadmo e Tirésias sabem, a partir das tradições imêmores,
que o vinho de Dioniso é tão indispensável ao homem quanto
o trigo de Deméter (275-280). Se da agricultura procede o elemento nutritivo seco, o pão, a partir de elementos básicos de
organização e regulamentação da vida que culminariam na
pólis, com suas divisões sociais, do vinho, elemento nutritivo
úmido, origina-se o gozo do retorno a uma condição mais fundamental de liberdade e de verdade, baseada no esquecimento, na
qual se desatam os laços das convenções e costumes da cidade.
Eurípides põe nos lábios de Tirésias elogios à agricultura, mãe
de todas as artes e atividade típica do processo civilizador, e ao
Penteu é filho de Agave, irmã de Sêmele, sendo, portanto, primo de Dioniso. São as tias maternas deste a fonte da recusa injuriosa de sua filiação divina.
6
A Cidade-estado grega. Adiante será discutida a repercussão, no plano do pensamento filosófico e religioso, desse fenômeno político.
7
O culto a Deméter e Dioniso formava uma espécie de religião agrária e mística, à parte da tradicional religião dos Olímpicos. TRABULSI, J.A.D. Dionisismo, Poder e Sociedade na Grécia até o
fim da época clássica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004, p. 96.
5
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vinho, descrito como suprema dádiva para os males terrenos,
capaz de fazer os velhos esquecerem a senectude (188-189),
suscitar alegria aos tristes (280), acessível a todos, sem distinção entre ricos e pobres (421). A mensagem da argumentação de
Tirésias corresponde a uma aceitação intelectual do dionisismo,
indicando que, perante tais dádivas, urge ao homem agradecer
e reconhecer a sua importância para a vida em sociedade.
Os comentadores são concordes quanto ao relevante papel
desempenhado pelos movimentos culturais do fim do século
V a.C. na dramaturgia euripidiana, como a sofística e a filosofia. Assim, é natural que as discussões promovidas pelos
movimentos intelectuais da época (como a controvérsia entre
a lei humana oriunda das convenções e a natureza) 8 e a questão da relatividade dos valores, encontrem ressonância em
momentos capitais de suas peças, como é o caso presente, na
intervenção de Tirésias, pela peculiar compreensão da religião nela expressa.
A referência à gratidão do homem para com os dons divinos
manifestos na natureza como princípio gerador da religiosidade,
demonstra a aplicação dramática da parte de Eurípides do pensamento dos principais representantes do movimento sofista,
como a tese de Pródico de Céos da religião como divinização do
útil. Segundo Pródico, tudo o que é benéfico e salutar ao homem
tende a ser considerado como da ordem do divino, num primeiro
momento o sol, a lua, os rios, e num segundo momento, a título
de exemplo, as artes e o cultivo de vegetais para alimentação.
Pela absoluta dependência da vida em geral em relação ao sol,
à água e ao fogo, as comunidades teriam instituído o culto a
Apolo, a Poseidon e a Hefesto, respectivamente.
As reflexões de Pródico acerca da religião, independente do
debate a respeito de seu pretenso ateísmo, demonstram algo
do ambiente racionalista típico da sofística, pois elaboram um
enfoque humano e social do problema.9 A hipótese de Tirésias
é exemplo de interpretação alegórica, modalidade hermenêutica
que tenta demonstrar a existência de um sentido profundo oculto
8
9
Ou seja, a famosa controvérsia nómos x phýsis.
UNTERSTEINER, M. Les Sophistes, II. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1993, p. 17.
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sob a literalidade dos versos ou do discurso mítico, buscando
preservá-los de acusações de falsidade à medida que surgiam
novas descobertas científicas ou novos padrões de moralidade.
O contraste entre a natureza do personagem mítico e o teor
de suas palavras é surpreendente. É Tirésias, o adivinho cego,
quem argumenta à maneira do racionalismo sofístico, talvez
como recurso extremo, apelo à razoabilidade de Penteu; logo
depois, tenta convencê-lo a partir da própria soberba real, como
na passagem em que relaciona o júbilo de Dioniso perante as
homenagens da cidade à alegria do rei pela exaltação de seu
nome pelo povo (319-320). Tirésias subordina seu discurso à
natureza de seu interlocutor, buscando preservá-lo das conseqüências funestas da resistência ao deus: como o ímpio é
insensível à epifania divina, tenta demovê-lo com raciocínios
sofísticos que, uma vez infrutíferos, dão lugar a uma tentativa
final com a menção ao prazer do rei e do deus aos quais se prestam honras.
Penteu, no entanto, recusa reconhecer as dádivas de Dioniso,
seja de forma religiosa, seja de forma racional, renegando assim
parte de sua própria natureza. Seu olhar não possui transcendência, no sentido de que acolhe apenas o que se evidencia de
modo inequívoco ao seu julgamento, rejeitando, conseqüentemente, qualquer instância do real interditada à inteligência
humana, o sentido grego do mistério.10 Assim, julga o bacanal
um ritual sórdido (232) e Dioniso, um impostor (234); escarnece
ainda da condição de seu avô Cadmo e do adivinho Tirésias que,
por estarem privados do juízo, seriam, aos seus olhos, nada mais
do que a personificação da insensatez, algo para ele vergonhoso
(251-252). E quando de sua confrontação inicial com Dioniso
estrangeiro (460-515), distingue, nas respostas deste, apenas
falsidade e vacuidade (475; 479), sofismas pérfidos (489), o que
o leva a arrebatar o tirso báquico das mãos do jovem Dioniso,
imagem da tensão dramática entre o símbolo do poder real, o
cetro, para com o símbolo da majestade divina.
