em busca do som qualquer: música experimental e

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EM BUSCA DO SOM QUALQUER: MÚSICA EXPERIMENTAL E
EXPERIÊNCIA DA COMUNICAÇÃO
LOOKING FOR THE ANY SOUND: EXPERIMENTAL MUSIC AND
COMMUNICATION EXPERIENCE
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Mauricio Lissovsky / Maria Fantinato Siqueira
Resumo: Como pensar os limites da expressão artística contemporânea? E, mais
ainda, como esses limites operam no contexto de práticas específicas? Este artigo
investiga essas perguntas a partir de um caso particular: a música improvisada.
Baseado em pesquisa etnográfica realizada no Rio de Janeiro, procura-se aqui
elaborar teoricamente as categorias que emergiram no trabalho de campo. Em
particular, busca-se sugerir como, no âmbito de uma estética da comunicação,
podemos lidar com paradoxos inerentes à legitimidade artística do improviso, tal
como sintetizados por um músico no contexto dessa pesquisa: "vale tudo, só não
vale qualquer coisa".
Palavra chave: Música experimental; experiência estética; improvisação; arte
contemporânea
Abstract: How to think the limits of contemporary artistic expression? Moreover,
how these limits operate in the context of specific practices? This paper
investigates these questions in the context of a particular case: the improvised
music. Based on an ethnographic research that took place in Rio de Janeiro, it
tries to develop theoretically the categories that emerged in the field work.
Particularly, it seeks to suggest how, in the realm of an aesthetics of
communication, we can deal with paradoxes inherent to the artistic legitimacy of
improvisation, as synthesized by a musician interviewed by this research: "you can
do everything, but not anything".
Keywords: Experimental
contemporary art
musica;
aesthetic
experience;
improvisation;
Hoje em dia, no campo da música, frequentemente
ouvimos dizer que tudo é possível; (por exemplo) que através
de meios eletrônicos pode-se utilizar qualquer som (qualquer
frequência, qualquer amplitude, qualquer timbre, qualquer
duração); que não existem limites para as possibilidades.
(John Cage, 1961, p. 67-68)
[...] o homem de hoje crê-se capaz de tudo e repete o
seu jovial 'não há problema’ e o seu irresponsável ‘pode fazerse’, precisamente quando deveria antes dar-se conta de ser
entregue numa medida inaudita a forças e processos sobre os
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quais perdeu qualquer controle. Tornou-se cego não às suas
capacidades, mas às suas incapacidades, não ao que pode
fazer, mas ao que não pode ou pode não fazer (Agamben,
2010, p.58)
1. Experimental: ser a própria maneira
Como pensar os limites da expressão artística contemporânea? E, mais ainda, como esses
limites operam no contexto de práticas específicas? Este artigo investiga essas perguntas a partir de
um caso particular: a música improvisada. Desde o início da década de 1960 anunciava-se – como
o faz John Cage, em nossa epígrafe – que as possibilidades sonoras haviam se tornado ilimitadas.
De fato, o ruído, do qual tanto se fugiu ao longo do desenvolvimento do tonalismo no Ocidente
(WISNIK, 1989), foi sendo relativizado ao longo do século XX. Obras “eruditas” e “populares”
passaram a incorporar barulhos e atonalismos e, em decorrência, as definições usuais a respeito do
que era ou não era música tornaram-se insatisfatórias e as que lhe sucederam, complicadas e
instáveis (WARNER; COX, 2004).
É aqui, exatamente no limite onde as classificações encontram sua zona de incerteza que
essa pesquisa acontece: na música que se improvisa.[1] Sabemos que a improvisação musical não é
prática recente. Reconhece-se, como faz E.T. Ferrand (apud BAILEY, 1993, p.ix), que o “elemento
improvisacional da prática musical viva” esteve e está sempre presente na música, e que a
improvisação “foi sempre uma fonte potente de criação de novas formas”. Não surpreende,
portanto, que à improvisação viesse associar-se o termo "experimental". Ao longo da pesquisa, ele
ocorreu com frequência na fala dos atores – às vezes como sinonímia, às vezes como especificação
da música que se fazia. A intricada relação entre o improviso e o experimental, na perspectiva
desses grupos musicais, não permite redução a categorias. Há que tomar essas falas como um
emaranhado, uma "polifonia" (CAIAFA, 2007, p.137) onde o que está em jogo, tanto quanto a
possibilidade de sondar os limites da música, é a própria experiência da comunicação.
Após uma das apresentações de seu grupo, Pedro comenta que não gostou do show. Ainda
assim, gravou alguns minutos para mostrar ao pai: "já sei o que ele vai dizer: isso não é musica."
Mas, afinal, que tipo de música é essa? "Música experimental. E instrumental. De improviso. Ok?",
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responde Estevão, da banda Rabotnik, ao hesitar em encaixar em um rótulo o que seu grupo cria. O
termo "experimental" era recorrente. “Então esse é meu lado experimental, é meu lado que tem a
improvisação.”, diria Bruno, integrante da mesma banda. O termo era utilizado até para referir-se à
pesquisadora em campo - ela, “que estuda música experimental”.
