RICARLOS ALMAGRO VITORIANO CUNHA HERMENÊUTICA E ARGUMENTAÇÃO: um possível encontro à luz do paradigma ontológico. Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Direito. Orientador: Prof. Dr. José Adércio Leite Sampaio. Belo Horizonte 2010 FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais C972h Cunha, Ricarlos Almagro Vitoriano Hermenêutica e argumentação: um possível encontro à luz do paradigma ontológico / Ricarlos Almagro Vitoriano Cunha. Belo Horizonte, 2010. 323f. : Il. Orientador: José Adércio Leite Sampaio Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito . 1. Hermenêutica (Direito). 2. Fenomenologia. 3. Verdade. 4. Heidegger, Martin, 1889-1976. I. Sampaio, José Adércio Leite. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título. CDU: 340.132 Ricarlos Almagro Vitoriano Cunha Hermenêutica e Argumentação: um possível encontro à luz do paradigma ontológico. Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Direito. ________________________________________________________ José Adércio Leite Sampaio (Orientador) – PUC Minas ________________________________________________________ Álvaro Ricardo de Souza Cruz – PUC Minas ________________________________________________________ Márcio Antônio de Paiva – PUC Minas ________________________________________________________ Lenio Luiz Streck – UNISINOS ________________________________________________________ Rodolfo Viana Pereira – UFMG Belo Horizonte, 01 de novembro de 2010. À Thereza Almagro, pessoa singular e mãe exemplar, que com seu amor incomensurável deixou o exemplo de que por ele e somente por ele pode a vida valer alguma coisa. AGRADECIMENTOS Ao Mário Conceição e ao Dalvo Rocha, pela acolhida fraterna em Belo Horizonte. A amizade de ambos é o mais valoroso presente que levo de Minas Gerais. Aos Professores José Adércio e Álvaro Ricardo pela atenção e lições memoráveis. Ao Professor Márcio Paiva, por despertar em mim o gosto pela filosofia e tornar mais urbano o solo heideggeriano. Uma referência acadêmica a ser seguida. Novamente ao Góes, irmão que a vida me reservou, uma eterna amizade que poucos têm a sorte de experimentar. Uma referência de vida que me permitiu este momento acadêmico. Ao Doido, de um lado cada vez mais desorientado e fiel em sua amizade; de outro, um registro de admiração por sua companhia e torcida eternas. Ao meu pai Ruyter Carlos, que à beira dos oitenta anos de idade, notoriamente ainda se projeta em meus passos na vida, experimentando efusivamente cada um dos meus momentos. Sem ele nada disso seria possível. À lindinha, pela cumplicidade no estímulo e na tolerância por tantos momentos distantes, somente explicáveis no profundo sentido que o amor e a família podem ter em nossas vidas. [...] passa-se, enfim, da essência para a significação, onde o importante e decisivo não está em se saber o que são as coisas em si, mas saber o que dizemos quando falamos delas. (LENIO STRECK) RESUMO O presente trabalho é dividido em três partes. Na primeira é estudado o panorama de crise do Direito, associando-o à incorporação do pensamento filosófico e científico moderno, o qual, contaminado por uma pretensão de universalidade e certeza racional, acabou por desumanizar-se. Ademais, o referencial de certeza que fez das ciências da natureza o paradigma científico moderno e também inspirador do Direito sucumbiu, com ele arrastando as estruturas jurídicas que o refletiam. Instalada essa situação de crise, manifestada na baixa efetividade dos direitos consagrados no plano constitucional, elegeu-se o caminho hermenêutico para a sua superação. Entretanto, não poderia obviamente ser ela tomada no matiz clássico, que está envolvido no paradigma sucumbente, mas aquele de índole filosófica, pelo qual são assinalados os caracteres históricos e linguísticos de toda compreensão. Mas mesmo esse modelo que se anuncia com Gadamer, necessita ele de modulações, que ora se apresentam no viés do resgate de uma maior dimensão do outro no processo compreensivo do Direito. Assim, a exemplo do que fez o próprio Gadamer, voltando-se à analítica existencial do homem, desenvolvida na ontologia fundamental de Heidegger, a transcendência e o modo de ser-com (Mitsein) serão resgatados para postular à hermenêutica um encontro com a argumentação, ao que aqui se denominará hermenêutica argumentativa. Como consequência dessa aproximação, pode-se experimentar um ganho compreensivo pelo realinhamento da abordagem do fenômeno e evidenciação de ideologias que permeiam o modo impessoal com que o homem se põe no mundo. Palavras-chave: Crise das ciências. Pós-modernidade. Matematização do Direito. Heidegger. Fenomenologia. Verdade. Dasein. Fundamento. Hermenêutica filosófica. Argumentação. RESUMEN Este trabajo es dividido en tres partes. En la primera es estudiado el panorama de crisis del Derecho, ligando él a la incorporación del pensamiento filosófico y científico moderno, el cual, contaminado por una pretensión de universalidad y certidumbre racional, se quedó deshumanizado. Además, el referencial de certeza que hizo de las ciencias de la naturaleza el paradigma científico moderno y también inspirador del Derecho, sucumbió, con ele arrastrando las estructuras jurídicas las cuales le reflejaban. Instalada esa situación de crisis, manifestada en la baja efectividad de los derechos consagrados en el plano constitucional, se eligió el camino hermenéutico para superarla. Sin embargo, no se podría tomarla en el matiz clásico, lo cual está envuelto en el paradigma sucumbiente, sino lo de índole filosófica, por el cual, son señalados los caracteres históricos y lingüísticos de toda la comprensión. Pero incluso este modelo que se anuncia con Gadamer, necesita de modulaciones, las cuales ahora se presentan en el modo del rescate de una mayor dimensión del otro en el proceso comprensivo del Derecho. Así, a ejemplo de lo que hizo incluso Gadamer cuando volvió a la analítica existencial del hombre, desarrollada en la ontología fundamental de Heidegger, la transcendencia y el modo de ser-con (Mitsein) serán rescatados para la postulación del encuentro entre la hermenéutica y la argumentación, al que aquí se denominará hermenéutica argumentativa. En consecuencia de esa aproximación, se puede experimentar un gaño comprensivo en virtud de la reorganización del abordaje del fenómeno y del poner en claro las ideologías que permean el modo impersonal con el cual el hombre se pone en el mundo. Palabras-clave: Crisis de las ciencias. Postmodernidad. Matematización del Derecho. Heidegger. Fenomenología. Verdad. Dasein. Fundamento. Hermenéutica filosófica. Argumentación. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................12 2 A MODERNIDADE E SUA CRISE................................................................................20 2.1 Da modernidade .............................................................................................................20 2.2 O martelo de Nietzsche .................................................................................................32 2.3 Heidegger e a técnica moderna ....................................................................................44 3 O DIREITO E SUA CRISE...............................................................................................52 3.1 O modelo epistemológico das ciências naturais como paradigma para as ciências sociais.......................................................................................................................52 3.2 O Direito contaminado pelas ciências naturais ........................................................55 3.2.1 A subsunção...................................................................................................................56 3.2.2 A matematização do Direito ......................................................................................59 3.2.2.1 Primeiro caso referencial: o benefício assistencial devido ao idoso...............60 3.2.2.2 Segundo caso referencial: um desdobramento do caso anterior .....................65 3.2.2.3 Terceiro caso referencial: causa de menor complexidade.................................70 3.3 A crise das ciências e a crise do Direito......................................................................72 3.3.1 Quarto caso referencial: leis interpretativas em matéria tributária ...................84 3.3.2 O Direito a serviço da técnica ....................................................................................89 3.3.2.1 Quinto caso referencial: o custeio da Previdência Social .................................91 3.3.2.2 A técnica como encobrimento da verdade do (e no) Direito ............................93 4 A RELAÇÃO SUJEITO-OBJETO....................................................................................98 4.1 A proposição como sede da verdade .........................................................................101 4.2 Uma introdução parcial à analítica existencial do Dasein ....................................107 4.2.1 O Dasein como ser-junto-a.......................................................................................111 4.2.2 O Dasein como ser-no-mundo..................................................................................115 5 CONCLUSÃO DA PRIMEIRA PARTE.......................................................................122 6 INTRODUÇÃO À SEGUNDA PARTE .......................................................................127 7 A QUESTÃO DO FUNDAMENTO .............................................................................131 7.1 O princípio do fundamento........................................................................................133 7.1.1 Fundamento, verdade e transcendência ..................................................................138 8 A QUESTÃO HERMENÊUTICA .................................................................................155 8.1 O impessoal ...................................................................................................................157 8.2 A fenomenologia ..........................................................................................................165 8.3 Os existenciais da compreensão e da interpretação ...............................................176 8.4 A hermenêutica filosófica de Gadamer....................................................................192 8.4.1 A distância temporal e o princípio da história efeitual .......................................201 8.4.2 A questão da aplicação..............................................................................................209 8.4.3 O círculo hermenêutico..............................................................................................211 8.4.4 A linguisticidade.........................................................................................................216 9 CONCLUSÃO DA SEGUNDA PARTE ......................................................................223 10 INTRODUÇÃO À TERCEIRA PARTE .....................................................................228 11 AS CRÍTICAS À HERMENÊUTICA FILOSÓFICA ...............................................230 11.1 O debate com Habermas ...........................................................................................230 11.2 A crítica de Karl-Otto Apel .......................................................................................237 11.3 Um balanço das críticas .............................................................................................241 12 COMPREENSÃO E FUNDAMENTAÇÃO ..............................................................246 12.1 A “inclusão” do outro ................................................................................................252 12.1.1 O Dasein como ser-com os outros .........................................................................253 12.1.1.1 O sentido da inclusão do outro..........................................................................261 12.2 A compreensão em três momentos..........................................................................264 12.3 A compreensão compartilhada.................................................................................265 12.3.1 O encobrimento do fenômeno .................................................................................267 12.3.2 Discurso, linguagem e sentido ................................................................................268 12.4 Hermenêutica Argumentativa e Direito.................................................................271 12.4.1 Hermenêutica e argumentação em Paul Ricoeur .................................................272 12.4.1.1 A linguística da fala e a linguística do discurso .............................................277 12.4.1.2 A dialética entre compreensão e explicação ....................................................283 12.4.1.3 Em busca de um fundamento mais originário................................................287 12.4.2 A hermenêutica argumentativa ..............................................................................288 12.4.3 Hermenêutica e facticidade .....................................................................................291 12.4.4 O círculo argumentativo .........................................................................................295 13 CONCLUSÃO ................................................................................................................304 REFERÊNCIAS....................................................................................................................309 12 1 INTRODUÇÃO Neste trabalho, buscamos mostrar que, se por um lado, o debate em que se envolvem os filósofos do Direito dá mostra de que a reflexão tem caminhado na busca por novas fundações que permitam o seu acontecer; por outro, a práxis jurídica tem se apresentado ainda presa a marcos históricos herdados da tradição, que acabam por mantê-lo no velamento. São práticas em que o Direito ainda submerge, voltadas à busca de segurança e objetividade, próprias de uma pretensão de ocupação de um lugar ao lado das ciências da natureza, por muito tempo consagradas como o modelo epistemológico referencial. Nessa linha, começamos por apresentar um quadro da modernidade, marcado pela ascensão da razão como arquétipo de construção de um novo mundo. Seguimos com a apresentação da sua crise, sobretudo pautada nas incisivas críticas formuladas por Nietzsche e Heidegger. Realçando o papel referencial das ciências da natureza, mostraremos que o Direito, mimetizando os seus métodos e modelos, acabou por, juntamente com elas, ver-se tragado por suas insuficiências e incertezas. De fato, o panorama matemáticocientífico, como fruto do seu próprio desenvolvimento, mostrou-se atingido pela relatividade dos fenômenos físicos. As constantes matemáticas que davam suporte aos teoremas categóricos se mostraram dependentes de sistemas referenciais escolhidos pelo próprio homem, o que já sinalizava para a impossibilidade de alcançar um mundo independente do próprio sujeito que o conhecia. Esse quadro de crise do paradigma científico é rapidamente mostrado, a fim de fundamentar a assertiva inicial, no sentido de que se o modelo referencial espelhado colaba, então o Direito, como objeto referido, acaba também atingido. Tal o próximo ponto: o Direito em crise. 13 Aqui, pretendemos, muito rapidamente, transitar por alguns problemas que ainda penetram na prática jurídica, tais como a subsunção, como herança lógicoformal, e a matematização dos conceitos, como instrumento da segurança jurídica. Por trás de toda crise está o fundamento metafísico da crença na verdade absoluta de uma realidade independente do sujeito. Daí que, em última análise, toda relação do conhecimento seria travada em um sistema complexo, extremado, de um lado, pelo objeto conhecido e, de outro, pelo sujeito cognoscente. Uma diferença indiscutível, mas que não se presta necessariamente a justificar uma cisão. Portanto, implicitamente, procuramos deixar evidente que é essa relação sujeito-objeto que se encontra na base das práticas jurídicas voltadas à busca de um Direito objetivamente válido e, portanto, passível de aplicação sem a intromissão de deformações subjetivas. Ainda que implicitamente, estamos fazendo uma ligação entre Direito e verdade, posto que, sem essa, não há como ele ser desvelado. A analítica existencial do Dasein, aqui explorada parcialmente, servirá para mostrar a insuficiência daquele modelo cognoscitivo que, vendo a verdade como adequação (adequatio intellectus ad rem1), acaba por desconsiderar a subjetividade do sujeito. Mostraremos também que a verdade, vista como verdade da proposição, repousa sobre uma ambiguidade estrutural, já que, antes de a enunciação ser verdadeira, é preciso que já me encontre na verdade do objeto. É só com base nela que poderei fazer enunciações verdadeiras ou falsas. É preciso, pois, que originariamente eu esteja junto ao objeto para que possa, em minha abertura, aí sim conhecê-lo. Esse mostrar-se próprio do fenômeno se dá no desvelamento, designação heideggeriana para a própria verdade. O modelo dicotômico pautado na relação sujeito-objeto desconsidera esse peculiar modo de ser do homem, a par da sua natural condição de estar-no-mundo, expressão complexa que demandará análise para a sua perfeita compreensão. É 1 Vide item 4.1. 14 também com base nela que veremos a importância do todo referencial em que se inserem os objetos e com o qual já está familiarizado desde sempre o sujeito, tudo isso a permitir uma contundente crítica ao modelo em questão. Portanto, superada essa parcial análise dos existenciais do Dasein, resta-nos concluir pela impropriedade da utilização da relação sujeito-objeto, extremada por polos cindidos, porquanto desconsidera o modo de ser próprio do sujeito ou, mais simplesmente, a subjetividade mesma. Se abalada essa estrutura que, em última análise, serve de base ao modo de “operar” o Direito, então, abrem-se as portas para um repensar o seu próprio ser. Com essas considerações introdutórias, temos um esboço do caminho a ser desenvolvido na primeira parte da obra. Aqui já se deixa insinuar a densidade filosófica do texto, a qual exige imediata justificação. Essa forma de abordar nosso tema não se desvia do foco da Ciência do Direito e mesmo do seu objeto de estudo. Na verdade, pretendemos demonstrar que há uma essência esquecida que se presta a fundamentá-los e essa busca impõe um caminho crítico que possa superar as aporias e contradições em que eles se depararam. Um modo de pensar crítico que possa deixar transparecer a ideologia da técnica, como bem ressalta Ernildo Stein no excerto abaixo (HEIDEGGER, 1996d, p. 43): Num momento de crise da sociedade brasileira, em que uma falsa segurança é buscada com o sacrifício da liberdade; em que se elabora um projeto nacional comprimido dentro de uma visão tecnocrática, nada melhor que a serena meditação da filosofia. Ela nos ensina a paciência diante da história e a coragem para apostar nas possibilidades que se escondem no risco da liberdade. Ela nos mostrará principalmente o verdadeiro lugar da ciência e da técnica na construção da história humana. Todo o determinismo que se quer imprimir à sociedade brasileira e à consciência nacional, mediante a absolutização da tecnologia, deve ser desmascarado pela consciência crítica instaurada pela filosofia. Ela é um instrumento de libertação das amarras deste novo positivismo tecnocrático com que o sectarismo e o interesse nos querem prender. 15 Portanto, a necessidade de instaurar em novas bases a referida dimensão crítica, já seria suficiente a justificar o aporte filosófico ao trabalho. Entretanto, podemos ainda melhor sustentá-lo, adiantando que, enquanto o mover-se do Direito se dá no âmbito da metafísica clássica, que vê o ente enquanto ente, procurando assim capturá-lo em um conceito que determina o seu ser, deixa aí escapar o seu próprio fundamento. De fato, o movimento das ciências se dá em torno de objetos temáticos eleitos de forma inaugural e pré-científica, que abrem o caminho para a sua investigação. Esses conceitos fundamentais constituem o fio condutor para o descortinar da região ôntica em que se moverá aquela ciência. Tais conceitos fundamentais “são aquelas determinações em que a região essencial a que pertencem todos os objetos temáticos de uma ciência logra a sua compreensão preliminar, que servirá de guia a toda investigação positiva” (HEIDEGGER, 1997, p. 21, tradução nossa2). Ou seja, a ciência se projeta adiante em uma região do ente que lhe é previamente determinada, uma região que permite o subsequente perguntar acerca das estruturas assim obtidas. Portanto, é preciso ao menos reconhecer a existência de um questionar mais originário3, pela própria condição de possibilidade dessas ciências, tal como “Conceptos fundamentales son aquellas determinaciones en que la región esencial a la que pertenecen todos los objetos temáticos de una ciencia logra su comprensión preliminar, que servirá de guía a toda investigación positiva.” Para conferência, o texto em alemão: “Grundbegriffe sind die Bestimmungen, in denen das allen thematischen Gegenständen einer Wissenschaft zugrundeliegende Sachgebiet zum vorgängigen und alle positive Untersuchung führenden Verständnis kommt“ (HEIDEGGER, 1977, p. 14). 3 Esse “questionar mais originário” é uma expressão que marcará sua presença com certa frequência ao longo do texto, refletindo a própria busca por um distanciamento do ponto de vista meramente ôntico que domina as ciências em geral, para, no viés ontológico, reconhecer seu próprio campo de possibilidade. O tema será melhor abordado adiante. De qualquer forma, neste momento queremos deixar claro que as ciências em geral se desenvolvem em meio a um campo que lhe foi aberto previamente. Exemplificamos: se a biologia se propõe a estudar os seres vivos, a própria delimitação dessa região de entes (seres vivos) deve ser-lhe previamente dada, sem o que, ficaria ela impossibilitada de avançar sequer um passo. Entretanto, essa já não é uma pergunta que seja pertinente à biologia como tal, mas uma questão mais originária, cuja resposta é posta para ela poder caminhar. 2 16 Heidegger assevera (1997, p. 21, tradução nossa4): A pergunta pelo ser aponta, por conseguinte, para a determinação das condições a priori da possibilidade não só das ciências que investigam o ente enquanto tal, e que por fim se movem já sempre em uma compreensão do ser, mas que ela aponta também para a determinação da condição de possibilidade das ontologias mesmas que antecedem às ciências ônticas e as fundam. Por isso mesmo, quando Heidegger afirma que “o verdadeiro movimento das ciências se produz pela revisão mais ou menos radical (embora não transparente para si mesma) dos conceitos fundamentais”, complementando que “o nível de uma ciência se determina por sua maior ou menor capacidade de experimentar uma crise em seus conceitos fundamentais” (HEIDEGGER, 1997, p. 20, tradução nossa5), é que já se podem aí ver antecipadas as bases para a formulação de Thomas Khun (2006), no sentido de que a evolução científica verdadeiramente se dá por meio de revoluções e não da progressividade linear de resultados alcançados no âmbito do que denominou ciência normal, embora ele não tenha vislumbrado o fundamento ontológico dessa revolução, como o fez nosso filósofo6. “La pregunta por el ser apunta, por consiguiente, a determinar las condiciones a priori de la posibilidad no sólo de las ciencias que investigan el ente en cuanto tal o cual, y que por ende se mueven ya siempre en una comprensión del ser, sino que ella apunta también a determinar la condición de posibilidad de las ontologías mismas que anteceden a las ciencias ónticas y las fundan.” Para conferência, o texto em alemão: “Die Seinsfrage zielt auf eine apriorische Bedingung der Möglichkeit nicht nur der Wissenschaften, die Seiendes als so und so Seiendes durchforschen und sich dabei je schon in einem Seinsvërstandnis bewegen, sondern auf die Bedingung der Möglichkeit der vor den ontischen Wissenschaften liegenden und sie fundierenden Ontologien selbst.“ (HEIDEGGER, 1977, p. 15). 5 “El verdadero ‘movimiento’ de las ciencias se produce por la revisión más o menos radical (aunque no transparente para sí misma) de los conceptos fundamentales. El nivel de una ciencia se determina por su mayor o menor capacidad de experimentar una crisis en sus conceptos fundamentales.”. Eis o texto em alemão para conferência: “Die eigentlichte Bewegung der Wissenschaften spielt sich ab in der mehr oder minder radikalen und ihr selbst nicht durchsichtigen Revision der Grundbegriffe” (1977, p. 13). 6 A antecipação é confirmada em outra oportunidade (HEIDEGGER, 2009, p. 40): 4 É da essência da existência do homem que a filosofia seja jogada de volta sempre de novo para o começo. E quanto mais radicalmente isso for compreendido, isto é, quanto mais originariamente a investigação (se) deixa evocar para trás, tanto mais seguramente move-se para frente. O avanço nas ciências positivas, seguramente, não consiste no fato de recolher 17 Em resumo, as ciências têm no ente o objeto do seu estudo, sendo ele tematizado em face de diversas possibilidades que são abertas pelo próprio ser, daí a necessidade de recuar um passo para, antes de partir de conceitos fundamentais que lhe são dados, a ciência possa repensar esses próprios fundamentos, momento em que se pode dizer que “nenhuma ciência é possível, sem vir acompanhada pela questão que pergunta pelo ser” (HEIDEGGER, 2009, p. 35). A esse ponto retornaremos ao longo da segunda parte do trabalho, momento em que se insinua um caminho na busca de uma possível superação do ponto de vista ancilosado com que o Direito é tomado, o caminho hermenêutico. Mas a hermenêutica que aqui se anuncia está longe daquela tradicional, entendida como “teoria científica da arte de interpretar” (MAXIMILIANO, 1984, p. 1) ou simplesmente, como ciência da interpretação. Não se trata de uma normatização de um processo interpretativo7, mas de um acontecer que se experimenta no modo de ser do próprio homem. Hermenêutica é a própria compreensão, a qual, como existencial humano, está aí mais originariamente que qualquer metodologia que lhe pretenda determinar. Por isso mesmo, precederão a exposição da hermenêutica filosófica, algumas notas acerca do método fenomenológico e um avanço sobre a analítica existencial do Dasein, com o estudo dos existenciais da compreensão e da interpretação. Segue-se então uma abordagem dessa hermenêutica, tal como apresentada por Gadamer, onde as suas marcas fundamentais serão expostas. Aqui iremos destacar a relevância da tradição que nos marca em nossa estrutura prévia da compreensão, a qual não nos permite mais assumir um modelo interpretativo asséptico, em que o sentido seja algo no texto, que possa ser resgatado por um procedimento científico resultados e empilhá-los como sacos num depósito de mercadorias; antes o avanço é sempre e cada vez uma reforma filosófica dos conceitos fundamentais, uma compreensão radicalizada do ente ele mesmo. Como se depreende em Limongi França: “A interpretação, portanto, consiste em aplicar as regras, que a hermenêutica perquire e ordena, para o bom entendimento dos textos legais” (2008, p. 19). 