As intervenções do coro ressaltam a desproporção entre
Nesse sentido, as religiões mistéricas dos gregos exigiam ritos de iniciação para a contemplação das verdades ocultas.
10
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os limites do poder humano em relação à plenipotência dos
decretos divinos, a partir da pergunta pela natureza da sabedoria (sophía), talvez o eixo central em que se move a mensagem
da peça (370-378; 395-402):
“Liceidade, Senhora Deusa,
Liceidade, pela terra
trazes a asa de ouro,
ouves isso de Penteu?
Ouves a não lícita
transgressão ao Brômio?
Filho de Sêmele, primeiro
Nume nos bem coroados
prazeres dos Venturosos,
(...)
A sapiência não é sabedoria,
ter-se por imortal também não.
Breve é a vida, e assim
quem a perseguir grandezas
não colheria o presente? Eis
modos próprios de loucos
e de quem, a meu ver,
tem malignos desígnios”
220
Ao discutir a natureza da sophía, Eurípides reforça ainda
mais a contraposição entre os costumes arcaicos, de caráter
religioso e pré-civilizatório, e as novidades intelectuais da pólis,
que apontam para uma concepção racionalista do mundo. Logo,
o coro, ao evocar a Deusa Liceidade (Hosía), roga ao divino para
que testemunhe os atos impuros de Penteu (374). Seus editos
infringem o que é sancionado pela lei divina e, ao fazê-lo, revelam-se eivados pela injustiça (adikía). Qualquer decreto oriundo
de lei terrena (no caso, as ordens de Penteu) é justo e equânime
(díkaios) quando se conforma com os preceitos divinos, e injusto
(ádikos) quando opera uma cisão entre o numinoso e o humano.
E esta última possibilidade de relação com os deuses constitui
um dos temas fundamentais da tragédia grega, expresso pela
noção de hýbris.
Seu sentido, na passagem em exame, denota a insolência,
a transgressão, a desmedida de Penteu mediante a recusa em
reconhecer a divindade de Dioniso, que subverte completamente
o sentido da piedade grega: a deliberação política julga poder
predominar sobre uma parcela fundamental da realidade, ao
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invés de, escrupulosa e reverencial, prestar-lhe as honras devidas. A deusa Liceidade (Pureza), evocada pelo coro, personifica
aquilo que é imposto ao homem enquanto préstimo necessário
para uma relação amistosa com os deuses, a devoção em troca
das dádivas que estes propiciam.
A condição de impiedade de Penteu é ressaltada pelos diversos adjetivos a ele dirigidos, notadamente pelo Coro: ele é o insensato insolente (387), malevolente (402), e sanguinário (555). Sua
arrogância advém da sapiência que, ao contrapor-se à sabedoria
arcaica, não apenas afronta aos deuses, mas também arrisca a
própria existência.
Ao pôr em discussão a natureza da sophía, Eurípides reforça
ainda mais a contraposição entre os costumes arcaicos, de caráter
religioso e pré-civilizatório, e as novidades intelectuais da pólis,
que apontam para uma concepção racionalista do mundo.
Ao separar cuidadosamente sapiência (tò sophón) de sabedoria (sophía), o Coro sublinha duas possibilidades ao homem
quanto à condução de sua vida: de um lado, a existência fundada na arrogância em atos e palavras, e, de outro, a vida plácida e prudente daqueles que, lúcidos, sabem dos limites de
seu próprio conhecimento (386-394). São bem conhecidas as
transformações semânticas sofridas pela palavra sophía. O sentido vai da habilidade em determinada ocupação, passando pelo
sentido mais genérico de prudência ou instrução geral, até a significação de sabedoria científica ou teórica. Interpretamos sapiência como as formas de cultura provenientes da vida citadina
ateniense, com as suas discussões em praça pública, no mercado e mesmo no teatro, ou seja, o legado intelectual urbano.
Penteu, portanto, detém uma sapiência carente de sabedoria. Ao seu edito obedecem os servos, prendendo as bacantes
e Dioniso que, sorridente, facilita o cumprimento do decreto
real (435-440). Mas é no relato do primeiro prodígio que se dá
o aviso inicial da extensão do poder do deus: as bacantes, reunidas no cárcere público de Tebas, são misteriosamente libertadas por mãos não-humanas que lhes desatam os grilhões
(443-448). O servo, que porta a notícia, alerta que o estrangeiro
recém-chegado é pródigo em prodígios, cabendo ao rei, em sua
competência, tratar a questão.
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A reação de Penteu dá início ao interrogatório a Dioniso, que
se processa pelas oposições iniciados/mortais não-Bacos (472),
bárbaros/gregos (482-3), dia/noite (485), visível/invisível (501),
lúcidos/loucos (504), entre outras. Notam-se, aqui e ali, traços
do fascínio inconfesso de Penteu para com Dioniso, seu parente
e, ao mesmo tempo, seu suposto rival: menciona que seu corpo
não é feio (453), ameaçando depois cortar seus “luxuriantes
cachos” (493). O processo de maravilhamento já começou.
Mas a despeito da atração que sente por Dioniso, Penteu
ordena sua prisão, ao que o deus revela que o nome de seu
detrator “é próprio para o infortúnio” (508), jogando com o significado da palavra grega pénthos, que indica dor, ou mesmo
luto. E logo a seguir (509-510) chega ao ápice a insolência do rei
tebano, ao sentenciar o encarceramento de Dioniso num estábulo eqüino.