Historicamente, houve esforços para definir conceitualmente a música experimental
vinculando-a obras específicas – tal como faz Michael Nyman em Experimental Music: Cage and
Beyond (1999). Aqui, o uso que se faz desta noção é, por um lado, devedor de uma história das
vanguardas do século XX - tanto no campo erudito como no jazz - e por outro reflete
possibilidades de abertura a tecnologias e práticas DIY (do it yourself) que permitem experimentar
e criar sonoridades sem conhecimento formal da linguagem musical. Mas, sobretudo, a noção de
experimental é categoria problemática, assumida pelos músicos envolvidos como a definição
“menos pior”. “Experimental” não designava precisamente o que faziam, mas situava-os em uma
complexa interseção de cenas e práticas musicais, eventualmente designadas como noise,
improvisação, pós-rock, instrumental ou underground.
A própria determinação do que seria experimental mostrava-se movediça, caracterizando
uma espécie de antigênero musical: “experimental quer dizer várias coisas”; “é uma música que
não pertence especificamente a nenhum gênero”; “música que não é comercial”; “só quer dizer que
você gosta de não só tocar notinha ou música tonal”; “não formatado, não previsível”. O
"experimental" não correspondia exatamente a nenhum rótulo ou estilo, entre os referidos acima,
mas permitia assumir essas mesmas práticas e classificações como possibilidade parcial. Permitia
transitar pela diversidade, ao mesmo tempo hesitar em marcar-se como ‘um’ desses.
E ali, nesse trânsito, estavam músicos que experimentavam. O que seria isso? “Inovar”,
“explorar o desconhecido”, “não saber muito bem o que vai acontecer na hora”... A
experimentação, assim sugerem as falas, poderia ser pensada como uma prática ancorada no
‘agora’. Ainda que houvesse um passado, referências a antecessores, achar-se experimental, sentirse experimental, era sentir-se no presente de uma atualidade movente. As condições necessárias
para o exercício dessa experiência não incluíam o domínio extenso da técnica – apesar de se exigir
algum - que possibilitaria o uso virtuoso dos recursos do instrumento, mas um domínio
aprofundado de uma maneira própria de fazer:
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[...] Então eu acabei usando um pouco essa falha, esse
buraco, e trabalhando um pouco dentro disso[...] Acabei criando
minha própria forma de tocar. Por mais que seja limitado, é uma
coisa minha mesmo assim.(Felipe – Chinese Cookie Poets)
Tem músicos que devem me ver tocando e falar ‘pô, diziam
que ele era bom baterista, e eu tô vendo ele ali, esbarrando nota, e
meio doido... não sei se ele é tão bom assim não’. Aí, sabe, na
questão técnica. E ao mesmo tempo, com o passar do tempo, esse
mesmo cara vai falar ‘ah, tá, agora entendi. Ele tá criando um
negócio novo, ele tá com uma proposta interessante’, o que ele não
tem de técnica limpa e sofisticada e apurada ele tem ali de raiz, de
envolvimento. (Rafa - Rabotnik)
Eu acho que cada um faz da sua maneira. Você
conversando com as pessoas eu acho que você vai ouvir
depoimentos muito diversos em relação a o quê que é experimentar,
mas eu acho que todo mundo tem um pouco uma... esse, essa chama
do “poxa, o que é que eu posso fazer aqui,
é... para descobrir uma
nova forma aqui: de tirar um som, de fazer uma estrutura de uma
composição, de fazer contrastes com instrumentação. (Bartolo –
Duplexx)
O filósofo italiano Giorgio Agamben reconhece nisso que se faz da sua maneira uma
terceira figura da lógica que não se confunde nem com o genérico, nem com o particular. Nisso que
se faz a sua própria maneira não repousa qualquer essência nem inscreve-se qualquer destino. É-se
o próprio movimento – ser tal qual:
O ser que não permanece na sua própria condição, enquanto
tal, que não se pressupõe a si como uma essência escondida, que o
acaso ou o destino condenariam depois ao suplício das
qualificações, mas que se expõe nelas, é sem resíduos o seu assim –
um tal ser não é acidental nem necessário, mas é, digamos assim,
continuamente gerado pela própria maneira.
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(AGAMBEN, 1993, p.29 - grifos do autor)
O domínio próprio deste que é "a própria maneira" é o exemplo. No que diz respeito a essa
pesquisa, esse exemplo paradigmático é Arto Lindsay[2]. Citado por muitos por ter inventado sua
própria forma de tocar guitarra uma vez que não dispunha de domínio técnico e formação musical:
“O Arto não toca guitarra. Mas ele toca guitarra do jeito que só ele toca.”, resumiu um músico.
Arto Lindsay foi “gerado pela sua própria maneira” e por sua persistência nela. O experimental,
portanto, não é profusão de novidade, a promessa de renovação permanente, mas é também
persistência, insistência, repetição. É na fusão aparentemente paradoxal desses dois movimentos –
repetir e inovar – que a improvisação ao vivo coloca em jogo. É ali que se experimenta seus limites
e é ali que ela encontra sua maneira.