7 18 metodicamente determinado. Já sempre estamos junto aos entes e sob uma maneira prévia de vê-los e entendê-los. Portanto, a compreensão será o resultado de uma fusão de horizontes, onde o texto não poderá jamais ser tomado como o envoltório de um sentido oculto; senão como um dos elementos participantes da compreensão. Também se esvaem por aí quaisquer tentativas de resgate de uma psicologia hermenêutica, aos moldes de Schleiermacher, eis que “na escrita, o sentido do falado esta aí por si mesmo, inteiramente livre de todos os momentos emocionais da expressão do anúncio” (GADAMER, 2002a, p. 571). Daremos ainda destaque ao papel da linguisticidade em todo compreender, eis que, com Gadamer, ser que pode ser compreendido é linguagem. Porém, antes que essa historicidade de toda compreensão se evidencie na descrição da hermenêutica filosófica, teremos um capítulo determinante para o todo da obra, que retrata as lições de Heidegger acerca do princípio do fundamento. Aqui estará marcada a nossa própria finitude e a impossibilidade de um fundamento inconcusso. Seremos determinados por uma hermenêutica da facticidade e aquela estrutura nos levará à transcendência como momento relevante da existência, o qual servirá de substrato a algumas conclusões que serão lançadas na terceira parte do trabalho. Nesta última etapa do estudo, iniciaremos com as críticas levantadas ao caráter universal da hermenêutica filosófica, mediante a reconstrução do debate que se instalou entre Habermas e Gadamer, acrescendo-lhe das questões aventadas por Apel e terminando com nossa própria indicação da insuficiência da sua hermenêutica, por não conceder ao outro a dimensão que se impõe no processo compreensivo. Aqui basicamente a tese se apresenta em dois tópicos bem demarcados. O primeiro é determinado pela postulação de um lugar para a fundamentação no processo hermenêutico, ele mesmo fundamentado nas raízes ontológicas do Dasein, o que nos permitirá estabelecer uma ponte entre a hermenêutica e a argumentação. 19 Associado a esta ideia, apresenta-se o segundo ponto da tese, que diz respeito à assunção de que sendo um postulado de essência do humano o fato de que é-com os outros, não se pode negligenciar o papel relevante que na compreensão ele assume, exatamente porque “ser-com” é compartilhar a verdade de um mesmo que se apresenta para nós. Assim, é sob a base da mesmidade que o papel realinhador da hermenêutica filosófica (e argumentativa) eclodirá, permitindo a adução de um importante argumento contra as críticas da relatividade que a ela são imputadas. Se o problema inicialmente levantado é a crise do Direito, a hipótese que ora pretendemos ver confirmada é a de que a hermenêutica é um possível caminho para a sua superação, mas não naquela acepção clássica; e sim como hermenêutica filosófica, porém modulada por uma inserção do elemento argumentativo no processo compreensivo. 20 1.ª PARTE A CRISE DA MODERNIDADE E O DIREITO EM CRISE 2 A MODERNIDADE E SUA CRISE 2.1 Da Modernidade O que é a modernidade? Quando ela começou? Ela já terminou? O foco de nossas reflexões, como já adiantado na introdução, não está voltado à modernidade propriamente dita e ao seu colapso. Sobretudo não temos a pretensão de posicioná-la em termos precisos (se é que tal empreitada é possível), no viés de um relato historiográfico. Daí que as perguntas que iniciam o subitem nos servem apenas de balizas para introduzirmos o tema. Comecemos por situá-la no tempo e no espaço (GIDDENS, 1991, p. 11): "modernidade" refere-se a estilo, costume de vida ou organização social que emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se tornaram mais ou menos mundiais em sua influência. Isto associa a modernidade a um período de tempo e a uma localização geográfica inicial, mas por enquanto deixa suas características principais guardadas em segurança numa caixa preta. Em uma tentativa de definir o moderno, pode-se afirmar ser ele um período marcado pela descontinuidade, ruptura, distanciamento com o que é antigo. Como 21 aponta Habermas, “A palavra modernus foi utilizada inicialmente no final do século V para diferenciar um presente tornado cristão de um passado pagão” (2001, p. 168). Passa-se a um ideal de transcendência, em que o antigo deve ser superado e, dessa superação, aflora um corolário imediato: a necessidade de uma nova fundação. Porque se deve quebrar com a tradição8, impõe-se “desvalorizar essa pré-história imediata e distanciá-la para fundar-se de modo normativo a partir de si mesmo” (HABERMAS, 2001, p. 168). Esta necessidade de autocertificação da modernidade, porque distanciada dos substratos antigos, hauridos da tradição que repudia, faz com que suas bases sejam alocadas em torno da razão9. Daí o dizer dos filósofos iluministas que das querelas entre antigos e modernos parece que o problema se resolve a favor dos últimos, posto que a civilização moderna, pós-medieval, porque apoiada na razão, mostrava-se superior (LYON, 1998, p. 37). Para os nossos propósitos, importa destacar que a modernidade é marcada, mais do que por um conjunto de teorias ou cosmovisões, por uma atitude fundamental de centrar no homem a reflexão que busca captar o mundo de forma totalizadora, aí abarcando todo o seu próprio modo de pensar e de agir, ao que denominaremos humanismo moderno. É nesse sentido que se afirma que “talvez melhor do que a época seria falar da conduta, de uma nova sensibilidade diante da realidade e da vida” (TEIXEIRA, 2005, p. 10). Nesse contexto, a figura de René Descartes é paradigmática. Mais do que uma renovação do conhecimento, mais do que uma rearticulação do agir moral, seu Por tradição podemos entender os modos de vida e cosmovisões dos antigos, um “conjunto de regras estabelecidas pela comunidade da aldeia, pela vida religiosa e litúrgica, ou pelos anciãos ou reis que estavam no poder” (LYON, 1998, p. 37). 9 Nas precisas palavras de Habermas (2001, p. 170), “uma modernidade que se tornou reflexiva deve justificar segundo parâmetros próprios a escolha desses modelos e criar toda normatividade a partir de si mesma. A modernidade deve se estabilizar a partir da única autoridade que lhe restou, a saber, da razão”. 8 22 ambicioso projeto consiste no estabelecimento de um substrato unificador de tudo isso, a unidade da razão. Pretende estabelecer um grande sistema hierarquizado que, partindo dos fundamentos, chegue às consequências, graças a um trabalho unificador da razão. Ademais, o seu caráter universal se dá em decorrência do seu papel harmonizador da teoria com a prática, posto que o conhecimento, tal como Descartes o vê, não está limitado ao sentido comum de ciência, mas ao agir prático também. Por isso, nada escapa ao seu império10. Em uma alegoria interessante, Descartes estrutura as diversas áreas do conhecimento com apoio na figura de uma árvore, onde as raízes representariam a metafísica; o tronco, o conhecimento físico-matemático; e, finalmente, os ramos e frutos abarcariam a medicina, as artes mecânicas (tecnologias) e a moral. Nessa árvore do saber, para que aqueles frutos sejam colhidos, ela deve estar firmemente apoiada em suas raízes. Ademais, frutos saudáveis devem nascer de troncos que estendam a estabilidade e a segurança das raízes que lhe servem de substrato, o que se verificará onde a teoria e os seus fundamentos estiverem sustentados em conhecimentos absolutamente verdadeiros, tarefas que serão empreendidas com o auxílio da razão. Essa absoluta universalidade da razão é assim destacada por Franklin Leopoldo e Silva (DVD): Ela se constitui agora como aquele vetor universal que vai dotar todas as dimensões humanas daquilo que é mais próprio, daquilo que justamente é mais humano, mais caracteristicamente humano, e por isso nós dizemos que está sendo fundado aqui o Após reconhecer que aquele que se dedica ao cultivo do campo e paralelamente à arte musical de algum instrumento não poderia almejar a mesma desenvoltura que aquele que a apenas um dos ofícios se entregasse, afirma Descartes que seria equivocado pretender aplicar o mesmo raciocínio às ciências, uma vez que elas estariam unificadas em um princípio único, a razão humana. O excerto é esclarecedor (DESCARTES, 1985, p. 12): 10 Com efeito, visto que todas as ciências nada mais são do que a sabedoria humana, a qual permanece sempre una e idêntica, por muito diferentes que sejam os objetos a que se aplique, e não recebe deles mais distinções do que a luz do sol da variedade das coisas que ilumina, não há necessidade de impor aos espíritos quaisquer limites. Nem o conhecimento de uma só verdade, como se fora a prática de uma única arte, nos desvia da descoberta de outra; pelo contrário, ajuda-nos. 23 humanismo moderno, a capacidade humana de conhecer com autonomia, independentemente de qualquer dogma, de qualquer autoridade externa à razão, a possibilidade de conhecer e de agir em liberdade. Essa racionalidade vai operar através de regras metódicas que assegurem o ideal de certeza buscado11. Há um ramo do conhecimento, a matemática, onde espontaneamente esse método já é aplicado com grande êxito, pelo que, devemos desvendá-lo, utilizando-o como paradigma para estendê-lo universalmente. Esse setor do conhecimento, que viria mostrando-se o mais evidente e seguro, está apoiado em certas condições de certeza que aí se manifestam, as quais devem ser estendidas aos demais ramos do conhecimento. São os fundamentos metódicos, por ele denominados arcanos do saber. A reconstrução do conhecimento com base nesse método vai partir da rejeição de todo saber estabelecido12. Essa dúvida metódica, que a todo conhecimento põe em suspensão, vai conduzi-lo ao encontro da subjetividade, fazendo dela o marco característico fundamental da modernidade. Em suas reflexões afirmará que mesmo tudo pondo em dúvida não poderia duvidar de que está duvidando e, portanto, ao fazê-lo, acaba por afirmar o sujeito (“penso, logo existo”). Essa subjetividade, ademais, é marcada pelo exercício da liberdade, já que praticar a dúvida é exercê-la na recusa em aceitar as verdades herdadas da tradição e, mais radicalmente, como consectários lógicos, os seus fundamentos e a sua autoridade. Assim, é na constatação da existência, como primeira descoberta da reflexão, que teremos o primeiro testemunho dado pela subjetividade da sua liberdade e do seu poder. Mesmo quando Descartes reconhece a existência de Deus e vê o homem como criatura finita e dele dependente, ainda aí essa liberdade e essa autonomia da razão A pujança do método é determinada em sua regra IV, onde a sua necessidade é afirmada para a procura da verdade (DESCARTES, 1985, p. 23). 12 Nesse sentido, a regra III (DESCARTES, 1985, p. 18): 11 No que respeita aos objetos considerados, há que procurar não o que os outros pensaram ou o que nós próprios suspeitamos, mas aquilo de que podemos ter uma intuição clara e evidente ou que podemos deduzir com certeza; de nenhum outro modo se adquire a ciência. 24 não se veem prejudicadas, posto que minha limitação e dependência são frutos da representação que tenho em meu intelecto da própria ideia de Deus. É a partir dela, que me reconheço finito. Daí porque [...] se Deus continua, como na tradição Cristã, essa derradeira instância, esse primeiro princípio de verdade, no entanto, cabe ao sujeito, doravante, julgar todos os seus pensamentos e todas as suas ações, e esse julgamento será livre, o sujeito é que vai adequar livremente às regras do verdadeiro, aos parâmetros dessa jurisdição da verdade, tudo aquilo que ele puder pensar. Portanto, ainda que o sujeito reconheça Deus como princípio da verdade, caberá a ele adequar livremente os seus pensamentos e as suas ações a esse princípio. (SILVA, 2005) Enfim, “Deus permanece o fundamento da realidade, no entanto, agora, este fundamento se dá por meio da subjetividade do homem” (TEIXEIRA, 2005, p. 11). Ademais disso, a dicotomia estrutural que põe o homem como substância corpórea de um lado; e substância pensante, de outro, vai proporcionar uma hipertrofia da subjetividade, posto que se tudo aquilo que é mensurável na extensão do espaço está fora dessa interioridade, o que a isso não se subsume é interior e lhe pertence. Portanto, os valores, significados e fins deverão ser expostos a partir do próprio sujeito. Sob nova formatação, essa hipertrofia da subjetividade é também acompanhada por Kant, quando, instaurando o que ele mesmo denominou de revolução copernicana, estabeleceu uma nova transcendência, que parte do objeto para a sua objetividade, onde o conhecimento não é tomado como “uma mera reprodução de uma realidade qualquer, mas como uma constituição apriórica do objeto pela subjetividade humana” (OLIVEIRA, 2001, p. 9). Assim, toda indagação acerca dos objetos de nossa experiência pressupõe um questionamento sobre as condições de possibilidade de todo conhecer, e esses elementos constitutivos de todo objeto não são em si outro objeto ao lado dos demais, que poderiam ser investigados pelas ciências, mas elementos transcendentais que submetem toda experiência a essa formatação pela subjetividade cognoscente. 25 Em decorrência dessa “mediação consciencial” a filosofia kantiana está marcada pelo caráter antropocêntrico do pensamento moderno, tal como anota Manfredo Araújo de Oliveira (2001, p. 10): A ontologia tradicional é substituída pelo que poderíamos chamar de objetologia transcendental, uma teoria do processo de objetivação, que vai culminar na lógica transcendental. Que a ontologia se faça lógica significa que, em última análise, a instância geradora do sentido de todo o real é a subjetividade finita e nisto consiste o antropocentrismo. Esse elemento marcante do moderno exigirá posteriormente uma reflexão histórica centrada no sujeito, de forma que, embora de delimitação complexa, podese afirmar que a modernidade vem associada à ideia de secularização ou laicização, caracterizada pela desvinculação da tradição religiosa, que acabaria por outorgar ao homem, via razão, a autocertificação do mundo. Para Teixeira (2005, p. 42), a modernidade ostentaria três traços interdependentes: [...] o primeiro traço diz respeito à vinculação entre modernidade e racionalidade. Trata-se do imperativo de adaptação dos meios aos fins que se persegue, tendo como objetivo de fundo erradicar as ignorâncias geradoras de crenças e de comportamentos “irracionais” [...] O segundo traço postula a partir do sonho de racionalização, um modo particular de relação com o mundo que se resume na “afirmação fundamental da autonomia do indivíduo-sujeito capaz de ‘fazer’ o mundo no qual vive e de construir ele mesmo as significações que dão um sentido à sua própria existência”. Uma terceira feição da modernidade implica a forma de organização social caracterizada pela diferenciação das instituições e pela especialização dos diferentes domínios da atividade social.13 Para Habermas (2001, p. 169/170), o moderno como ruptura com o passado, sustentado na razão humana, leva a um dinamismo sem precedentes. Há uma abertura radical ao futuro e o presente ganha projeção nesse quadro, posto que O autor complementa afirmando que “segundo Ari Pedro Oro, isto quer dizer que ‘a economia, a ciência, a estética, a política, o jurídico etc., cada uma destas esferas funcionam segundo uma lógica própria, tendo como característica principal a autonomia da ordem temporal que se emancipa da tutela da tradição religiosa’ (A.P. ORO, “A religião entre os universitários do sul do Brasil”, Revista Eclesiástica Brasileira 63, 2003, p. 847)” (TEIXEIRA, 2005, p. 42). 13 26 funciona como uma fonte de eventos singulares e contingentes onde a transitoriedade vai ganhar espaço. A história é vista então como uma fonte de geração de problemas onde o tempo seria o escasso recurso para enfrentá-los, pelo que acabariam, por sua pressão, sendo empurrados para o futuro. Tudo isso faria com que a verdade passasse a receber o que denominou de índice histórico. Se há uma pretensão de alcançar uma verdade desligada dessas amarras, a compreensão da própria modernidade passa a ser o problema. Isso justificaria a autorreflexão crítica da própria modernidade. Foi Hegel quem originariamente afirmou no plano conceitual essa relação entre modernidade e racionalidade, o que faz dele, segundo Habermas, o primeiro filósofo a elaborar um conceito claro de modernidade que engendrasse a dinâmica interna de suas figuras14. Inicialmente ligou a modernidade à ideia de novo tempo, aquele “de nascimento e trânsito para uma nova época” em que “O espírito rompeu com o mundo de seu ser-aí e de seu representar, que até hoje durou; está a ponto de submergi-lo no passado e entregar-se à tarefa de sua transformação” (HEGEL, 1992, p. 26). Esse tempo moderno se consumiria na expectação do futuro, através daquilo que denominou de Zeitgeist (espírito do tempo), anunciado com a Revolução Francesa e o Iluminismo. É exatamente aí que reside a distinção entre o tempo moderno e o antigo, qual seja, a abertura à dimensão do futuro: “em cada momento do presente (que se consome a si mesmo no engendramento e na expectação do novo) se repete e se intensifica o limiar de um novo e epocal começo” (GIACOIA JUNIOR, 1993, p. 49)15. Ver HABERMAS, 2002, p. 24. Ou ainda, como diria HABERMAS, “Enquanto no Ocidente cristão os ‘novos tempos’ significavam a idade do mundo que ainda está por vir e que despontará somente com o dia do Juízo Final [...] o conceito profano de tempos modernos expressa a convicção de que o futuro já começou: indica a época orientada para o futuro, que está aberta ao novo que há de vir.” (2002, p. 9). 14 15 27 O que resulta dessa consciência histórica e temporal é a ideia de oposição do novo tempo ao passado, com a consequente necessidade de autofundamentação, ou seja, porque não pode obter dele seu fundamento, necessita criar com base em si mesma a sua própria normatividade. Assim, seu núcleo é marcado pela cisão com o antigo, tal como o remarca Giacoia Junior (1993, p. 51): [...] o horizonte da experiência do tempo se recolhe sobre a vivência de uma subjetividade descentrada, despojada de referências adquiridas e sedimentadas, desligada das convenções do cotidiano [...] O presente atual, que se consome em si mesmo, torna-se, desse modo, o único ponto de referência da modernidade, que não pode mais adquirir a consciência de si valendo-se da oposição relativa a uma época recuada e superada, transformada em figura do passado. Essa ideia de rompimento com o antigo se inicia com o sentido estético, no âmbito da arte16. Tal o confirma a crítica contundente de Baudelaire, para quem a Modernidade, com o seu valor estético historial, seria marcada pelo momento, de onde se impõe a necessidade de “tirar da moda o que esta pode conter de poético no histórico, de extrair o eterno do transitório” (BAUDELAIRE, 1996, p. 23). Daí advertir que “(o artista) De tanto se enfronhar nele (o antigo), perde a memória do presente; abdica do valor dos privilégios fornecidos pela circunstância, pois quase toda nossa originalidade vem da inscrição que o tempo imprime às nossas sensações” (1996, p. 27)17. Esse sentimento de autocompreensão forjado no núcleo estético da arte de vanguarda foi logo recuperado filosoficamente por Hegel. A Modernidade, ao romper com os critérios de medida do passado, acabou gerando fragmentações que, ao mesmo tempo, exigiram uma estabilização que somente pôde ser alcançada a partir de si mesma. Essa autocertificação e autofundamentação estariam baseadas no Cf. HABERMAS, 2002, p. 13. Com essa advertência, critica a constância com que os artistas modernos insistem em retratar seus personagens com a indumentária dos antigos e, radicalizando, aponta para o sentido catastrófico de pretender reproduzir uma marina atual pela inserção de antigos galeões com seus mastros e velames (BAUDELARIE, 1996, p. 23, 24 e 27). 16 17 28 princípio da subjetividade, apresentado como autorreflexão, uma curvatura do sujeito sobre si próprio, para racionalmente fornecer o estatuto da validação de qualquer questão, na esfera do saber, da moral ou da arte. Daí a necessidade de desenvolvimento do conceito de Absoluto, “no qual a razão se testifique como potência unificadora que, a partir da reflexão, possa superar toda divisão, dissolver toda positividade, engendrando de seu próprio interior as referências normativas que reconciliem a modernidade consigo mesma.” (GIACOIA JUNIOR, 1993, p. 5253). Como dissemos, essa realidade moderna é fragmentária, dissolvendo aquele amálgama proporcionado pela religião nos planos da ciência, da moral e da arte, entre vida religiosa, Estado e sociedade. A filosofia teria por objetivo recuperar na racionalidade aquele poder unificador da religião, e o faria no interior da própria dialética do esclarecimento, já que ela não poderia servir-se de nenhum outro instrumento, que não o da reflexão. De ver-se então que a modernidade gera um paradoxo intestinal, pois ao mesmo tempo em que se mostra superior, experimenta um estado de permanente crise, ao mesmo tempo em que promete progresso e emancipação, o mundo moderno é também “o mundo do espírito tornado estranho a si mesmo e alienado de si” (GIACOIA JUNIOR, 1993, p. 51). A superação do sentimento de perda da totalidade, gerado pelas fragmentações instauradas com a modernidade, em decorrência do destronamento da religião, passa a ser tarefa da filosofia, que pretende alcançar tal objetivo pela força unificadora da razão tornada absoluta18, mas essa regeneração da força coesiva religiosa fracassou, tal como atesta Giacoia Junior (1993, p. 54): A tematização do todo seria uma necessidade esquecida pela filosofia clássica que, no afã de entender os objetos de nossa experiência, esqueceu-se de vê-los em suas inter-relações. Daí que o novo papel da razão seria o de estabelecer aquilo que Manfredo de Oliveira denominou “unidade diferenciada”: “O conhecimento humano destrói a unidade das coisas e penetra seus elementos: a razão destrói esta negação e reconstitui a unidade do real, mas agora enriquecida de seus elementos constitutivos” (2001, p. 10). 18 29 Nos termos desses diversos conceitos de razão, a esta cumpriria superar as distâncias e as diferenciações produzidas pela dinâmica do princípio da subjetividade, valendose de um movimento que se proíbe o acesso a qualquer normatividade exterior à reflexão, uma vez que a modernidade, por sua própria essência, deve produzir toda referência normativa a partir de si mesma, num movimento estabilizador de autocertificação. Todas essas tentativas de reconciliação das fragmentações da modernidade, fundando-se no estabelecimento de um novo conceito de razão, com base na dinâmica interna do princípio da subjetividade e do aprofundamento da dialética da Aufklärung, fracassam, por razões diversas, ao tentar compensar, no elemento razão, a perdida força de coesão e integração social outrora emanada da religião.19 Portanto, esse quadro moderno está marcado por uma inquietude própria de uma problemática associada ao tempo, que se mostra incapaz de dar conta das questões que se renovam. E isso é compreensível, posto que, em nome da razão, foram rejeitados os dogmas da tradição (até então inquestionáveis e inabaláveis), os quais geravam tranquilidade e produziam certa segurança. Como afirma David Lyon, a modernidade debilita o eu, pois “se na sociedade tradicional, a identidade é dada, na modernidade ela é construída” (1998, p. 37). Então, de certa forma, essa crise de autoridade acabou por refletir-se em uma crise de identidade. Por outro lado, o mundo foi reconquistado pela razão, é nela que se encontra o substrato seguro para a sua reconstrução. A fé agora tem outro destinatário e, de forma aparentemente paradoxal e curiosa, em meio a esta turbulência das dúvidas modernas, a extremada confiança depositada na razão acabava por refletir-se também em uma crença na sua capacidade de produção de liberdade e progresso. Nessas primeiras linhas, temos a impressão de que a modernidade se deixa mostrar, ainda que de forma muito incipiente. E dizemos isso porque ela é plurimorfa, um caleidoscópio que se apresenta em reflexos dinâmicos e de múltiplos matizes, daí porque marca diversamente os muitos sociólogos e filósofos que irão Quando Giacoia Junior aqui menciona os “diversos conceitos de razão”, quer se referir aos sentidos distintos que lhe emprestam os hegelianos de esquerda e os de direita. As fragmentações constatadas na modernidade deveriam ser recompostas na dialética do próprio esclarecimento, de tal forma que a esquerda hegeliana a vê como “libertária reapropriação de forças essenciais, produtivamente exteriorizadas, mas confiscadas”; ao passo que os de direita a veriam como um fato compensatório pela dor das inevitáveis cisões (GIACOIA JUNIOR, 1993, p. 54). 19 30 enfrentá-la como tema. Profundos avanços na área tecnológica repercutirão no modo de ser da própria sociedade. Uma industrialização crescente acaba sendo formatada em níveis de especialização cada vez maiores, onde a linha de produção é multiplicada e a divisão de tarefas incrementada (ver o exemplo do “fordismo”). Nos tempos modernos de Chaplin há quem veja, como Durkheim, valores positivos nessa especialização, propulsora de uma solidariedade orgânica capaz de realçar a interdependência entre as pessoas. Por outro viés, Max Weber verá a modernidade marcada pela racionalização, uma atitude calculista que se propaga exponencialmente aos mais variados setores da vida humana. Ela vai dominar o método da ciência e evidenciar-se na apuração contábil entre lucros e perdas, promovida pelo capitalista. Estará também presente no regramento a que se submete o burocrata institucional, dentre outros. Novas técnicas e táticas para afirmar a disciplina marcam também a modernidade. O câmbio, por exemplo, faz-se sentir no âmbito do sistema prisional, como bem salientou Michael Foucault ao retratar o modelo de prisão Panopticon, onde os detentos acabavam promovendo a própria vigilância. Vejam-se os métodos cruéis e brutais da antiguidade, voltados à manutenção da ordem estabelecida, são ali substituídos pela autodisciplina e pelo autocontrole. Para Karl Marx a modernidade é marcada pelo modo capitalista predominante na sociedade, o qual a conduz sob a direção do lucro e da exploração, responsável pela alienação dos trabalhadores de sua própria humanidade, ocultada sob o manto de um sistema de trocas, decorrente de relações objetivas e impessoais que mascaram as relações pessoais e familiares. Portanto, especialização, racionalização, disciplina, exploração, alienação, dentre outras, são, em linhas muito breves e meramente exemplificativas, uma pequena amostra das múltiplas percepções possíveis do que se costuma chamar de modernidade. 31 Nesse colapso temporal, marcado pelo rompimento com o passado e, na instabilidade do presente que se renova em problemas que o tempo não dá conta de resolver, pressionando-os para o futuro, parece mostrar-se uma trajetória linear que contabiliza um saldo positivo, já que, de uma sociedade completamente modificada em seu modo de ser, experimenta-se um modo de vida sem retorno, porque facilitado pelas conquistas da ciência, refletidas na tecnologia a serviço do homem. A razão, como nova destinatária da fé aparenta cumprir com o seu propósito, o que seria confirmado nas referidas conquistas. O mundo caminha sob sua orientação e de forma progressiva. Entretanto, essas suas promessas não vão se cumprindo, e as premonições dos observadores mais críticos vão se confirmando (ao menos em parte), de forma a deixar mostrar a ambivalência da modernidade20, a gerar as condições para o seu próprio colapso. De fato, a crise de autoridade leva à substituição da base religiosa pela científica, entretanto, quem efetivamente fala é a razão instrumental, onde o que se perquire efetivamente é o que serve e funciona. Em acurada síntese, destaca David Lyon (1998, p. 57): Ao proclamar a autonomia humana e ao pôr em movimento o processo que permitiria que a razão instrumental fosse a regra da vida, a modernidade deu início a uma mudança que terminaria melancolicamente, se não desastrosamente. O progresso parecia propício, e era preferido à providência. Mas a promessa de progresso azedou. Nada ficaria imune aos ditames da razão cética e calculista, incluindo a própria razão [...] o abandono da tradição, a secularização e a racionalização escarneciam desses inícios aparentemente honestos e inocentes. Como destaca Anthony Giddens (1991, p. 16), a modernidade é um fenômeno de dois gumes. De um lado, “o desenvolvimento das instituições sociais modernas e sua difusão em escala mundial criaram oportunidades bem maiores para os seres humanos gozarem de uma existência segura e gratificante que qualquer tipo de sistema pré-moderno”; de outro, o lado sombrio que se tornou transparente na destruição massiva do meio ambiente, em decorrência da exploração industrial, no uso arbitrário do poder político, marcado por exemplos de despotismos que muito maltrataram a humanidade (o holocausto, por exemplo, para não falar dos regimes militares totalitários que tão bem vivenciamos em nosso país), o uso militar da tecnologia nuclear etc. A todas essas constatações podemos agregar também aquelas críticas sociológicas apontadas por Marx, Weber, Adorno etc. 20 32 A crença na suposição de que a modernidade nos conduziria a uma ordem social mais segura desabou, o que acabou por levar junto com ela a ideia de metanarrativas capazes de dar conta do caminho seguro de nossa aventura terrena, marcada por um passado definitivo e por um futuro previsível21. A humanidade firmou a crença de estar vivendo um novo mundo, cujos elementos estruturais ainda não se põem claramente, mas deixa a marca da consciência de crise, crise contra a razão instrumental22. Esse perfil da modernidade é antecipado por Nietzsque, com sua contundente crítica à metafísica e seus consectários, como adiante veremos. 