Os eventos sucessivos ao edito de Penteu – o terremoto que
abala o palácio do rei (585) e o fogo que se inflama ao redor da
tumba de Sêmele (598) – conduzem, num primeiro momento, ao
relato de Dioniso de como facilmente iludiu Penteu e se evadiu
da prisão (616-637), e, posteriormente, ao testemunho do mensageiro a respeito das maravilhas do menadismo, peça-chave no
processo que persuade o rei tebano a testemunhar os extraordinários acontecimentos do Monte Citéron.
A longa passagem narrada pelo mensageiro (677-774), constitui, sem dúvida, o mais importante documento legado pela
Antigüidade acerca dos rituais báquicos, e veremos a influência que exerceu em outros campos do saber, notadamente na
filosofia.
Novamente, há o alerta do poder do deus, sendo que a fala do
mensageiro recorda a do servo, quando da misteriosa fuga das
bacantes: todos vêem o que Penteu se recusa a ver,11 e é marcante o temor de todos em relação ao comportamento intempestivo do rei tebano (664-671):
Vi Bacas veneráveis que desta terra
Adiante demonstraremos como o castigo de Penteu infligido por Dioniso relaciona-se com sua
atitude negativa de não ver o que deve ser visto em virtude de sua arrogância. Esse momento,
que em certa medida subverte a tradicional concepção aristotélica da anagnórisis (reconhecimento), constitui, talvez, o ponto culminante da tragédia.
11
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aguilhoadas dispararam desnudo pé.
Venho informar a ti e à cidade, ó rei,
que fazem proezas maiores que milagres.
Quero ouvir-te se com a palavra toda
informo aquilo lá ou se recolho a fala,
pois temo a rapidez de teu espírito, ó rei,
e o ânimo súbito e a majestade a mais.
O fascínio de Penteu em relação ao misterioso poder das
bacantes permite ao mensageiro exposição detalhada dos eventos no Citéron. Então somos informados que havia três tíasos12
de coros femininos, sendo que um deles era regido pela mãe de
Penteu, Agave (682). Suas vestes eram de pele de corça (nébrida),
seus cabelos estavam soltos, e eram capazes de prodígios que
provinham de um estado de comunhão com a natureza: coroadas de hera, amamentavam cabritos e filhotes de lobo, tendo
os corpos envolvidos por serpentes lingüejantes (695-700). Sob
o impacto do tirso,13 a pedra vertia água (705), e do chão da
terra se erguia fonte de vinho (707), e com as mãos as bacantes colhiam do solo jatos de leite (710), enquanto que dos tirsos emanava doce fluxo de mel (711). Platão, no seu diálogo Íon
(534 a), servir-se-á das imagens báquicas do leite e do mel para
ilustrar a singularidade do poeta possuído pelas Musas, capaz
de ornar as palavras com as qualidades representadas por tais
imagens: a imortalidade e a doçura do mel, a abundância e a
experiência iniciática do leite. E a descrição do poeta, no mesmo
diálogo, é clara ao enfatizar que o vate compõe não como alguém
que está em seu pleno juízo, sob o domínio de suas faculdades
intelectivas, mas como alguém inspirado e possuído, tomado de
“furor igual ao das bacantes, que só no estado de embriaguez
característica colhem dos rios leite e mel, deixando de fazê-lo
quando recuperam o juízo” (534 a4-6).14
Se até então o relato do mensageiro se limitara às “maravilhas do menadismo”, seu lado luminoso e criador, segue agora
o outro lado da moeda, o aspecto tenebroso do movimento, que
sucede à infrutífera tentativa, da parte do mensageiro, de capturar Agave (729). Narra-se então o ataque das bacantes, com as
O tíaso era um conjunto de pessoas associadas em louvor a Dioniso, uma associação, uma
confraria.
13
O tirso era uma espécie de bastão ornado com folhas de hera e pâmpanos, coroado em sua
extremidade com uma pinha.
14
PLATÃO. Íon. In: Diálogos I. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Pará: UFPA, 1973, p. 226.
12
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mãos nuas, às novilhas e aos touros, lacerando-os, e a invasão
báquica dos lares, no sopé da montanha, para o arrebatamento
das crianças (735-754). Contra este movimento de pilhagem
se armam os homens, porém, paradoxalmente, as mulheres os
põem em fuga, assim como o tirso supera o dardo em seu poder
bélico (758-763): é subvertida a ordem da natureza. E, mais
uma vez, Eurípides introduz na fala do mensageiro o apelo pela
acolhida de Dioniso em Tebas (769-771), reiterada pelo coro,
que canta o que “há de ser dito: Dioniso é menor que nenhum
dos Deuses” (777).
A passagem de transição seguinte, que conduz ao castigo
infligido pelo deus a Penteu, corresponde à transformação deste
operada pelas artes persuasivas de Dioniso. O episódio é pontuado pelo coro, que reitera a pergunta pela natureza da sapiência (877-881; 902-911):
224
Que é a sapiência? Que privilégio
dos Deuses entre mortais é mais belo?
É descer supremo o braço
acima dos cimos de inimigos?
O que é belo é amigo sempre.
(...)
Tem bom Nume quem escapa
do temporal no mar e vem ao porto;
tem bom Nume quem nasceu
acima dos males: cada um por sua vez
em poder e fausto supera a outrem.
Em dez mil dez mil esperanças
ainda há: umas findam
infaustas para os mortais.
Quem vive cada dia
com bom Nume, felicito.