2. Improvisar: vale tudo, só não vale qualquer coisa.
A pergunta era obrigatória: "o que é improvisar?". As respostas, ainda que variadas, tinham
dois pontos em comum: 1) A improvisação é fortemente atrelada ao momento, articulando a
novidade da criação espontânea e o que já se sabe (“tocar o agora”; “não ficar repetindo a mesma
coisa”; “adaptar-se ao que você tem”; “saber que não se sabe”); 2) a improvisação implica padrões
de comportamento e de relacionamento com os demais membros do grupo (“respeitar o tempo do
outro”; “não prender o outro”; “tornar-se parte do que está acontecendo”; “conversar”). Em suma,
para improvisar seria preciso atender a dois requisitos: criar no momento e criar na interação.[3]
Os músicos admitiam que nem a mais improvisada de todas as apresentações partiria do
nada: “Não existe isso de você sair tocando sem nunca ter pensado naquilo”, disse um deles; “Até
não ter combinação nenhuma é uma combinação”, disse outro. Mais além, categorias como "certo"
e "errado", frequentemente associadas às execuções musicais ao vivo, não encaixavam bem na
cena: “Eu acho que se você lê como erro, você lê como ‘ah, a música não aconteceu’, mas ela tá
acontecendo. Então para mim me parece mais vantajoso você não ler o erro, você ler uma nova
possibilidade”, diz Bartolo. Ao julgar os resultados alcançados nesta ou naquela passagem, com
frequência os músicos diziam “isso funciona” ou “isso não funciona”. De fato, tratava-se sempre de
um "funcionamento": uma música que “funcionaria” não por ser boa ou má, nem por ser ‘certa’ ou
‘errada’ ou por ser mais ou menos música, mas por acontecer.
Mas se todos os sons são permitidos, se todas as maneiras de tocar são legítimas, se não
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existe erro e acerto, mas apenas funcionamento, como este poderia ser determinado: como sabê-lo,
senti-lo, experimentá-lo? Como reconhecer e colocar em prática os limites e procedimentos que
determinam o "funcionamento"? Nas conversas com os músicos, uma formulação surgiu: “Vale
tudo, só não vale qualquer coisa”. Afinal, uma interdição em meio às múltiplas possibilidades de
funcionamento, no interstício das variadas maneiras, na dinâmica que não reconhece erros mas
apenas "acertos diferentes". Compreender esse "qualquer coisa" tornava-se decisivo.
Um dos músicos, tentando esclarecer, admitiu que ainda que não fosse capaz de colocar em
palavras, a noção era bastante clara para ele: “eu não sei exatamente explicar, mas eu consigo sentir
perfeitamente se tá rolando um qualquer coisa, aí eu paro de tocar.” Como uma noção tão decisiva
para a prática musical em que estavam envolvidos podia ser tão obscura e difícil de comunicar a
alguém "de fora", a alguém que não estivesse tomando parte na própria experiência da criação?
Tratava-se de algo que os músicos “sentiam”, que acreditavam "perceber". Algo que, logo foi se
delineando, dizia menos respeito à música em si, mas à dimensão interativa da performance
musical, aquilo a que muitos se referiam como "conversa":
Cara, o bom improviso [...] eu acho que ele vai se fazer a partir do
bom entrosamento das pessoas, da qualidade daquela conversa, sabe,
entre os músicos. (Bartolo - Duplexx)
A conversa, a boa conversa, o diálogo entre os músicos surgia frequentemente como
atributo positivo de um bom show. A boa conversa faz tocar, seguir adiante; em tudo se opõe ao
"qualquer coisa" que interrompe o fluxo, que faz cessar o improviso. A analogia com a conversa é
corrente entre os praticamente das várias formas de música improvisada, do jazz tradicional a
projetos experimentais:
Na improvisação tudo se desenrola como uma conversa em que
vários assuntos despontam dependendo do roteiro de improvisação ou do
modo de jogo que se tenha criado e ao sabor de atos constantes de
relacionamento
entre
vários
elementos
e
componentes.
É
um
agenciamento muito complexo e diversificado. [...] Na conversa não
existem regras pré-existentes; o que existe é uma forma de relacionamento
entre os participantes que acaba desenhando os rumos da conversação.
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(COSTA, 2003)
Ao contrário do "qualquer coisa", que sempre permanecia vago e impreciso, as
características que tornavam determinada improvisação uma boa conversa, eram enunciadas com
mais fluência.
É uma coisa de afinidade mesmo você trabalhar com música.
Você afina. É uma afinação mesmo de personalidades, assim, que você
mostra na música, tocando. (Bruno - Rabotnik)
Nos grupos estudados, as conversas aconteciam entre pessoas que já se conheciam. Muitos
afirmavam que quanto melhor conheciam um ao outro, mais fácil era prever para onde caminharia
a música durante a improvisação: “Você tá ali, conversando, com seus amigos, fazendo uma coisa
que você faz há bastante tempo.”. Mas, a despeito de serem estruturados como bandas com
integrantes fixos, as misturas e a presença de músicos convidados era frequente. Tocar com pessoas
diferentes forçaria a fugir das “manias”, disse Felipe. Ter uma pessoa nova tocando, disse Bartolo,
era como ter mais alguém no “papo”: “Você vai continuar falando as coisas que você quer, você
vai continuar sendo você, mas você vai ter um outro, uma outra pessoa interagindo com você, com
a outra e com todas, então gera novos paramentos de variação do que você tá fazendo”.