2.2 O martelo23 de Nietzsche Já em Platão encontramos a solução para o problema do ser no reconhecimento de um mundo idealizado, contraposto ao mundo das meras aparências em que o homem habita. O fundamento do real estaria naquele mundo das formas puras, do qual teríamos reminiscências que permitiram assim alcançá-lo intelectualmente pelo uso da razão. Aproveitando-se desse projeto, o mundo medievo alocou o divino nele, como referência e medida das ações e do conhecimento humanos. Nas palavras de Lyotard, “Simplificando al máximo, se tiene por ‘postmoderna’ La incredulidad con respecto a los metarrelatos” (2006, p. 10) 22 É como anota Manfredo de Oliveira (2001, p. 7): 21 A modernidade, sua significação e sua contribuição para a antropogênese estão de novo em debate. A crise cultural que vivemos é crise contra a razão, contra a ilustração, numa palavra, contra a modernidade. A crítica da razão instrumental desenvolvida pela modernidade desemboca numa crítica à modernidade enquanto tal, e, em última análise, numa crítica à própria razão, que é vista como instrumento de repressão. Aqui uma referência à obra “O crepúsculo dos ídolos”, em que Nietzsche expressamente nos remete a sua filosofia a golpes de martelo, com o qual tocaria os ídolos, a fim de ouvir ressoar o som oco proveniente de suas entranhas insufladas (1984, p. 4). 23 33 Na sequência, a secularização expulsou Deus do seu trono, colocando o homem como senhor do seu mundo, mas ainda assim não reconheceu a sua morte. Nietzsche a declarará aos homens (2001a, p. 120, tradução nossa)24: Não ouviste falar daquele louco que, em plena luz do dia, corria pela praça pública com sua lanterna acesa, gritando sem cessar: “Busco Deus! Busco Deus!” Como estavam presentes muitos que não acreditavam em Deus, seus gritos provocaram uma gargalhada: “Perdeu-se?”, dizia alguém. “Perdeu-se como uma criança?”, perguntava outro. “Estava escondido? Tem medo de nós? Embarcou? Emigrou?” E essas perguntas seguiam acompanhadas de sorrisos em coro. O louco encarou-os e, cravando-lhes o olhar, exclamou: “Onde está Deus? Vou-lhes dizer. Nós o matamos, vocês e eu, todos nós somos seu assassinos [...] De fato, na praça do mercado, plena alegoria de nosso espaço público, onde a razão se instala luminosa para mostrar as verdades absolutas, onde as convicções mais profundas estão sedimentadas, somente um louco, um absolutamente incapaz, como uma criança, poderia disparar uma pergunta tal como posta: “onde está Deus?”. Será que é alguém que não pertence mais a esta terra, que emigrou para rincões distantes e não está a par dos acontecimentos que por aqui são correntes, que após Newton seria insano falar em Deus, que o homem não crê mais em qualquer explicação teísta do universo, sendo a sua razão quem governa o mundo! Cinicamente debocham do louco. Ocorre que os homens modernos, aqueles da praça do mercado, não se deram conta da grandeza do seu ato. Ao expulsarem Deus do seu trono, com ele se foi juntamente o porto seguro da direção e do sentido que nos governavam. Estamos sem um horizonte de sentido prévio, deixados ao autogoverno das nossas vidas, não “¿No oíste hablar de aquel loco que en pleno día corría por la plaza pública con una linterna encendida, gritando sin cesar: ‘¡Busco a Dios! Busco a dios!’ Como estaban presentes muchos que no creían en Dios, sus gritos provocaron a risa. ‘¿Se te ha extraviado?’, decía uno. ‘¿Se ha perdido como un niño?’, preguntaba otro. ‘¿Se ha escondido? ¿Tiene miedo de nosotros? ¿Se ha embarcado? ¿Ha emigrado?’ Y estas preguntas iban acompañadas de risas en coro. El loco se encaró con ellos, y clavándoles la mirada, exclamó: ‘¿Dónde está Dios? Os lo voy a decir. Le hemos matado, vosotros y yo, todos nosotros somos sus asesinos […]” 24 34 se podendo, portanto, revolver a história em busca de um substrato estável que nos dê tal direção. Não podemos mais voltar àquele porto porque o queimamos. Se, de um lado, Deus é o Deus estatutário cristão; de outro, não menos certo é vê-lo como designativo do mundo idealizado platônico, essência da filosofia de Nietzsche (antiplatonista). Não temos mais elementos para estabelecer a distinção entre o verdadeiro e o falso, o certo do errado, o real da aparência. A grandeza do ato praticado pelos modernos deve exigir do homem uma dignificação de mesma amplitude. Uma verdadeira emancipação que a razão não fornece. Ao contrário, continuamos arraigados ao ideal de busca de um sentido para o mundo e para nossas vidas, os quais seguem sendo buscados fora do evento. É por isso que, dada a nossa cegueira racional, necessitamos de alguém de fora, desprovido da razão, um louco, para lembrar-nos que essa busca frenética é vã, pois Deus está morto e fomos nós quem o matamos. É assim que, a exemplo de Diógenes, cinicamente comparece o louco diante de nós, desestabilizando nossas colunas, debochando da pseudoluminosidade em que nos encontramos, afinal estamos em plena luz do dia, e com uma lanterna mostra-nos o caminho errado em que nos encontramos. Esclarecidos que somos, nós os modernos, rimos debochadamente do louco e dizemos: “ele não sabe o que diz, ele não sabe o que faz”; ao que, não menos cínico, ele lhes crava seu olhar e encarando-os responde: “absolutamente o contrário, são vocês precisamente que não sabem o que fizeram e o que fazem”. E o silêncio se instala, concluindo o louco que chegou demasiado cedo para a mensagem, pois os homens ainda não se deram conta do que fizeram (NIETZSCHE, 2001a, p. 121-122, tradução nossa25): “Al llegar a este punto, calló el loco y volvió a mirar a sus oyentes; también ellos callaron, mirándole con asombro. Luego tiró al suelo la linterna, de modo que se apagó y se hizo pedazos. “Vine demasiado pronto – dijo él entonces -. Mi tiempo no es aún llegado. Ese acontecimiento inmenso está todavía en camino, viene andando; mas aún no ha llegado a los oídos de los hombres. Han menester tiempo el relámpago y el trueno, la luz de los astros ha menester tiempo; han menester los actos, hasta 25 35 Ao chegar a este ponto, calou-se o louco e voltou o seu olhar a seus ouvintes; também eles se calaram, olhando-o com assombro. Depois lançou ao solo a sua lanterna, de modo que se apagou e se fez em pedaços. “Vim demasiado cedo, disse então, meu tempo ainda não chegou. Esse acontecimento imenso está ainda a caminho, vem andando, mas ainda não chegou aos ouvidos dos homens. O relâmpago e o trovão necessitam de tempo, a luz dos astros necessita de tempo, os atos dele necessitam até depois de realizados, a fim de que sejam vistos e compreendidos. Esse ato está ainda mais longe dos homens do que a estrela mais distante e, sem embargo, eles o executaram!”. É rica a alegoria. Nasce uma supernova, mas essa estrela somente anos após este instante será percebida, pois até a luz precisa de tempo para que dela tenhamos conta. Da mesma forma o trovão, somente após um lapso temporal é que o seu som nos alcançará. Também o mesmo ocorre com o grandioso ato que marca a modernidade, pois a despeito de havermos matado Deus, ainda não nos demos conta dele e continuamos a buscar o porto seguro que nós mesmos destruímos. No prefácio à obra “Além do Bem e do Mal”, Nietzsche afirma que o mais funesto e duradouro erro dogmático é o erro platônico do espírito puro e do bem em si. A crítica se dirige à matriz que será reproduzida na filosofia subsequente, qual seja, a da oposição idealista entre o sensível e suprassensível26. Essa exaltação metafísica de valores e coisas, que “a priori” instauram a regra de correção de nossas representações e atitudes, compromete o próprio gozo da vida e a imanência do ser. Essa estrutura instaura uma vida cotejada ao parâmetro e, sobretudo, cerceada à sua obediência. Anula-se a pulsão do acontecimento e nos faz verdadeiros mortos-vivos. Somos arrebatados da vida e isso provoca o niilismo, a vontade de nada que compromete a inocência do acontecimento e do seu papel redentor. Essa remissão a algo transcendente, invariavelmente inexistente para ao filósofo, estabelece o niilismo como estado psicológico, explicado na busca por um sentido que não está no próprio acontecimento, como por exemplo, a submissão a um cânone ético superior. después de realizados, para ser vistos y entendidos. Ese acto todavía más lejos de los hombres que la estrella más lejana. ¡Y sin embargo, ellos lo han ejecutado!” 26 Cf. GIACOIA JUNIOR, 1997, p. 31. 36 Na filosofia de Nietzsche o sentido é instaurado aqui mesmo, na própria vivência, não havendo espaço para outro mundo, transcendente e verdadeiro, tal como explica Amauri Ferreira (2006, p. 8): Como somos produtos da nossa relação com a realidade (aspecto reativo, consciente), há também em nós uma capacidade de produção desconhecida (aspecto ativo, inconsciente), que não obedece a nenhuma forma a priori. Tudo que é produzido no mundo não é o resultado de uma adaptação a um determinado modelo de perfeição: o que é afirmado (sic) é a capacidade relacional das forças. As relações entre as forças produzem a realidade. Mas em toda relação de forças há uma vontade – necessariamente relacional -, o que leva Nietzsche a dizer que o mundo é vontade de potência. Portanto, o único sentido é o que caracteriza o próprio mundo como vontade de potência, a qual, dominada por seu lado negativo, negará a imanência e cederá às forças reativas que procurarão sustentar os valores recebidos. Recusa-se a vontade de afirmação plena pela preservação de valores que pertencem a outro mundo, um mundo fictício, de ideias puras e transcendentes, ou seja, o que se afirma é sustentado pelo que se nega. O outro lado do reativo é o ativo, em que a afirmação pura se instala e os pressupostos que dão suporte à negação, aqueles valores fictícios que auxiliariam o homem a suportar a sua própria existência, são recusados para permitir o reconhecimento do devir, da imanência, do evento. Em “Assim Falou o Zaratustra”, Nietzsche desfere, em estilo vigoroso, a sua crítica a essa dicotomia celestial. Humaniza Deus atribuindo-lhe a imperfeição, que o leva a criar um mundo terreno para esquecer-se de sua dor e sofrimento (NIETZSCHE, 2001b, p. 26-27, tradução nossa27): “Cierto día, Zaratustra proyectó su ilusión más allá de los hombres, como todos los alucinados del ultramundo. Entonces le pareció el mundo la obra de un dios doliente y atormentado [...] El creador quería desplazar los ojos de si mismo, entonces creó el mundo. Alegría embriagadora es para quien sufre desplazar los ojos de su dolor y olvidarse. Alegría embriagadora y olvido de sí mismo: tal me pareció un día el mundo. Este mundo, eternamente imperfecto, imagen, e imagen imperfecta, de una eterna contradicción, una alegría embriagadora para su imperfecto creador.” 27 37 Certo dia Zaratustra projetou sua ilusão para além dos homens, como todos os alucinados do ultramundo. Então lhe pareceu que o mundo era obra de um deus doente e atormentado [...] O criador queria deslocar os olhos de si mesmo, então criou o mundo. Alegria embriagadora é para quem sofre deslocar os olhos de sua dor e esquecer-se. Alegria embriagadora e esquecimento de si mesmo: tal me pareceu um dia o mundo. Este mundo, eternamente imperfeito, imagem, e imagem imperfeita, de uma eterna contradição, uma alegria embriagadora para seu imperfeito criador. Sua caricatura de Deus se presta a denunciar que a projeção da felicidade para o “ultramundo” é fruto de homens doentes e fatigados, fracos que pretendem lançarse de um só salto ao fim, deixando de querer a vida. Todos os deuses são obras deles (NIETZSCHE, 2001b, p. 28, tradução nossa28): Doentes e decrépitos foram os que depreciaram o corpo e a terra, quem inventou as coisas celestes e as gotas de sangue redentor; e esses venenos doces e lúgubres foram do corpo e da terra de onde os tomaram emprestados! As estrelas lhes pareciam demasiado distantes para salvarem-se de sua miséria. Então, puseram-se a suspirar: Ah! Que não haja caminhos celestiais para que possamos deslizar a outro ser e a outra felicidade! Por isso inventaram seus artifícios e suas bebidas sangrentas. Estes ingratos acreditaram que estariam arrebatados para longe de seus corpos e desta terra. A esses homens, o filósofo dirige a seguinte mensagem: “Que não escondam mais sua cabeça na areia das coisas celestes, e sim que a ergam orgulhosamente, uma cabeça terrestre que crê o sentido da terra!” (NIETZSCHE, 2001b, p. 28, tradução nossa29). “Enfermos y decrépitos fueron los que despreciaron el cuerpo y la tierra, quienes inventaron las cosas celestes y las gotas de sangre redentora; ¡y estos venenos dulces y lúgubres fueron del cuerpo y de la tierra de donde los tomaron prestados! Las estrellas les parecían demasiado lejanas para salvarse de su miseria. Entonces, se pusieron a suspirar: ¡Ay! ¡Que no haya caminos celestiales para que pudiéramos deslizarnos a otro ser y a otra felicidad! Por eso inventaron sus artificios y sus bebidas sangrantes. Estos ingratos se creyeron arrebatados lejos de su cuerpo y de esta tierra.” 29 “Que no escondan ya más su cabeza en la arena de las cosas celestes, sino que la yergan orgullosamente; una cabeza terrestre que cree el sentido de la tierra!” 28 38 Portanto, em Nietzsche, não há espaço para falar-se em progresso30, o mundo é um jogo de forças em que a vontade de potência quer afirmar-se. Nesse jogo, negação e afirmação vão estar sempre em confronto, individualizando comportamentos humanos reativos e ativos. Nos primeiros, nega-se a instabilidade do próprio jogo para afirmar a tradição; no segundo, afirma-se o devir, negando-se as formas prévias. Para o filósofo, o domínio da vontade de potência afirmativa pressupõe que a força reativa deva ser primária, preponderante. Ocorre que essa hierarquia é invertida quando é o sentido de adaptação que toma o seu lugar, quando as forças reativas assumem o seu posto, fazendo do homem apenas um transportador de valores que lhe são dados. Diante deste quadro, afirma Ferreira (2006, p. 11) [...] a vida humana submete-se apenas à sua conservação e, para isso, tem a constante necessidade de controlar as forças reativas. Os valores que são gerados e mantidos passam a servir apenas para manter a sobrevivência de um modo de vida que precisa investir em “ideias puras”, separadas da realidade. Princípio do julgamento da vida: a realidade é dura, violenta, cruel e, portanto, deve ser julgada. É o nascimento do lugar do juízo. Esse deslocamento de foco para um supramundo busca dar algum sentido à vida humana, salvá-lo do caótico, uma muleta que o auxilia a suportar o fardo da existência. A vontade que aí se instaura não é aquela de potência, mas uma vontade de nada. Um nada dissimulado31 que despreza o corpo, que projeta o homem para além da terra, a um mundo idealizado, onde desfrutaria o ideal de vida boa que aqui 30 Taxativamente o afirma em “O Anticristo” (NIETZSCHE, 2001c, p. 290): La humanidad no representa una evolución hacia lo mejor o más fuerte o más alto en la manera que hoy se cree. El “progreso” es sencillamente una idea moderna, es decir, una idea falsa. El europeo actual sigue estando en su valor muy por debajo del europeo del Renacimiento; la evolución ulterior no tiene por qué ser intensificación, elevación, fortalecimiento, por una necesidad cualquiera. 31 Essa vontade de nada seria dissimulada por um vocabulário retórico (NIETZSCHE, 2001c, p. 293): No se dice nada: se dice en cambio “más allá”, o “Dios”, o “la vida verdadera”, o Nirvana, salvación, bienaventuranza… Esta inocente retórica, originada en la idiosincrasia religiosomoral, aparece enseguida como mucho menos inocente cuando uno comprende qué tendencia se oculta aquí bajo el manto de unas palabras sublimes: la tendencia hostil a la vida. 39 não se instaura. É, portanto, na afirmação da força reativa que encontramos o niilismo. Se a modernidade, com a secularização, mitigou esta ficção do além-mundo, nem por isso deu vazão às forças ativas de que falava Nietzsche. O niilismo apenas ingressou em um segundo estágio, em que o papel do sacerdote32 foi deslocado ao ideal racional. Da reação aos valores divinos surgiu a necessidade de sua substituição, sem que com isso fosse afastada a ideia de um universal contraposto ao individual. A lei, outrora divina, agora é humana. O homem racional instaura a sua realidade e suas leis, disfarçando novamente a vontade de nada pela vontade de verdade. Como afirma Amauri Ferreira, “É o início do mito do progresso, em um mundo que se orgulha não precisar mais de Deus” (2006, p. 37). E complementa: O lugar do juízo permanece, mas agora ocupado pelo homem. A “origem” da vontade, anteriormente divina, torna-se humana, demasiado humana: parte de um sujeito para ser finalizada numa construção neste mundo. O homem, dotado da racionalidade, acredita que poderá, enfim, construir a sua felicidade aqui [...] É fundamental percebermos que esse processo é apenas mais um disfarce, bastante sutil, da vontade de nada, agora sob o traje da “razão”. É a consciência, diz Nietzsche, que quer interferir no resultado do lance de dados. E sobre esse solo pretensamente seguro da razão Nietzsche dirá: “Que importa minha razão? Está ávida por ciência como o leão o está por alimento? É pobreza, imundice e compassivo descontentamento de alguém consigo mesmo.” (2001b, p. 11, tradução nossa33). O niilismo está correlacionado à ideia de decadência que abre espaço à sua manifestação. A crítica à modernidade sobressalta na sua explicação (GIACOIA JUNIOR, 2000, p. 55): Em sua “Genealogia da Moral” (1998) Nietzsche vai introduzir a figura do sacerdote ascéptico judaico, encarregado de arrebatar o rebanho de “ovelhas humanas”. 33 “¡Qué importa mi razón! ¿Está ávida de ciencia como el león lo está de alimento? Es pobreza, inmundicia y compasivo descontento de uno mismo.” 32 40 Nietzsche interpreta a história da cultura moderna como escalada do niilismo. Este, por sua vez, deve ser entendido como um sentimento opressivo e difuso, próprio às fases agudas de ocaso de uma cultura. O niilismo seria a expressão afetiva e intelectual da decadência. Por meio dele, o homem moderno vivencia a perda de sentido dos valores superiores de nossa cultura. Por essa ótica, niilismo seria o sentimento coletivo de que nossos sistemas tradicionais de valoração tanto no plano do conhecimento, quanto no ético-religioso, ou sociopolítico, ficaram sem consistência e já não podem mais atuar como instâncias doadoras de sentido e fundamento para o conhecimento e a ação. Sintomas desse estado de prostração podem ser detectados, segundo Nietzsche, em todos os setores da moderna vida social: na arte, plenamente instrumentalizada para fins de entretenimento, ou, como o chamaríamos atualmente, capturada nos circuitos da indústria cultural; na política e na educação, empenhadas em estabelecer e perpetuar um ideal de homem completamente adaptado aos modos de produção e reprodução de uma sociedade de massas; na moral, na ciência e na filosofia, que se tomaram expressões ideológicas desse desejo de rebaixamento e nivelação da humanidade, agenciado em escala planetária. O niilismo, entretanto, pode servir a um propósito positivo, se essa negação de valores vier conjugada à vontade de potência, confirmada pelo deixar fluir as forças ativas, através da aceitação do acontecimento, da imanência da vida. Trata-se, portanto, de um niilismo ativo, que somente será afirmado pelo além-homem. É preciso uma transformação, uma metamorfose daquele modelo humano consagrado até agora, que insiste em permanecer na figura que Nietzsche denominou de último homem, o qual deverá morrer para dar vida a um novo ser (NIETZSCHE, 2001b, 12, tradução nossa34): O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem, uma corda tendida sobre o abismo. É perigoso passar ao outro lado, perigoso é permanecer no caminho, perigoso olhar para trás, perigoso parar-se e perigoso balançar. A grandeza do homem está em ser uma ponte e não um fim; o que há nele digno de ser amado é ele ser um trânsito e um crepúsculo. El hombre es una cuerda tendida entre el animal y el superhombre; una cuerda tendida sobre el abismo. Es peligroso pasar al otro lado, peligroso permanecer en el camino, peligroso mirar hacia atrás; peligroso pararse y peligroso temblar. La grandeza del hombre está en ser un puente y no un fin; lo que hay en él digno de ser amado es él ser un tránsito y un crepúsculo. 34 41 O vigor e a beleza da vida humana estariam nesse caminho para a transformação. Um caminho perigoso, mas emocionante; instável, mas renovador, coisa que o homem moderno não aceitou. Essa linha de pensamento marca um ponto no caminhar da humanidade que, para alguns, instaura o pós-moderno. É nessa linha que se situa Habermas, quando põe Nietzsche como um ponto de inflexão35. Vimos que em razão do processo de esclarecimento, deparamo-nos com uma dilaceração fragmentadora da sociedade, em decorrência da debilitação da força integradora da religião. Ademais, se esse processo não foi fruto de uma produção arbitrária, então não é possível um retorno simplesmente à tradição mítico-religiosa e qualquer deficiência deve ser corrigida e superada por meio do próprio pensamento esclarecido. É nesse sentido que o projeto hegeliano irá eleger o princípio da subjetividade, como elemento de regeneração daquelas forças coesivas, daí derivando a razão como um “equivalente do poder unificador da religião” (HABERMAS, 2002, p. 122). Vimos ainda que esse projeto fracassou, a despeito das múltiplas tentativas de conceituar a racionalidade para servir àquele desiderato redentor. O insucesso do programa põe Nietzsche diante de duas possibilidades: “submeter mais uma vez a razão centralizada no sujeito a uma crítica imanente ou abandonar por completo o programa. Nietzsche decide-se pela segunda alternativa. Renuncia a uma nova revisão do conceito de razão e despede a dialética do esclarecimento.” (HABERMAS, 2002, p. 124)36. Ao eleger esse caminho, promoverá uma adesão ao “outro da razão” - 35 36 Cf. HABERMAS, 2002, p. 121. No mesmo sentido se coloca Giacoia Junior (1993, p. 59): Se o efeito mais geral da Aufklärung histórica é apenas fortalecer as divisões internas já perceptíveis nas características essenciais da modernidade; se a religião da razão emergente do processo de esclarecimento é destituída de força sintética capaz de renovar e substituir a potência unificadora da religião tradicional; se o caminho da restauração imediata – o apelo reacionário de retorno imediato às origens – é vedado à modernidade, em conseqüência da irreversibilidade do progresso das Luzes, então a saída nietzschiana consistirá propriamente em despachar o programa dialético da Aufklärung, e, por intermédio da crítica histórica da cultura histórica, em renunciar ao projeto moderno de reeditar o conceito de uma razão reconciliadora das próprias fragmentações. 42 o mito -, mas não cabe aqui uma análise da revolução pretendida por Nietzsche, por meio de uma invocação mítica do Dionísio redentor e as aporias a que acaba se lançando com sua proposta37. Para VATTIMO, a modernidade é “dominada pela ideia da história do pensamento como uma iluminação progressiva, que se desenvolve com base na apropriação e na reapropriação cada vez mais plena dos fundamentos” (2002, VI). Ora, essa ideia de totalização é exatamente o que Nietzsche pretende superar e, nesse ponto vem seguido por Heidegger. Entretanto, o que os aproxima não é tanto essa crítica, mas a ausência da tentativa de substituição desse pensamento por outra fundação mais verdadeira38. Toda essa crítica de Nietzsche se dá no âmbito da dissolução de um τέλος (télos) pré-determinado que nos conforta, porquanto nos dá um sentido para o nosso 37 A respeito do assunto dirá Giacoia Junior (1993, 62): Essa tentativa de mudar os rumos do discurso filosófico da modernidade saltando para fora da órbita gravitacional formada pela confluência entre Racionalidade, Consciência Temporal e Modernidade, e, desse modo abrir a rota da pós-modernidade, debate-se inexoravelmente nas presas de uma contradição insuperável, contradição de que o discurso nietzschiano sequer se apercebe: a rota de fuga tem que passar necessariamente pelo caminho já trilhado pela arte mais avançada da própria modernidade. Sendo assim, a rota de fuga só se determina a partir de uma dimensão própria da modernidade e a exige necessariamente, conservando-a como impulso fundamental. 38 Nas palavras de Vattimo (2002, VII): Mas precisamente a noção de fundamento, e de pensamento como fundação e acesso ao fundamento, é radicalmente posta em discussão por Nietzsche e Heidegger. Eles acham, assim, por um lado, na condição de terem de distanciar, criticamente do pensamento ocidental enquanto pensamento do fundamento; de outro, porém, não podem criticar esse pensamento em nome de uma outra fundação mais verdadeira. É nisso que, a justo título, podem ser considerados os filósofos da pós-modernidade. O pós de pós-moderno indica, com efeito, uma despedida da modernidade, que, na medida em que quer fugir das suas lógicas de desenvolvimento, ou seja, sobretudo da ideia da “superação” crítica em direção de uma nova fundação, busca precisamente o que Nietzsche e Heidegger procuraram em sua peculiar relação “crítica” com o pensamento ocidental. Essa marca do pensamento de Nietzsche também é confirmada por Ibraim Vitor de Oliveira (2004, p. 71): Portanto, pode-se dizer que aqueles ditos conceitos metafísicos não são superados por algum outro novo conceito mais eficaz, seja pela abrangência ou pela simplicidade; eles não são corrigidos como se corrige um erro que se tornou evidente. Outrossim, Nietzsche constata nos próprios conceitos que miram o “total” a sua precariedade. 