1 OS AVANÇOS TECNOLÓGICOS DA PESQUISA AGROPECUÁRIA E A PRODUÇÃO DE ALIMENTOS: APONTAMENTOS PARA UMA DISCUSSÃO THE AGROPECUARY RESEARCH TECNHOLOGICAL ADVANCES AND THE FOOD PRODUCTION: ELEMENTS TO A DISCUSSION [email protected] Apresentação Oral-Ciência, Pesquisa e Transferência de Tecnologia FELIPE JOSÉ COMUNELLO1; MOISÉS SAVIAN2. 1.CPDA/UFRRJ, RIO DE JANEIRO - RJ - BRASIL; 2.UDESC, LAGES - SC - BRASIL. Os avanços tecnológicos da pesquisa agropecuária e a produção de alimentos: apontamentos para uma discussão The agropecuary research tecnhological advances and the food production: elements to a discussion Resumo Este artigo parte da discussão provocada pela crise dos alimentos de 2008 acerca dos avanços tecnológicos da pesquisa agropecuária no país, necessários para aumentar a produção de alimentos. Argumenta-se que houve considerável avanço desde os 1960, com o fortalecimento dos investimentos públicos mesmo durante as sucessivas crises econômicas e a crise do Estado no final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Essa condição apóia-se numa estratégia de mobilizar o setor primário (agroindustrial, agronegócio) para a geração de superávit, que estabiliza a economia equilibrando o balanço de pagamentos, pelo menos a curto prazo. Porém, para que haja maior segurança com relação a produção de alimentos é desenvolvida a noção de que os avanços tecnológicos precisam ser encarados não apenas do ponto de vista econômico. Palavras-chave Avanços tecnológicos, setor primário, produção de alimentos. Abstract This paper begins with the discussion generated by the 2008 food crisis, regarding the agropecuary research technological advances in the country, which are necessary to enhance the food production. In this area, there was a considerable development since the 1960s, with the strengthening of public investments even during the consecutive economic crises and the State crisis in the late 1970s and beginning of 1980s. This condition is supported by a primary sector (agro industrial, agribusiness) mobilization strategy to financial surplus generation, which stabilizes the economy and the balance of payments, at least in a short term. However, in order to have more security regarding the food production, the technological advances need to be faced not only from an economic standpoint. Key-words Technological advances, primary sector, food production 2 Introdução A chamada crise dos alimentos ocupou com destaque os holofotes no primeiro semestre de 2008. Ao aumentar os preços dos produtos elevou a inflação e jogou os efeitos para toda economia, deixando de ser preocupação de conjunto restrito de atores mais diretamente envolvidos com o sistema agroalimentar. É possível sustentar que não existe uma única causa para essa crise e, por extensão, as soluções também devem ser encaradas no plural. Na tentativa de enumerar algumas das causas, podem-se visualizar como particularmente importantes a elevação dos preços internacionais do petróleo, os reflexos aos estímulos à produção de agrocombustíveis (nos Estados Unidos em especial), a migração de rentistas em resposta a crise imobiliária norte-americana para o mercado de commodities brasileiro e o aumento do consumo de alimentos ativado pelas melhorias na renda da população em várias partes do planeta, com destaque para os chineses1. Em meio a essas e outras explicações, pode-se encontrar semelhanças com o que se passava nos primeiros anos da década de 1960, quando a modernização agrícola/agropecuária, também conhecida como “modernização conservadora”, foi apresentada como solução para aumentar a produção de alimentos. Nesse caso, deixou-se para trás as propostas de soluções no âmbito da reorganização estrutural, sintetizadas em uma reforma agrária (que além de abarcar a problemática da oferta de alimentos interferiria na distribuição de renda e poder) e optou-se por manter a concentração fundiária, produtiva, econômica e política. Passado esse período inicial é preciso observar o plano macroeconômico para situar as transformações ocorridas no que toca as mudanças tecnológicas. A década de 