A intervenção do coro afirma a natureza peculiar das esperanças humanas, caracterizadas pela incerteza diante do inédito
trazido por cada novo dia. Há sempre a abertura que pode tornar possível a desdita do homem considerado poderoso ou bemaventurado: é lugar-comum na sabedoria grega que somente
após a morte teremos condições de julgar o caráter distintivo
da vida de qualquer indivíduo. Se há uma unidade temática
nas tragédias legadas pela Antigüidade, é a da radical diferença
entre os sucessos humanos e os divinos: alteridade que levou
Hölderlin, em seu Canto do Destino, a contrapor a suma claContexto - ano XV - n. 14 - 2007
Krishnamurti Jareski
ridade da região celeste com a condição dos mortais, que não
têm descanso em seu mundo de sofrimentos. E é essa diferença
que previne homens como Édipo, Penteu, ou Lear e Otelo, de
considerarem a si mesmos como partícipes de uma felicidade
sobre-humana. A despeito de suas fundamentais diferenças,
decorrentes das peculiaridades ora da tragédia antiga, ora da
tragédia moderna, todos estes heróis trágicos testemunham o
desmoronamento de seus mundos particulares, da condição
social que ocupam, das relações humanas estabelecidas, tendo
experiências - dolorosas, diga-se de passagem - do quão efêmeras são as glórias humanas.
A catástrofe que acomete Penteu até a sua consumação no
Citéron, acompanha o sentido subversivo existente na soberba
daquele que pretende mover uma teomaquia: Penteu é transformado de caçador em caça, perdendo referenciais limítrofes entre
realidade e ilusão, ainda que de modo paradoxal seja esta condição que lhe permite, no ápice da peça, reconhecer a extensão
dos erros por ele cometidos.
Num texto em que cada verso é relevante, marcaremos as
imagens principais do processo de transformação da realidade
que se inicia após o relato do mensageiro. Explorando a mescla
de rejeição e fascínio da parte de Penteu em relação às bacantes,
Dioniso enfeitiça o rei tebano com palavras persuasivas que o
levam a aceitar hábitos femininos. Travestido com túnica de fino
linho (821), longa melena (831), e com a mitra, o tirso e a pele de
corça (833-835), Penteu, a despeito de seu pudor, reconhece ser
esta a melhor maneira de espionar o ritual, interdito ao gênero
masculino. E, assim, condenado ao riso dos tebanos (854), não
é mais o arrogante rei de outrora, o líder da resistência ao deus,
mas um outro, alguém completamente submetido e humilhado.
Como o ator que se traveste e deixa de ser ele mesmo para ser
um outro, Penteu, ao assemelhar-se a uma bacante, tem sua
individualidade dissociada mediante ação mimética que confunde ilusão e realidade.
Penteu, embriagado pela alucinação inoculada por Dioniso,
crê avistar dois sóis e duas Tebas, e o deus agora assume a
forma de touro (917-922). Seu comportamento já não é de desafio ao deus, ao contrário, solidariza-se com as instruções de um
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Os Paradoxos de Dioniso n’As Bacantes de Eurípides
Dioniso que o felicita pela sua mudança de espírito (943), conduzindo-o ao Citéron. O breve diálogo que ambos estabelecem
antes da partida explora a ambigüidade de palavras que se apresentam como ternas, mas que se revelarão terríveis (961-972):
P. Conduz-me através do país dos tebanos,
que deles sou homem único a ousar isso.
D. Único por este país tu penas, único:
aguardam-te combates que deviam aguardar.
Segue-me, o guia sou eu, sou o salvador,
de lá um outro te conduzirá.
P. A mãe.
D. Sinal será para todos.
P. Por isso vou.
D. Trazido virás...
P. Dizes-me delícias.
D. ... nas mãos da mãe.
P. A mimos me obrigas.
D. Tais mimos sim.
P. Méritos me tocam
D. Terrível tu terrível vais a terrível dor
de modo que descobrirás glória a tocar o céu
226
A catástrofe que se segue revela as terríveis ameaças que
comportam as palavras de Dioniso, sendo que somos informados, novamente, por um mensageiro. O primeiro prodígio a
ser descrito testemunha a força do deus estrangeiro que verga
imenso abeto até o chão (1065-1069), e Penteu é posto em
sua copa, visível a todos – o rei tebano assemelha-se à pinha
que coroa o tirso báquico – e as bacantes, conclamadas pelo
deus, tentam alvejá-lo com tirsos, seixos e galhos de abeto
(1095-1098).
O desenlace é rápido. Comandadas por Agave, as bacantes
desenraízam o abeto, o que provoca a queda de Penteu, imagem sensível da punição à soberba real, da passagem do poder
tirânico para o desamparo infantil que se segue. E o rei tebano,
ferido, é atacado pela própria mãe, constituindo o ápice trágico
da peça (1114-1121):
Primeiro a mãe sacerdotisa inicia a matança
e ataca-o. Ele tira a mitra da cabeleira
para reconhecê-lo e não massacrá-lo
a triste Agave. Ele toca-lhe a face
e diz: “Sou eu, mãe, sou o teu filho
“Penteu, pariste-me no palácio de Equíon,
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“tem-me piedade, ó mãe, e pelos meus
“desacertos, não massacres o teu filho!”
Tomando emprestada a noção aristotélica de anagnórisis
(reconhecimento), constatamos a insuficiência de esquemas
interpretativos no tocante à peça euripidiana, pois o reconhecimento que aqui sucede é um reconhecimento às avessas, pois
se dá mediante uma recusa: tudo aquilo para o qual Penteu
sempre fechou os olhos, o numinoso dionisíaco, é evidenciado
para ele mediante a agressão irracional de sua mãe, que em
sua alteração de consciência não reconhece o próprio filho, julgando-o um leão selvagem. Penteu roga a Agave, e para tanto
retira a mitra da cabeleira e toca ternamente a face materna,
que não responde com carícias maternais, mas com golpes que
denotam impulso destruidor ainda mais cruel. Dioniso retribui
Penteu com a mesma moeda, pois se o edito real negava a filiação do estrangeiro a Zeus, recusando a realidade da máscara
dionisíaca,15 agora é o mundo da loucura e do êxtase que desconsidera valor fundamental da vida na pólis, os vínculos de
consangüinidade.