43 caminhar. Sem ele nossa vida é tensa, pois direcionada ao sem limite. “Deus é apenas um outro nome do télos interpretado pelo homem para dar sustentação aos seus conceitos e juízos” (OLIVEIRA, 2004, p. 54). Anunciada a sua morte, essa lacuna gera uma tensão que acaba exigindo a eleição de um outro fim, se não quisermos correr o risco do abandono39, daí a “crescente divinização e espiritualização das preposições da razão” (OLIVEIRA, 2004, p. 54), mas de nada adianta substituí-lo por outro conceito (a razão redentora). Ao problematizarmos e dissolvermos o τέλος, estamos lançados em um eterno reiniciar e, portanto, também deixados sem qualquer início (arché) absoluto40. Esse quadro pós-moderno repercute diretamente sobre as estruturas da razão dominante moderna, em seu intento de orientação e normatização do mundo da vida. Mas se em Nietzsche essa crítica transparece com veemência, paralelamente aí vem o pósmoderno também marcado por uma imensa abertura, pois sem um fim absoluto a que possamos nos orientar, é resgatada a pulsão do evento e deflagrada uma nova aurora que se estabelece na decisão pelo limitado humano. Uma opção que, longe de ser um niilismo que justifica a inércia, propõe uma continua transvaloração que ultrapassa toda axiologia definitiva41. Essa racionalidade calculista e dominante é então despojada de seu trono, sem que se apresente qualquer substituto que não a própria abertura, tal como assinala Ibraim Oliveira (2004, p. 17): [...] na gênese do pensamento ocidental, Nietzsche encontra a demarcação de um telos, em cuja direção devem tender a dialética e as estratégias calculistas da ratio. Trata-se do preestabelecimento de uma meta e de um ponto de chegada para acomodar o “total” pretendido. Diante disso, a tensão (e dissolução) teleológica, muito mais do que identificar Nietzsche como mero destruidor da ratio, situa-o como promotor da “abertura”, própria da praticidade e evasividade da vida. Aqui, resta o Um dos riscos da opção pela dissolução teleológica estaria no abandono, uma despatriação que nos seria imposta externamente e, portanto, heterônoma. Exatamente por isso, um efeito que não se confunde com a opção pela solidão. A respeito do tema, ver OLIVEIRA, 2004, p. 79. 40 Portanto, em Nietzsche “falta arché porque não existe télos” (OLIVEIRA, 2004, p. 17). 41 Cf. OLIVEIRA, 2004, p. 75. 39 44 evento para o qual somente um telos tênue é requisitado. Isso porque o telos deve ser constantemente renovado no próprio homem. 2.3 Heidegger e a técnica moderna Como adiante veremos, em sua obra capital (Ser e Tempo), Heidegger se guiou pela pergunta fundamental acerca do sentido do ser em geral. Questão desde há muito esquecida, sobretudo em razão de premissas inconsistentes que atestariam a sua desnecessidade e mesmo impossibilidade. Para Heidegger, o esquecimento do ser provoca uma cisão profunda na compreensão da essência da técnica moderna. Em suas lições, adverte-nos que a técnica não diz com a sua essência. São coisas distintas. A essência de algo, seguindo uma lição antiga, seria aquilo que a coisa é. Dessa forma, questionar a técnica é perguntar pelo que ela é. Como resposta, duas noções logo transparecem: técnica é um meio para um fim e também é uma atividade humana. São determinações da técnica que se implicam, correspondem-se reciprocamente. Dessas noções extraímos que a técnica compreende a produção e o uso de ferramentas e máquinas, sendo a própria técnica um instrumento, pelo que, para o filósofo, a visada da técnica como meio e atividade humana voltados a um fim marca a sua determinação instrumental. Essa visão domina inclusive a técnica moderna, posto que aviões, turbinas e outros são resultado do uso instrumental da técnica, prestando-se todo este conjunto de bens produzidos também ao uso instrumental técnico para outros fins, tais como, a indústria de transporte, energética etc. Portanto, parece correto afirmar que a técnica moderna é um meio para um fim. Entretanto, Heidegger vai nos advertir que o correto ainda não é o verdadeiro. O correto mostra o acerto daquilo que se põe diante de nós, mas essa correção não precisa identificar-se com a essência do que se apresenta, e somente nesse 45 desencobrir da essência é que o verdadeiro transparece. Daí a sua conclusão de que a visada estabelecida (a determinação instrumental da técnica), embora correta, ainda não é verdadeira, pois não nos mostra a sua essência. Essa essência se dá com a busca do verdadeiro, a qual, por sua vez, deve imiscuir-se nos elementos do correto, no sentido da indagação pelo que significa ser instrumental, o que é meio para um fim, o que é causa etc. A causalidade aqui impera em um sentido amplo. Normalmente vista como algo que produz um outro, pode ser também encontrada onde se perseguem fins. De fato, se busco fins é por causa deles que determino o tipo de meio empregado. Eis a causalidade vigendo. Indaguemos a causalidade. Normalmente vista no sentido moderno de eficiência, significa ordinariamente obter resultados previstos, alcançá-los. Entretanto, “para o pensamento grego e no seu âmbito, tudo que a posteridade procurou entre os gregos com a concepção e com o título de ‘causalidade’ nada tem a ver com a eficiência e a eficácia de um fazer” (HEIDEGGER, 2002, p. 14)42. Corrigindo o desvio, na visão grega, a causalidade é tomada em quatro modalidades, todas coarticuladas como modos de responder e dever. As quatro causas de que falamos são: a material (materialis), a formal (formalis), a final (finalis) e a eficiente (efficiens). Tomemos o exemplo de um cálice sagrado para vermos a sua operação. Este utensílio é constituído de um material específico, digamos a prata. É conformado em um perfil próprio para a recepção do vinho que será utilizado na liturgia religiosa, sendo essa vocação própria ao sagrado, essa destinação específica, que lhe dá o matiz singular pelo qual manifesta o seu ser. Até aqui temos evidenciadas as três primeiras causas relacionadas. “Im Bereich des griechischen Denkens und für dieses hat jedoch alles, was die nachkommenden Zeitalter bei den Griechen unter der Vorstellung und dem Titel Kausalität suchen, schlechthin nichts mit dem Wirken und Bewirken zu tun“ (HEIDEGGER, 2000, p. 10). 42 46 Sendo elas formas de responder e dever, a prata responde pelo material do cálice, mas isso não basta, pois a simples prata não é ainda um cálice. Ele deve o que é ao seu perfil que, em última análise, nada mais é do que a sua forma. Eis a causa formalis em operação. Porque o material e o perfil viabilizam a operação final de um recipiente destinado à recepção do vinho, é por isso que o cálice começa a transparecer. Importante perceber que a esfera do sagrado circunscreve a utilização do cálice, dá-lhe a destinação prévia. Diz-se então do seu fim, não como um ponto em que ele deixa de ser o que é; ao contrário, pelo que ele começa a ser depois de pronto, o que o conduz à plenitude, ao τέλος (télos). Ou seja, assim como a matéria e o perfil, o τέλος responde pelo utensílio sacrificial. Importante notar que a conformação da matéria no perfil do cálice sagrado é obra do ourives, por cuja atuação ele se torna o que é. Portanto, o agir do artesão responde pelo utensílio pronto, eis a denominada causa efficiens. No âmbito desta causa específica, Heidegger denuncia uma interpretação equivocada da “doutrina” aristotélica. É que, contrariamente aos seus ensinamentos, ela jamais foi tomada no sentido de causa eficaz, eficiente, pela qual o cálice seja efeito de uma atividade. O papel do ourives é muito mais significativo. É por ele que material, perfil e τέλος são recolhidos em uma unidade. Diz-se então que no λόγος 47 (logos43) aquelas causas são recolhidas, fazendo com que o cálice sacrificial apareça no que ele é (HEIDEGGER, 2002, p 15)44: O ourives é também responsável, como aquilo de onde parte e que preserva o apresentar-se e repousar em si do cálice sacrificial. Os três modos anteriores de responder devem à reflexão do ourives o fato e o modo em que eles aparecem e entram no jogo da pro-dução do cálice sacrificial. Então, as quatro causas respondem pelo dar-se e propor-se do cálice, significando o seu deixar viger. “Os quatro modos de responder e dever levam alguma coisa a aparecer. Deixam que algo venha a viger. Estes modos soltam algo numa vigência e assim deixam viger, a saber, em seu pleno advento. No sentido deste deixar, responder e dever são um deixar-viger” (HEIDEGGER, 2002, p. 15)45. Eis aí como se articulam as quatro causas, no deixar viger o vigente, conduzindo-o ao aparecimento. Esse deixar-viger, os gregos denominavam de produção, a qual não estava limitada ao labor artesanal ou artístico, ποίῃσις (“póiesis”), posto que também o surgir por si mesmo, a φύσις (“phísis”), era produção. Portanto, “os modos de deixar-viger, as quatro causas, jogam no âmbito da pro-dução e do pro-duzir. É por Logos (λόγος) vem do verbo grego “légein” (λέγειν), que, na antiguidade, tinha vários sentidos: a) λέγειν significava colher ou reunir, abrigar, pois - na colheita, por exemplo, das olivas - as frutinhas dispersas eram reunidas em um monte e depois abrigadas no celeiro; b) deixar que as coisas reunidas no chão se mostrem tais quais elas são; c) falar ou fazer um discurso sobre o que percebemos e que está disperso. Embora normalmente se refira ao discurso (e, nesse sentido, amplas considerações podemos fazer acerca da assunção dessa conotação), aqui nos interessa mais diretamente essa função de recolher, integrar e propor. Como na colheita, importa selecionar o que está disperso, colher e recolher ao abrigo as sementes selecionadas, deixando-as disponíveis em um conjunto, mantendo o que assim está disposto ao abrigo e proteção. No caso específico, o ourives é quem recolhe e propõe as três causas, dispondo-as em um conjunto que faz com que o cálice se desvele. Uma completa análise etimológica da expressão pode ser vista no texto “Logos – Heráclito, Fragmento 50” (HEIDEGGER, 2002, p. 183-203). 44“Der Silberschmied ist mitschuld als das, von wo her das Vorbringen und das Aufsichberuhen der Opferschale ihren ersten Ausgang nehmen und behalten. Die drei zuvor genannten Weisen des Verschuldens verdanken der Überlegung des Silberschmieds, daß sie und wie sie für das Hervorbringen der Opferschale zum Vorschein und ins Spiel kommen“ (HEIDEGGER, 2000, p. 11). 45“Die vier Weisen des Verschuldens bringen etwas ins Erscheinen. Sie lassen es in das An-wesen vorkommen. Sie lassen es dahin los und lassen es so an, nämlich in seine vollendete Ankunft. Das Verschulden hat den Grundzug dieses An-lassens in die Ankunft. Im Sinne solchen Anlassens ist das Verschulden das Ver-an-lassen“ (HEIDEGGER, 2000, p. 12). 43 48 força deste último que advém a seu aparecimento próprio, tanto o que cresce na natureza como também o que se confecciona no artesanato e se cria na arte” (HEIDEGGER, 2002, p. 16)46. Esse deixar-viger desencobrimento. da produção nada mais é do que permitir o O mostrar-se que aqui opera é fruto de um conduzir ao desvelamento, o que em grego se denomina ἀλήθεια (“alétheia”), o próprio sentido da verdade, para Heidegger. Vejamos o caminho até aqui percorrido. De início, falamos que a técnica é usualmente tida como um meio, uma atividade para alcançar um fim. Isso é até correto, mas não significa que aí resida o verdadeiro. Para alcançá-lo, importante conduzir a pergunta pela essência da técnica, o que nos levou a questionar a causalidade. Partindo do exemplo de um cálice sagrado, vimos que ela, desmembrada em quatro modos coimplicados, respondem pelo mostrar-se do utensílio, que deve o que é a elas. Ora, vimos também que responder e dever conduzem ao viger do vigente, o que os gregos denominam de produção. Esse produzir é ποίῃσις (“póiesis”), o caminho que leva ao desencobrimento •ἀλήθεια• e, portanto, que está ligado à verdade. Assim, na essência da técnica, muito mais do que apenas um meio para um fim, está em jogo a própria verdade. A τέχνη (“téchne”), palavra derivada de τεχνικόν (“technikón”), não estava reservada ao fazer artesanal, englobando também o fazer das belas artes, sendo, portanto, ligada à produção, à ποίῃσις• ao poético. Ademais, no Livro VI de sua “Ética a Nicômaco”47, Aristóteles nos fala da distinção entre τέχνη e ἐπιστήμε (“epistéme”), considerando a forma de desencobrimento que se dá em cada caso. A “Die Weisen der Veranlassung, die vier Ursachen, spielen somit innerhalb des Her-vor-bringens. Durch dieses kommt sowohl das Gewachsene der Natur als auch das Verfertigte des Handwerks und die Gebilde der Künste jeweils zu seinem Vorschein“ (HEIDEGGER, 2000, p. 13). 47 Cf. ARISTÓTELES, 1996, p. 140 e ss. 46 49 τέχνη seria uma forma de ἀληθεύειν• nela se desencobrindo o que não se dá por si mesmo. Nas significativas palavras de Heidegger (2002, p. 18)48: Quem constrói uma casa ou um navio, quem funde um cálice sacrificial des-encobre o a ser pro-duzido nas perspectivas dos quatro modos de deixar-viger. Este desencobrir recolhe antecipadamente numa unidade o perfil e a matéria do navio e da casa numa coisa pronta e acabada e determina aí o modo da elaboração. O decisivo da τέχνη não reside, pois, no fazer e manusear, nem na aplicação de meios, mas no desencobrimento mencionado. É neste desencobrimento e não na elaboração que a τέχνη se constitui e cumpre em uma pro-dução. E o que diz isso com a técnica moderna? O que aqui está presente também é uma forma de desencobrimento, porém distorcida, ao que Heidegger denominou disposição. O que domina neste modo de produção é que o homem é desafiado a explorar a natureza, a dispor dela em uma cadeia de sucessivas disposições. A usina dispõe o rio a fornecer energia, que dispõe as turbinas a girar, gerando energia, a qual é transmitida em rede, que se dispõe a fornecer corrente elétrica às casas e indústrias. O rio evocado em uma poesia é bem diverso deste rio disponível que, entretanto, está também aí como rio de passagem e não só como disponibilidade da indústria energética, mas também como paisagem está disponível para a indústria de turismo! Daí que o desencobrimento da técnica moderna tem a marca da exploração, que servirá de guia a todo desencobrimento possível que por ela se dá. Esse apelo de exploração no sentido de dispor do que se desencobre na forma da disponibilidade, Heidegger denominou-o de Gestell (com-posição). Por outro lado, se é certo que é o homem quem realiza o desencobrimento, inclusive na técnica moderna, por outro, aqui o seu papel já se dá no contexto de um desafio prévio: o de desencobrir no modo da disposição, o que nos leva a refletir se “Wer ein Haus oder ein Schiff baut oder eine Opferschale schmiedet, entbirgt das Her-vor-zubringende nach den Hinsichten der vier Weisen der Veranlassung. Dieses Entbergen versammelt im voraus das Aussehen und den Stoff von Schiff und Haus auf das vollendet erschaute fertige Ding und bestimmt von da her die Art der Verfertigung. Das Entscheidende der τέχνη liegt somit keineswegs im Machen und Hantieren, nicht im Verwenden von Mitteln, sondern in dem genannten Entbergen“ (HEIDEGGER, 2000, p. 14). 48 50 não passa ele a ser então um próprio dispositivo. Diz Heidegger: “Se o homem é, porém, desafiado e dis-posto, não será, então, que mais originariamente do que a natureza, ele, o homem pertence à disponibilidade?” (2002, p. 21-22)49. É esse seu comprometimento prévio que o aliena na técnica moderna. É aí que reside o perigo (HEIDEGGER, 2002, p. 29)50: Quando o des-coberto já não atinge o homem como objeto, mas exclusivamente como disponibilidade, quando, no domínio do não-objeto, o homem se reduz apenas a dispor da dis-ponibilidade – então é que chegou à última beira do precipício, lá onde ele mesmo só se toma por dis-ponibilidade. E é justamente este homem assim ameaçado que se alardeia na figura de senhor da terra. Cresce a aparência de que tudo que nos vem ao encontro só existe à medida que é um feito do homem. Esta aparência faz prosperar uma verdadeira ilusão, segundo a qual, em toda parte, o homem só se encontra consigo mesmo [...] Entretanto, hoje em dia, na verdade, o homem já não se encontra em parte alguma consigo mesmo, isto é, com a sua essência. O homem está tão decididamente empenhado na busca do que a com-posição pro-voca e ex-plora, que já não a toma, como apelo, e nem se sente atingido pela ex-ploração. Com isto, não escuta nada que faça sua essência ex-sistir no espaço de um apelo e por isso, nunca pode encontrar-se, apenas, consigo mesmo. Ademais desse sentido de desorientação que impede o homem de encontrar-se consigo mesmo, esse seu comprometimento prévio com a disponibilidade que o provoca e o submete, impede qualquer outro modo de desvelamento que não o da disposição. O perigo que circunda o homem moderno não reside nos produtos da técnica, nos seus maquinários infernais que confirmadamente podem varrer a sua “Wenn der Mensch dazu herausgefordert, bestellt ist, gehört dann nicht auch der Mensch, ursprünglicher noch als die Natur, in den Bestand?“ (HEIDEGGER, 2000, p. 18). 50“Sie bezeugt sich uns nach zwei Hinsichten. Sobald das Unverborgene nicht einmal mehr als Gegenstand, sondern ausschließlich als Bestand den Menschen angeht und der Mensch innerhalb des Gegenstandlosen nur noch der Besteller des Bestandes ist,— geht der Mensch am äußersten Rand des Absturzes, dorthin nämlich, wo er selber nur noch als Bestand genommen werden soll. Indessen spreizt sich gerade der so bedrohte Mensch in die Gestalt des Herrn der Erde auf. Dadurch macht sich der Anschein breit, alles was begegne, bestehe nur, insofern es ein Gemachte des Menschen sei. Dieser Anschein zeitigt einen letzten trügerischen Schein. Nach ihm sieht es so aus, als begegne der Mensch überall nur noch sich selbst [...] Indessen begegnet der Mensch heute in Wahrheit gerade nirgends mehr sich selber,d. h. seinem Wesen. Der Mensch steht so entschieden im Gefolge der Herausforderung des Ge-stells, daß er dieses nicht als einen Anspruch vernimmt, daß er sich selber als den im Ge-Stell von diesem Angesprochenen übersieht und damit auch jede Weise überhört, inwiefern er aus seinem Wesen her im. Bereich eines Zuspruchs ek-sistiert und darum niemals nur sich selber begegnen kann“ (HEIDEGGER, 2000, p. 27-28). 49 51 existência do planeta; o perigo está exatamente no fato de, não o fazendo, obliterar a sua ek-sistência, regendo suas possibilidades em um caminho pré-estabelecido. Heidegger não irá fornecer uma via de transposição desse quadro, senão afirmando que o caminho é um destino e, sendo assim, também a Gestell é um destino, mas um destino não implica uma constrição da liberdade, como normalmente se o reconhece. Ao contrário, “o homem somente se torna livre no envio, fazendo-se ouvinte e não escravo do destino” (HEIDEGGER, 2002, p. 28)51. Seria então o reconhecimento da essência da técnica a consciência que permitiria, confirmando as palavras do poeta, evidenciar que “onde mora o perigo, é lá que também cresce o que salva” (HÖLDERLIN52). Vê-se aqui um painel bem diverso daquele delineado por Nietzsche, mas que com ele tem em comum a matriz crítica da modernidade. O primeiro, na linha de um radical afastamento da metafísica clássica; e aqui em Heidegger, embora presente a forte repulsa ao mesmo objeto, centrada na técnica moderna e no esquecimento do ser. Embora a “pós-modernidade” tenha contornos que possam ser expandidos, na linha do que já registrou Vattimo, os dois filósofos explorados traduzem um marco importante na história (ou no fim) da modernidade. E o que tem isso a ver com o Direito? É o que veremos a seguir. “Denn der Mensch wird gerade erst frei, insofern er in den Bereich des Geschickes gehört und so ein Hörender wird, nicht aber ein Höriger“ (HEIDEGGER, 2000, p. 26). 52 Citado por Heidegger (2002, p. 31). Em alemão: “Wo aber Gefahr ist, wächst das Rettende auch“ (2000, p. 29). 51 52 3 O DIREITO E SUA CRISE 3.1 O modelo epistemológico das ciências naturais como paradigma para as ciências sociais A modernidade, como modelo de racionalidade que rompe com a tradição antiga, vai delimitar, em fronteiras precisas, o âmbito da ciência e o de que é exterior a ela, o científico se contrapõe ao senso comum e aos estudos das humanidades. Essa racionalidade científica “é um modelo totalitário, na medida em que nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas” (SANTOS, 2006, p. 21). A par da dicotomia apresentada, a própria ciência é alçada a um status diferenciado, como aquele saber que, desconfiando dos dogmas herdados e das impressões dos próprios sentidos, consegue decifrar matematicamente o mundo, captando-o seletivamente e reincluindo os fenômenos analisados em seu sistema originário. Tal processo de conhecimento tem por fim último apoderar-se do conhecido, dominando-o53. Com Descartes vimos que a instauração de um conhecimento científico verdadeiro dependeria da ordenação do real a partir de ideias claras e evidentes, cujo modelo inspirador nós o recolheríamos das matemáticas. Esse lugar central a ela 53 Nesse sentido afirma Francis Bacon (1997, p. 98): Se alguém se dispõe a instaurar e estender o poder e o domínio do gênero humano sobre o universo, a sua ambição (se assim pode ser chamada) seria, sem dúvida, a mais sábia e a mais nobre de todas. Pois bem, o império do homem sobre as coisas se apóia unicamente nas artes e nas ciências. 53 conferida nos conduziu a ideia de que conhecer significa quantificar54. A par desta ciência como mathesis universal, evidencia-se também a ideia de que a natureza é uma máquina, cuja operação é determinada por leis que podem ser desvendadas pela razão humana, através de um processo de fragmentação analítica e objetiva, onde as complexidades possam ser reduzidas e compreendidas neste modo isolado. Vê-se aí um contexto de estabilidade que permite então a previsibilidade do futuro. Eis o que podemos chamar de determinismo mecanicista. Não se trata de uma concepção descomprometida; ao contrário, nesse mecanicismo “a ordem e a estabilidade do mundo são a pré-condição da transformação tecnológica do real” (SANTOS, 2006, p. 31). Ademais, serve ele de “horizonte certo de uma forma de conhecimento que se pretende utilitário e funcional, reconhecido menos pela capacidade de compreender profundamente o real do que pela capacidade de o dominar e transformar” (SANTOS, 2006, p. 31)55. As ciências sociais, e aí chegamos ao Direito, parece que foram contaminadas por esses preceitos demarcadores do rigor científico, e tal assimilação talvez se explique pela pretensão de ingresso no rol das categorias dignas de reconhecimento como ciência. Essa assimilação é reconhecida por Boaventura Souza Santos (2006, p. 32): Daí que o prestígio de Newton e das leis simples a que reduzia toda a complexidade da ordem cósmica tenham convertido a ciência moderna no modelo de racionalidade hegemônica que a pouco e pouco transbordou do estudo da natureza para o estudo da sociedade. Tal como foi possível descobrir as leis da natureza, seria igualmente possível descobrir as leis da sociedade56. Cf. SANTOS, 2006, p. 27. Essa crítica do conhecimento como instrumental da técnica moderna já foi acima antecipada quando estudamos a sua essência na visão de Heidegger, ou seja, a técnica como modo de produção na forma da disponibilidade. 56 Não é demasiado recordar a assertiva de Montesquieu quando, discorrendo acerca das leis em geral, afirma serem elas relações necessárias que derivam da natureza das coisas, daí porque “a divindade possui as suas leis; o mundo material possui as suas leis; as inteligências superiores ao homem possuem as suas leis; os animais possuem as suas leis; o homem possui as suas leis” (1995, p. 3). Fica 54 55 54 Para alguns, conquanto reconhecidos certos traços distintivos entre as ciências sociais e as da natureza, também se tem por certa a possibilidade de sua superação, mediante um esforço próprio. Dou um exemplo: nas ciências sociais, não se tem imediatamente um objeto isolado do sujeito, que possa deixar-se analisar livre de interferências57. Entretanto, há que buscar esse isolamento prévio, sem o que se estaria perdendo o rigor daquele estatuto epistemológico paradigmático. Portanto, o que temos aqui, apesar das diferenças de objeto, é ainda uma adesão incondicionada ao modelo cientificista delineado mais acima. Por outro lado, na vertente supostamente separatista, reivindica-se um estatuto metodológico próprio para as ciências sociais. Essa postura é assim explicada por Boaventura Souza Santos (2006, p. 38): O argumento fundamental é que a ação humana é radicalmente subjetiva. O comportamento humano, ao contrário dos fenômenos naturais, não pode ser descrito e muito menos explicado com base nas suas características exteriores objetiváveis, uma vez que o mesmo ato externo pode corresponder a sentidos de ação muito diferentes. A ciência social será sempre uma ciência subjetiva e não objetiva como as ciências naturais; tem de compreender os fenômenos sociais a partir das atitudes mentais e do sentido que os agentes conferem às suas ações, para o que é necessário utilizar métodos de investigação e mesmo critérios epistemológicos diferentes dos correntes nas ciências naturais, métodos qualitativos em vez de quantitativos, com vista à obtenção de um conhecimento intersubjetivo, descritivo e compreensivo, em vez de um conhecimento objetivo, explicativo e nomotécnico. clara a ideia de correspondência das leis, no sentido jurídico, com um estado natural da qual derivam, o que aliás, é taxativamente atestado em outra passagem, em que afirma (MONTESQUIEU, 1995, p. 3): Os seres particulares inteligentes podem possuir leis feitas por eles, mas possuem também as que não fizeram. Antes da existência de seres inteligentes, esses eram possíveis: tinham, portanto, relações possíveis e, conseqüentemente, leis possíveis. Antes de haver leis feitas, existiam relações de justiça possíveis. Dizer que não há nada de justo nem de injusto senão o que as leis positivas ordenam ou proíbem, é dizer que antes de ser traçado o círculo todos os seus raios não eram iguais. É preciso, portanto, reconhecer relações de eqüidade anteriores à lei positiva que as estabelece. Dentre outros caracteres distintivos, podemos destacar a impossibilidade de estabelecimento de leis universais no âmbito das ciências sociais, dada a condicionalidade histórica e cultural dos fenômenos regulados, bem como a alteração do comportamento humano à medida que assimila o conhecimento, além da postura subjetiva do cientista social, derivada do fato da sua inserção no âmbito do universo estudado. 57 55 Em que pese tal reivindicação, as ciências sociais mantêm-se prisioneiras do dogma da prioridade cognitiva das ciências naturais e o que mais transparece, mesmo entre os separatistas, é um estado de crise incipiente. Talvez isso explique a dificuldade libertária do modelo prioritário, que insiste em afirmar-se, tal como adiante daremos notícia com alguns exemplos no Direito. 3.2 O Direito contaminado pelas ciências naturais Como já afirmamos acima, não se trata aqui de traçar um relato histórico, mas, sobretudo, de evidenciar linhas de transição no pensamento jurídico, justificando-as no próprio movimento do pensamento científico-filosófico com o qual se alinha. Neste sentido, podemos afirmar alguns modelos de justificação jurídiconormativa que pretendem, de um lado, a subordinação do Direito posto pelo homem a regras ou princípios naturais e inalienáveis da própria humanidade, pressupostos nesse sistema; e, de outro, uma autofundação valorativa que serve de substrato às normas postas58. Decerto que tais modelos polares encontrarão variantes diversas, contudo, o que sobressai em qualquer dos dois casos é um suporte metafísico para justificá-los. No primeiro deles, uma ordem superior, transcendente, capaz de ser captada na própria natureza das coisas e recolhida pela razão humana; no segundo, a Um belíssimo texto clássico que reflete essa dicotomia entre Direito Natural e Direito Positivo, nós o encontramos na obra de Sófocles, em que seu personagem, Antígona, depara-se com o enfrentamento de duas ordens normativas, aquela dos deuses, que lhe assegura o direito ao sepultamento do seu irmão Polinices; e a ordem temporal, consubstanciada no édito de Creonte, rei de Tebas, que o proibia. Assim, levada à presença do rei, porque, desrespeitando o seu decreto, conferiu as honras fúnebres ao irmão, e indagada como, tendo ciência da norma em questão, teve a audácia de tal feito, Antígona respondeu que assim o fez porque não teria sido Júpiter que a decretou, tampouco a deusa Justiça teria estabelecido tal decreto entre os humanos, que não acreditava pudesse Creonte estabelecer um tal decreto, com força suficiente para atribuir a um mortal o poder de violar as leis divinas, “las leyes no escritas, inmutables, de los dioses” cuja vigência “no es de hoy ni de ayer, sino de siempre, y nadie sabe cuándo fue que aparecieron” (SÓFOCLES, 2004, p. 19). 