1980 ficou marcada pelo ajustamento externo com redução vigorosa do financiamento internacional, junto à crise fiscal do Estado após um longo percurso de crescimento. A agricultura ou o setor agroindustrial foi mobilizado para equilibrar a balança comercial através de saldos superavitários, enquanto outros setores diminuíam seu papel. Em outros termos, a economia nacional passou a recorrer aos recursos naturais da agricultura no intento de responder uma situação de crise econômica, ao passo que outros ramos da indústria, com maior tecnologia agregada foram relegados a segundo plano. A crise fiscal contribuiu para impulsionar a redução do tamanho do Estado, desde meados dos anos 1980. No entanto, na pesquisa agropecuária o observado no período é o fortalecimento das instituições e dos investimentos públicos. Com iniciativas públicas através de instituições de pesquisa e universidades foi gerada uma série de inovações tecnológicas que abasteceram esse setor, o que foi de fundamental importância para o aumento de produtividade visualizado ao longo das últimas décadas. Deve-se considerar que a pesquisa teve um grande impulso a partir da criação da EMBRAPA em 1973, que permitiu ao setor agroindustrial, agora agronegócio, desempenhar papéis de equilíbrio na balança comercial da economia nacional em diferentes momentos. Em paralelo a esse processo, deve-se destacar a importância assumida pelo crédito subsidiado (na figura do Sistema Nacional de Crédito Rural - SNCR) e pelo sistema de extensão rural, que em sintonia com as iniciativas de pesquisa, formaram uma importante base para a consolidação da modernização da agricultura brasileira. O objetivo desse trabalho é abordar as relações entre os avanços tecnológicos da pesquisa agropecuária e a produção de alimentos, uma vez que a sua capacidade de atender a demanda tem sido colocada em cheque no período recente. Para tanto, na primeira seção busca-se compreender a emergência do setor agroindustrial nos anos 1980 enquanto um 1 Para mais detalhes ver: Maluf, R. S. Elevação nos preços dos alimentos e o sistema alimentar global. Artigos Mensais OPPA - nº18 - abril 2008. 3 suporte para a balança comercial, verificado esse fenômeno na segunda metade dos anos 1990 sob a figura de agronegócio2. Em seguida, será tratado o espaço ocupado pela tecnologia nesse desempenho num período que se inicia com a chamada modernização agrícola, com destaque para a presença da EMBRAPA, até os dias atuais. Os dados utilizados são provenientes de fontes secundárias e a argumentação teórica procura aliar diferentes perspectivas das ciências sociais à análise econômica. Dessa forma, procura-se apontar para uma discussão sobre a necessidade de se encarar os avanços tecnológicos não apenas tendo em conta as quantidades produzidas, mas também como se inserem em outros tipos de relações. Os anos 1980 e a emergência do setor agroindustrial Os anos 1980, e as crises que o acompanharam, foram situados pela maioria da literatura como a fase final do esgotamento de uma estratégia predominante na economia conhecida como nacional-desenvolvimentista que implicava em abdicar da condição de país agro-exportador para se industrializar. Talvez seja marcante para essa fase final que os três choques externos sobre a economia brasileira em 1979 anunciam a crise da dívida externa que se transformaria na Grande Crise da economia brasileira (BRESSER PEREIRA, 1997). Uma ampla e moderna industrialização do país foi vista num período que se abre nos anos 1930, indo além de outras economias latino-americanas, e ficou marcada pela forte presença do Estado através da criação de um arcabouço institucional e de intervenções diretas, como a criação de empresas-chave e de investimentos nas áreas de retorno a longo prazo. A literatura que trata do tema situa diversas explicações para o processo, como as origens da indústria anteriores a 1930 - a ressaltar-se a importância da entrada em cena da propriedade privada, do trabalho assalariado e do sistema econômico visando o lucro -, e o papel do Estado3. No entanto, como destacou Castro (1996), a longevidade