Em virtude dessa busca por “novos parâmetros de variação”, a música poderia ser
improvisada, mas não a introdução de mais um músico em uma apresentação. Como escolher entre
tantos músicos possíveis? Felipe afirmou que "vai por afinidade pessoal e por afinidade musical. É
sempre uma mistura das duas coisas.”. Rafa ressaltou a importância de se tocar com um músico no
qual se acredita e se tem “entrosamento”. E Manso explicou que “a gente chama sempre alguém
que tem uma abertura com a linguagem.”. A metáfora da conversa tornava claro que, ainda que a
provocação trazida por um elemento externo ao grupo fosse necessária, sem "diálogo" o improviso
não teria qualidade. O motivo era óbvio para todos: improvisar não era apenas tocar, mas ouvir.
Tocar apenas para si, sem escutar os outros, era uma das portas que se abriam para o "qualquer
coisa":
Qual músico tá improvisando com você faz toda diferença. Porque
às vezes cai no qualquer coisa, entendeu? Às vezes você junta vários
nomes e aí vai improvisar e fica ‘tô aqui no meu barulhinho, você tá aí no
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seu’... (Rafa - Rabotnik)
Como disse Marcos, da banda Chinese Cookie Poets, “Improviso é atenção” e “quanto
maior o grupo mais atento você tem que estar, eu acho, pelo menos tentar ficar mais atento. [...] se
você se preocupa em escutar o que tá acontecendo, você vai sempre seguir um caminho novo,
agora se você não escuta, você vai cair sempre nos mesmos lugares”. Ao escutar, o improvisador
poderia perceber propostas de caminhos musicais e segui-las ou rompê-las. Também a partir da
escuta ele poderia escolher os momentos de fazer silêncio. Como afirmou Fernando Torres, dono
do hoje extinto Plano B Lapa - espaço precursor da cena “underground” e “experimental” do Rio
de Janeiro:
[...] achar que tem a obrigação de estar tocando o tempo inteiro
[...] acaba criando uma certa futilidade. É que nem um monte de bêbado
numa mesa de bar. Cada um fica falando mais alto que o outro, achando
que estão conversando e não estão conversando nada. (Fernando – Plano
B Lapa)
Assim, era essencial saber a hora de “calar a boca”, de ficar em “silêncio”. Era importante
dar espaço para a música “respirar” e por vezes somente escutar. Mas, sobretudo, aquele que calava
acrescentava seu silêncio àquilo que se construía. O silêncio, mais do que o som, parecia ser o
elemento decisivo para que o improviso ganhasse o caráter de conversa. A comunicação das ideias
musicais do grupo, por outro lado, dependia da habilidade dos músicos com os instrumentos.
Não seria necessário ser um virtuose, mas era necessário "trabalhar" para saber que sons se
conseguiria produzir. Era assim que Estevão encarava seu clarinete: “Você tem que pesquisar... eu
não toco clarinete, mas eu posso tocar um pouco daquele clarinete que nem ‘matando um bicho’.
Aí aquilo é um timbre, é uma linguagem para aquilo ali.”. Ora, é bastante provável que muitos de
nós, mais ou menos fortuitamente, fossemos capazes de extrair do clarinete este som que nem
"matando um bicho". Mas quantos de nós poderíamos efetivamente conhecê-lo e desejá-lo? Seria
isso suficiente para distinguir o som do clarinete de Estevão de um barulho qualquer que ele fazia?
Era bastante que apenas Estevão tivesse conhecimento dessa diferença? Ou era necessário que os
outros membros da banda também o soubessem? E a audiência? Essa distinção teria alguma
importância para ela? Faria alguma diferença na sua escuta? Responder essas perguntas, a partir da
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experiência desses músicos, era o único modo de procurarmos entender por onde passavam os
limites entre o "tudo" e o "qualquer coisa".
3. Som: para além da intenção
Mas seria precipitado reduzir "qualquer coisa" a uma releitura da clássica oposição
som/ruído. Nas sessões de improvisação há outro fantasma, ainda mais temido que o som aleatório
produzido pelo músico inepto: é a "repetição". Em uma performance que valoriza o "momento", o
"agora", cujo critério de sucesso é o "funcionamento", a repetição é uma ameaça tanto estética
quanto moral.