58 56 razão ganha independência, mas ainda assim, pretende ver-se vinculada a uma ideia de verdade absoluta e atemporal, própria dos sistemas idealizados da metafísica clássica. Dois exemplos ilustrarão melhor o tema e nos auxiliarão a compreendê-lo. O primeiro diz respeito à hipervalorização do silogismo; e o segundo ao ideal de matematização do Direito como mecanismo apto a alcançar a segurança jurídica. Em ambos os casos, tem-se a pretensão de livrar o Direito de subjetivismos dirigistas. 3.2.1 A subsunção Na segunda metade do Século XVIII, a França é marcada por uma revolução histórica que viria a afirmar os direitos de liberdade do homem, esfacelando a centralização do poder59 e, por isso mesmo, a atribuir à lei um status privilegiado, posto que resultado da vontade geral. Monumento normativo desse período é o seu Código Civil (Code Napoleón), que nasce com a pretensão de abarcar toda a realidade, de forma que o Direito a ele se restringiria60. Tal o fundamento da doutrina legalista que inspiraria a denominada Escola da Exegese61. Assim, pautada na premissa da completude do Direito (ou do código), seguiria apenas a questão da ordenação de um método lógico-interpretativo que, sistematizando as diversas disposições legais, daria conta da solução de qualquer caso. Evidencia-se então a importância da Apenas para corroborar a afirmação, destacamos o art. 16 da Declaração de 1789, no sentido de que “qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição” (MIRANDA, 1980, p. 59). 60 “Não pode, portanto, existir outra fonte do direito senão a lei. Não conheço o direito civil; apenas ensino o Code Napoleón, teria dito o professor Bugnet” (GILISSEN, 1995, p. 516). 61 “Sob o nome de ‘Escola da Exegese’ entende-se aquele grande movimento que, no transcurso do século XIX, sustentou que na lei positiva, e de maneira especial no Código Civil, já se encontra a possibilidade de uma solução para todos os eventos, casos ou ocorrências da vida social” (REALE, 1986, p. 274). 59 57 interpretação legal como método apto a evitar, inclusive, a indevida ingerência de qualquer poder no conteúdo legal que lhe foi previamente oferecido. Tal a percepção de Miguel Reale (1986, p. 274): Tudo está em saber interpretar o direito. Dizia, por exemplo, Demolombe que a lei era tudo, de tal modo que a função do jurista não consistia senão em extrair e desenvolver o sentido pleno dos textos, para apreender-lhes o significado, ordenar as conclusões parciais e, afinal, atingir as grandes sistematizações. O trabalho do jurista desenvolver-se-ia em duas fases, a saber: primeiro, partiria ele para uma análise filológica do texto, prestigiando os seus elementos sintático e semântico. Em seguida, estabeleceria os nexos de ligação entre os diversos dispositivos legais, a fim de que, como resultado deste processo, o significado e o alcance da lei fossem extraídos daquele texto, sem a interferência do intérprete. Nesse contexto, sobressai a importância do raciocínio dedutivo, o qual, prestigiando o silogismo aristotélico, tinha na lei a premissa maior, no caso estudado a premissa menor e na decisão jurídica a conclusão. Portanto, resolver determinado conflito seria uma tarefa pela qual o juiz apenas pronunciaria as palavras da lei62. Buscaria ele a norma posta aplicável (premissa maior) e pronto, sua tarefa estaria cumprida. Em outra palavra (sobremaneira frequente na prática judiciária hodierna), tratava de reconhecer qual o dispositivo legal ao qual poderia ser subsumido o caso sob exame. De um lado, certo que o rigor dos princípios da Escola da Exegese foi atenuado ao longo dos anos, reconhecendo-se o caráter de Direito a outras fontes, tais como a jurisprudência. Ademais, considerando que o Direito caminha pari passu com a sociedade, logo se percebeu a incapacidade de o legislador acompanhar o ritmo frenético desta última. Por outro lado, é inequívoca a presença ainda hoje Ou, nas palavras de REALE, “o jurista cumpria o seu dever primordial de aplicador da lei, de conformidade com a intenção original do legislador. Este é o lema caracterizador da Escola” (1986, p. 276). 62 58 marcante do processo de subsunção como mecanismo de justificação das decisões judiciais e nos arrazoados dos advogados. A predileção pelo silogismo judicial é ainda uma marca deixada pela referida Escola, presente no processo de formação dos juristas atuais e na sua prática cotidiana. Não que a lógica seja um elemento dispensável; o problema está na sua alocação prestigiada neste processo de argumentação jurídica, posto que ela não dá conta de todo o Direito. Nesse sentido, as esclarecedoras palavras de Manuel Atienza, quando indagado acerca do papel da lógica para o Direito (tradução nossa)63: É uma possibilidade. O que ocorre é que, não diria tanto que seja a única, mas que é uma possibilidade. Que tem que dar-se junto com outras. A ideia fundamental a respeito da lógica, que é uma condição necessária para a argumentação jurídica em geral, para qualquer manejo do Direito, mas não é suficiente. Sim porque é necessário contar com outros tipos de elementos, chamados materiais ou pragmáticos (certo que podemos chamá-los de outra maneira) [...] é como costuma chamar uma concepção formalista da argumentação jurídica. Poderíamos caracterizá-la como aquela concepção que considera que o único instrumento de racionalidade que temos no Direito é a lógica, a lógica formal clássica. Isso é empobrecedor no sentido de que não dá conta da parte mais característica dos argumentos jurídicos. Essa seria a ideia. Porém, digo que é muito importante insistir em que permanecer contrário à lógica no Direito é absurdo, porque me parece que a postura adequada é considerá-la simplesmente como um ingrediente, como ocorre em linhas gerais com a racionalidade. A lógica é, diríamos, o componente mais básico da racionalidade, mas a racionalidade não se acaba na lógica, na lógica formal. Entrevista que conduzimos em 12 de julho de 2008 na Universidade de Alicante. Eis a degravação original: 63 Es una posibilidad. Lo que pasa es, no diría tanto que sea la única, sino que es una posibilidad que tiene que darse junto con otras. La idea fundamental respecto de la lógica, que es una condición necesaria para la argumentación jurídica en general, para cualquier manejo del Derecho, pero no es suficiente, sí porque se necesita contar con otros tipos de elementos, llamados materiales y pragmáticos (sí que se puede llamar de otra manera) [...] es como se solía llamar una concepción formalista de la argumentación jurídica. Podríamos caracterizarla como aquella concepción que considera que el único instrumento de racionalidad que tenemos en el Derecho es la lógica, la lógica formal clásica. Esto es empobrecedor en el sentido de que no da cuenta de la parte más característica de los argumentos jurídicos. Esa sería la idea. Pero dijo que es muy importante insistir en que estar en contra de la lógica en el Derecho es absurdo, porque me parece que la postura adecuada es considerarla sencillamente como un ingrediente, como ocurre en líneas generales con la racionalidad. La lógica es, diríamos, lo componente más básico de la racionalidad, pero la racionalidad no se acaba en la lógica, en la lógica formal. 59 3.2.2 A matematização do Direito Parece que o Direito pretende submeter o tempo ao seu controle, contendo-o em suas inflexíveis variâncias64. É o dogma da certeza que preside a pretensão de estabilidade dos sentidos jurídicos dados à realidade social. Nesse ideário, nada poderia mostrar-se mais eficiente do que a matemática. Ciência originariamente de rigor que unifica as interpretações da lei, de maneira tal que sobre ela jamais eclodiriam quaisquer divergências hermenêuticas. Reafirmando o que antes já destacamos, conhecer significa quantificar, e se pretendemos um Direito verdadeiramente científico, temos que banir, de uma vez por todas, qualquer dirigismo subjetivista do seu meio, meta que seria pretensamente alcançada pela introdução de colunas matemáticas nos textos legais, visando à sustentação do ordenamento contra essa excessiva carga subjetiva que o tensiona. Essa compulsão de retenção do tempo é marcada na alegoria mítica de Kronos, em inspirada dissertação de François Ost (2005, p. 10), a qual não nos contemos em aqui transcrever: 64 [...] enfim, que faz Kronos, que, ao separar o abraço da Terra e do Céu, lança o próprio movimento da história? Ele se coloca em posição de senhor do tempo, bloqueando sua passagem tanto em direção ao passado quanto ao futuro. Cortar os genitais de seu pai é negar o peso do passado, é privá-lo de qualquer prolongamento possível; engolir seus próprios filhos é fazê-los regressar a uma posição uterina, é privar o porvir, desta vez, de qualquer desenvolvimento futuro. O tempo do tirano esgota-se em um presente estéril, sem memória nem projeto. Posição insustentável, contudo, como o demonstra a história: é que o reprimido ameaça na sombra e se prepara para retornar violentamente. Trancafiados no Tártaro, os Ciclopes acabam por dali escapar, ao passo que, na geração seguinte, Zeus engana a vigilância de seu pai e o obriga a vomitar os filhos por ele devorados. Este tempo estático é compulsivo e repetitivo: os mesmos comportamentos arbitrários expõem-se às mesmas reações violentas. Urano, seguido de Kronos, tenta suprimir suas descendências e, nos dois casos, é um de seus filhos que lhes paga na mesma moeda. Assim, estimula-se um ciclo de violência, sinônimo de um tempo privado de perspectiva; esse detalhe se prova referindo-se à lenda: do ferimento de Urano, pingaram três gotas de sangue que, caídas na terra, deram origem às Eríneas - as deusas com longa memória, consagradas, como se sabe, à vingança dos crimes de sangue. Eis, então, seguramente, uma face do tempo; ela nunca deixou de nos assombrar. 60 O desastre é evidente, pois ao quantificarmos perdemos o mundo (e também o mundo do Direito). Um exemplo específico deixará isso claro. 3.2.2.1 Primeiro caso referencial: o benefício assistencial devido ao idoso A Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88) outorga à seguridade social uma estrutura tripartida e integrada de ações, nos campos da saúde, previdência e assistência social, direcionando a iniciativa dessas atividades aos Poderes Públicos e à sociedade (art. 194) 65. Tratando especificamente da assistência social, a Constituição fixa-lhe um regime não contributivo66 e suas ações são orientadas com base em uma matriz de objetivos, dentre os quais se destacam, para o nosso estudo, a proteção à família, ao idoso e à pessoa portadora de deficiência, já consagrando a esses uma forma objetiva de tal proteção e apoio, qual seja, outorgando-lhes a garantia de um salário mínimo de benefício mensal, desde que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei67. Seguindo uma tipologia corrente no meio jurídico, estaríamos diante de uma norma de eficácia limitada68 ou, se preferirmos, de eficácia complementável69, em face Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. 66 CRFB, art. 203. A Assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social [...] 67 Tal o disposto na CRFB/88: art. 203. A assistência social [...] tem por objetivos: I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; [...] V – A garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei. 68 Para José Afonso da Silva, as normas constitucionais podem enquadrar-se em uma das três seguintes categorias: normas constitucionais de eficácia plena, normas constitucionais de eficácia contida e normas constitucionais de eficácia limitada. As últimas seriam “todas as que não produzem, 65 61 da remessa ao legislador ordinário do dever de regulamentação do direito constitucionalmente estabelecido. Tal se deu com a publicação da Lei n.º 8.742, de 7 de dezembro de 1993, a qual, em seu art. 20, tratou do benefício de prestação continuada em questão, garantindo ao idoso maior de setenta anos e ao portador de deficiência o valor de um salário mínimo mensal. Estabeleceu ainda, e aí reside o punctum saliens da questão, a presunção de que não seria capaz de prover o sustento desses beneficiários, a família com renda mensal per capita inferior a um quarto do salário mínimo (art. 20, § 3.º)70. Ou seja, promulgada a (CRFB/88), fixou-se o direito a prestações da assistência social a quem dela necessitar, dentre elas a garantia de um salário mínimo de renda mensal ao idoso ou incapacitado “miserável”, nos termos da lei71. Regulamentando o preceito, o legislador ordinário estabeleceu matematicamente o critério de miserabilidade, nos termos já explicitados acima. Em diversas demandas submetidas à apreciação judicial, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), gestor desse benefício, negou-o com base nessa norma, porquanto não atendido o requisito objetivo legalmente fixado. Entretanto, muitos juízes, relativizando o preceito, acabaram por afastá-lo, diante da análise do caso específico, onde, segundo seu juízo, restaram evidenciados os requisitos com a simples entrada em vigor, todos os seus efeitos essenciais, porque o legislador constituinte, por qualquer motivo, não estabeleceu, sobre a matéria, uma normatividade para isso bastante, deixando essa tarefa ao legislador ordinário ou a outro órgão do Estado” (SILVA, 1998, p. 82-83), por isso diz-se delas que são de aplicabilidade indireta, mediata e reduzida. 69 Cf. DINIZ, 1992. 70 Lei n.o 8.742, art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de 1 (um) salário mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso com 70 (setenta) anos ou mais e que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família. [...] §3.º Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capta seja inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo. 71 CRFB/88, art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: [...] V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei. 62 constitucionais, especialmente o da impossibilidade de o beneficiário prover o seu sustento ou tê-lo provido por sua família (aqui o chamamos de miserabilidade). Nesse sentido a súmula n.º 11 da Turma Nacional de Uniformização de Jurisprudência dos Juizados Especiais Federais (TNU)72, estabelecendo que “a renda mensal, per capita, familiar, superior a ¼ (um quarto) do salário mínimo não impede a concessão do benefício assistencial previsto no art. 20, § 3.º da Lei n.º 8.742, de 1993, desde que comprovada, por outros meios, a miserabilidade do postulante”. A questão foi submetida ao crivo do STF, na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1.232, Rel. Min. Nelson Jobim, restando afastada a alegada inconstitucionalidade, consoante se depreende da leitura da sua ementa, abaixo transcrita: CONSTITUCIONAL. Impugna dispositivo de lei federal que estabelece o critério para receber o benefício do inciso V do art. 203, da CF. Inexiste a restrição alegada em face do próprio dispositivo constitucional que reporta à lei para fixar os critérios de garantia do benefício de salário mínimo à pessoa portadora de deficiência física e ao idoso. Esta lei traz hipótese objetiva de prestação assistencial do Estado. Ação julgada improcedente. Para uma melhor visualização, apresentamos o seguinte esquema: A CRFB/88, em seu art. 98, inicialmente determinou à União, no Distrito Federal e nos Territórios, e aos Estados, que criassem juizados especiais, competentes para o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações de menor potencial ofensivo, mediante procedimento oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento dos recursos por turmas de juízes de primeiro grau. Além disso, estabeleceu que lei federal iria dispor sobre a criação de juizados especiais no âmbito da Justiça Federal (parágrafo único do art. 98, introduzido pela EC n.o 22, de 1999). Em consequência, a Lei Federal n.o 10.259, de 12 de julho de 2001, veio então a dispor sobre os Juizados Especiais Federais (JEF’s), estabelecendo a sua competência para o julgamento das causas de competência da Justiça Federal, desde que de valor até 60 (sessenta) salários mínimos. Das sentenças proferidas nos JEF’s, cabe recurso para uma Turma Recursal, composta por três juízes federais de primeira instância. Estruturando o sistema recursal nestes Juizados, a referida lei estabeleceu que das decisões proferidas entre turmas recursais integrantes de uma mesma região, quando divergentes sobre o mesmo caso julgado, poderão ser alvo de um incidente regional, julgado por um colegiado composto por integrantes das turmas envolvidas. Ademais, na hipótese de a divergência dar-se entre decisões proferidas por turmas pertencentes a regiões distintas, ou ainda no caso de a decisão ir de encontro à jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça, então cabe um pedido de uniformização de jurisprudência, encaminhado à denominada Turma Nacional de Uniformização (TNU), composta por dez juízes federais (dois de cada região) e presidida por um Ministro do STJ. 72 63 F1 DB F F2 F1 = idoso ou deficiente F2 = que não possua meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família (CRFB/88, art. 203, V) F3 = renda familiar “per capita” inferior a ¼ do s.m. (Lei n.o 8.742, art. 20) DB = Direito ao Benefício (assistencial) Figura 1: esquema do benefício assistencial Fonte: elaborado pelo autor O gráfico acima deixa clara a posição inicial do STF: reconhecendo que F2 não pode diretamente provocar DB, já que, sendo norma de eficácia contida (dependente de norma legal regulamentadora), afirmou a validade do critério F3 (constitucionalidade do art. 20 da Lei n.º 8.742), ou seja, o valor matemático para a caracterização da miserabilidade do beneficiário da assistência social. Ocorre que, nos termos do parágrafo único do art. 28 da Lei n.º 9.868/99, a decisão judicial proferida em sede de ação direta de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade tem eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública Federal, Estadual e Municipal, o que nos levaria à conclusão de que a questão estaria pacificada, reforçada pela revogação da súmula mencionada, em razão desse julgamento (DJ de 12 de maio de 2006, p. 604)73. A desconexão é tamanha que muitos juízes federais, diante de peculiaridades do caso sob sua apreciação, acabaram por determinar a concessão do benefício assistencial a pessoas que detinham renda mensal “per capita” familiar pouco acima de um quarto do salário mínimo, do que resultou a distribuição de reclamações diretamente ao STF, a fim de que a Corte determinasse o respeito à sua decisão. Curiosamente, em uma delas (Reclamação n.º 4.374), o atual Presidente, Ministro Gilmar Mendes, em um voto curioso, para não dizer ilógico, entendeu que a posição da Corte deveria ser revista, sob o argumento de que os votos proferidos na referida Ação Direta de Inconstitucionalidade não afastavam a possibilidade de que outras hipóteses sinalizassem a miserabilidade do beneficiário, necessária ao deferimento do benefício. Ao contrário, aqueles votos apenas eriam considerado que o 73 64 Do que foi relatado, depreende-se que o juiz, ainda que efetivamente se encontre diante de uma situação em que um idoso comprove não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família (e não são raras essas hipóteses), estaria impedido de reconhecer o seu direito constitucionalmente estabelecido, por conta de um juízo pré-fixado pelo legislador, que nenhum contato teve com o caso. Em um caso emblemático, o idoso pleiteou o benefício e, aos autos foi acostado laudo de avaliação sócio-econômica, lavrado por assistente social designado pelo juiz, onde cabalmente restou comprovada a situação de extrema miserabilidade do autor, que, convivendo com sua companheira, morava em um barraco alugado na favela, em situação de extrema penúria. Ele, desempregado; ela, beneficiária de uma pensão alimentícia no valor de meio salário mínimo, o que nos leva a uma renda mensal per capita de exatamente um quarto de salário mínimo, mas a lei exige que a renda seja inferior a esse valor, a fim de que o benefício seja devido! O legislador pretende reduzir matematicamente o conceito de miserabilidade, destituindo de relevância as peculiaridades em que o caso se manifesta (se o requerente tem despesas com aluguel, remédios etc.), fazendo do miserável uma pessoa independente e vice-versa. Evidentemente que o referencial do texto normativo é relevante para a atribuição de sentido, pois bem nos dá a noção paramétrica de que tipo de miserabilidade deverá ser abarcada pelo benefício, sem o que, por tratar-se de sistema não contributivo, a assistência social logo estaria comprometida em seu custeio, mas daí a ser determinante de sentido há uma distância muito grande, porque se reduz na pretensão absurda de exorcizar a realidade, com prejuízo da eficácia constitucional. limite objetivamente fixado gerava uma presunção a favor da miserabilidade, dispensando a sua efetiva comprovação. O julgamento final ainda não foi proferido. 65 Ademais, não nos parece que um único centavo de Real possa convolar um miserável, dependente do benefício, em pessoa capaz de ter provida a sua subsistência por si ou sua família. O pretendido “rigor científico, porque fundado no rigor matemático, é um rigor que quantifica e que, ao quantificar, desqualifica; um rigor que [...] ao caracterizar os fenômenos, os caricaturiza” (SANTOS, 2006, p. 54). 3.2.2.2 Segundo caso referencial: um desdobramento do caso anterior O tema do benefício assistencial retorna ao Judiciário, agora envolvendo questão diversa, porém com íntima conexão à já debatida. Se antes, o problema envolvia o conceito de miserabilidade; agora, é o de família que gera problemas. De fato, se o benefício é devido a quem tenha renda mensal familiar inferior a determinado patamar, que pessoas serão tomadas como pertencentes à família, para que tenham suas rendas computadas ou possam figurar no denominador da conta? A Lei n.º 8.742/93 (Lei Orgânica da Assistência Social), inicialmente dispunha: Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de 1 (um) salário mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso com 70 (setenta) anos ou mais e que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família. § 1º Para os efeitos do disposto no caput, entende-se por família a unidade mononuclear, vivendo sob o mesmo teto, cuja economia é mantida pela contribuição de seus integrantes.(grifamos) O preceito em destaque (§ 1.º do art. 20 do referido diploma), que se mantinha dentro de certa abertura, acabou sendo revogado pela Lei n.º 9.720, de 30 de novembro de 1998, que lhe deu a seguinte redação: Art. 20. O benefício de prestação continuada é a garantia de 1(um) salário mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso com 70 (setenta) anos ou mais e 66 que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção e nem de tê-la provida por sua família. § 1.º Para os efeitos do disposto no caput, entende-se como família o conjunto de pessoas elencadas no art. 16 da Lei n.º 8.213, de 24 de julho de 1991, desde que vivam sob o mesmo teto. A remissão feita ao art. 16 da Lei n.º 8.213/9174 nos obriga à sua transcrição: Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado: I - o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido; II - os pais; III - o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido. [...] § 2.º O enteado e o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento. § 3.º Considera-se companheira ou companheiro a pessoa que, sem ser casada, mantém união estável com o segurado ou com a segurada, de acordo com o § 3º do art. 226 da Constituição Federal. Imaginemos a seguinte situação: uma família composta por seis pessoas (marido, mulher, duas filhas maiores e dois netos, por exemplo) convivem sob o mesmo teto e é sustentada apenas pelo varão, que percebe uma renda de apenas um salário mínimo. Situação onde, a rigor, aquela renda deveria ser compartilhada por seis pessoas e, portanto, estaria abaixo do limite objetivo fixado no § 4.º da Lei n.º 8.742 (1/4 do s.m.). Entretanto, à luz do disposto no § 3.º, do art. 16, da Lei n.º 8.213/91, netos e filhos maiores não entram no cômputo da renda familiar, pelo que a renda aferida seria de ½ s.m. e, portanto, estaria inviabilizada a concessão do benefício assistencial a algum membro que preenchesse os demais requisitos (idoso ou deficiente). Por outro lado, imaginemos agora uma nova situação, em que a família “efetiva” seja composta por pai, mãe e dois filhos maiores, um de 19 (dezenove anos) 74 Esta Lei dispõe basicamente sobre os planos de benefícios da Previdência Social. 67 e outro de 22 (vinte e dois anos). Os pais não possuem qualquer renda, sendo o varão idoso; já os filhos, são profissionais bem alocados no mercado, percebendo renda de 50 (cinquenta) e 100 (cem) salários mínimos, respectivamente. Ora, neste caso, se o idoso pleitear o benefício assistencial, ele lhe será concedido, haja vista que os filhos, por serem maiores, não são computados na família, para fins de aferição da renda familiar, que acabará, neste caso, sendo considerada nula. Ou seja, o juiz pode estar diante de um caso em que a família efetivamente seja próspera, com o idoso saudável, com residência própria, sendo facilmente sustentado pelos filhos que com ele residem e, mesmo assim, a assistência social não lhe poderá ser negada, caso venhamos a assumir a definição de família estabelecida no preceito em comento. Por sua vez, esse mesmo juiz será obrigado a negar o benefício a alguém que efetivamente dele necessite, em razão de seus reais dependentes não se enquadrarem no mesmo conceito legal de família. Até o momento, não há notícias de que esta questão tenha alcançado o STF. Na TNU, há diversos acórdãos sobre o tema, fixando a posição formalista, consoante se depreende da leitura do aresto exemplificativo, adiante transcrito (Proc. n.º 2005.7095004847-1, DJU 01-12-2006): BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. MISERABILIDADE. CONCEITO LEGAL DE FAMÍLIA. APLICAÇÃO DO ART. 20 DA LEI 8.742/1993 E DO ART. 16 DA LEI 8.213/1991. RENDA FAMILIAR “PER CAPITA” INFERIOR AO LIMITE DE ¼ DO SALÁRIO MÍNIMO. Se trata de um Pedido de Uniformização de jurisprudência, fundamentado na divergência entre decisão da Turma Recursal do Paraná e o entendimento das Turmas Recursais de São Paulo e Ribeirão Preto, de acordo com as quais são considerados membros da família somente os dependentes para os fins do disposto no art. 20, § 1.º da Lei n.º 8.742/1993 c/c o art. 16 da lei n.º 8.213/1991. Avós, tios e primos, não são dependentes para os efeitos previstos, tal como posto no art. 16 da Lei n.º 8.213/1991, não sendo parte, portanto, do conceito legal de família previsto no art. 20 da Lei n.º 8.742/1993. Assim, a renda familiar é inexistente. Portanto, a renda familiar per capita é zero, e assim, inferior ao limite legal de ¼ do salário mínimo. Aqui, poderíamos fixar um esquema, a exemplo do que fizemos mais acima: 68 F1 DB F3 F2 F4 DB = Direito ao Benefício (assistencial) F1 = idoso ou deficiente F2 = que não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família (CRFB/88, art. 203, V) F3 = renda familiar “per capita” inferior a ¼ do s.m. (Lei n.o 8.742, art. 20) F4 = família tal como prevista na Lei n.º 8.213, art. 16 Figura 2: novo esquema do benefício assistencial Fonte: elaborado pelo autor Ou seja, terão direito ao benefício assistencial de prestação continuada (DB), o idoso ou deficiente (F1) que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família (F2). Entretanto, esta comprovação (F2) está subordinada à existência de uma família com renda mensal per capita inferior a ¼ do s.m. (F3), cálculo para o qual integrarão as rendas das pessoas previstas no art. 16 da Lei n.