do “boom” do crescimento brasileiro pode ser fundada em dois fatores: em nenhum momento o país considerou um retorno à perseguição de vantagens comparativas naturais e em nenhum momento a estagnação da economia foi considerada como um período de “limpeza da casa”, ainda que isto representasse ameaças ao equilíbrio macroeconômico. É possível visualizar que os recursos naturais diretamente relacionados a agricultura, como a terra por exemplo, passaram também a ser objeto da indústria, no período que é amplamente conhecido como a modernização e/ou industrialização da agricultura brasileira. Kageyama et al (1990) destacam a passagem do que os autores chamam de “complexos rurais” para os “complexos agroindustriais”, que vai de 1850 com a lei de terras e fim do tráfico negreiro, terminando em 1955 com a implantação do D14 em bases industriais modernas. Vale a pena destacar as palavras de Delgado (2001) sobre o debate que vigorava na época, particularmente no pós-guerra, acerca do lugar do setor rural na economia e na sociedade brasileiras: Ora, no pós-guerra, liberais, desenvolvimentistas e interlocutores da “questão agrária”, debateram o lugar do setor rural na economia e na sociedade, mas fortemente influenciados pela industrialização que ocorria, seja como ajustamento 2 Entende-se que existem significativas diferenças entre setor agroindustrial, agronegócio, setor primário e setor de recursos naturais. Optou-se por não explorar com rigor essas diferenças por não serem centrais para os objetivos do artigo e por demandarem outro tipo de abordagem. No entanto, isso pode trazer alguns prejuízos para o entendimento da discussão. 3 Ver para maiores detalhes, entre outros, Suzigan (2000) e Mello (1982). 4 Departamento 1, na linguagem econômica compreende a indústria de bens duráveis, a indústria pesada, que seria uma fase avançada da industrialização do país, pois necessita de bases suficientemente sólidas para sua instalação. 4 constrangido da economia brasileira à realidade da substituição de importações nos anos 30 e no período da Segunda Guerra, seja como um projeto explícito da política econômica no Pós-guerra. O pensamento liberal, livre cambista, adepto das vantagens comparativas do setor primário, compareceu isoladamente neste debate, muito singularalizado na figura de Eugênio Gudin e não como protagonista do pensamento dominante dos meios políticos e acadêmicos de então. Dos reflexos desse momento de intensas transformações pelas quais passou o rural, não são poucos os estudos que procuraram (e procuram) situá-lo. Dentre estes, destacam-se as afirmações de Navarro (2001) de que com a disseminação de tal padrão na agricultura, desde então chamado de “moderno”, passou a ser subordinado aos novos interesses, classes e formas de vida e de consumo, majoritariamente urbanas. Não obstante, outros autores chamam a atenção para a compreensão dos processos mais amplos. Palmeira e Leite (1998) sugerem que: “(...) as mudanças sofridas pela sociedade brasileira, nas últimas décadas, não se limitaram à sua economia, e nem as mudanças sofridas pelo campo se limitaram à agricultura, e nem as mudanças na agricultura foram apenas econômicas, e nem as mudanças econômicas no setor agrícola se restringiram à modernização tecnológica, ou à integração ao mercado, ou a integração ao complexo agroindustrial e, finalmente, nem as mudanças sofridas pelo setor agrícola para além da modernização limitaram-se aos seus efeitos perversos.” No entanto, os anos 1980 revelam uma estagnação industrial sob os auspícios da Grande Crise, onde cresce a importância dos saldos comerciais obtidos a partir dos recursos naturais. Leite (1996) indica que o peso na pauta de exportações do “macrosetor agrícola” registrava em 1980 uma participação de 56,38% com relação ao valor total de transações. Em 1995, apesar de todas as previsões contrárias (diversificação da pauta, importância do mercado doméstico, etc.), o macrosetor implicava ainda – e com trajetória ascendente – em 41,57% do montante global de produtos exportados. Após a crise cambial de 1999 a busca por superávit recoloca