O que sucede a seguir é demonstração cabal do que foi chamado como o “lado negro” do dionisismo. A descrição do mensageiro fala de sinais característicos da possessão báquica,
tais como o espumar da saliva e a rotação de pupilas reviradas
(1122-1123), e culmina no relato minucioso do sparagmós (despedaçamento/dilaceração) que sacramenta a dissolução física
de Penteu. Por fim, a cabeça deste, presa na ponta do tirso,
é transportada por Agave até as portas do palácio em Tebas,
como um troféu de vitória. Vitória esta que, segundo o mensageiro, revelar-se-ia logo após como pranto (1147), pelo reconhecimento do filicídio.
A total desolação em Tebas após os terríveis eventos no
Citéron conduz a peça a um segundo momento de anagnórisis
(reconhecimento). A gradual transformação operada em Agave,
do êxtase dionisíaco até a consciência dolorosa da máxima dor
(1282), pela descoberta do filicídio, comporta o reconhecimento
de que o castigo divino ultrapassou em muito os limites da famí15
Como dissemos anteriormente, Penteu considera o culto báquico um “ritual sórdido” (232).
Contexto - ano XV - n. 14 - 2007
227
Os Paradoxos de Dioniso n’As Bacantes de Eurípides
lia real de Tebas, submetendo a cidade inteira ao infortúnio.
Na completa ruína de sua estirpe, resta a Cadmo a predição de
seu destino como condutor de exército bárbaro contra a Grécia
(1356); e a Agave resta o exílio. A despedida não traz a esperança de restabelecimento da unidade familiar, nem de reencontro no futuro (1370-1387). A conclusão da peça, mediante
a intervenção do coro (1388-1392), é quase um motivo condutor na dramaturgia de Eurípides, imagem assaz conhecida, presente também em peças como Alceste e Medéia:
Co. Muitas são as formas dos Numes,
muitos os inesperados atos dos Deuses
e assim os esperados não se cumprem,
Deus acha passagem para o inesperado.
Assim acabou este drama aqui.
****
228
Todo aquele que se aproximar do fenômeno cultural
denominado “tragédia grega” perceberá a profunda contradição
intrínseca à sociedade que a engendrou: de um lado as forças
do mito e, de outro, as forças do discurso racional que, a partir
do séculoVI a.C., se fortaleceram continuamente. Logo, a
famosa tríade Ésquilo-Sófocles-Eurípides, que deu expressão à
mais poderosa forma poética do mito, o fez precisamente num
momento de crise do pensamento mítico.16 Da estréia da mais
antiga peça preservada de Ésquilo, Os Persas (472 a.C.), até
a encenação póstuma de As Bacantes (em torno de 406 a.C.),
peça que encerra o ciclo da Tragédia Ática, menos de cem anos
se passaram.
Ao leitor atento, a retomada do mito das bacantes por
Eurípides ilustra a crise de valores da época, pois, tendo como
elemento central o deus que representa o teatro, certas passagens testemunham as novidades do racionalismo, como
BURKERT,W. Mito e mitologia. Lisboa: Edições 70, p. 63.
GRUBE, G.M.A. The greek and roman critics. Indianápolis: Hackett Publishing Company, 1995,
p. 13; Albin Lesky detalha o formalismo da peça: cantos que expressam uma solenidade hierática pela medida jônica na métrica e a incidência do trímetro iâmbico e do tetrâmetro trocaico.
LESKY, A. A tragédia grega. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 264.
16
17
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Krishnamurti Jareski
algumas intervenções de Cadmo e Tirésias, que ilustramos
anteriormente.
Também é paradoxal a condição formal da peça. Grube17
indica transformações que ocorreram entre Ésquilo e Eurípides:
a gradual diminuição da importância do coro, a crescente complexidade da caracterização dos personagens, o incremento do
realismo. Em As Bacantes, ao contrário, a importância do coro
é determinante, e seus aspectos formais levaram-na a ser considerada por muitos como a mais “arcaica” de todas as tragédias
legadas pela Antigüidade, sendo Eurípides considerado o tragediógrafo do Iluminismo grego, quem teria dado impulso às tendências que levariam a termo o gênero legado pela tradição.
Tais contradições sugerem um retrato parcial e aproximado
do homem Eurípides. Segundo Lesky,18 as fontes nos legaram
a imagem de Eurípides como discípulo dos principais sofistas
da época, como Protágoras e Pródico, o que, sem dúvida, teria
sido de decisiva influência em sua concepção do trágico. Pois o
movimento sofístico, na metade do século V a.C., inaugurou um
novo período, pela valorização do debate racional sobre assuntos relevantes para a pólis. A esse respeito é modelar a frase de
Protágoras: “o homem é a medida de todas as coisas, das que são
enquanto são, das que não são enquanto não são”. Há aqui um
apelo humanístico, no sentido de que tradições seculares não
são mais compreendidas como dádivas dos deuses, mas como
algo que se insere no horizonte da racionalidade humana. Mas
Eurípides, diferentemente dos sofistas (que parecem ter professado uma espécie de ateísmo ou agnosticismo),19 apropria-se do
racionalismo de sua época para criticar a religião herdada20 sem,
contudo, negar a existência de entidades superiores ao humano.
Os deuses continuam a existir, mas agora o peso dramático está
centrado mais no homem, como nos informa Lesky:21
LESKY, A. Idem, p. 191.