º 8.213/91 (F4), ou seja: a) o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido; b) os pais; e c) o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido. Em que pese este julgado, o tema retornou à Turma, a qual, por unanimidade, manifestou-se pela flexibilização do critério legal, a exemplo do que se pretende também com relação ao limite objetivo de ¼ do s.m., ou seja, caberia ao juiz, de acordo com as peculiaridades do caso concreto e diante da análise da prova 69 colacionada, evidenciar os reais integrantes do conjunto familiar, para fins de contabilização da renda per capita. Eis o trecho do voto de nossa relatoria75: Está fora de questão a possibilidade de a matéria ser regulada pelo legislador ordinário, porquanto é a própria Constituição que, ao prever o benefício de prestação continuada, remeteu a ele a sua disciplina. De qualquer forma, não significa que daí se possa sedimentar nos textos infraconstitucionais qualquer conteúdo, sobretudo com a pretensão de, matematizando o Direito, promover um seqüestro metafísico da realidade. Esse poder divinatório não lhe pertence, pelo que seus discursos somente podem reclamar validade se adequados ao que se mostra àquele que o interpreta e aplica, mediante um processo de cotejo com o que se lhe mostra, para daí construir a norma jurídica resultante. Apenas para tornar mais clara a minha exposição, ilustro com um exemplo. Se temos uma família composta por pai, mãe e um filho maior, esse último, solteiro e único trabalhador da família, com apenas 25 anos e possuidor de uma renda mensal de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), preenchidos os demais requisitos para a percepção do benefício, nenhum óbice haveria para o recebimento do benefício pela mãe ou pai, uma vez que a renda mensal familiar seria nula, exatamente porque o filho, sendo maior, estaria excluído do seu cômputo, nos termos do dispositivo legal mencionado acima. Por outro lado, se temos um pai que recebe um benefício de apenas um salário mínimo, com ele convivendo a esposa e mais dois filhos e um neto, todos menores e sem qualquer renda, ainda que preenchidos os demais requisitos e comprovada a miserabilidade da família, por incontestável laudo sócio-econômico, não faria ele jus ao benefício, eis que, sendo o neto excluído do conceito de família, a renda mensal estaria acima do limite legal (menor que um quarto e aqui igual a um quarto do s.m.). Veja que, mesmo que o laudo social tenha atestado o contrário, no primeiro caso caberia ao Estado prestar assistência a quem dela não necessita efetivamente e, no segundo caso, negá-la, mesmo diante da evidente necessidade!É esta a preocupação que demonstro, ou seja, o apego desenfreado e acrítico ao conteúdo legal, que, sob o marco de uma pretensa pseudo-certeza e segurança jurídica, exorciza a realidade, obnubilando o acontecer da Constituição. A prevalecer esse modo de enxergar o Direito, estaremos impedindo o constituir da Constituição e a realização do projeto de vida boa que a sociedade persegue, segundo esse projeto constitucional que pretende projetar-se em seu seio. É ela, a Constituição, que permeia todo o Direito e é a ela, à Constituição, que deve submeter-se o legislador. Não se trata de apologia a qualquer ativismo judicial, mas de pôr sob a visada constitucional a obra do legislador, a fim de perquirir se da sua atuação resulta qualquer contradição com a Carta. E parece-me que, a tornar absoluto o matemático critério, acabamos por colocar o Direito à margem do mundo da vida, uma desconexão que somente se presta a ratificar a inefetividade dos direitos fundamentais e do acontecer da própria Constituição. Incidente de Uniformização n.º 2007.7295006472-6, Relator Juiz Federal Ricarlos Almagro, julg. 27 de março de 2009. 75 70 Sem pretender, neste momento, encontrar raízes para uma justificação, parecenos razoável afirmar que o racionalismo moderno em que se ancoraram as ciências da natureza e o êxito de sua empreitada no campo de controle desta e da produção de artefatos tecnológicos, colocou-as em um patamar referencial para a categorização do científico. Seduzido, o Direito foi envolvido por esta metafísica pretensão de certeza absoluta, também buscando naquela racionalidade científica modelos em que se espelhar, de forma que seus métodos voltar-se-iam à certeza76 e à segurança jurídicas como nortes a seguir na consecução do ideal de justiça77. Ainda que o que se costumou denominar de pós-modernidade tenha abalado os pilares da cientificidade moderna, parece que o Direito segue atrasado, manifestando ainda suas estruturas formalistas e, a cada vez, mais alicerçado em padrões de precisão e certeza, muitas vezes ao molde das matemáticas (ao que denominamos matematização do Direito). O fato é que este modelo científico de rigor está em colapso e esse abalo na referência reflete efeitos na perda de orientação do referenciado. 3.2.2.3 Terceiro caso referencial: causa de menor complexidade A CRFB/88, em seu art. 98, inicialmente determinou à União, no Distrito Federal e nos Territórios, e aos Estados, que criassem juizados especiais, competentes para o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações de menor potencial ofensivo, mediante procedimento oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento dos recursos A referência à certeza é paradigmática no caso do positivismo jurídico, eis que, nas palavras de BOBBIO, “o princípio da certeza do direito é a ideologia fundamental deste movimento jurídico” (1995, p. 207). 77Aqui nos referimos a um suposto ideal de justiça matizado pelos ideais juspositivistas, tal como posto de forma extremada por HOBBES, ao associá-lo à mera obediência às leis (2004, p. 63). 76 71 por turmas de juízes de primeiro grau. Além disso, estabeleceu que lei federal iria dispor sobre a criação de juizados especiais no âmbito da Justiça Federal (parágrafo único do art. 98, introduzido pela EC n.º 22, de 1999). A Lei Federal n.º 10.259, de 12 de julho de 2001, veio então a dispor sobre os Juizados Especiais Federais (JEF’s), estabelecendo a sua competência para o julgamento das causas de competência da Justiça Federal, desde que de valor até 60 (sessenta) salários mínimos (art. 3.º). Por outro lado, no âmbito estadual, o tema é regulado pela Lei n.º 9.099/95, a qual, em seu art. 3.º, I, estabeleceu patamar inferior, fixando-o em apenas 40 (quarenta) salários mínimos. Portanto, temos aqui um critério matemático para a definição do que seja uma causa cível de menor complexidade. Curioso é que a complexidade da causa fica à margem de qualquer análise do caso submetido à apreciação judicial. Mais ainda, o próprio “critério objetivo” varia, consoante seja a questão submetida ao exame de um juiz de direito ou de um juiz federal. A natureza da questão controvertida tem influência direta na relação processual que dela decorre e, consequentemente, na forma como essa relação irá desenvolver-se, o que justifica a admissão de variações tanto em aspectos procedimentais, quanto na própria relação processual. E que questões seriam essas, a justificar não apenas um rito novo, mas um processo diferenciado? Aquelas decorrentes de relações de menor complexidade, sendo certa a infelicidade do critério econômico com que as determinou o legislador, porquanto não poderia ser utilizado em caráter absoluto. Quando muito, ele se prestaria a servir de indício de baixa complexidade, a ser aferido “in concreto” pelo juiz e pelas partes. Concluindo, nem sempre causas deixam de ser complexas apenas porque seu valor está circunscrito ao limite legalmente estabelecido (aliás, em patamares diversos quando confrontadas as leis que regulam os juizados no âmbito federal e estadual, o que, por si só, já surpreende). 72 Assim, por vezes é admitida no âmbito dos Juizados Especiais causa de extrema complexidade, porque seu valor se situa dentro do parâmetro normativo fixado; e, por outro lado, podemos ter causas recusadas em razão de o seu valor ultrapassar o referido limite, a despeito de mobilizarem questões extremamente simples. Portanto, complexidade da causa não diz necessariamente com o seu valor. Mais uma vez o recurso ao critério matemático se põe como mecanismo contentor da compreensão do sujeito, que se vê imobilizado no processo, forçado a admitir um mundo conceitual que se choca com os fatos. 3.3 A crise das ciências e a crise do Direito “As insuficiências estruturais do paradigma científico moderno é o resultado do grande avanço no conhecimento que ele propiciou. O aprofundamento do conhecimento permitiu ver a fragilidade dos pilares em que se funda” (SANTOS, 2006, p. 41). Einstein, tal como o interpreta Reinchenbach, vai estabelecer, no âmbito da astrofísica, a ideia de relatividade entre acontecimentos simultâneos, no sentido de que a simultaneidade não existirá, senão dentro de um sistema de coordenadas de referência. Há aí, portanto, a relativização da própria noção de tempo e espaço absolutos, tal como o concebia a mecânica newtoniana78. Por sua vez, é com Veja que a matemática como referência para o status científico sofre profundo abalo quando ela mesma se vê relativizada. E tal é o que decorre da proposta de Reinchenbach , quando formula a sua teoria acerca das definições coordenativas, de onde extrai como consequência o princípio da relatividade da geometria. Para este físico, teríamos uma geometria matemática e uma geometria física. A primeira seria um sistema formal descomprometido com a verdade de seus axiomas; ao contrário da segunda, em que, vinculada ao mundo físico, buscaria a verdade ou falsidade de suas assertivas pelos mecanismos de teste empírico. Daí a diferença entre teorias matemáticas e físicas, onde as últimas estão sempre referidas ao uso de um tipo de definição associada a coordenadas, no sentido de que seus conceitos estão sempre ligados ou coordenados a certos objetos ou processos 78 73 Heisemberg e Bohr que, no campo da mecânica quântica, o seu paradigma dominante vai ser abalado. Aqui, restou demonstrado que ao medirmos um objeto, introduzimos uma interferência no sistema que acaba por afetá-lo. Assim, o que lá estava antes da medida não é a mesma coisa que se apresenta após essa. O que temos é uma inseparável relação entre o ato de conhecer e o próprio produto do conhecimento. Vemos, portanto, uma angustiante perda de referência no modelo científico que até então vinha sendo espelhado pelas ciências sociais. O ideal de quantificação se dissolve com a relativização da própria quantidade. Como consequência, valem as percucientes anotações de Boaventura Souza Santos (2006, p. 54): O rigor científico, porque fundado no rigor matemático, é um rigor que quantifica e que, ao quantificar, desqualifica, um rigor que, ao objetivar os fenômenos, os objetualiza e os degrada, que, ao caracterizar os fenômenos, os caricaturiza. É, em suma, e finalmente, uma forma de rigor que, ao afirmar a personalidade do cientista, destrói a personalidade da natureza. Nestes termos, o conhecimento ganha em rigor o que perde em riqueza e a retumbância dos êxitos da intervenção tecnológica esconde os limites da nossa compreensão do mundo e reprime a pergunta pelo valor humano do afã científico assim concebido. No centro desse processo de crise está a própria relação sujeito-objeto, “uma relação que interioriza o sujeito à custa da exteriorização do objeto, tornando-os estanques e incomunicáveis” (SANTOS, 2006, p. 54). físicos (ex.: definição de linha reta coordenada à trajetória da luz no vácuo; um múltiplo de comprimento de onda associado a determinado elemento químico; o padrão métrico do sistema a determinada barra depositada no Escritório Internacional de Pesos e Medidas de Sèvres; etc.). As consequências são surpreendentes. Uma delas consiste em reconhecer que a medida de um corpo pode variar em razão da sua posição no espaço, caso adotemos um sistema referencial diverso. Por sua vez, reconhece-se que na superfície de uma esfera, a razão entre a sua circunferência e o seu diâmetro é superior a π, ao passo que na circunferência ela é igual a esta constante matemática. Dessa forma, podemos saber se estamos sobre uma esfera ou uma superfície plana, mediante a realização de medidas. Entretanto, como estas medidas podem variar em razão do sistema de referência adotado, a nossa noção de espaço estará imbricada também com esta escolha. Ou seja, a geometria, em razão do uso de definições coordenativas, é relativa. Ou ainda: medidas são matéria de definições; não de fatos. 74 Se a modernidade traz consigo o dogma da razão, da estabilidade das instituições, o racionalismo do método que nos dá a certeza do mundo, confirmada nos avanços da ciência, então o Direito não podia deixar de inscrever-se nesse contexto, incorporando os ideais do positivismo filosófico79, pautando-se em um conhecimento objetivo, centrado no modelo dicotômico sujeito-objeto, usurpando o método das ciências naturais. O ideal de justiça natural que o precedeu não encontra mais espaço em seu corpo, por afrontar o caro princípio da certeza que o baliza. O Direito agora está na lei, quase com ela identificando-se. A lei é posta pelo Estado e o justo não lhe pertence como crítica ético-filosófica. É a justiça uma questão de quem põe o Direito, não de quem o opera. Esse corpo dado é completo, avesso a lacunas, as quais, se existentes na lei, não ultrapassam o ordenamento, esse corpo fechado e dotado de instrumentos suficientes para colmatá-las. O ideal de certeza cartesiana se reflete na hipervalorização do método dedutivo, incorporado ao direito sob o “promissor” procedimento subsuntivo. Mas nem mesmo a ciência natural escapou às garras da incerteza, pois, como vimos, a par das revoluções operadas na física newtoniana pela relatividade de Einstein, bem como a demolição de estruturas que a mecânica quântica acarretou (o que, aliás, torna sugestivo o nome atribuído ao princípio enunciado por Heisenberg princípio da incerteza), é Freud quem, para Barroso, dá o golpe final, ao estabelecer que o “homem não é senhor absoluto sequer da própria vontade, de seus desejos, de 79 A despeito de referências contrárias, como em Norberto Bobbio (1995, p. 15): A expressão “positivismo jurídico” não deriva daquela de “positivismo” em sentido filosófico, embora no século passado tenha havido uma certa ligação entre os dois termos, posto que alguns positivistas jurídicos eram também positivistas em sentido filosófico: mas em suas origens (que se encontram no início do século XIX) nada tem a ver com o positivismo filosófico – tanto é verdade que, enquanto o primeiro surge na Alemanha, o segundo surge na França. A expressão “positivismo jurídico” deriva da locução direito positivo contraposta àquela de direito natural. 75 seus instintos. O que fala e cala, o que pensa, sente e deseja é fruto de um poder invisível que controla o seu psiquismo: o inconsciente” (BARROSO, 2006, p. 7). Essa relatividade e incerteza abalaram os pilares do próprio Direito, e os ideais de neutralidade e objetividade começaram a ruir. A segurança pretendida na certeza dos enunciados não se verificou. O pretendido controle das decisões, pautado na previsibilidade dos discursos de validade, conduziram-nos à ideologia. E quando o modelo falha, a crítica irrompe, buscamos alternativas80. Já não podem mais valer aqueles dogmas da completude, da estatalidade, da objetividade e, acima de tudo, o da identificação do Direito com a lei. Nas precisas palavras de Barroso, “ao fim da Segunda Guerra Mundial, a ideia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como uma estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha mais aceitação no pensamento esclarecido” (BARROSO, 2006, p. 26). Não se trata de buscar um modelo correto, mas um processo eficiente. Uma Constituição que efetivamente constitua, uma pauta de valores que valha. E o positivismo, entificando o Direito, esqueceu-se do seu ser, não logrando assim êxito no alcance desses fins. A ideia de segurança jurídica deixa mostrar-se em um foco metodológico que deveria imprimir-lhe certeza na práxis dos jurisconsultos. A lei é elevada à categoria de fetiche, entifica-se o seu ser, instalando-se a crença sincera de que a norma jurídica se põe externamente ao sujeito, com um sentido imanente que lhe é próprio. Esquecese do mundo da vida, que passa ao domínio do texto legal, cuja pretensão de Sem aderirmos aos seus postulados, confirma-o o “direito alternativo”, entendido em sentido amplo “como atuação jurídica comprometida com a busca da vida com dignidade para todos, ambicionando emancipação popular com abertura de espaços democráticos, tornando-se instrumento de defesa/libertação contra a dominação imposta” (CARVALHO, 1992, p. 89) e, em sentido estrito, “emerge do pluralismo jurídico. É alternativo ao direito oficial. Este direito concorrente, paralelo, achado na rua, emergente, insurgente, construído pela população na sua caminhada libertária.” (CARVALHO, 1992, p. 90). 80 76 validade se sobrepõe àquilo que se mostra81. Assim, os direitos se subrogam na lei e a crise de efetividade se instala. Países recém-egressos de regimes autoritários buscaram purgar a mora em que incidiam no campo do respeito aos direitos humanos, inscrevendo-os nas suas cartas constitucionais, a fim de outorgar-lhes essa posição de preeminência e superioridade, gravando-os com “cláusulas de eternidade”. Deixando para trás um vergonhoso passado autoritário, a Carta Brasileira de 1988 foi tocada por essa sensibilidade, reproduzindo a prática de incorporar ao seu texto essa extensa pauta, sem que, com isso, lograsse romper com a sua tradição de inefetividade nesse campo, tal como o confirmam as precisas palavras de Bittar (2005, p. 287): É evidente aos olhos a incapacidade do ordenamento jurídico brasileiro, e do Estado brasileiro, absorver todas as demandas por direitos humanos (incluídos na expressão os significados pertinentes aos direitos de primeira, segunda e terceira geração), ou torná-las razoavelmente administradas dentro de um contexto de francas desigualdades e cruéis diferenças sociais. A conseqüência imediata é a existência de um choque de brutais proporções entre o preconizado e o praticado, entre o prometido e o oferecido, entre a letra da lei e os fatos, entre a lógica do sistema formal e a lógica das ações sociais. A trajetória dos direitos humanos no Brasil é curiosamente um reflexo de um aparente contraste: de um lado, um ambiente desajustado, governado por elites oligárquicas que se sucedem no poder; e, de outro, um arcabouço teórico-normativo que parece paradoxalmente regular uma sociedade completamente distinta, rica em direitos e cidadania (com alguns momentos de flutuação, é bem verdade, mas sempre uma estrutura presente, sobretudo, no que tange aos direitos civis). Remetemos o leitor ao exemplo dado acima, acerca do benefício assistencial devido ao idoso, onde o legislador, pretendendo matematizar o conceito de miserável, acabou por caricaturizar o descrito, encobrindo o que buscava aparecer. 81 77 Constituições semânticas é o que são. Desferem conteúdos que não sobrevivem na práxis social, “mimetismos teóricos e institucionais quase sempre divorciados da realidade vivida” (SAMPAIO, 2004, p. 323). Esse descompasso repercute negativamente na sociedade, alimentando uma circularidade de descrença e renovações que nada renovam (SAMPAIO, 2004, p. 323): No final das contas, há uma perda significativa de energia social, alimentando a descrença popular nas instituições que, por sua vez, favorece novas encenações de mudanças e outras importações de ideias e modelos até renovar-se o ciclo. O complexo de dependência eterniza os problemas sociais e submete seus destinos às decisões externas, agora de maneira cada vez mais aguda, sem que se complete a etapa de emancipação da sociedade e do próprio Estado [...] a estratégia da semântica dos direitos fundamentais, no sentido empregado por Loewenstein, traz sempre oportunidades de rompimento da renovação do ciclo, por meio da ação jurídica e política concertada. Em que pese até aqui não haver qualquer novidade, o que surpreende é que a práxis dos tribunais e o academicismo de nossa (de)formação ainda se veem sustentados por essa dogmática. Insistem as cortes na utilização do método subsuntivo, que confunde a norma com o seu texto, como se fosse possível, pelos discursos de validade, compor um plexo de sentido, magicamente doado àquela entidade denominada lei, a abarcar a realidade, que é assim, capturada por um enquadramento prévio de um sentido que não lhe pertence. Esse sequestro metafísico da realidade pelo positivismo, emblematicamente o denominou Streck de “exorcismo da realidade” (2006, p. 329). Esse modo de pensar estratifica o conhecimento em duas realidades distintas: o sujeito que conhece e o objeto conhecido. Ele depura a matriz metafísica, encaminhando o pensamento por um endereço supostamente seguro, único meio de ascender à essência pré-dada das coisas. O Direito na pós-modernidade é esse Direito em crise, que (re)clama por efetividade. Nesse matiz pós-moderno, instala-se a consciência da crise, mas procura- 78 se superá-la dentro das amarras de um modo de agir e de pensar tradicionais. Como afirmamos alhures, o Direito foi entificado e o seu ser esquecido. Essa exagerada confiança depositada na lei é típica do formalismo jurídico, muito embora possa ele compadecer-se também com o jusnaturalismo, tal como nos ensina Richard Posner (2007, p. 54): O formalismo se apresenta tanto na variedade do direito natural quanto na do positivismo jurídico. Para ser um formalista, o único pré-requisito é ter uma suprema confiança nas próprias premissas e nos próprios métodos de extrair conclusões delas. O formalista do direito natural não tem dúvidas sobre os princípios de justiça e a capacidade da lógica de fazer derivar resultados de casos específicos daquelas premissas; o formalista do direito positivo está convencido de que o direito consiste apenas nas ordens legislativas, ou em outros comandos oficiais que, cuidadosamente interpretados, produzem resultados demonstravelmente corretos em todos os casos. Essa similitude da matriz metafísica presente tanto nas correntes juspositivistas como nas jusnaturalistas é também destacada por Kauffmann (2007, p. 91-92, tradução nossa) 82: Um e outro se assemelham, a partir de uma perspectiva teórico-jurídica e metodológica, por suas estruturas mentais; e, sobretudo, por suas maneiras de conceber o processo de determinação do direito. Esta semelhança entre ambos os inimigos irreconciliáveis se manifesta principalmente em três pontos: 1. O “conceito ontológico-substancial do direito”, que o vê como algo coisificado, rígido e “Uno y otro se asemejan, desde una perspectiva teórico-jurídica y metodológica, por sus estructuras mentales; y sobre todo, por sus maneras de concebir el proceso de determinación del derecho. Esta semejanza entre ambos enemigos irreconciliables se manifiesta principalmente en tres puntos: 1. El ‘concepto ontológico-sustancial del derecho’, que ve a este como algo cosificado, rígido y establecido a priori; por un lado, la ‘naturaleza’, sea esta lo que sea; por otro, la ‘ley’. 2. La ‘ideología de la subsunción’, que exige deducir las decisiones jurídicas concretas de normas superiores procediendo, de una forma puramente deductiva y ‘estrictamente lógica’, sin recurrir a la experiencia. Para el derecho natural, este razonamiento de subsunción ha de inferir de unos principios ético-jurídicos absolutos las normas del derecho positivo, y de estas las decisiones jurídicas concretas. Para el positivismo, dichas decisiones han de ser deducidas de las leyes, con ayuda de las directrices del propio legislador - los ‘materiales legales’ - mediante un simple silogismo (‘modus barbara’). 3. La idea de que existe un ‘sistema cerrado’. Conforme a eso, tanto el derecho natural como el positivismo, pretenden formular, por vías puramente deductivas, una suma de proposiciones legales completas y sin lagunas, prontas para el uso y no necesitadas de interpretación alguna, con las cuales resolver cualquier cuestión jurídica posible.” 82 79 estabelecido a priori; por um lado, a “natureza”, seja esta o que for; por outro, a “lei”. 2. A ideologia da subsunção, que exige deduzir as decisões jurídicas concretas de normas superiores, procedendo de uma forma puramente dedutiva e “estritamente lógica”, sem recorrer à experiência. Para o direito natural, esta argumentação de subsunção há de inferir-se de uns princípios ético-jurídicos absolutos, as normas do direito positivo, e destas as decisões jurídicas concretas. Para o positivismo, ditas decisões hão de ser deduzidas das leis, com ajuda das diretrizes do próprio legislador – os “materiais legais” – mediante um simples silogismo (“modus barbara”). 3. A ideia de que existe um “sistema fechado”. De acordo com isso, tanto o direito natural como o positivismo pretendem formular, por vias puramente dedutivas, uma soma de proposições legais completas e sem lacunas, prontas para o uso e não necessitadas de interpretação alguma, com as quais é possível resolver qualquer questão jurídica. Por isso mesmo o método é o recurso de que necessitam os formalistas para poupar o advogado ou o juiz de um difícil confronto com a realidade empírica83. Não há sensibilidade para o apelo daquilo que se mostra, enquanto tal. Parece que se esquecem da advertência de Husserl para que se voltem às coisas mesmas. A par da constatação óbvia de que o Direito se manifesta pela linguagem, o que já seria suficiente para deslocarmos nossa atenção para esse campo objetal de estudos, é preciso ir além, reconhecendo a superação do pensamento metafísico, que a projeta como meio interposto entre o objeto do conhecimento e o ser cognoscente. Esse prisma refratário da realidade de há muito vem sido espancado pela filosofia, cedendo espaço ao que restou conhecido por giro linguístico, sonegado e resistido pela dogmática jurídica ordinária84. Como bem coloca Streck (2000, p. 51-52), apoiado em lições de Castanheira Neves, “passa-se, enfim, da essência para a significação, onde o importante e decisivo não está em se saber o que são as coisas em si, mas saber o que dizemos quando falamos delas”. E essa percepção é relevante, na medida em que força o rompimento com a ideia de extração significativa do texto, com a clássica afirmação de que “interpretar consiste em extrair o sentido e o alcance das expressões do direito” (MAXIMILIANO, Cf. POSNER, 2007, p. 54. Vale registrar a clássica afirmação de Gadamer, no sentido de que o ser que pode ser compreendido é a linguagem (2002, p. 687). 83 84 80 1984, p. 1). Não há essencialmente um sentido imanente que deva ser buscado, senão um uso concretizado pelos sujeitos que se inserem em um contexto interativo e dialético85. É pela desconsideração desse papel construtivo do Direito que a dogmática jurídica estabelece o que Streck denominou de “horizonte de sentido” estatizante, que modela o raciocínio lógico-jurídico, com base em arquétipos valorativos, ideologicamente postos. Os sujeitos de direitos e aqueles encarregados da produção científica do Direito se inserem nesse contexto, sem percebê-lo. Aderem ao “senso comum teórico dos juristas”86, que passa a exercer o papel normativo, ideológico, retórico e político. Sufocam-se assim as possibilidades interpretativas, mascarando a crítica e o processo dialético, através do que se costumou denominar de “teto hermenêutico”, encarregado de fixar um horizonte de sentido pré-determinado. Essa realidade cede espaço ao poder da violência simbólica, que não coage o intérprete, mas o neutraliza, consagrando o universo do silêncio, silêncio eloquente, porque travestido de linguagem. A sensibilidade para o problema enceta o primeiro passo a caminho de uma nova postura, porquanto é dessa percepção que poderemos romper com esse estado de letargia dogmática87. Em suma, pretendemos dar maior alcance ao papel dos sujeitos no discurso linguístico, transmitindo a ideia de que é necessário ficar atento à superação do modelo substancialista do conhecimento, que restringe o papel da linguagem a uma função de permeio entre o homem e o objeto cognoscível, para ver nesse processo de significação, de que ela – a linguagem - é o centro, a própria expressão do ser e do mundo. Veja-se, a propósito, a lição de Bastos, ao outorgar ao intérprete uma função atributiva de sentido (BASTOS, 1997, p. 17). 