Teoria do Conhecimento e Filosofia da Ciência I – Osvaldo Pessoa Jr. – 2010 Capítulo VIII MEDICINA E MÉTODO EM GALENO 1. Galeno O maior médico romano seria Galeno de Pérgamo (129-c.200 d.C.). Estudou medicina em diferentes centros, inclusive Alexandria, e tornou-se médico oficial dos gladiadores. Em Roma, tornou-se conhecido por suas aulas públicas, tornando-se médico da família imperial. Deixou uma vasta obra em biologia e medicina, escrevendo também sobre filosofia e filologia. Defendeu o ensino de filosofia para médicos por três razões: (i) o doutor precisa ser treinado no método científico, para poder argumentar corretamente (mas nem tanto para saber avaliar evidência); (ii) o médico precisa estudar a natureza, ou como diríamos hoje, precisa conhecer teoria biológica; (iii) o doutor deve aprender a desprezar o dinheiro! A fisiologia de Galeno partia da distinção tradicional entre quatro elementos (terra, água, ar, fogo) e quatro qualidades primárias (quente, frio, seco, úmido). Seguindo Platão, identificou três faculdades da alma: o racional (ligado ao cérebro, centro do sistema nervoso), o animal ou espiritual (ligado ao coração, a fonte das artérias) e o nutritivo (ligado ao fígado, fonte das veias). Esse esquema fisiológico seria herdado pela medicina medieval e árabe. Não tendo acesso a cadáveres humanos para dissecação, baseava suas conclusões nos corpos de animais. Em animais vivos, fez incisões em torno de diferentes vértebras para determinar que partes e funções eram afetadas. Seguiu a tradição de Hipócrates, estudou Erasístrato, e se inspirou nos ensinamentos de Aristóteles. Sua vasta obra anatômica se baseou na dissecação de macacos, o que o levou a alguns erros significativos. Erasístrato havia seguido a recomendação de Aristóteles de estrangular o animal antes de fazer uma dissecação, e com isso concluíra que nas artérias havia apenas ar. Figura VIII.1: Esquema representando o Rejeitando este método de preparação, Galeno escoamento de sangue no coração, segundo pôde mostrar que as artérias também contêm Galeno. Nota-se que ele acreditava que sangue. Distinguiu entre o sangue venoso, mais sangue passa diretamente do ventrículo denso e escuro, e o sangue arterial, mais leve, direito (RV) para o esquerdo (LV), e que ele reflui pela válvula mitral (3).29 vermelho brilhante e imbuído de um “espírito vital” que seria produzido no coração a partir do ar respirado. A partir da vivissecção de animais, Galeno desenvolveu bastante a teoria da digestão, introduzindo outros elementos na visão exclusivamente mecanicista de Erasístrato. Destacou que na nutrição o alimento é inicialmente emulsionado em um “quilo”, para depois ser digerido (“pepsis”) e finalmente absorvido. 29 Sobre Galeno, incluindo a Fig. VIII.1, consultamos LLOYD (1973), op.cit. (nota 25), pp. 75-90. 28 TCFC I (2010) Cap. VIII –Medicina e Método em Galeno Segundo Galeno, o fígado geraria o sangue a partir da alimentação proveniente do estômago e dos intestinos, e o sangue nutriria o resto do corpo. Do fígado, o sangue iria pela veia cava (VC) para o ventrículo direito (RV) do coração, de lá nutriria os pulmões e iria para o resto do corpo, impedido de retornar ao coração por causa de válvulas. Galeno supôs que a função da respiração era o de esfriar o sangue e o coração, sendo que o ar iria até o coração através veia pulmonar. Seu erro mais famoso foi a conclusão de que no coração o sangue pode passar diretamente do ventrículo direito (“RV”) para o esquerdo, através da parede muscular que separa estas duas cavidades (Fig. III.2). Chegou a esta conclusão por perceber que a válvula tricúspide (por onde o sangue entra no ventrículo direito, “1” na figura) era maior do que válvula pulmonar (“2” na figura), e por imaginar que capilares (como os que Erasístrato inferiu para a ligação entre artérias e veias) estariam presentes no septo (parede) interventricular. Assim, o sangue acabaria refluindo pela válvula mitral (“3”). Em seu raciocínio, utilizou também o princípio de que a natureza não faz nada sem um motivo. 