os incentivos ao setor primário na agenda prioritária da economia brasileira. Para Delgado (2008) há evidência de que o Brasil vem perseguindo um ajuste conjuntural-estrutural da Conta-Corrente do Balanço de Pagamentos, onde os requerimentos de exportação de “food grains”, “feed-grains”, carnes, produtos de origem florestal, agrocombustíveis e produtos de origem mineral passaram a ser imprescindíveis para compensar o desequilíbrio estrutural da “Conta Serviços” e do comércio internacional de bens industrializados de maior intensidade tecnológica. Por outro lado, esta prioridade dada ao setor primário, coloca o país numa dependência de importação de produtos com maior intensidade tecnológica. Como apontam Carvalho e Silva (2005), apoiar-se na agricultura como principal fonte de divisas coloca o país numa situação de vulnerabilidade, já que a demanda mundial por produtos agrícolas é decrescente, a variabilidade dos preços e quantidades de comércio agrícola é bem maior do que a dos produtos industrializados, e as relações de troca das exportações agrícolas têm declinado nos últimos 30 anos. É ponto pacífico que são grandes empresas, boa parte transnacionais, que estão na dianteira desse processo. Esta é uma característica importante quando se observa o lugar da tecnologia, pois se poderia sumariamente admitir que no contexto de enxugamento do Estado vigorando desde os anos de 1980 estas empresas que lançaram seus antecedentes nesse período não tiveram o apoio do mesmo no âmbito do avanço tecnológico. Este é um raciocínio que pode ser estendido para empresas e outros atores menores, também. Se estivéssemos a tratar da indústria, esse raciocínio parece estar em direção correta. Suzigan e Furtado (2005) ao analisarem a retomada das políticas de apoio a indústria, como a PITCE5, 5 Política Industrial e de Comércio Exterior lançada em 2003. 5 afirmam que houve de 1981 em diante, reversão do processo histórico com involução de tecnologias, de estruturas empresariais e industriais e de instituições lato sensu, isto é, inclusive políticas, e com deterioração das infra-estruturas e abandono do SNDCT6. Vamos agora, na próxima seção, lançar um olhar para o setor agroindustrial, na tentativa de verificar a validade do raciocínio acima mencionado. A tecnologia e o setor primário Para muitos economistas, como diz Delgado (2001), atendidas as funções básicas imaginadas para uma agricultura genérica, sem pressões estruturais sobre o índice geral de preços, a balança comercial, e a produção industrial, não haveria por que falar em crise do/no setor primário. Porém, em tempos de crise no setor, quando as atenções podem se voltar para um quadro mais amplo de suas condições, cabe colocar em suspensão algumas nuances encontradas na base do que se imagina ser mais do que se propaga como as “funções da agricultura”. Em outras palavras, cabe pensar nesse momento de crise, as nuances que geralmente ficam encobertas quando se trata apenas de oferta e demanda e suas relações com os preços. Dessas nuances, seria difícil imaginar nos tempos atuais um mundo rural sem tecnologia. O mesmo vale para os tempos passados, já que, por mais rudimentar que fosse a tecnologia, os seres humanos sempre necessitaram dela para se relacionarem com a natureza. No entanto, dada a complexidade que as mesmas tomaram, sejam as biotecnologias ou outras áreas tecnológicas, a impressão é de que essa ponte entre o homem e a natureza torna cada vez mais a vida humana mediada pelas mesmas. Quando se trata de considerar a relação da tecnologia com o setor primário nos tempos atuais, é importante o que sugerem Medeiros et al (2002): por um lado, a inovação tecnológica constitui-se em atributo central do novo padrão de concorrência do grande agronegócio, e, por outro, a homogeneização tecnológica é adotada como precondição nos modernos sistemas de produção agropecuária. É pertinente observar que além de afetarem os sistemas de produção, dentre outros aspectos, as mudanças tecnológicas têm provocado efeitos nas formas de lidar com a cultura e a natureza no mundo rural. Vale a pena destacar a