86 Cf. WARAT, 1995. 87 Convém recordar as palavras de Hölderlin, repetidas por Heidegger e acima reproduzidas, no sentido de que “onde mora o perigo, é lá que também cresce o que salva”. 85 81 Já não há mais espaço para uma vontade da lei ou do legislador, como paradigma interpretativo. O foco agora é o sujeito, inserido na relação comunicacional. Estar atento a essa virada representa o meio pelo qual se poderá romper com o que aqui se denominou de silêncio eloquente, dando-se conta de que esse domínio ideológico não se faz por coação, repita-se, mas por neutralização insensível. É imperioso marcar que o conceito de silogismo bem atende a esse modelo ideológico, porque, em sua base está a ideia de que o texto da norma contém todos os seus possíveis sentidos, já previamente dados pelo legislador, em uma transcendente metafísica de resultados, cabendo ao intérprete apenas identificar aquele sentido mais adequado ao problema que se apresenta. Com essa ideia, estar-se-ia tornando a aplicação da lei um problema resolvido, porque resguardado contra subjetivismos, já que enclausurado em uma matriz de sentidos previamente dada: a verdade do legislador, ou da lei. Entretanto, a verdade absoluta e a objetividade não se coadunam com a nova visão do Direito. A verdade é um conceito intimamente ligado à historicidade do humano e à revelação do “objeto”. Falar em verdade pressupõe falar em interpretação. Partamos da lição de Luigi Pareyson (2005, p. 52): O único conhecimento adequado da verdade é a interpretação, entendida como forma de conhecimento histórico e pessoal, em que a personalidade singular e a situação histórica, longe de serem impedimento ou então somente limite do conhecimento, são a sua única condição possível e o único órgão apropriado. A interpretação pode definir-se, de certo modo, como aquela forma de conhecimento na qual o ‘objeto’ se revela na medida em que o ‘sujeito’ se exprime, e vice-versa. Portanto, “toda relação humana, quer se trate do conhecer ou do agir, do acesso à arte ou das relações entre pessoas, do saber histórico e da mediação filosófica, tem sempre um caráter interpretativo” (PAREYSON, 2005, p. 51). Daí porque “da verdade não existe senão interpretação” (2005, p. 51). Eis a correlação essencial. 82 O excerto transcrito pontua dois caracteres invariavelmente presentes na atividade interpretativa: a historicidade e a pessoalidade. Essa correlação atua em simbiose e é co-existencial, ou, como quer Pareyson, o aspecto revelativo, sendo inseparável do histórico, a ele se liga pela “coessencialidade” (2005, p. 52). De notar-se que, ao referir-se ao caráter histórico da verdade, não estamos valorizando aquelas correntes relativistas cépticas, mas, ao contrário, esclarecendo que é na história que se torna possível a verdade, e não fora dela, porquanto inexequível tal pretensão de escape, já que exigiria uma saída do intérprete de si próprio e da própria situação88. A historicidade é condição de possibilidade da verdade. Como nos adverte Gadamer, “querer evitar os próprios conceitos na interpretação, não somente é impossível, mas é também um absurdo evidente. Interpretar significa justamente colocar em jogo os próprios conceitos prévios, com a finalidade de que a intenção do texto seja realmente trazida à fala para nós” (2002a, p. 578). Efetivamente, a pessoalidade da interpretação pode conduzir-nos a subjetivismos deturpadores da verdade, mas quando isso acontece, “a personalidade, tornada objeto de expressão mais do que órgão de penetração, sobrepõe-se à verdade, contribuindo para encobri-la e ocultá-la ao invés de captá-la e revelá-la” (PAREYSON, 2005, p. 55), e aí onde o fenômeno se verifica, não se pode dizer haver ocorrido interpretação efetiva. Assim, não se trata de uma advertência emblemática da operação hermenêutica, mas de um vício que a desnatura. Nesse sentido, não há como justificar a autenticidade de determinada interpretação, em razão do sujeito que a empreendeu89, pois vai de encontro à noção Tal como adverte Gadamer (2002, p. 577), “o intérprete não consegue alcançar, em grau suficiente, o ideal de deixar-se a si mesmo de lado”. 89 A expressão “autenticidade” não é casual, refere-se à denominação dada àquela interpretação realizada pelo próprio órgão que produziu a regra interpretada. Tal é o que encontramos em Maximiliano (1984, p. 87): 88 Denomina-se autêntica a interpretação, quando emana do próprio poder que fez o ato cujo sentido e alcance ela declara. Portanto, só uma Assembléia Constituinte fornece a exegese 83 de pessoalidade. O fato de o próprio órgão de que emanou a norma relançar-se em manifestação acerca dela, somente traduz a sua inconformidade com o sentido concretizado por uma determinada comunidade interpretativa, revelando-se como normatividade nova, porquanto atributiva de novo sentido por quem detém a competência para plasmá-la em moldes deônticos. E isso, não desautoriza aquele sentido anterior, pois o que se compreendeu não se trata de uma mera opinião estranha, mais sempre uma possível verdade (GADAMER, 2002a, p. 574), independentemente do status do intérprete. Nessa linha de raciocínio, resta afastada a dicotômica disputa entre as denominadas correntes subjetivistas e objetivistas, ou a interpretação como busca da vontade do legislador ou da vontade da lei90. Como afirma Gadamer, “na escrita, o sentido do falado esta aí por si mesmo, inteiramente livre de todos os momentos emocionais da expressão do anúncio” (2002a, p. 571). Não há uma intenção a ser reconstruída, tampouco um plexo de sentidos inicialmente dado. Não há reconstrução do sentido do texto, mas construção contextual da norma pelo intérprete. Daí o acerto de GADAMER, ao afirmar que interpretação é applicatio. obrigatória do estatuto supremo; as Câmaras, a da lei em geral, e o Executivo, dos regulamentos, avisos, instruções e portarias. A busca da prevalência de uma ou outra vontade é sempre expressiva da metafísica clássica, fundada na dicotomia sujeito-objeto, um retrocesso já delineado no texto, como bem esclarece o excerto seguinte: 90 Quando os juristas discutem hermenêutica jurídica, logo vem à tona a imagem do clássico exegeta, cuja tarefa seria a de ‘arrancar da letra da lei’ o ‘verdadeiro’ (e, quiçá, o ‘unívoco’) sentido da norma, o ‘correto significado’, além da tradicional procura pela mens legis, mens legislatoris, a ratio essendi da norma, etc. [...] À evidência, isto implica, automaticamente, em entender que esse intérprete é um sujeito buscando conhecer e esclarecer o objeto. Dito de outro modo, expressiva parcela dos juristas, mergulhada no interior do sentido comum teórico (que encobre o sentido de ser-no-mundo do jurista), ainda trabalha com os conceitos advindos da hermenêutica clássica, vista como pura técnica (ou ‘técnica pura’) de interpretação (Auslegung), onde a linguagem é entendida como terceira coisa que se interpõe entre o sujeito cognoscente e o objeto a ser conhecido/apreendido. (DA SILVA, Kelli Susane Aflen. Prefãcio. In: STRECK, Lenio Luiz, introdução à obra “Hermenêutica jurídica e concretização judicial”, p. 31). 84 E este processo hermenêutico é expressão do ser-no-mundo, atrelada à sua pré-compreensão do evento (e texto é um evento) que, se de um lado não lhe autoriza escapar da força da tradição, de outro não se lhe permite controle metódicoracional. São esclarecedoras as palavras de Streck (2006, p. 377-378) 91: Ora, a pré-compreensão antecipadora de sentido de algo ocorre à revelia de qualquer regra epistemológica ou método que fundamente esse sentido. Não há métodos e tampouco metamétodos ou metacritérios [...] o ato de compreender é existencial, fenomenológico, e não epistemológico. Hermenêutica não é método, é a própria interpretação, a qual, por sua vez, é aplicação. Não há espaço para uma compreensão por etapas (subtilitas intelligendi, subtilitas explicandi, subtilitas applicandi), em que primeiro eu compreendo a norma, para depois fundamentar essa operação e, somente então partir para a aplicação, como se os sentidos pudessem ser antecipados ou justificados antes da compreensão da norma. Como assinala Streck, os discursos de fundamentação sempre chegam tarde, como se a ponte fosse construída depois da travessia! (2006, p. 398). Um exemplo revelará a importância da crítica aqui empreendida. 3.3.1 Quarto caso referencial: leis interpretativas em matéria tributária O Código Tributário Nacional (CTN) assegura ao sujeito passivo da obrigação tributária o direito à restituição do que indevidamente pagou a título de tributo, independentemente de o recolhimento ter decorrido de indevida exigência ou de erro próprio. Entretanto, fixa o código o prazo de cinco anos para que ele pleiteie o 91 STRECK, 2006a, p. 377-378. 85 seu direito à repetição do indébito, fixando o seu termo inicial na extinção do crédito tributário (art. 168, I). Especificamente em relação aos tributos cujo lançamento se dá por homologação92, estabelece o art. 150, § 1.º do CTN que o pagamento antecipado pelo obrigado extingue o crédito, sob condição resolutória da ulterior homologação do lançamento93. Importando-se do direito privado a definição de “condição”, o instituto revela “o acontecimento futuro e incerto, de que depende a eficácia do negócio jurídico” (SANTOS NETO, 1991, p. 490). Quanto à condição resolutória, ou resolutiva, até que ela se implemente, o negócio produz normalmente os efeitos que dele se esperam. Ora, aplicadas essas noções preliminares ao nosso contexto, até que não se rejeite expressamente a atividade desenvolvida pelo obrigado, não homologando o procedimento por ele realizado, ou seja, até que não ocorra a condição legalmente prevista, verifica-se o efeito extintivo operado pelo pagamento “antecipado”. Sendo assim, considerando ser a extinção do crédito tributário pelo pagamento indevido o termo inicial para o transcurso do prazo quinquenal para que o contribuinte possa reaver o que indevidamente pagou; e se nos tributos cujo lançamento se dá por homologação, tem o pagamento antecipado tal efeito extintivo, pensamos que é a contar desse que o prazo mencionado terá o seu início de curso, tese, aliás, que já advogávamos há algum tempo94. Como tal é aquele que se dá quando o próprio contribuinte, constatando a existência do fato gerador da obrigação tributária, calcula o valor do tributo devido e o recolhe. Ciente dessa operação desenvolvida, se com ela concorda, o sujeito ativo a homologa, consistindo tal ato o referido lançamento. 93 Por ora faremos abstração de duas grandes falhas na redação, a saber: que a condição resolutória não é a ulterior homologação, mas a sua não ocorrência; e que não há homologação do lançamento, já que isso pressupõe lançamento prévio, e do sistema do código não se pode depreender tal realidade, seja porque o lançamento é ato privativo da autoridade administrativa (CTN, art. 142), seja porque o lançamento se identifica com o ato homologatório. 94 Cf. CUNHA, 1998. 92 86 Entretanto, não foi esse o entendimento sedimentado no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Essa Corte firmou interpretação no sentido de que o termo inicial para o decurso do referido prazo não seria a data do pagamento antecipado, mas o término do quinquênio que se escoaria a partir de tal marco, já que esse, sendo o prazo para a homologação fixado em lei, é que efetivamente teria o condão de promover a extinção definitiva do crédito tributário. Esse entendimento restou conhecido como a “tese dos cinco mais cinco”, consoante se depreende da leitura do aresto seguinte, colhido por amostragem, dentre vasto universo (AARESP 685767/SC, Min. Eliana Calmon, DJ 02.05.2006, p. 289): PROCESSO CIVIL E TRIBUTÁRIO - AGRAVO REGIMENTAL PRESCRIÇÃO - TRIBUTO LANÇADO POR HOMOLOGAÇÃO - TERMO INICIAL - TESE DOS "CINCO MAIS CINCO". 1. O STJ, intérprete e guardião da legislação federal, firmou posição no sentido de que a extinção do crédito tributário, em se tratando de tributos lançados por homologação, não ocorre com o pagamento, sendo indispensável a homologação expressa ou tácita e, somente a partir daí é que se inicia o prazo prescricional de que trata o art. 168, I do CTN (tese dos "cinco mais cinco"). 2. Confirmação da decisão que deu provimento ao recurso especial, para afastar a prescrição e determinar o retorno dos autos para continuidade do julgamento. 3. Agravo regimental improvido. Embora avesso a tal concepção, como já adiantamos, foi a tese predominante até o advento da LC n.º 118, de 09 de fevereiro de 2005, que, a título de interpretação do inciso I do art. 168 do CTN, estabeleceu que a extinção do crédito tributário ocorre, no caso de tributo sujeito a lançamento por homologação, no momento do pagamento antecipado de que trata o § 1.º do seu art. 150. Por tratar-se de norma expressamente interpretativa, nos termos do art. 106 do CTN, aplica-se retroativamente95, o que, aliás, restou expressamente determinado na LC n.º 118, em eu art. 4.º Eis o teor do dispositivo mencionado: “A lei aplica-se a ato ou fato pretérito: I - em qualquer caso, quando seja expressamente interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados;”. 95 87 Portanto, operou-se uma significativa mudança no panorama consolidado, já que o termo inicial para a contagem do prazo para restituição do indébito seria efetivamente a data em que houve a antecipação do pagamento e não o momento da sua homologação (tácita ou expressa), tal como exposto no art. 3.º da LC nº 118. Daí resultou nova investida doutrinária e jurisprudencial contra a tentativa de retroação e, em alguns casos, de aplicação mesmo dessa nova norma, que acabaria reduzindo o prazo de aproveitamento dos créditos pelos contribuintes que houvessem vertido indevidamente valores ao fisco. A par dessa irresignação por parte da doutrina, ora em menor, ora em maior extensão, o STJ se manifestou da seguinte forma (REsp 741272 / PE, Min. Franciulli Netto, DJ 21.03.2006 p. 119): Saliente-se, outrossim, que é inaplicável à espécie a previsão do artigo 3º da Lei Complementar n. 118, de 9 de fevereiro de 2005, uma vez que a douta Seção de Direito Público deste Sodalício, na sessão de 27.4.2005, sedimentou o posicionamento segundo o qual o mencionado dispositivo legal se aplica apenas às ações ajuizadas posteriormente ao prazo de cento e vinte dias (vacatio legis) da publicação da referida Lei Complementar (EREsp 327.043/DF, Rel. Min. João Otávio de Noronha). Dessarte, na hipótese em exame, em que a ação foi ajuizada anteriormente ao início da vigência da LC n. 118/2005, deve ser mantido o entendimento da Corte de origem, que fixou o prazo prescricional qüinqüenal a partir da homologação tácita ou expressa do lançamento. Posteriormente a questão alcançou o STF, que registrou a recusa em dar aplicação retroativa à norma em questão, posto que se expressamente ela assim estabelecera, somente poderia ocorrer mediante a declaração da sua inconstitucionalidade, tema que exigiria a submissão ao Órgão Especial da Corte de origem (princípio da reserva do plenário, CRFB/88, art. 97), razão pela qual anulou o acórdão recorrido, determinando o retorno dos autos ao STJ (RE 544246/SE, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DO 08/06/2007), que acabou por reconhecer a dita inconstitucionalidade (REsp 955.831-SP, Rel. Min. Castro Meira, julgado em 28/8/2007, Informativo STJ n.º 329). 88 Todo o imbróglio está centrado na questão da aplicação retroativa da norma, em função do seu caráter expressamente interpretativo. Quero crer que a permissão de retroação da lei, na hipótese de ser ela expressamente interpretativa, seria decorrente da ausência de inovação normativa. Nessa lógica, se não se cria nenhum comando novo, mas apenas é esclarecido o conteúdo de outra norma, o sentido que se coloca na norma interpretativa é o sentido da norma interpretada, o qual, por óbvio, já estava posto desde o surgimento dessa última, conclusão que nos conduz necessariamente à afirmação de que os efeitos que se pretendia ver dados já deveriam ter sido produzidos desde outrora, e não no marco esclarecedor. Pois bem, esse esforço explicativo não mais se sustenta, quando pugnamos por um modelo hermenêutico diverso. Se não há um sentido imanente, estático, oculto no texto e ávido por ser descoberto, mas um sentido derivado da própria compreensão do sujeito, no plano da facticidade em que ele é-no-mundo, se é nesse processo hermenêutico que a norma é desvelada, então é impossível falarmos em reprodução de um sentido já posto. O que temos é uma nova norma. A retroatividade não seria, portanto, um caráter derivado da interpretação como esclarecimento de algo que já havia sido dado previamente, mas somente se sustentaria como uma opção política do legislador. Não resvalo a crítica ao dispositivo em comento para o campo de possível inconstitucionalidade. A sua ineficácia deriva da impossibilidade da existência da norma reprodutora de sentido. É que, ou o legislador aquiesce à norma desvelada pela comunidade jurídica, carecendo a situação de sua nova intervenção; ou, ao contrário, com ela não concorda, estabelecendo outra, de caráter inovador. 89 3.3.2 O Direito a serviço da técnica Ao discorrermos acerca da modernidade em crise, ao final do tópico, situamos Heidegger com sua contundente crítica à sociedade técnica. Ali destacamos que se é correto que a técnica está ligada à ideia de instrumento que se presta a um fim, neste correto não se encontra o verdadeiro. Para atingi-lo seria necessário indagar mais profundamente acerca dos elementos que compõem o correto, o que nos conduziu à noção de causalidade, já que intimamente ligada à ideia de fim. De fato, se busco uma finalidade, opero de certa forma por causa dela. Inspirados na noção aristotélica de causa, percorremos as quatro espécies elencadas pelo filósofo, as quais respondem pelo que o produzido é. Partindo do exemplo do cálice sacrificial, evidenciamos uma matéria que, associada a um determinado perfil (forma), presta-se a um fim, aqui entendido não como um término, mas exatamente o contrário, um começo a ser o que efetivamente o objeto é, ou seja, algo vocacionado ao culto litúrgico. Dando destaque à causa eficiente, discorremos que ali, contrariamente à interpretação ordinária que dela se faz, como sinônimo de eficácia, a operação conduzida pelo artífice que elaborou o utensílio, muito mais determinante que isso, presta-se à reunião das demais causas em uma unidade que antecipa exatamente aquele conjunto, permitindo-o mostrar-se em sua vigência. A isso, os gregos denominavam ποίῃσις (“póiesis”). Essa produção (poética) está intimamente vinculada à noção grega de verdade, como desvelamento, como ἀλήθεια (“alétheia”), já que conduz o coberto ao desencobrimento. Assim, concluímos que a essência da técnica está ligada à verdade. Na sociedade moderna, entretanto, essa produção se dá na forma da disposição. Produzir, armazenar, conduzir, dispor, utilizar, reutilizar, são suas modalidades características. Tomemos o exemplo do rio que está à disposição das turbinas, que se dispõem, por sua vez, à produção de energia, que é armazenada e 90 conduzida à indústria, dispondo-se a produção de outros bens, que ficarão à disposição das empresas comerciais, que os disponibilizarão ao consumo etc. Nessa trama infindável é o próprio homem que se perde, posto que, se é verdade que é ele o agente da produção, não menos o será a afirmação de que essa produção já vem antecipada pelo caráter dispositivo da técnica. Assim, confundido pela ideia de que tudo à sua volta foi ele quem produziu, o homem acaba desencontrando-se de si mesmo. Em razão desse narcisimo projetivo, o ilusório domínio humano nos afasta da reflexão da técnica como um problema. Contudo, se de um lado ela perdeu a sua estranheza originária; por outro permanece a estranheza, apesar de toda apropriação96. E o que tem isso a ver com o Direito? Parece-nos que também ele acaba sendo algo também produzido na forma da disposição. Não nos deteremos na busca pela essência do Direito, pretensão demasiada grande para os modestos objetivos deste estudo. De qualquer forma, não nos esqueçamos de que possuímos uma compreensão prévia dele, o que já nos parece suficiente para empreendermos uma crítica ao modo como vem sendo ele produzido. Se é correto que o Direito não se resume no conjunto de regras postas formalmente pelo Estado, não menos o é o fato de que tal operação revela um viés importante e inegável da sua composição. Tal como na poesia a palavra está associada ao poético da produção, no Direito as normas devem o que são ao mesmo caminho da produção. São as causas que, reunidas em uma unidade, respondem por sua vigência. Retornando com uma pergunta: não estaria também o Direito contaminado pela técnica? Para nós a resposta é afirmativa. Acreditarmos que um exemplo será suficiente para comprovar o que dizemos, muito embora muitos outros possam ser capturados na práxis jurídica. 96 Cf. MORÃO, 1999, p. 23. 91 3.3.2.1 Quinto caso referencial: o custeio da Previdência Social Trata-se de uma questão conectada á área do Direito Tributário e, por isso mesmo, muito específico. Vincula-se ao financiamento da seguridade social. É ela um conjunto de ações nas áreas de saúde, previdência e assistência social, custeadas pelo poder público e por toda a sociedade, neste último caso, preponderantemente por meio de contribuições sociais. O art. 195 da CRFB/88, originariamente previa, dentre outras fontes, uma contribuição devida pelas empresas, incidente sobre a sua folha de salários. Em 1991 foi promulgada a Lei n.º 8.212 (Lei Orgânica da seguridade Social), a qual, dispondo sobre o seu custeio, determinou que a referida contribuição fosse calculada mediante a aplicação de uma alíquota de 20% (vinte por cento), incidente sobre o total dos salários pagos aos seus empregados, bem como sobre as remunerações pagas a autônomos que lhes prestassem serviços, e ainda sobre o pro labore pago aos seus administradores. Irresignados, os contribuintes (através da legitimada Confederação Nacional de Indústrias - CNI), ingressaram com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade97 (ADI), a qual foi acolhida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que reconheceu a inconstitucionalidade da regra em comento, sob o argumento de que o termo “salário”, tal como usado na CRFB/88 ao prever a referida contribuição, tem uma conotação técnica, consagrada no art. 3.º da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), a qual contempla apenas os valores pagos ao empregados, como contraprestação dos serviços realizados; jamais a outras espécies de trabalhadores, dentre eles aqueles administradores). 97 ADI n.º 1.102-2. previstos no diploma impugnado (autônomos e 92 Em consequência dessa decisão, todos os valores pagos assumiram a adjetivação de indevidos, o que implicou a sua necessária devolução aos contribuintes, devidamente corrigidos. A proliferação dessas ações de restituição de indébito levou o governo a encaminhar um projeto de lei alterando a Lei 8.212/91, o qual acabou aprovado no Congresso Nacional. Essa alteração introduziu os §§ 1.º e 3º ao art. 89 daquele diploma legal, os quais reduziam ou até mesmo impediam o exercício do direito assegurado pelo STF. De fato, o primeiro deles estabelecia que somente seria devida a restituição dos mencionados valores, na hipótese de o contribuinte comprovar que não efetuou o repasse desse custo ao produto ou serviço prestado. Como essencialmente todas as despesas e custos são incorporados ao preço final, a norma acabava por inviabilizar a restituição pretendida. Ainda que superado o óbice interposto, reconhecido o direito à devolução, somente poderia ela ser efetuada de forma parcelada, de modo a não superar o montante correspondente a trinta por cento do valor a recolher pelo contribuinte em cada competência considerada, permanecendo um saldo para os meses subsequentes. O que nos parece então? Que o Direito está à disposição do poder político, voltado a um modo de produção normativa que se presta a ser armazenada em conteúdos que posam ser manejados oportunamente. Eis a essência da técnica moderna! Como dissemos, inúmeros outros exemplos poderiam ser apresentados, tais como a proliferação desmedida de medidas provisórias (MP) editadas pelo chefe do Poder Executivo, a efervescência de leis que procuraram restringir a autonomia funcional do Judiciário, limitando ou mesmo impedindo os juízes de proferir medidas liminares contra o Poder Público98 etc. Eis um exemplo: “Não será concedida medida liminar que tenha por objeto a compensação de créditos tributários, a entrega de mercadorias e bens provenientes do exterior, a reclassificação ou equiparação de servidores públicos e a concessão de aumento ou a extensão de vantagens ou pagamento de qualquer natureza.” (Lei n.º 12.016/2009, art. 7.º, §2.º). 98 93 Aqui a causa efficiens reúne em uma unidade, matéria, forma e fim da norma, no modo de produção da disponibilidade. Ora, ao nos remetermos àquela précompreensão do Direito a que aludimos no início, certamente não o vemos com esse perfil, onde a legislação fosse produzida no sentido de desvelar o próprio Direito, vocacionado ao ideal de vida boa a que aspiramos. 3.3.2.2 A técnica como encobrimento da verdade do (e no) Direito Iluminemos o percurso até agora percorrido. Em primeiro lugar procuramos estabelecer o sentido da modernidade sob o viés de um rompimento com a tradição, marcado pelo papel central que assume o homem, através de um processo de secularização, em que ele se desprenderia das amarras do fundamento metafísico de ordem religiosa e ali posicionaria, em substituição, a racionalidade99. É ela o novo Deus dos modernos, que se anuncia como promissor canal de desenvolvimento tal como já prenunciam os avanços tecnológicos e da ciência. A fé que nela deposita o homem moderno é corolário da necessidade de uma âncora a um porto seguro que lhe dê um sentido à sua vida, que busque agregar aqueles estilhaços de um mundo fragmentado pela perda do amálgama religioso. De fato, esse antropocentrismo moderno100 vem acompanhado de um sentimento de liberdade, em decorrência do rompimento com os grilhões de um sentido que lhe era pré-dado, mas que deve ser agora autoconstituído em meio a uma angustiante e nova realidade. “Na unidade de técnica e ciência, o homem sujeitou a Terra, fez dela enquanto todo a sua casa, como pressagiaram os utópicos da Renascença. Tem nela o seu lar, como o apropriado, o roubado à estranheza - eis a consequência que o homem renascentista tirou da revolução da astronomia: a Terra tornou-se um corpo celeste com todos os outros, o divino não estava mais perto das estrelas do que da esfera celeste” (MOURÃO, 1999, p. 22). 100 Artur Morão nos fala de uma imagem teomórfica do homem erigida pela Ilustração e que, a despeito da experiência-limite de crueldade e bestialidade que a história registrou, ainda persiste como uma verdadeira superstição (1999, p. 16). 