Às vezes você não consegue ser criativo o tempo todo, então tem
momentos que você... é como se você tivesse uma carta na manga “eu
tenho aquele negócio que eu faço que eu sei que funciona. Vou fazer
aquilo agora.”. Isso eu não acho legal. [...] não é positivo, é você apelar
para uma coisa que você sabe que funciona numa hora que você tá sem
imaginação. (Felipe – Chinese Cookie Poets)
Na fala dos músicos, a repetição seria uma das formas do qualquer coisa. Mas, do ponto de
vista empírico, é praticamente impossível distinguir com clareza os limites entre inovação e
repetição na improvisação-experimental. E, às vezes, ela parece necessária. Como conta Rafa: “Às
vezes vem uma ideia e aí eu repito aquela ideia, aí o cara sacou que eu tô repetindo, aí aquilo vira
um ciclo. Depois a gente viu que aquilo já rolou, as pessoas já pegaram aquela ideia, a gente já vai
para outra”. Então, o que de início poderia ser simples repetição do que é "cômodo", recurso a uma
“carta na manga”, opera aqui como facilitador da interação. Aqui também a escuta seria decisiva,
pois o que soa como repetição pode ser um sinal emitido aos companheiros, um convite à procura
por novos caminhos: “se você se preocupa em escutar o que tá acontecendo, você vai sempre seguir
um caminho novo, agora se você não escuta, você vai cair sempre nos mesmos lugares”, disse
Marcos. A novidade que nasce da escuta, da atenção, tem mais valor que a inovação em si. A
repetição deixa de ser uma "carta na manga", um recurso fácil ao já sabido, quando os demais
integrantes a "captam" como um sinal.
A atenção despontaria como aquilo que protege as intenções dos músicos dos riscos do
"qualquer coisa". Como na conversa, o problema não seria recorrer a palavras ou frases que se usa
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frequentemente, mas falar para o nada, falar sem intenção de integrar aquele presente e aquela
troca. No entanto, essa resposta logo se mostraria insatisfatória por um motivo simples: não era
apenas daquilo que intencionalmente se serviam os músicos que se fazia a improvisação. Não era
apenas de intenções que se fazia seu (bom) funcionamento.
Bartolo, por exemplo, faz questão de destacar os “desencontros, ruídos de comunicação que
podem acontecer muito facilmente quando tá todo mundo interagindo, fazendo sons e se
comunicando por uma linguagem não verbal, estritamente sonora, musical”. Esses desencontros
podem sugerir novos caminhos para a música que está sendo criada ali: “você tá sempre arriscando,
só que os riscos, eles são pescados pelo outro músico e aquilo se transforma”, sugere Rafa. Por
outro lado, nem todo desencontro seria acidental:
Eu tô tentando [...] levar sempre uma parada que eu não possa
controlar direito, assim, que eu não saiba o que vai acontecer. A mesa
ligada no input, sabe? A saída da mesa ligada na entrada da mesa, ela
realimenta e gera um monte de ruído, mas é muito aleatório, assim. É um
negócio que você pode até aprender a mexer ali na coisa, que você sabe
mais ou menos como funciona, mas dependendo do dia, dependendo da
energia, dependendo de tudo, vai mudando. (Estevão)
A despeito da atenção, da escuta, do trabalho e da intenção, há sempre a introdução de um
elemento que escapa ao controle do músico, e cujos resultados seriam imprevisíveis. Vai
"funcionar"? Não haveria como sabê-lo antecipadamente. Quanto mais o tema da intenção era
trazido para as conversas, mais perdia força como chave explicativa dos limites daquela
experiência. Um músico produzia um som involuntariamente e aquilo funcionava. Um não
entendia o outro, havia um desencontro, mas ainda assim aquilo podia gerar novos caminhos para a
música. Um músico atento, escutando, produzia exatamente o som que desejava produzir, mas isso
não garantia que funcionasse, por falta de resposta. A intenção era o que importava, mas, às vezes,
não. O aleatório, o não intencional, também podia funcionar. Assim como a relação entre inovação
e repetição, tudo começava a parecer uma questão de dosagem. Essa, por sua vez, era contextual,
não dispondo de fórmulas ou pesos prévios.
Sempre que se buscava, com o auxílio dos participantes da cena improvisada experimental
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do Rio de Janeiro, estabelecer os limites da música que ali se fazia, algo não se encaixava. Por mais
que soubéssemos que ao improvisar os músicos deviam escutar, fazer silêncio, interagir, algo
sempre escapava. Os músicos podiam determinar quem participava ou não da improvisação, que
som emitir, e que elementos aleatórios introduzir, mas o que definia se aquilo que faziam
funcionava ou não escapava às suas escolhas. Para todos efeitos, tanto estéticos quanto éticos,
tratava-se algo em constante reconfiguração.
4. Em busca do som qualquer
"Vale tudo só não vale qualquer coisa". Talvez a solução deste terrível paradoxo não esteja,
como os próprios músicos imaginavam – e nós, com eles –, na determinação daquilo que
caracterizaria certo som ou performance como "qualquer coisa". Mas, mergulhando no enunciado,
tal como ele ocorre, naquilo que distingue "tudo" de "qualquer coisa". Nesse caso, talvez seja
necessário enfrentá-lo em sua própria natureza paradoxal. Imaginemos, por exemplo, que seu
caráter não seja restritivo, isto é, que não se trate da distinguir e destacar um conjunto específico de
quaisquer coisas deste amplo universo que nos habituamos a chamar "tudo". Quem sabe se trata
exatamente do contrário. Isto é, da especificação de algo que é "tudo" – como ocorrência
contingente e singular – em um universo ilimitado de tudo o mais que poderia ser chamado de
"qualquer coisa".