“Acerca das divindades, não posso saber se existem ou não existem, ou como são figurados,
pois muitos obstáculos impedem verificá-lo: sua invisibilidade e a vida tão curta do homem”
(Protágoras).
20
Na Grécia não havia nenhum livro sagrado e a religião professada pelos gregos não era institucionalizada.
21
LESKY, A. Idem, p. 193.
18
19
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229
Os Paradoxos de Dioniso n’As Bacantes de Eurípides
Assim como a obra de Eurípides tem suas raízes no âmbito da
sofística, pleno da problemática das antinomias, é também ela
marcada por profundas contradições. A de mais graves conseqüências é: a firme crença nas figuras dos deuses da tradição
desapareceu e a autonomia do pensar e sentir humanos leva à
moldação de personagens para as quais uma nova concepção
do homem é mais decisiva que sua preformação pelo mito (...)
Os deuses ainda se movimentam pelo palco, mesmo que sua
significação, na crença do poeta, também tenha mudado e
o tema ainda nasce do mito, por mais que este, indestrutível como forma, continue servindo de recipiente para novos
conteúdos
230
Pode-se afirmar, portanto, a título de conclusão parcial, que
o teatro euripidiano é o mais característico da crescente tensão,
à época, entre o legado mítico e as novidades do racionalismo,
que no plano lingüístico operava a criação de uma nova linguagem, baseada na abstração e não mais nas imagens sensíveis que encontramos no discurso mítico. Porém, curiosamente,
justo ao final da tradição trágica, Eurípides compõe a peça formalmente mais arcaica, mesmo considerando-se as obras de
seus predecessores.
Qual a razão de aparente retrocesso formal? Questão que
nos remete às diversas soluções sugeridas pelos comentadores
para o problema de As Bacantes.
Há, aqui, divisão entre os comentadores e podemos agrupálos, de maneira caricatural, em dois grandes grupos: os que
advogam que Eurípides teria, ao final de sua vida, reconhecido
o erro fundamental das correntes racionalistas de sua época,
“convertendo-se” a uma tradição que teria renegado anteriormente (os palinodistas), e outros, que defendem a tese de que a
postura do tragediógrafo em relação ao mito das bacantes seria
de denúncia, uma condenação dos excessos desse movimento
religioso.
Qualquer texto que investigue a questão deve mencionar,
pelos méritos de sua contribuição ao problema, a solução proposta por Nietzsche, que se filia claramente à primeira corrente. Em sua obra O Nascimento da Tragédia ou Helenismo
e Pessimismo, Nietzsche sustenta o papel fundamental de
Eurípides no processo que conduz à repentina morte da tragédia, por sua tendência de remodelar a tradição a partir de bases
Contexto - ano XV - n. 14 - 2007
Krishnamurti Jareski
não-trágicas. O poeta de Salamina, influenciado pelas forças
racionais e teóricas de seu tempo, teria desvalorizado as forças
irracionais, instintivas ou inconscientes em cena na tragédia,
por sua adesão aos princípios daquilo que podemos chamar de
“socratismo estético”: “tudo deve ser inteligível para ser belo”,
“nada em excesso”, “só aquele que sabe é virtuoso” e “tudo deve
ser consciente para ser belo”.
Eurípides seria, segundo Nietzsche, aquele que, pela valorização do homem teórico e em detrimento do homem artista,
dá causa ao suicídio da tragédia. E é realmente curioso percebermos o súbito desaparecimento do gênero com Eurípides,
uma vez que em seus desenvolvimentos posteriores a tragédia
assumiu novas feições, explorou novos caminhos. Parece que
algo foi o estopim para a sua autodissolução, e esse “algo”, ou
“alguém”, para Nietzsche, no fundo não é Eurípides, mas sim
Sócrates e a modalidade de pensamento por ele inaugurada, de
base racionalista:22
Basta imaginar as conseqüências das máximas socráticas:
“Virtude é saber; só se peca por ignorância; o virtuoso é o
mais feliz”; nessas três fórmulas básicas jaz a morte da tragédia. Pois agora o herói virtuoso tem de ser dialético; agora
tem de haver entre virtude e saber, crença e moral, uma ligação obrigatoriamente visível; agora a solução transcendental
da justiça de Ésquilo é rebaixada ao nível do raso e insolente princípio da “justiça poética”, com seu habitual deus ex
machina
E, finalmente, dando acabamento à sua reflexão, Nietzsche
verá no episódio de As Bacantes uma espécie de retratação de
seu autor,23 como que um protesto contra a exeqüibilidade das
tendências racionais a que teria subordinado o seu teatro.24 Teria
se cansado da dialética, da racionalidade, e enxergado o desastre a que conduziria seguir o caminho apontado por .Sócrates,
NIETZSCHE, F.W. A origem da tragédia. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 89.
Esta tese já havia sido anunciada por Nietzsche em suas preleções na Universidade da Basiléia
(1870): “O velho Sófocles se pronunciou no Édipo em Colono (tal como Eurípides nas Bacantes)
sobre o que, na tragédia, liberta o mundo: Eurípides, como uma espécie de retratação, na medida em que ele mesmo se deixou esquartejar como Penteu, o sensato racionalista, opositor do
culto a Dioniso” NIETZSCHE, F.W. Introdução à tragédia de Sófocles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2006, p. 50 (apresentação, tradução e notas de Ernani Chaves).
24
NIETZSCHE, F.W. Idem, p. 79.
22
23
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Os Paradoxos de Dioniso n’As Bacantes de Eurípides
232
caminho este que, segundo Nietzsche, ainda caracteriza a civilização ocidental. Porém, infelizmente, já era tarde, e a tendência socrática tornou-se hegemônica, o que teria conduzido ao
súbito desaparecimento da tragédia.