2. A Estrutura de Teorias Científicas Ao longo do curso, iremos discutir aspectos gerais da estrutura de teorias científicas. Para preparar essa discussão, será útil enfocarmos algumas teorias específicas, o que ilustrará também a variedade de tipos de teorias que existem. Nosso primeiro estudo de caso será a Fisiologia Galênica, que se caracteriza por ser uma teoria de tipo teleológica. A obra de referência é seu Do Uso das Partes do Corpo.30 Ao caracterizar uma teoria científica, podemos destacar suas teses centrais (“núcleo duro”, na terminologia de Lakatos31) e as teses periféricas (cujo abandono não afetaria significantemente a estrutura da teoria). Essas teses podem ser mais empíricas (envolvendo observações ou constatações experimentais), ou pedem ser mais teóricas e gerais. Uma teoria, tomado em sentido lato (o que inclui, além das teses teóricas e empíricas, também dados experimentais, metodologia, técnicas, valores, etc.), também inclui uma metodologia ou heurística. Vale destacar, também, quais são as evidências favoráveis à teoria e as desfavoráveis. Chamaremos estas últimas de problemas, que podem ser teóricos (às vezes são chamadas de “anomalias”, mas em geral só são identificados muito tempo depois que a teoria é proposta) ou metodológicos. Por fim, devemos considerar que uma teoria científica em geral faz parte de uma tradição de pesquisa (“programa de pesquisa”), que se esforça por conservar um certo número de teses centrais. Nesse sentido, é interessante destacar os antecessores da teoria científica sendo analisada, assim como os opositores da teoria, que formariam uma tradição de pesquisa rival. 30 GALENO, C. (1994), De l’Utilité des Parties du Corps Humain, in Galien – Oeuvres Médicales Choisies I, trad. C. Daremberg e notas A. Pichot, Gallimard, Paris (orig. em latim: 180 d.C.). 31 LAKATOS, I. (1979), “O Falseamento e a Metodologia dos Programas de Pesquisa Científica”, in LAKATOS, I. & MUSGRAVE, A. (orgs.), A Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento, Cultrix, São Paulo, pp. 109-243 (orig. em inglês: 1970). 29 TCFC I (2010) Cap. VIII –Medicina e Método em Galeno 3. Análise de uma Teoria: A Fisiologia Galênica FISIOLOGIA GALÊNICA Escopo: Partes do corpo humano. Tipo de teoria: Teleológica. Tradição de pesquisa: Teleologia Platônico-Aristotélica. Teses teóricas centrais: – Teleologia: Todas as partes do corpo têm um uso, um motivo (Aristóteles). Mesmo os órgãos que parecem inúteis servem uma finalidade, de utilidade ou beleza. – Alma tripartida (Platão): as faculdades da alma são localizadas: a nutritiva (fígado, distribuído pelo sangue, nas veias), a animal (coração, distribuído pelo pneuma, nas artérias) e a racional (cérebro, distribuído pelo pneuma psíquico nos nervos). – Quatro humores (líquidos): sangue, bile amarela, bile negra e flegma (catarro) (Hipócrates). – Teísmo: Demiurgo criou todas as partes do corpo da melhor maneira possível (Platão e Cristianismo). Teses teóricas periféricas (algumas): – Teoria do fluxo de sangue no coração, com sangue passando por “sinanastomoses” (capilares) no septo interventricular. – Respiração serviria para resfriar o excesso de calor do coração. Teses empíricas (algumas): – Nervos brandos têm função sensitiva, ao passo que nervos duros têm função motora. – Artérias contêm sangue (contra Erasístrato). Metodologia (alguns aspectos): – Importância do experimento fisiológico: dissecação de animais. – Incisão em animais vivos para afetar as funções. Problemas (alguns possíveis): – Não havia evidência de que existissem sinanastomoses no septo interventricular. – Observação em animais nem sempre corresponde ao corpo humano (métodológico). Antecessores, na tradição de pesquisa: – Hipócrates, Platão, Aristóteles, Praxágoras, Herófilo e Erasístrato. Opositores: – Epicuro, Asclepíades: atomismo sem teleologia. – Estóicos: doutrina da alma uma e indivisível. 30