TRAGÉDIA GREGA E VIRTUDE 1 A tragédia grega Tragédia é uma forma de drama, que se caracteriza pela sua seriedade e dignidade, envolvendo, frequentemente, um conflito entre uma personagem e algum poder de instância maior, como a lei, os deuses, o destino ou a sociedade. Suas origens são obscuras, mas é certamente derivada da rica poética e tradição religiosa da Grécia Antiga. Suas raízes podem ser rastreadas mais especificamente nos ditirambos, os cantos e danças em honra ao deus grego Dioniso. Dizia-se que estas apresentações estilizadas e extáticas foram criadas pelos sátiros, seres meio bodes que acompanhavam Dioniso. O filósofo Aristóteles teorizou que a tragédia resulta numa catarse, ou seja, em uma purificação sentida pelos espectadores diante de uma representação dramática. Isto explicaria o motivo dos humanos apreciarem assistir ao sofrimento dramatizado. Entretanto, nem todas as peças que são largamente reconhecidas como tragédias resultam neste tipo de final catártico - algumas tem finais neutros ou mesmo finais dubiamente felizes. Determinar exatamente o que constitui uma tragédia é um assunto freqüentemente debatido. Alguns sustentam que qualquer história com um final triste é uma tragédia, enquanto outros exigem que a história preencha um conjunto de requisitos - em geral baseados em Aristóteles - para serem consideradas tragédias. A literatura grega reúne três grandes tragediógrafos, cujos trabalhos ainda existem: Sófocles, Eurípedes e Ésquilo. O momento mais importante de representação de tragédias ocorria durante as Grandes dionísias, também chamadas Dionísias urbanas, festival em honra de Dioniso. Nesse festival os tragediógrafos concorriam a um prêmio, geralmente com três tragédias e uma peça satírica cada. Aristóteles dedicou boa parte de sua obra A Poética ao estudo e análise da tragédia, que tinha grande papel na cultura grega e, posteriormente, ocidental. Apesar de descritivo, seu trabalho foi posteriormente tomado como prescritivo por muitos estudiosos. Aristóteles descreve a tragédia como imitação de uma ação completa e elevada, em uma linguagem que tem ritmo, harmonia e canto. Afirma que suas partes se constituem de passagens em versos recitados e cantados, e nela atuam os personagens diretamente, não havendo relato indireto. Deve ainda cumprir três condições: possuir personagens de elevada condição - heróis, reis, deuses, ser contada em linguagem elevada e digna e ter um final triste, com a destruição ou loucura de um ou vários personagens sacrificados por seu orgulho ao tentar se rebelar contra as forças do destino. Por isso é chamada - assim como a 1 Adaptado de: ANTISERI, Dario. REALE, Giovanni. História da filosofia: Antiguidade e Idade Média, V.1. 3º ed. São Paulo: Paulus, 1990. p. 693, pp. 85-89. ANTISERI, Dario. REALE, Giovanni. História da filosofia: Do romantismo até nossos dias, V.3. 2º ed. São Paulo: Paulus, 1991. p. 1113, pp. 425-429. http://pt.wikipedia.org/wiki/Tragédia (acessado em 11 de outubro de 2010). comédia - de drama. Sua função é provocar por meio da compaixão e do temor a expurgação ou purificação dos sentimentos (catarse). Apesar da abundante produção na antigüidade, a maior parte das tragédias gregas não sobreviveu até os nossos dias. A impressão generalizada é de que, com o declínio de Atenas como cidade-estado, a tradição da tragédia desvaneceu. Friedrich Nietzsche, em sua obra O Nascimento da Tragédia (1872), aponta o otimismo de Sócrates como grande responsável por desviar a atenção dos gregos das tragédias para a filosofia. Eurípedes e Sófocles Quando Eurípedes escreve As Bacantes, ele coloca em cena a chegada do deus Dioniso à cidade de Tebas (que, nas tragédias, sempre representava Atenas), e a partir daí ele procura problematizar