Outros intérpretes, contrariamente, sustentam que a peça
nada mais é do que uma denúncia feroz das trevas que circundavam um movimento religioso capaz de rituais tão pavorosos
como o do sparagmós (dilaceração). Sob o crescente influxo do
racionalismo, a tendência verificável na cultura grega antiga
parece ter sido a tensão agonística expressa mediante reações
e contra-reações, entre as tradições religiosas e o movimento de
secularização, assim como E.R Dodds descreveu em sua obra Os
Gregos e o Irracional.25
Certamente as duas linhas de interpretação encontram
suporte parcial em diversas passagens da peça, mas o problema
reside na ambigüidade fundamental de sua composição. A grande
dificuldade é identificar qual o sentido do trágico entre extremos
antitéticos, seu “lugar”. A leitura que sugeriremos, longe de pretender resolver o problema, apenas indicará caminhos alternativos de reflexão, na tentativa de demonstrar as razões pelas quais
são insuficientes as propostas de subordinar o argumento da
peça somente ao mito ou apenas à reação racionalista.
Logo, abordaremos a questão não a partir da filiação de
Eurípides diante do racionalismo ou do mito trágico, mas sim
a partir das contradições de seu tempo, um tempo no qual se
verifica o seguinte paradoxo: de um lado, a poderosa tradição do
discurso mítico; de outro, o contínuo fortalecimento do discurso
racional, com a difusão da prosa. Estas duas tendências deixaram suas marcas em Eurípides, e julgamos que o “problema”
de As Bacantes só pode ser compreendido em sua totalidade se
levarmos em consideração, conjuntamente, o mito e o lógos.
Qualquer estudante de filosofia está familiarizado com a
tradicional visão histórica, sedimentada nos manuais da disciplina, do surgimento do pensamento racional do seio do penDODDS, E.R. Os gregos e o irracional. Lisboa: Gradiva, 1988.
É curioso e lamentável que este adjetivo ainda norteie a compreensão de muitos acerca do
pensamento do estagirita.
25
26
Contexto - ano XV - n. 14 - 2007
Krishnamurti Jareski
samento mítico. O esquema “do mito ao lógos”, como todo
esquema que se preze, fornece uma chave de leitura mas deixa
muita coisa importante à margem, ao mesmo tempo em que
pinta um retrato distorcido do que seja realmente a filosofia.
Lembremos que Platão, em seus Diálogos, recorre ao mito justamente nos momentos capitais da investigação, e Aristóteles,
aquele considerado por muitos o “cientista” por antonomásia,26
em sua velhice retornou ao que chamou de “as maravilhas do
mito”.27 Há, portanto, um paradoxo estrutural no pensamento
ocidental, como disse Karen Armstrong:28
Ocorreu, portanto, uma contradição fundamental no pensamento ocidental. O logos grego aparentemente se opunha à
mitologia, mas os filósofos continuavam a usar o mito, seja
para considerá-lo um precursor primitivo do pensamento
racional ou um discurso religioso indispensável. E, realmente, apesar dos avanços monumentais do racionalismo
grego durante a Era Axial, ele não afetou a religião grega. Os
gregos continuaram a oferecer sacrifícios aos deuses, participar dos mistérios eleusinos e celebrar seus festivais até o
século VI da Era Cristã, quando sua religião pagã foi reprimida à força pelo imperador Justiniano e substituída pelo
mito da Cristandade
Logo, o tempo de Eurípides é mais de sobreposição dos dois
termos da relação (mito e lógos) do que propriamente de substituição de um pelo outro: este é o paradoxo fundamental em jogo
em As Bacantes, e aqui encontramos a justificativa da entrada
em cena do deus do vinho e da embriaguez.
Walter Otto29 afirma que “cierto que no faltan las contradicciones em los reinos de otros dioses. Pero ninguno está tan atenazado por ellas como el de Dioniso”. O naipe de atributos do
deus é vastíssimo: deus da embriaguez, do vinho, liga-se também à fecundidade, à natureza, às forças ctônicas; o mais doce
e o mais cruel dos deuses; é libertador e benfeitor dos homens;
é capaz de operar prodígios, fazendo com que suas seguidoras
amansem feras, e subjuguem homens armados.
JAEGER, W. Aristóteles – bases para la historia de su desarollo intelectual. México: Fundo de
Cultura Económica, 2002, p. 368.
28
ARMSTRONG, K. Breve história do mito. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 88.
29
OTTO, W. Dioniso – Mito y culto. Madri: Siruela, 2002, p. 85.
27
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Os Paradoxos de Dioniso n’As Bacantes de Eurípides
234
É um deus da duplicidade e da subversão da ordem. Nele
tudo é paradoxal, pois seus dons testemunham sua natureza
ambígua: o vinho, que pode ser uma bênção ou mergulho na
loucura do delírio embriagado; o teatro, que é presença e ausência simultâneas, pois o ator deixa de ser ele mesmo para ser um
outro; a profecia, que indica um sentido, porém não diz coisa
alguma diretamente.
Com todos estes atributos é fácil percebermos que ninguém melhor que Dioniso para evocar o período final da tragédia, época repleta de contradições. Pois o século de Eurípides
é o século da mais elevada forma poética do mito30 e também o
período da difusão da prosa, tributária do pensamento racional.
Historicamente, corresponde ao final da Guerra do Peloponeso
(431-404 a.C.), que opôs em luta fratricida gregos contra gregos.31 A tudo isso, acrescente-se que Dioniso é um deus que
chegou tarde na Grécia, é um deus estrangeiro, o que reforça a
oposição gregos/bárbaros.