observação de Klanovicz (2007), que estudou a história ambiental no contexto da passagem das florestas de araucária para os pomares de macieira em Santa Catarina e Rio Grande do Sul: “(...) no esforço de apreender a realidade do campo produtivo, muitos técnicos agrícolas (especialmente aqueles formadas no início da década de 1970) representam a natureza corrigida como um espaço domesticado, desenhado, planejado, controlado pelos humanos, ao passo em que o mato sujo designa um território desorganizado, alheio ao contato com populações capazes de controlá-lo ou explorá-lo do ponto de vista econômico.” Nessa multiplicidade de aspectos faz parte do conjunto também a exclusão social provocada pelas sucessivas modernizações de tecnologia. Medeiros et al (2002) afirmam que mais recentemente, esse processo de exclusão vem atingindo os produtores rurais que não conseguem acompanhar o nível da inovação e da padronização que são exigidos pelas novas formas de organização dos processos produtivos estruturados no âmbito do moderno – agribusiness -, o qual, por sua vez, estrutura-se em resposta aos padrões de demanda estabelecidos no âmbito da “nova” economia de qualidade. Os dados que aparentam confirmar o lugar da tecnologia podem ser visualizados, entre outros, quando demonstram Alves et al (2005), ilustrados pelas Tabelas 1 e 2, que a produtividade da mão-de-obra, da terra e do capital investido aumentou muito no período: respectivamente, de 3,4%, 3,8% e 2,7% ao ano, entre 1975 e 2000. 6 Sistema Nacional de Desenvolvimento e Tecnologia. 6 Observando os dados abaixo se pode visualizar que a cultura da soja cresceu também significativamente em área. No entanto, a soja e todas as demais culturas cresceram em produtividade. Nesse período, o aumento da produção tanto das lavouras como da produção animal superou o aumento da população, permitindo além de atender o aumento do consumo interno, também a exportação. Não obstante, permanecem na população brasileira dificuldades de acesso a alimentação, incluindo casos de subnutrição. Fonte: Adaptado de Alves et al (2005). Fonte: Adaptado de Alves et al (2005) Os ganhos de produção e produtividade foram em grande parte, mas não unicamente, proporcionados pela possibilidade de cultivar em solos até então impróprios, como os dos cerrados, e do desenvolvimento de cultivares adaptadas a estes, muito embora esse processo se expandiu às mais diversas áreas. Segundo Alves et al (2005), em síntese, a produtividade da agricultura e da pecuária passou a ser a maior fonte de aumento de produção. A partir dos anos 1960–1970, o Brasil se empenhou em profissionalizar seus pesquisadores em ciências agrárias, por meio dos seguintes procedimentos: criação de cursos de pós-graduação nas mais diversas áreas do conhecimento, do Sistema Embrapa em seus centros de pesquisa por produto, temas estratégicos e ecossistemas, treinamento intensivo de pesquisadores e professores em centros de excelência no mundo e montagem de laboratórios especializados. Aparecem com evidência na cena do processo de desenvolvimento tecnológico e científico mais recentemente, além das biotecnologias (engenharia genética). Pessanha e Wilkinson (2003) elencam posições distintas acerca do tema. Para eles, de um lado, estão os autores que relançam a ameaça da “armadilha malthusiana” do crescimento populacional, em face do crescimento da produção de alimentos, e retomam os argumentos da necessidade de modernização tecnológica da agricultura – previamente desenvolvidos pelos teóricos da Revolução Verde. Outros autores acrescentam a importância das técnicas de engenharia 7 genética para adaptar a agricultura a condições de estresse hídrico ou de solos, o que abriria esperanças para vastas regiões da África (ou do Nordeste brasileiro) não alcançadas pela Revolução Verde. De outro lado, os autores que, numa perspectiva crítica à abordagem quantitativa, afirmam que não há relação entre a prevalência de fome em um determinado país e a taxa de crescimento ou tamanho da sua população, sendo esta gerada por processos políticos de distribuição de recursos entre países e