a existência do inconsciente, ou seja, do auto-conhecimento. Dioniso é o deus da arte, o deus-espelho que reflete para as pessoas o que elas são, e a partir de então elas podem aceitar o que são e o que os outros são, podem aceitar o diferente: começa a surgir o conceito de humanidade, de que o ser humano pertence a um universo maior que o da pólis. Dioniso trava uma batalha com Penteu, o Rei de Tebas, que não aceitava como virtuosas as idéias que Dioniso trazia. Penteu é um personagem elevado, que tem motivos nobres em relação à sua cidade, mas carrega consigo idéias de uma época vencida. Também podemos ver o caminho para uma nova sociedade, com nova dimensão individual, na trilogia tebana, de Sófocles. Formada pelas três peças Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona, a trilogia trata do novo conceito de homem e da humanidade, questiona o poder dos deuses e a autoridade do sagrado. Quando os gregos puderam assistir ao Édipo Rei, eles já conheciam o mito de Édipo – já sabiam que o personagem tinha matado seu pai sem sabê-lo, e que tinha se casado com sua própria mãe, e assistem à viagem de Édipo para dentro de si mesmo, para o auto-conhecimento. Sófocles questiona a autoridade do sagrado, pois Édipo não havia conseguido escapar de sua maldição, mas tentou a todo custo não cumprir o prometido pelo sagrado. No final das contas, os espectadores da peça ficam em dúvida, divididos entre aceitar o que for definido pelo sagrado ou rebelar-se contra este. Sófocles enfraquece o sagrado, ao mesmo tempo em que mostra um Édipo que passa a conhecer a si mesmo, cegando-se no momento em que vê sua esposa/mãe morta. Temos dois personagens que, em oposição um ao outro, mostram dois diferentes destinos: enquanto que Penteu, de Eurípedes, fica completamente louco por não aceitar cultuar Dionísio, por não aceitar conhecer-se a si mesmo, por não aceitar o deus do auto-conhecimento, Édipo se torna, como podemos ver em Édipo em Colono, um senhor que se conhece e se sustenta sozinho, com a força que ele encontra dentro de si mesmo. Vemos, na segunda peça da trilogia, um homem que desafia o sagrado e a pólis. No terceiro texto da trilogia de Sófocles, Antígona, filha de Édipo, se encontra em uma situação muito complicada: seu irmão Polinices está morto e o rei Creonte proibiu que seu corpo fosse enterrado, devido ao fato dele ter atentado contra a cidade. Caso Antígona não enterre seu próprio irmão, ela não lhe concederá o culto religioso que completará o ciclo da vida, e cometerá um erro impensável para com sua família. No entanto, se enterrá-lo, ela cometerá um crime contra a cidade visto que o rei proibiu que qualquer um o enterrasse. Será a partir das tragédias que começará a se desenvolver a filosofia socrático-platônica, que desenvolverá o conceito de alma, de que o homem só conhece o mundo quando conhece a si próprio, e de que o maior conhecimento é o conhecimento de si mesmo. Analisando a cronologia das apresentações das tragédias aqui comentadas, podemos ver que houve uma mudança no que se refere à dimensão individual. Em 447 a.C. foi encenada a peça Antígona, que apresenta o problema entre as duas dimensões existentes na sociedade. Vinte anos mais tarde, em 427 a.C., os atenienses assistiram a Édipo Rei e percebem a importância do autoconhecimento. Somente 22 anos mais tarde, em 405 a.C., a peça de Eurípedes é encenada e o cidadão ateniense vê que não aceitar Dioniso pode ser desastroso, em função do que acontece com Penteu. Apenas quatro anos depois, Sófocles mostra, em Édipo em Colono, um Édipo que continua sendo um homem elevado, mas não comete nenhum erro trágico – ele já se tornou um indivíduo, um homem que se conhece e conhece o próximo, e se desprende totalmente do sagrado. Nestes