Para ilustrarmos a hipótese de que Dioniso representa justamente a contradição insolúvel daquela época, destacamos o problema “teológico” que aparece ao final da peça e que condensa,
em nosso modo de ver, muito da mensagem que Eurípides pretende nos transmitir. Logo após a conclusão do castigo ministrado por Dioniso a Penteu, encontramos o seguinte diálogo
entre o próprio Dioniso e Cadmo (1344-1348):
Ca. Dioniso, suplicamos-te, fomos iníquos.
D. Tarde nos soubestes, quando devíeis não víeis.
Ca. Reconhecemos, mas teu ataque é violento.
D. Assim Deus nato fui ultrajado por vós.
Ca. Não convém cólera semelhar Deuses a mortais.
A passagem é de extrema importância, pois revela o impasse,
o paradoxo fundamental da peça que é, também, o do período final da tragédia grega. O problema não pode ser resumido a uma simples rejeição ao racionalismo, como pretendeu
“É um paradoxo memorável que tenha sido precisamente da crise do pensamento mítico que
brotou a mais poderosa forma poética do mito: a tragédia ática” BURKERT, W. Mito e mitologia.
Lisboa: Edições 70, p. 63.
31
A Guerra do Peloponeso terminou em 404 a.C., e As Bacantes foi encenada pela primeira vez em
406 a.C.
30
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Nietzsche, nem a uma crítica aos mitos tradicionais. O que pretende Eurípides representar é a contradição essencial de uma
época que reconhece a maravilhosa epifania do divino sem,
contudo, poder aceitar as imagens dos deuses legadas pela
tradição. Não é de estranhar que, a partir de Platão, passando
por Plotino, tenha surgido aquilo que se convencionou chamar de “teologia negativa” ou “via negativa”. Este movimento,
caracterizado pela negatividade da compreensão religiosa, pretende afirmar, positivamente, mediante a recusa dos deuses
tradicionais, a imagem revista de um deus inatingível. É como
se o homem sentisse em si mesmo a demanda pela divindade, e
só encontrasse uma tradição religiosa insatisfatória: lembremos
que foi a representação indigna dos deuses um dos motivos da
condenação de Homero n’A República.32
E onde se localiza o trágico, definido por Goethe como resultado de uma “contradição inconciliável”?33 No caso presente, é
por um novo conhecimento ou saber, mais do que pelo nãosaber, que é instaurada a condição trágica. As conquistas do
racionalismo interditaram as vias de acesso aos deuses tradicionais, assim como a ciência moderna prescindiu, por vezes,
do conceito cristão do Deus criador. O homem já sabe demais
(possui o to sophón, a sapiência), e esta sapiência impossibilita
a vigência do sentido que a religião atribui à existência humana.
Esta é uma das razões da argumentação de Tirésias, de teor alegórico, pois ao procurar um sentido subjacente à literalidade do
mito, o homem se debate entre uma tradição religiosa agora inaceitável e o silêncio de um universo que não responde aos seus
clamores, e é essa a razão pela qual Eurípides nos descreve um
mundo tão desolado ao final de As Bacantes: o desamparo de
sabermos que um retorno ao passado, ainda que venerável, não
é mais possível. Aqui reside um novo sentido do trágico, que já
aponta para a dissolução da Tragédia Ática.
Para uma apreciação da crítica de Platão aos mitos tradicionais, ver os livros II, III e X desse diálogo.
“Qualquer tentativa para determinar a essência do trágico deve necessariamente partir das palavras
que, a 6 de junho de 1824, disse Goethe ao Chanceler von Müller: ‘Todo o trágico se baseia numa contradição inconciliável. Tão logo aparece ou se torna possível uma acomodação, desaparece o trágico’”
LESKY, A. Idem, p. 31.
32
33
Contexto - ano XV - n. 14 - 2007
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Os Paradoxos de Dioniso n’As Bacantes de Eurípides
Referências
I – Fontes primárias da Antigüidade
EURÍPIDES. Bacas. Estudo e tradução de Jaa Torrano. São Paulo: Hucitec,
1995.
PLATÃO. “Ião”. In: Diálogos I. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Pará:
UFPA, 1973.
II – Fontes secundárias
ARMSTRONG, K. Breve história do mito. Tradução de Celso Nogueira. São
Paulo: Companhia das Letras, 2005.
BURKERT, W. Mito e mitologia. Tradução de Maria Helena da Rocha Pereira.
Lisboa: Edições 70, 2001.
DODDS, E.R. Os gregos e o irracional. Tradução de Leonor Santos B. de
Carvalho. Lisboa: Gradiva, 1988.
GRUBE, G.M.A. The greek and roman critics. Indianapolis: Hackett
Publishing Company, 1995.
236
JAEGER, W. Aristoteles – bases para la historia de su desarollo intellectual.
Tradução de José Gaos. México: Fondo de Cultura Económica, 2002.
LESKY, A. A tragédia grega. Tradução de J. Guinsburg, Geraldo Gerson de
Souza e Alberto Guzik. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.
NIETZSCHE, F.W. A origem da tragédia ou helenismo e pessimismo.
Tradução, notas e posfácio de J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999.
____. Introdução à tragédia de Sófocles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006
(apresentação, tradução e notas de Ernani Chaves).
OTTO, W.F. Dioniso – mito y culto. Tradução de Cristina Garcia Ohlrich.
Madri: Siruela, 1997.
SEGAL, C. Dionysiac poetics and Euripides’ Bacchae. New Jersey: Princeton
University Press, 1997.
TRABULSI, J.A.D. Dionisismo, poder e sociedade na Grécia até o fim da
época clássica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
UNTERSTEINER, M. Les sophistes. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin,
1993.
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