indivíduos. Para Alves et al (2005) no que tange a pesquisa, a aplicação da biotecnologia terá alta influência em pelo menos cinco áreas: (i) biodiversidade: marcadores moleculares, novas moléculas, novos genes; (ii) produção vegetal e silvicultura: melhoramento genético, propagação, crescimento e nutrição, defesa vegetal; (iii) produção animal, aquacultura e pesca: melhoramento genético, nutrição e sanidade; (iv) agroindústria: produtos fermentados, biomassa, processamento de alimentos, produção de energia; (vi) meio ambiente: biomonitoração, biorrecuperação de ecossistemas degradados e controle biológico. Retomando a questão do sistema de pesquisa no país, corroboram com os argumentos até aqui apresentados Guedes e Marinho (2006) ao destacarem como technology push o processo que conduziu o desempenho do setor primário desde os anos da velha modernização. E, arrematam, a decisão pela criação [da EMBRAPA] foi tomada, em grande medida, por motivações macroeconômicas e políticas, contextualizadas no esforço de intervenção estatal no processo modernizador. Os autores apresentam então um debate acerca das condições de desenvolvimento da ciência e tecnologia, particularmente no âmbito da EMBRAPA, num contexto que chamam de cooperação-competição e desenvolvem seus argumentos em torno da articulação de equipes, das parcerias inter e intrainstitucionais e dos modos de geração de conhecimento, apresentando dados de uma pesquisa empírica do desempenho da EMBRAPA entre 2000 e 2003. Estas equipes, parcerias e a geração de conhecimentos estariam imersos num ambiente onde as instituições públicas de pesquisa enfrentam desafios que incluem a redução de recursos financeiros, surgimento de novos campos do conhecimento, alterações nas políticas inerentes ao papel do Estado e riscos decorrentes de maior abertura para o ambiente externo (Guedes e Marinho, 2006). Seria possível dessa maneira, encontrar formas de aperfeiçoar o sistema de pesquisa, especialmente relativos ao item transferência de tecnologia e promoção de imagem, que não apresentou ascendência nos anos pesquisados. Além disso, existem diferenças relacionadas principalmente as disposições regionais de grupos de pesquisa, pois há determinadas regiões que concentram instituições. Pode-se vislumbrar uma capacidade significativa da pesquisa em responder as necessidades do “setor”. Utilizando outros termos, a impressão que fica diante do exposto (ainda que brevemente) é que há significativa capacidade instalada e de recursos para a pesquisa gerar conhecimentos e inovações tecnológicas. Dessa maneira, está em questão o potencial desse sistema público de pesquisa em reverter-se, por exemplo, em condições de prover a população brasileira de comodidade quanto ao abastecimento de alimentos. Como afirmam Medeiros et al (2002), o papel do Estado em relação ao grande agronegócio, propiciou um dos modelos mais eficientes do ponto de vista de política pública para o objetivo que se propôs que foi de desenvolver, em duas décadas, um processo de modernização intensivo no Brasil. Uma assertiva difícil de ser ignorada nesse momento é se: o grande agronegócio não estaria servido de forma suficiente após mais de duas décadas de apoio do sistema público de pesquisa (dispondo inclusive de autonomia própria na geração de conhecimentos e tecnologia). Ou seja, a produção do grande agronegócio tem se voltado prioritariamente para comodities com vistas ao equilíbrio do balanço de pagamentos. Com a intenção de resolver os problemas de alimentação seria interessante valorizar outras áreas da pesquisa tecnológica. Isso passa certamente por valorizar outros setores, como o amplamente conhecido por agricultura familiar. 