quarenta e seis anos, formou-se o embrião da filosofia que, a partir de Sócrates e Platão, nortearia, alguns séculos mais tarde, toda a sociedade ocidental. Nietzsche Na obra O nascimento da tragédia, de 1872, Friedrich Nietzsche irá nos mostrar como a civilização grega pré-socrática explodiu em vigoroso sentido trágico, ou seja, na aceitação extasiada da vida, coragem diante do destino e exaltação dos valores vitais. A arte trágica seria um corajoso e nobre sim à vida. Essa Grécia a que Nietzsche se refere é aquela anterior a Sócrates, Platão e Aristóteles. O segredo desse mundo grego está associado ao deus Dioniso, que é a imagem do poder instintivo, da saúde, da embriaguez criativa, da paixão sensual, é a maior referência a uma humanidade em plena virtude e harmonia com a natureza. Nietzsche irá atribuir o desenvolvimento da arte grega não apenas a este dionisíaco, mas também ao apolínio, que seria a tentativa de expressar o sentido das coisas a partir da moderação, em imagens equilibradas e limpas, advindas do deus Apolo. Para Nietzsche o desenvolvimento da arte está ligado à oposição entre o apolíneo e o dionisíaco. Estes estabelecem um conflito contínuo e reconciliam-se apenas periodicamente. É justamente por isso que podemos dizer que o mundo grego é marcado por enorme contraste: do lado de Apolo, a arte figurativa, e do lado de Dioniso a arte não figurativa. Esses dois instintos, tão diversos entre si, seguem lado a lado, na maioria das vezes, em grande discórdia, e somente em virtude de um milagre metafísico, apresentam-se acoplados um ao outro, gerando a obra de arte, que é tanto dionisíaca, quanto apolínea. Contudo, como vimos anteriormente, com Eurípedes, tenta-se eliminar o elemento dionisíaco da tragédia em favor da moral e do intelecto. É então que surge Sócrates presumindo compreender e dominar a vida a partir da razão. Para Nietzsche essa foi a verdadeira decadência da humanidade, na qual Sócrates e Platão representaram a dissolução grega, enganaram a si próprios, utilizando da decadência para combater a decadência. A racionalidade excessiva, a vida consciente e esmagadora dos instintos, em contraste com os instintos é o maior sinal da decadência grega, que influenciou o cristianismo e nos esmaga ainda hoje. Sócrates veio combater o fascínio dionisíaco e sendo assim, combateu também os vínculos entre o homem e o próprio homem. Sócrates Em grego, virtude se diz areté e significa aquilo que torna uma coisa boa e perfeita naquilo que é, ou seja, é o modo de ser de cada coisa que faz com que ela seja o melhor naquilo que ela deve ser. Por exemplo, a areté do cachorro é a de ser um bom guardião, a das árvores é a de dar os melhores frutos etc. Nessa sequência, a virtude do homem consiste em ser aquilo que faz com que sua alma siga conforme manda a sua natureza, ou seja, boa e perfeita. Para Sócrates isso só será possível a partir do conhecimento, enquanto o vício seria a privação deste conhecimento, a ignorância. Sendo assim, Sócrates propõe uma radical inversão no quadro de valores da época. Os verdadeiros valores não mais serão aqueles ligados às coisas exteriores, como a riqueza, o poder, a fama, e muito menos os ligados ao corpo, como a vida, o vigor, a saúde física e a beleza. Os verdadeiros valores se resumirão aos ligados à alma, ou seja, ao conhecimento. Com isso os valores tradicionais não se tornam desvalores, mas deixam de ter valores em si mesmos. A riqueza, a fama, a vida, o belo, assim como vários outros, se guiados pela ignorância, serão males muito maiores do que os seus opostos, visto que serão mais capazes de servir a uma má direção. Se, no entanto, forem governados pelo juízo e pelo conhecimento, serão bens muito maiores, mas nunca terão valores em si mesmos.