Nesse sentido, isso que pode ser "tudo", mas nunca é "qualquer coisa", corresponderia
àquilo que em "qualquer coisa" é apenas "qualquer" (sem ser coisa). Tal possibilidade é que nos
sugere a reflexão de Agamben sobre "ser qualquer" como o "ser que vem", em tudo diferente deste
qualquer ser que pode ser qualquer coisa:
O ser que vem é o ser qualquer. Na enumeração escolástica dos
transcendentais (quodlibet ens est unum, verum, bonum, seu perfectum,
seja qual for o ente é uno, verdadeiro, bom ou perfeito), o termo que,
permanecendo impensado em cada um, condiciona o significado de todos
os outros é o adjetivo quodlibet. A tradução corrente, no sentido de
‘qualquer um, indiferentemente’, é certamente correcta, mas, quanto à
forma, diz exactamente o contrário do latim: quodlibet ens não é o ‘ser,
qualquer ser’, mas ‘o ser que, seja como for, não é indiferente’; ele
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contém, desde logo, algo que remete para a vontade (libet), o ser qual-quer
estabelece uma relação original com o desejo.
O Qualquer que está aqui em causa não supõe, na verdade, a
singularidade na sua indiferença em relação a uma propriedade comum (a
um conceito, por exemplo: ser vermelho, francês, muçulmano), mas
apenas no seu ser tal qual é. (AGAMBEN, 1993, p.11 – grifos do autor)
Na improvisação o som pode ser tudo pois seu ideal é o som qualquer, no sentido preciso
que lhe atribui Agamben: aquele que não é o ‘som, qualquer som’, mas o ‘som que, seja como for,
não é indiferente’. A distinção, aparentemente sutil, é de fato radical. O som que ‘seja como for,
não é indiferente’ é aquele que pode ser tudo, pela virtude de não ser qualquer coisa: “a
singularidade exposta como tal é qual-quer, isto é, amável” (p.12). Amável como aquilo que se
ama enquanto o que é, e não por essa ou aquela característica. Assim, amar um som “tal qual é”,
seria amá-lo enquanto aquilo que se expõe na sua própria condição, na sua própria “existência
como possibilidade ou potência”: o “qualquer é o ser que pode não ser, que pode a sua própria
impotência” (1993, p.38; 33).
Amar um som tal qual, amar um som Qualquer, é amá-lo, assim, sendo um som que pode
ou não ser música. Pois aquilo que apenas pode, esgota-se ali, acaba. Aquilo que apenas pode já
tem um fim definido. Um som que somente pode ser música é um som “qualquer coisa”. É um som
que já é música antes mesmo de ser som. É aquele que padece da condição a priori de ser música,
antes mesmo de encontrar os outros sons junto aos quais poderia ou não ser música. Trata-se,
portanto, desde sempre, da "potência suprema" do som:
Só uma potência que tanto pode a potência quanto a impotência é,
então, a potência suprema. Se toda potência é simultaneamente potência
de ser e potência de não ser, a passagem ao acto só pode acontecer
transportando (Aristóteles diz ‘salvando’) no acto a própria potência de
não ser. (AGAMBEN, 1993, p.34)
O som Qualquer, aqui, é aquele que leva consigo a potência de não ser música. Mas
também a potência de sê-lo. O som qualquer coisa, é aquele que já deve ser música antes mesmo de
ser som (ou, desde sempre, jamais sê-lo). "Funcionar" é ser música para aquela música, e não antes
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daquela música. Não é mais possível pensar de fora para dentro aqui. A diferença entre o som
Qualquer e o som "qualquer coisa" será sempre imanente.
Tornar-se "músico experimental" é ser a própria maneira, é gerar-se nas escolhas, no
movimento. É arriscar-se nelas. E se era virtualmente impossível escolher antecipadamente se
certos sons seriam ou não música, estava ao alcance do músico escolher ali permanecer. Escapava
ao músico se aquilo funcionava ou não, mas não lhe escapava a possibilidade de escolher jogar
esse jogo em que algo sempre escapa. Disso decorre a força da "conversa" como analogia a que
sempre recorrem para se referir ao que fazem. Uma conversa peculiarmente sem assunto. Uma
conversa onde nada se comunica, a não ser a própria comunicabilidade.
Nós podemos nos comunicar com outros somente através do que
em nós – assim como nos outros – permaneceu potencial, e qualquer
comunicação
(como
Benjamin
percebe
para
a
linguagem)
é antes de tudo comunicação não de algo em comum, mas da
comunicabilidade ela mesma. (AGAMBEN, 2000, p.10 - grifo nosso)
A condição dessa comunicação é esse resto. É esse poder (não) ser música do som que
sempre escapa a cada um dos músicos individualmente, sua dimensão impessoal que só encontra
seu lugar nisso a que chamam "conversa": no abrir-se de cada músico para sons que podem ou não
ser música para aquela música. Ao escolher assim jogar-se na comunicação, os músicos arriscavamse como músicos na geração desses sons. Eles arriscavam-se nos seus gestos.