8 Como argumenta Wilkinson (1998) na situação atual os agricultores familiares estão crescentemente às voltas com a exclusão da articulação agroindustrial – as questões decisivas são aquelas mais familiares à economia e à sociologia da inovação – há necessidade de criar novos mercados, organizações e instituições e a necessidade paralela de gerar novos padrões de aprendizagem. Ou por outro lado, mas não conflitante, considerar um certo hibridismo produto da heterogeneidade dos conhecimentos dos agricultores, tal como sugere Guivant (1997) : as formas como os agricultores estruturam suas propriedades mostram um rico mosaico de práticas, conhecimentos, estratégias e interesses, que configuram diferentes estilos agrícolas por trás das aparências de uniformização. As novas tecnologias passaram a ser adotadas pelos produtores, mas no processo de sua implementação, estas tecnologias são retrabalhadas para ser adaptadas às estratégias produtivas e familiares e às características dos recursos naturais, segundo preferências valorativas e conhecimentos disponíveis. Conclusões O argumento desenvolvido nesse trabalho parte da premissa de que com a crise dos alimentos em voga no início de 2008 foi recolocada em discussão a importância dos avanços tecnológicos para a produção de alimentos. Recolocada, pois em outros momentos da história, o avanço das tecnologias foi mobilizado para tal fim, com destaque para os primeiros anos da década de 1960. O que se percebe é desde esse período e com a criação da EMBRAPA em 1973 a emergência de um forte aparato de pesquisa agropecuário, bancado pelo Estado. Enquanto nos anos 1980 em outros setores da economia, com maior tecnologia agregada, os investimentos em pesquisa foram diminuídos, retomados apenas recentemente com a PITCE, o mesmo não se verificou no setor primário, de produção de alimentos. Esse avanço tecnológico não apenas incrementou os níveis de produção e produtividade, mas se relaciona também com outras mudanças de caráter não-econômicos estritamente. A organização social, espacial, cultural e ambiental do país foi profundamente modificada. Poder-se-ia concluir que existe no Brasil considerável desenvolvimento tecnológico, sugerindo sua capacidade de suprir a demanda de alimentos da população. Isto se ampara principalmente nos dados de aumento da produtividade e produção nas décadas recentes e, sobretudo na constatação da capacidade instalada de pesquisa que há no país. Isso se relaciona com a organização da produção de tal modo que é um requisito fundamental para produzir alimentos estar em sintonia com o avanço tecnológico. Em outros termos, está se conjeturando aqui que o padrão tecnológico exige um nível mínimo de tecnologia para os produtores inseridos no mercado, capaz de suportar as pressões. O que não exclui, porém, como foi discutida na seção anterior, a heterogeneidade de formas de produção. No entanto, mirando apenas desse ângulo torna-se difícil compreender a possível resposta dos avanços tecnológicos à crise dos alimentos em foco. É necessário ampliar o ângulo para as múltiplas dimensões da tecnologia, tanto econômicas quanto políticas, ideológicas e simbólicas7. Assim, pode-se chegar mais perto de uma análise capaz de indicar com mais segurança a extensão dos efeitos de sucessivas modernizações tecnológicas como resposta as crises de alimentos. Está claro que modernizações tecnológicas presas apenas aos aspectos materiais da produção, às quantias produzidas, sem tocar nas suas múltiplas dimensões estarão distantes de encarar as nuances mais profundas envolvendo os problemas que às vezes podem resultar em crise alimentar, como uma face bem evidente. No período recente, como encarar tais nuances profundas? É preciso primeiro considerar que tal como nos primeiros anos da década de 1980 o setor primário 7 Ver Porto (1992; 1997). 9 (agroindustrial) foi mobilizado para gerar superávits, desde o fim da crise cambial de 1999 essa estratégia tem sido perseguida novamente. No entanto, não é preciso comparar o setor agroindustrial dos anos 1980 e o agronegócio dos dias atuais, apenas constatar que esse último tem gozado de grande legitimidade na sociedade. Isso a despeito dos riscos que uma reprimarização da economia oferece para a sociedade. E, também, dos riscos que o aumento de concentração de renda dessa estratégia gera. Enfim, encarar essas nuances implica em proceder a reestruturação de mercados, organizações e instituições que se relacionem aos heterogêneos processos de apropriação e uso de tecnologias capazes de propiciar a produção de alimentos em condições mais seguras. Referências bibliográficas Alves, E.; Contini, E.; Hainzelin, É. Transformações da agricultura brasileira e pesquisa agropecuária. Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v. 22, n. 1, p. 37-51, jan./abr. 2005. Bresser Pereira, L. C. Interpretações sobre o Brasil. Loureiro, M. R. (ed). 50 anos de ciência econômica no Brasil. 1ª ed. Petrópolis: Vozes. P. 17-70. 1997. Castro, A. B. Renegade development: rise and demise of State-led development in Brazil. Democracy, markets and structural reform in Latin American, 1996. Carvalho, M. A; Silva, C. R. L. Vulnerabilidade do comércio agrícola brasileiro. Revista de Economia e Sociologia Rural, 43 (1): 9-28. 2005. Delgado, G. C. Expansão e modernização do setor agropecuário no pós-guerra: um estudo da reflexão agrária. Estudos Avançados 15 (43): 157-172. 2001. Disponível em http://www.iea.usp.br/iea/revista/ acessado em 08/07/2008. ____________. Notas para apresentação em Seminário: Dinâmica recente da produção e consumo de alimentos, feed-grains, cana-de-açúcar no Brasil. Workshop Sobre “Impactos da Evolução do Setor Sucroalcooleiro”: Campinas, 2008. Guedes, V. G. F.; Marinho, D. N. C. Organização do trabalho em instituição de P&D e construção do conhecimento no agronegócio. Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v. 23, n. 1, p. 63-93, jan./abr. 2006. Guivant, J. S. Heterogeneidade de conhecimentos no desenvolvimento rural sustentável. Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.14, n.3, p.411-446, 1997. Leite, S. P. Liberalização comercial e internacionalização: condicionantes à agricultura brasileira. Estudos Sociedade e Agricultura, 7, dezembro 1996: 113-133. Kageyama, Angela et al. O novo padrão agrícola brasileiro: do complexo rural aos complexos agroindustriais. Em: Delgado, G.; Gasques, J. G.; Villa Verde, C. M (orgs). Agricultura e políticas públicas. Brasília, IPEA, 1990. Klanovicz, J. Natureza corrigida: Uma História Ambiental dos Pomares de Macieira No Sul do Brasil (1960-1990). (Tese de doutorado). Programa de Pós-Graduação em História, UFSC, 2007, 311p. 10 Maluf, R. S. Elevação nos preços dos alimentos e o sistema alimentar global. Artigos Mensais OPPA - nº18 - abril 2008. Medeiros, J. X. de; Wilkinson, J.; Lima, D. M. de A. (2002). O desenvolvimento científicotecnológico e a agricultura familiar. In: Lima, D M. de A. e Wilkinson, J. (org). Inovação nas tradições da agricultura familiar. Brasília: CNPq. Paralelo 15, 400p. Mello, J. M. C. de. O capitalismo tardio. 5ª ed. São Paulo: Brasiliense. 1982. Navarro, Z. Desenvolvimento rural no Brasil: os limites do passado e os caminhos do futuro. Estudos Avançados 15 (43): 83-100. 2001. Disponível em http://www.iea.usp.br/iea/revista/ acessado em 15/07/2008. Palmeira, M.; Leite, S. P. Debates econômicos, processos sociais e lutas políticas. Costa, L. F. C.; Santos, R. (ed.). Política e Reforma Agrária. 1ª ed. Rio de Janeiro: Mauad. P. 92-168. 1998. Pessanha, L. D. R.; Wilkinson, J. Transgênicos provocam novo quadro regulatório e novas formas de coordenação do sistema agroalimentar. Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v. 20, n. 2, p. 263-303, maio/ago. 2003. Porto, Maria Stela Grossi. A tecnologia como forma de violência. XVI Encontro Anual da ANPOCS. GT Estado e Agricultura. Caxambu, MG – Out. 1992. Porto, Maria Stela Grossi. Tecnologia e violência: algumas relações possíveis. Em: Porto, M. S. G. (org). Politizando a tecnologia no campo brasileiro: dimensões e olhares. 1ª edição. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997. Suzigan, W. Indústria brasileira: origem e desenvolvimento. 1ª ed. São Paulo: Hucitec. 2000. __________; Furtado, J. Política industrial e desenvolvimento. Paula, J. A. de. (ed.). Adeus ao desenvolvimento: a opção do governo Lula. 1ª ed. Belo Horizonte: Autêntica. p. 181-204. 2005. Wilkinson, J. Socio-economic approaches to agroindustrial innovation: illustrations from the brazilian small farming and land reform sectors. Debates CPDA: Rio de Janeiro. Nº 6, 22 p. Setembro 1998.