Se chamarmos de gesto o que continua inexpresso em cada ato de
expressão, poderíamos afirmar então que [...] o autor está presente no
texto apenas em um gesto, que possibilita a expressão na mesma medida
em que nela instala um vazio central. (AGAMBEN, 2007, p.59)
Aquele que experimenta não pode furtar-se a expor-se nos seus gestos, no “corpo-a-corpo”
com a linguagem (idem, ibidem): “O gesto é [...] a comunicação de uma comunicabilidade. Este
não tem propriamente nada a dizer, porque aquilo que mostra é o ser-na-linguagem do homem
como pura medialidade.” (AGAMBEN, 2008, p.13). A conversa que é comunicação da
comunicabilidade se faz música da musicabilidade.
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5. Considerações finais
O filósofo belga Thierry de Duve tem proposto reler a terceira crítica de Kant “após
Duchamp”. Sua premissa pode ser assim resumida: no âmbito fundamental do estético, tal como
formulado por Kant, colocava-se a pergunta “isto é ou não é belo?”; hoje, depois de Duchamp, a
validade da terceira crítica dependeria de uma pergunta um pouco diferente: “isto é ou não é arte?”.
Para exemplificar sua perspectiva, imagina um diálogo entre dois visitantes da Tate Modern, diante
do Equivalente VIII de Carl Andre – uma pilha de blocos de tijolo. A pessoa A diria que aquilo que
vê é arte e a pessoa B diria ser simplesmente uma pilha de blocos de tijolo. De Duve afirma então:
Seus vereditos são lançados na forma binária que se tornou
paradigmática sempre que uma obra de arte, como A Fonte de Marcel
Duchamp, ao invés de demandar de seus observadores a apreciação de
suas qualidades segundo as convenções de um meio, convida-os a decidir
a respeito de sua admissibilidade absoluta no domínio da arte como um
todo. (DE DUVE, 2008, p.144)
O argumento de De Duve pode ser útil a nosso estudo. Uma vez que a música
experimental não deve mais ser apreciada em função de códigos conhecidos pelos ouvintes ou
convenções claras ligadas a um ou outro gênero, a nova pergunta também ecoaria aqui: "afinal, isto
é ou não é música?" Uma vez, instigado a produzir uma definição do gênero que praticava, Felipe
afirmou: “Na verdade, música experimental é isso: na verdade, quem diz que é uma música é quem
tá ouvindo”. Tal como os visitantes idealizados por De Duve, aqui também a audiência é
compelida a julgar. É o ouvinte, em última instância, quem diz se é ou não música aquilo que está
ouvindo.
O Equivalente VIII, de Carl André, nunca se dispõe totalmente à contemplação porque é
indissociável de uma certa performatividade, porque seu acontecimento como obra só tem lugar na
contingência de sua exibição.
A música improvisada-experimental parece conectar-se à
performance de maneira ainda mais decisiva. O gesto de colocar-se em exposição é infinitamente
dilatado, exponencialmente multiplicado a cada som que se lhes escapa.
Como sugere Brasil (2011), a performance nunca é desprovida de tensão, uma vez que o
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gesto em que se arrisca é tanto exibição da medialidade, que torna visível o meio como tal, quanto
mise-en-scène: “uma ocupação do espaço, um ordenamento no interior do qual o gesto só pode
aparecer de maneira mais ou menos tensa, mais ou menos harmônica ou apaziguada” (2011, p.6)
Já não se trata mais de um puro gesto (mesmo porque, todo gesto é
impuro, desde o início, misto de espontaneidade e encenação). No entanto,
não se trata ainda de um gesto adequado a um ordenamento. A
performance é o gesto diante de um ordenamento: ele está em vias de se
inserir em uma ordem; ou de transfigurá-la na mesma medida em que se
transfigura a si mesmo. Nesse sentido, a performance é o gesto em vias
de se colocar em cena, mas que, nesse “em vias de”, reinventa a cena
sem, finalmente, se reduzir a ela. Trata-se de uma força do gesto
em composição – instável – com o espaço. (BRASIL, 2011, p.6-7 –
negrito nosso)
`
Performance. Os músicos postam-se diante do público, colocam-se em jogo, arriscam-se
nos seus gestos impuros. Tudo ali deve permanecer suspenso: em vias de ser música ou não ser
música; em vias de encenar ou exibir-se como medialidade. Toda precipitação em um desses polos
– precipitação fatal e necessária – deixa um resto que a audiência recolhe. Um resíduo que, na falta
de melhor nome, os músicos chamam conversa.
Quando é que essa música deixa de ser experimental? Precisamente quando a resposta às
perguntas sobre a música e a performance não deixam mais resíduo. Quando essas perguntas
deixam de ser imanentes ao gesto que as coloca em jogo e deixam-se assentar nos dispositivos
transcendentais do código, do rótulo, da marca. Pois essas perguntas devem ser os vetores de
desorganização da própria música em forma de pergunta. Do seu vigor, da sua vigência, depende a
suspensão do ser Qualquer, sua frágil e efêmera sobrevivência, antes que ele decaia em Coisa.
Amar o ser Qualquer, amar o som Qualquer é colocar-se sempre em risco, pois é colocar-se
ao lado do insustentável. É assumir-se como aquele que, afinal, não pode. Pois aquele que tudo
pode não se comunica, uma vez que comunicar-se é carregar consigo em cada ato algo que resta. É
ser, em cada decisão, ainda uma interrogação: posso? É naquilo que não podemos que nos
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vinculamos uns aos outros. É também no que não podemos que nos vinculamos ao mundo. Aquele
que tudo pode está sempre na iminência de transformar tudo em qualquer coisa.
Amar o som qualquer é amar o som que virá. É abrir-se a ele, favorecer-lhe, dar-lhe
passagem, acolhê-lo. Mas é, sobretudo, arriscar-lhe um ligeiro deslocamento. Em A Comunidade
que vem, Agamben recorre a uma parábola chassídica que Benjamin teria ouvido de Gershom
Scholem:
Os chassidim contam uma história sobre o mundo por vir que diz
o seguinte: lá, tudo será precisamente como é aqui; como é agora o nosso
quarto, assim será no mundo que há-de-vir; onde agora dorme o nosso
filho, é onde dormirá também no outro mundo. E aquilo que trazemos
vestido neste mundo é o que vestiremos também lá. Tudo será como é
agora, só que um pouco diferente. (BENJAMIN apud AGAMBEN, 1993,
p.44)
Para Agamben, essa diferença é resultado de um "pequeno deslocamento" que "não diz
respeito ao estado das coisas, mas ao seu sentido e ao seus limites " (p. 54) Tal deslocamento
conferiria às coisas uma auréola, pois "ele não tem lugar nas coisas, mas na periferia delas, no
espaço adjacente entre cada coisa e si mesma". Um suplemento que acrescentaria às coisas uma
vibração, uma "zona na qual possibilidade e realidade, potencialidade e atualidade, tornam-se
indistinguíveis" (56). Um tremor que borraria os limites.
Amar o Qualquer é sustentar este tremor. E arriscar esse gesto de deslocamento na
expectativa de que os sons se mantenham suspensos na indecidibilidade. Suspensos até que tudo,
sendo como agora, mas sem os limites que lhe impõem quaisquer coisas, tenha finalmente lugar.
1
Doutor, ECO/UFRJ, [email protected]
2
Mestre (UFRJ), University of Columbia (doutoranda), [email protected]
[1] Este texto baseia-se em pesquisa etnográfica (FANTINATO, 2013a), realizada entre 2011 e 2012, da “cena musical”
(JANOTTI, 2011) da música improvisada no Rio de Janeiro, em particular as performances ao vivo dos grupos Duplexx,
Chinese Cookie Poets e Rabotnik. As bandas partilhavam um restrito número de ouvintes que se reunia grande parte das
vezes na Audio Rebel, um pequeno espaço em Botafogo - bairro de classe média na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro , predominantemente em um evento intitulado Quintavant. Para uma exposição específica da metodologia utilizada, ver
FANTINATO 2013b.
[2] Músico norte-americano que cresceu em Pernambuco, Brasil, e destacou-se no final dos anos 1970 por participar do
movimento nova-iorquino conhecido como “No Wave”. Integrante então da banda DNA, Arto tocava guitarra com
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escasso conhecimento musical, explorando os ruídos por ela produzidos e trabalhando suas influências de música
brasileira. Nos anos 1980, ainda em Manhattan, Arto tocou com os grupos The Lounge Lizards e The Golden Palominos,
produziu discos para Laurie Anderson e David Byrne, e colaborou com John Zorn. Formou também uma dupla musical
com o tecladista Peter Scherer, intitulada Ambitious Lovers. No Brasil, produziu discos de diversos artistas, como Gal
Costa, Caetano Veloso, Marisa Monte e Orquestra Contemporânea de Olinda. Durante a realização da pesquisa da qual
resulta este artigo, morava no Rio de Janeiro, onde trabalhava como produtor, músico e artista e influenciava diretamente
as bandas cariocas estudadas.
[3] Eis uma compilação das respostas dadas pelos entrevistados à pergunta "o que é improvisar": tocar de forma mais
solta; criar na hora em cima de temas ou estruturas; saber que não se sabe; deparar-se com situações não previstas e tentar
fazer isso virar alguma coisa; buscar formas novas de tocar a mesma música; reagir, ouvir e se integrar: se tornar parte do
que está acontecendo; adaptar-se ao que você tem; todo mundo se embolando, de vez em quando saindo coisas incríveis,
às vezes mó barulheira; aprender a respeitar o tempo do outro; chegar, tocar e sair tocando; fazer coisas legais, mas não
ficar repetindo a mesma coisa o tempo todo; buscar uma textura, e as pessoas vão somando; forma diferente de tocar; tipo
conversar; tocar o agora, não tocar nada pré-concebido, fazer música para aquele momento, para aquela situação; estar
aberto para aquilo que te influencia musicalmente na época surgir na música que cria; saber a hora de calar a boca; buscar
novas dinâmicas; não prender o outro ao tocar.
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