99 94 Em um segundo momento, buscamos evidenciar que a promessa de avanço não se confirmou, e tal se verifica não obviamente nos maquinários técnicos que a ciência nos proveu, mas, sobretudo, porque nesse afã de todo conhecimento e produção dar-se no sentido da técnica, perdeu o homem a sua própria humanidade. Há aí um obscurecimento dos sentidos do mundo, que são encampados pela racionalidade instrumental a serviço da técnica. Como afirma Manfredo de Oliveira (2001, p. 74), Quando dizemos que a forma da consciência contemporânea é o tecnologismo, não queremos simplesmente dizer com isto que o mundo humano hoje tem, como um de seus constituintes fundamentais, instrumentos frutos da técnica, ou seja, automóveis e aviões, rádios e televisões ... queremos dizer que toda a consciência humana é hoje uma consciência tecnológica, todo o eu relacionamento com a realidade é impregnado de perspectivas tecnológicas. Como afirma Artur Morão, “A técnica deixou de ser a fonte e o conjunto de artefactos para se tornar o nosso habitat, a nossa envoltura e complemento indispensável” (1999, p. 2), daí porque, o importante não reside na dispensa da matemática101 e da técnica, mas que se siga questionando e evidenciando o seu sentido, exatamente para que não se perca essa ligação com o mundo da vida, pois, “a tecnificação, indispensável, cai na alienação, se perde o significado de si mesma e da ciência para o homem” (PACI, 1968, p. 24). Portanto, o problema está na falta de significado para o científico, que ao limitar-se a ser uma ciência objetiva, “factual”, leva consigo o homem, transformando-o em uma coisa, fazendo-o perder a sua humanidade. Em suma, pela técnica é o homem objetivado no fático, é ele fetichizado. A referência à matemática não é desprovida de sentido, pois ela se conecta diretamente à técnica. De fato, “Verdadeiro conhecimento para uma consciência tecnológica é pura imanência, é a segurança absoluta que o saber atinge” (OLIVEIRA, 2001, p. 79), o que nos faz ligar a verdade como certeza, contexto em que surgem as matemáticas como referencial idealizante do mundo, que a ela deve ficar submetida, tal como na máxima atribuída a Galileu, no sentido de que Deus teria escrito o mundo em caracteres matemáticos. 101 95 Na representificação deste problema, evidenciamos o que até então caiu no esquecimento: o próprio mundo da vida. De fato, esquecendo-se da Lebenswelt, a ciência, de índole matemático-objetificadora, reconheceu formas ideais que a assujeitariam. Perdeu-se aí a verdadeira origem dessas idealizações, colocando sob suas leis o mundo como objeto. Assim, todo evento mundano a essas formas deveriam sujeitar-se e, portanto, teríamos aí uma causalidade universal, de matiz matemático, que nos permitiria estabelecer previsões. Para tanto, teríamos que estar dotados ainda de um processo de mensuração refinado, que mediaria o mundo objetivo e as formas. O grande problema, como já sinalizado, está no esquecimento do mundo da vida, verdadeira origem e fundamento daquelas formas idealizadas. Deste esquecimento resulta a perda de sentido para a própria vida, restando o próprio homem objetificado. A análise de Heidegger acerca da essência da técnica permitiu penetrar mais fundo no contexto dessa consciência tecnológica, evidenciando que toda perspectiva do conhecer e do agir estariam informadas por um τέλος dominante que ele denominou de Gestell, ou seja, uma produção no modo de ser da disponibilidade. Exatamente por isso é que o campo compreensivo se vê também diretamente afetado por esse vício originário. De fato, se a ποίῃσις, como vimos, está conectada à verdade (exatamente na possibilidade de abertura que conduz o intérprete em uma teia de remissões e de vivências), então ela é obscurecida pela disponibilidade, quando não completamente lançada à escuridão, impedindo a manifestação do fenômeno (jurídico), tal como ele se mostra • φαίνεσται). Esse impensado da técnica (jurídica) que compromete a sua relação com a verdade afeta diretamente o Direito, que assim se apresenta como mera objetividade, simples coisa, julgada por sua funcionalidade no alcance dos objetivos dispostos previamente no domínio da disponibilidade. O jurista também já não se liberta desse 96 contexto, passando a mero operador de um mecanismo que é bom ou ruim quando funciona ou não. E como operador, importa-lhe familiarizar-se com os métodos de operação e os modos de tratar os eventos do mundo, com suas configurações já determinantemente definidas, deixando de lado qualquer crítica ou busca pela essência do que opera102. Essa ingenuidade da evidência apriorística nos conduz a absurdos como os exemplificados mais acima, em que miserável não é quem como tal se apresenta, mas aquele que é submetido ao conceito matemático legalmente dado. Da mesma forma, causa de menor complexidade não é aquela cuja simplicidade é manifesta, mas a que tem um conteúdo econômico de até sessenta salários mínimos, para não mencionar outras teratologias que fazem do Direito um mundo idealizado pela técnica, contraposto ao próprio mundo da vida, que a ele deve submeter-se. No centro deste processo está a objetificação do mundo para uma consciência dominadora103, que somente vê a realidade enquanto realidade objetiva, para autoafirmar-se como sujeito. Como anota Manfredo de Oliveira (2001, p. 78), Para consciência só é aquilo que se deixa objetivar pelo homem, só é realmente aquilo que é dominável pelo homem. O sentido da realidade manifesta-se aqui como objetividade, capacidade de ser posto diante do homem, de ser usado pelo homem em sua auto-realização. Por isso mesmo é que “sujeito-objeto é a polaridade característica de uma consciência tecnológica” (OLIVEIRA, 2001, p. 78). Mas afinal em que consiste essa Essa postura se reflete diuturnamente na formação do Bacharel em Direito. Circulamos pelas faculdades e raramente vemos os alunos portando outro livro que não o vade mecum legislativo. E aqueles mais estudiosos ostentam seus manuais de Direito Tributário, Penal etc. É o quadro de um ensino reprodutivo de conceitos e formas ideais que preside, com raras exceções, a formação do “jurista”. 103 Artur Morão, inspirado nas lições de Aldo Gargani, estabelece o vínculo entre técnica e autorreferência representativa que, na tradição humanista, “educou o Ocidente a olhar para a Natureza só como objecto externo de apropriação, ao mesmo tempo como construto cultural e objecto artificial” (MORÃO, 1999, p. 17). 102 97 relação? Que papel ela assume no contexto da verdade? Quais os seus reflexos para o Direito? São as questões que buscamos responder no próximo item. 98 4 A RELAÇÃO SUJEITO-OBJETO Mais acima, quando discorremos acerca do reflexo da crise das ciências no Direito, ressaltamos que no centro desse processo de crise está a própria relação sujeito-objeto, “uma relação que interioriza o sujeito à custa da exteriorização do objeto, tornando-os estanques e incomunicáveis” (SANTOS, 2006, p. 54). Tradicionalmente vislumbramos uma distinção de base entre aquilo que pretendemos tomar pelo conhecimento e o próprio sujeito que dele se apropria. De fato, somos tentados a traçar uma imediata diferença entre o ente conhecedor e aquilo a que ele, voltando-se, conhece. Entretanto, o problema maior é que essa tentadora relação entre alguém e algo que subjaz diante dele (ob-jectum) é vista tradicionalmente em um contexto de cisão onde ambos estão separados de forma estanque. E quanto mais separados entre si, maior a objetividade do conhecimento e menor a subjetividade deformadora. As expressões aqui empregadas não são casuais, posto que revelam, na intenção objetificante, a própria noção de neutralidade que deveria permear as ciências. Embora encontrado em matizes diversos, o realismo poderia ser posto como essa corrente filosófica que atribui primazia ao objeto do conhecimento, em detrimento de impressões estampadas nele pelo próprio sujeito cognoscente104. Partindo de premissa diversa, pode-se ver o conhecimento de algo como rigorosamente dependente de categorias prévias inerentes ao próprio sujeito, as quais imprimiriam certo “conteúdo” às impressões materiais que nos dão os nossos sentidos daqueles objetos que se nos apresentam como candidatos ao conhecimento. Dessa forma, jamais seríamos capazes de atingir aquelas coisas em si mesmas, mas “Realismo es el nombre de la actitud que se atiene a los hechos ‘tal como son’ sin pretender sobreponerles interpretaciones que los falsean o sin aspirar a violentarlos por medio de los propios deseos” (MORA, 1965, p. 538). 104 99 apenas as suas representações. Uma posição que, também múltipla em suas nuances, pode ser agrupada sob o título de idealista. O que sobressai, tanto em uma como na outra, é a crença na existência de uma coisa em si, contraposta àquele que a conhece. Um objeto que, sendo posto diante de um sujeito, torna essa relação em que se estabelece o conhecimento totalmente destacada em seus componentes operacionais. Dela exsurgem dois polos perfeitamente cindidos: o sujeito e o objeto. Toda essa digressão nos preparou para o enfrentamento da ideia de objetividade. De fato, se como vimos, para os modernos, conhecimento é apenas o científico, matizado pela ideia de certeza e objetividade (ranço do qual ainda não escapamos por completo) então, nessa estrutura, evidenciamos a própria noção de verdade como vinculada ao binômio sujeito-objeto. Recaímos na percepção de índole metafísica, para a qual haveria uma verdade idealizada e absoluta, passível de ser encontrada pelo homem, por meio de uma atitude racional. Nesse entroncamento, a tentação realista está muito presente, eis que nos dá um mundo independente, que pode ser captado pelo sujeito cognoscente. De outro lado, a visão idealista privilegia a autonomia do sujeito, a quem caberia constituir o seu mundo, e os objetos que o integram seriam então conhecidos naquele espaço interior que lhe é próprio. Qualquer que seja a vertente adotada, mantemos um cisalhamento entre o objeto e o sujeito, entre mundo e consciência. Daí ser o homem impelido à necessária busca da comprovação da própria exterioridade. De fato, se sou independente desse mundo exterior, a objetividade reclama a demonstração e comprovação dessa presença que se mantém alheia e a que devo transcender. Dentre as inúmeras tentativas de fazê-lo, ressoam as teorias que veem a exterioridade basicamente como resistência. Dilthey a trabalhou, entendendo que somente partindo dos atos da consciência até alcançar a realidade exterior podemos nos assegurar de uma verdade dotada de validez universal. Assim, partimos sempre de uma vontade, um impulso que habilita a resistência a ele. É nesse momento que a 100 ideia de exterioridade fica evidente, posto que nos conduz à experiência de algo que nos é externo (MORA, 1965, p. 568, tradução nossa105): A distinção entre um eu e um objeto, entre um interior e um exterior, surge da própria vida e de seus impulsos, sentimentos e volições. Sendo o homem acima de tudo um sistema de impulsos, chega imediatamente a uma experiência da resistência, da qual surge uma diferenciação, em princípio imperfeita e insuficiente, entre a vida própria e o outro. Para Heidegger, essa tentativa de prova da realidade como experimentação do estado de resistência desconsidera que tanto o impulso como a própria resistência seriam estados mentais do próprio sujeito, apresentam-se como consciência, o que levaria à falência da tese. Daí concluir que essa tarefa comprobatória será sempre estéril e sem sentido, exatamente porque a verdade tem a sua essência no próprio Dasein, razão pela qual, qualquer enfrentamento deve partir da analítica da estrutura desse ente privilegiado. Afirma então que “o ‘escândalo da filosofia’ não consiste em que esta demonstração ainda não tenha sido feita até agora, mas, precisamente, que tais demonstrações continuam sendo esperadas e intentadas” (1997, p. 204, tradução nossa)106. De qualquer forma, a ideia de resistência ainda padeceria de outro vício. É que, como tal, a “resistência comparece quando não se logra passar através de algo que se apresenta como obstáculo a uma vontade de passar-a-través. Agora bem, com esta última já se descobriu aquilo através do que o impulso e a vontade tendiam” “La distinción entre un yo y un objeto, entre un interior y un exterior, surge de la propia vida y de sus impulsos, sentimientos y voliciones. Siendo el hombre ante todo un sistema de impulsos, llega pronto a una experiencia de la resistencia, de la cual surge una diferenciación, al principio imperfecta e insuficiente, entre la vida propia y lo otro.” 106 “El ‘escándalo de la filosofía’ no consiste en que esta demostración aún no haya sido hecha hasta ahora, sino, más bien, en que tales demostraciones sigan siendo esperadas e intentadas”. Em alemão: “Der »Skandal der Philosophie« besteht nicht darin, daß dieser Beweis bislang noch aussteht, sondern darin, daß solche Beweise immer wieder erwartet und versucht werden” (HEIDEGGER, 1967, p. 205). 105 101 (1997, p. 209, tradução nossa107). Assim, é com base na abertura originária do mundo que se torna possível perceber a intenção e a resistência. Contudo, antes de abordarmos essa abertura originária do Dasein, a qual nos permitirá uma revisão radical da própria subjetividade e do mundo, bem como, a partir daí, da própria relação sujeito-objeto, impõe-se ainda visitar um outro aspecto da verdade que nos legou a tradição, a verdade como verdade proposicional. 4.1 A proposição como sede da verdade Tradicionalmente a verdade é tomada como a verdade de uma proposição. De fato, se dizemos “tartarugas voam”, a proposição é falsa; ao contrário, se afirmamos que “sapos são anfíbios”, já aí seria correto asseverar que a proposição é verdadeira. Assim, a verdade parece ser um atributo do próprio juízo. Tal a ideia de verdade proposicional. Melhor analisando o juízo, evidenciamos que o seu enunciado se estrutura em uma relação através da qual um predicado é atribuído a um sujeito, uma relação de predicação. Ela pode ser simbolizada pela expressão SP, ou seja, a um determinado sujeito da frase (“S”) é atribuído um predicado (“P”). A ideia de verdade estaria justamente nesta ligação entre S e P, ou seja, no próprio juízo. Em que pese a obviedade que daí decorre, estruturalmente há uma ambiguidade manifesta. É que toda a predicação (a expressão como um todo) deve reportar-se a um objeto, o qual passa a ser objeto daquele enunciado completo. De “La resistencia comparece cuando no se logra pasar a través de algo que se presenta como obstáculo a una voluntad de pasar-a-través. Ahora bien, con esta última ya ha sido abierto aquello hacia lo que el impulso y la voluntad tienden”. Em alemão: “Widerstand begegnet in einem Nicht-durch-kommen, als Behinderung eines Durchkommen-wollens. Mit diesem aber ist schon etwas erschlossen, worauf Trieb und Wille aus sind“ (HEIDEGGER, 1967, p. 210). 107 102 fato, se afirmo “o livro é grosso”, aí evidenciamos primeiro a estrutura do próprio enunciado, no sentido da predicação de uma qualidade (grosso) ao sujeito da frase (o livro). Entretanto, a verdade da enunciação há que ser aferida mais além do enunciado, eis que ele encontrará seu suporte no próprio referenciado, o livro como objeto. A essa segunda relação Heidegger distinguiu sob a denominação de relação veritativa. A ambiguidade assim se apresentaria: “Não se sabe onde a verdade está situada agora, na relação predicativa ou na relação do predicado com aquilo sobre o que se faz um enunciado” (HEIDEGGER, 2008a, p. 57). Referindo-se ao enunciado “o ouro é verdadeiro”, Heidegger põe esta ambiguidade em outros termos. Na expressão teríamos a verdade diante de uma concordância do ouro com aquilo que prévia e constantemente entendemos como tal, ou seja, aí teríamos um estar de acordo na própria coisa (ela está de acordo com ...). Por sua vez, quando falamos de uma determinada enunciação sobre um ente, ela é dita verdadeira quando “aquilo que ela designa e exprime está conforme à coisa sobre a qual se pronuncia” (1996e, p. 155)108. Aqui a concordância já não está na coisa, já não é ela que se põe de acordo, mas a proposição que dela é feita, é a proposição que está de acordo com a coisa. Eis a ambiguidade: o verdadeiro como coisa verdadeira ou como proposição verdadeira (em qualquer caso, pondo-se de acordo, ou seja, verdade como concordância). Nas palavras de Heidegger (1996e, p. 155)109: Ser verdadeiro e verdade significam aqui: estar de acordo, e isto de duas maneiras: de um lado, a concordância entre uma coisa e o que dela previamente se presume, e, de outro lado, a conformidade entre o que é significado pela enunciação e a coisa. Na Idade Média, São Tomás de Aquino articula esse problema com o viés teológico. A summa verdade é Deus, que concebe e cria os entes em sua totalidade. “Eine Aussage ist wahr, wenn das, was sie meint unt sagt, übereinstimmt mit der Sache, worüber sie aussagt.” (HEIDEGGER, 2004, p. 179). 109 “Wahrsein und Wahrheit bedeuten hier Stimmen, und zwar in der gedoppelten Weise: einmal die Einstimmigkeit einer Sache mit dem über sie Vorgemeinten und zum andern die Übereinstimmung des in der Aussage Gemeinten mit der Sache.” (HEIDEGGER, 2004, p. 179-180). 108 103 Por isso mesmo a verdade também está neles, na medida em que são conformes às representações divinas, ou seja, veritas est adaequatio rei ad intellectum.110 Mas São Tomás também menciona um outro plano de adequação, agora entre o intelecto humano e a coisa: adaequatio intellectus ad rem. Acerca dela valem as lições de Bertrand Rioux (1963, p. 11, tradução nossa)111: A inteligência humana não é exceção a esta lei universal da criação dos seres, de sorte que enquanto conhece, ela se põe de acordo com as coisas e, nelas, com a ideia divina como um seu exemplar supremo. A veritas como adaequatio rei (creandae) ad intellectum (divinum) garantiria a verdade como adaequatio intellectus (humani) ad rem (creatam). Ao discorrer sobre o modelo tomista, Heidegger afirma (1996e, p. 156)112: A possibilidade da verdade do conhecimento humano se funda, se todo ente é “criado”, sobre o fato de a coisa e a proposição serem igualmente conformes com a ideia e serem, por isso, coordenados um ao outro a partir da unidade do plano da criação. Essa complexa relação de adequação, São Tomás simplesmente a expressou sob a fórmula adaequatio rei et intellectus.113 O intelecto aqui é o divino, tal como se depreende da questão 16 da Suma Teológica, onde assim preleciona S. Tomás (2009, p. 359): 110 Assim também as coisas naturais são verdadeiras, na medida em que se assemelham às representações que estão na mente divina: uma pedra é verdadeira quando tem a natureza de pedra, preconcebida como tal pelo intelecto divino. – Assim, a verdade está principalmente no intelecto, secundariamente nas coisas, na medida em que se referem ao intelecto, como a seu princípio. “L’intelligence humaine ne fait pas exception à cette loi universelle de la création des êtres, de sorte que lorsqu’elle connaît, elle s’accorde aux choses et, en elles, à l’idée divine comme à son exemplaire suprême. La veritas comme adqequatio rei (creandae) ad intellectum (divinum) garantit la veritas comme adaequatio intellectus (humani) ad rem (creatam).” 112 “Die Möglichkeit der Wahrheit menschlicher Erkenntnis gründet, wenn alles Seiende ein geschöpfliches ist, darin, daβ Sache und Satz in gleicher Weise ideegerecht und deshalb aus der Einheit des göttlichen Schöpfungsplanes aufeinander zugerichtet sind.” (HEIDEGGER, 2004, p. 180-181). 113 Na tradução que utilizamos, a expressão em questão é tomada como “a verdade é a adequação da coisa e do intelecto” (2001, p. 360), exatamente para justificar a assertiva de que “ela pode se referir tanto a um como a outro aspecto da verdade” (2001, p. 360). 111 104 Evidentemente não pretendemos aqui assumir qualquer fundamento teológico para a verdade, de forma que as referências a São Tomás de Aquino valeram apenas para evidenciar a complexidade do tema, as origens de uma justificação da verdade no plano da adequação e, sobretudo, a ambiguidade que ela transporta. Assim, para prosseguirmos na reflexão, partindo da antiga definição escolástica para veritas, iremos assumi-la como adaequatio intellectus ad rem114, ou seja, a sede da verdade estaria na relação veritativa, ou ainda, “a verdade não reside, assim, na relação do predicado com o sujeito, mas em toda a relação predicativa com aquilo sobre o que é feito um enunciado, com o objeto do enunciado” (HEIDEGGER, 2008a, p. 58). Pode-se dizer que, a par dessa constatação, existiria um enunciado cuja verdade seria independente desse conteúdo objetivo ou material, decorrente da relação veritativa. A própria sintática da enunciação obedeceria a regras formais que Embora mais difundida a expressão veritas est adaequatio intellectus et rei, aqui seguiremos com adaequatio intellectus ad rem, para referir-se à adequação do intelecto humano à coisa (relação veritativa), tal como Heidegger o faz em 1996e, p. 156: “Ordinariamente a mencionada definição é apenas apresentada pela fórmula: Veritas est adaequatio intellectus ad rem. Contudo, a verdade assim entendida, a verdade da proposição, somente é possível quando fundada na verdade da coisa [...]”(grifamos). De fato, não encontramos na Suma Teológica uma distinção vocabular que determinasse a opção por uma ou outra expressão. Mais ainda, a gramática latina nos remete à nossa opção como sendo a mais apropriada, senão vejamos. Temos três enunciados latinos: a) Veritas est adaequatio rei et intellectus; b) Veritas est adqequatio intellectus ad rem; c) Veritas est adaequatio rei ad intellectum. Quanto à palavra feminina adaequatio (ionis), nenhum problema, pois está ela no nominativo e deve ser traduzida por “a adequação”. Res (rei) é palavra feminina integrante da 5.ª declinação, daí termos que na primeira frase (“a”) e na terceira (“c”), sua terminação (ei) nos remete ao genitivo, devendo ser traduzida por “da coisa”, ou seja, “a adequação da coisa”. Por sua vez, rem é o acusativo de res, pelo que, na segunda frase, precedida da preposição ad (em direção a, à), nos dá “A verdade é a adequação do juízo à coisa”. Evidentemente como juízo humano. Na terceira frase ficamos com a seguinte tradução: “verdade é a adequação da coisa ao juízo”, divino, por óbvio. Notem que aqui temos intellectum, com terminação de acusativo da 4.ª declinação, precedido da mesma preposição anterior ad. Bem diferente do intellectus que encontramos nas frases que a precedem, ali com terminação de genitivo da mesma declinação. Por tudo isso é que a expressão adequatio intellectus et rei deve ser empregada somente no contexto teológico englobante, tal como explicitado no texto principal, e não é esse o caso. 114 105 lhe dariam uma correção, ou seja, para alguns, uma verdade meramente formal. Com isso, o que pretendemos mostrar é um contexto em que a verdade ainda permanece sob a necessidade de ser encarada por um viés dúplice e, portanto, dúbio. A mera captação da duplicidade de relações não nos faz alcançar a essência do verdadeiro. Não bastasse isso, visualizamos um outro problema mais sensível: se a verdade reside na relação entre todo o enunciado e aquilo sobre o que ele enuncia, que coisa é essa ou como chego a determiná-la para que possa prestar-se como parâmetro de adequação? Não seria no próprio enunciado que ela apareceria? Eu poderia alcançá-la fora da linguagem? Por ora, deixemos em suspenso as questões acima levantadas e avancemos na própria estrutura da enunciação. Todo enunciado é um enunciado de um sujeito que, pensando, recolhe em uma unidade de significação a proposição •λόγος• sobre uma coisa. Notamos então um longo percurso entre os pontos extremos, ocupados pelo sujeito e pelo objeto. O problema surge quando, dessa analítica da enunciação, pretendemos buscar a essência da verdade partindo-se dos polos “analisados”, ou mesmo da analítica da própria proposição. Embora pareça muito evidente que ao tomarmos os polos da relação do conhecimento estaríamos também aí abarcando a totalidade de relações por ele intermediadas, essa postura nos conduz ao equívoco de não darmos conta de que já em Platão intuímos que não percebemos os fonemas isoladamente para, a partir da sua composição em palavras, e daí em frases, alcançarmos um entendimento sobre o que é enunciado. Ao contrário, é no todo significativo, que nos arrebata de um só golpe, que podemos esmiuçar aquela estrutura. E é justamente nessa estrutura total que devemos buscar a essência da verdade, jamais na cisão que se pretende imprimir nos polos da relação sujeitoobjeto. Heidegger é enfático nisso (2008a, p. 63): Nunca partimos faticamente do som da palavra; uma proposição proferida é sempre mais. Somente porque a unidade da proposição já tinha sido compreendida, foi possível mesmo para Platão se impor a pergunta que questiona de onde afinal a 106 seqüência de palavras tira essa unidade [...] Essa proposição significa algo e, em sua significatividade, está relacionada a um objeto, e, em seu ser-proferida e sercompreendida, ela pertence a um sujeito; tudo isso está em correlação e se acha à base dos fonemas de uma proposição. É exatamente aí que reside o problema da relação sujeito-objeto, tomada como base da teoria da verdade. A compreensão fracionada inverte a posição estrutural do argumento, já que não é a verdade que repousa sobre a referida relação, mas essa que se sustenta naquela. Assim, se bem entendemos aquela estrutura complexa na qual o enunciado se insere, transparece a impossibilidade de sustentar a verdade na proposição. De fato, “ficou claro que a proposição só tem sentido e apoio em um todo que a tudo penetra e envolve. Essa totalidade precisa ser determinada de antemão” (HEIDEGGER, 2008a, p. 66). Essa inversão da posição do enunciado em relação à verdade é essencial, na medida em que, ao enunciarmos algo acerca do objeto, não é aí que ele é revelado; ao contrário, é preciso que originariamente ele já esteja desvelado para que possamos fazer sobre ele uma predicação adequada. Portanto, como sujeito enunciador, tenho que, de antemão, já estar junto ao ente para que sobre ele possa enunciar algo. Logo, repetimos, não é pelo enunciado que acesso o ente, não é nele que reside a verdade, mas, ao revés, para enunciar algo já tenho que estar na verdade. Trabalhando com o enunciado “o giz é branco” Heidegger dirá (2008a, p. 69): Não chegamos primeiramente ao giz por meio do caminho do enunciado e do contexto relacional ao qual esse enunciado está supostamente atrelado, mas, inversamente, somente na medida em que já estamos junto ao giz, na medida em que já nos mantemos junto a ele, ele pode ser um objeto possível do enunciado. Só podemos transformar em um "sobre-o-quê" possível de enunciação aquilo junto ao que já nos encontramos. O enunciado não é absolutamente o modo de acesso a esse giz. Somente porque antes do enunciado já estamos junto ao giz e não o alcançamos primeiramente por meio do enunciado como tal, somente por isso o enunciado, enquanto enunciado predicativo, pode se adequar à qüididade e ao modo de ser daquilo sobre o que esse enunciado deve versar. 107 Esse ser junto a algo é um modo de ser do ente que nós mesmos somos e ao qual Heidegger denomina Dasein. Portanto, se aquela unidade de que o enunciado toma parte é onde devemos buscar a essência da verdade, e se tal unidade, vimos, encontra-se em um originário estar junto ao ente sobre o qual enunciamos algo, então, com certo direito podemos também afirmar que a essência da verdade há que ser buscada no próprio modo de ser do Dasein. Esse seu estar- junto-a, por sua vez, reclama uma integração com o estar-com os outros e, ambos, inseridos no modo de ser-no-mundo do próprio Dasein. São afirmações por ora não justificadas, mas que serão esclarecidas mais adiante. 4.2 Uma introdução parcial à analítica existencial do Dasein Em sua obra “Ser e Tempo”, Heidegger lança a questão fundamental que serviria de propósito ao seu tratado, qual seja, a elaboração concreta da pergunta acerca do sentido do ser (HEIDEGGER, 1997, p. 12). A sua preocupação com o tema seria justificada pelo seu próprio esquecimento desde Platão até Hegel, sob o argumento de tratar-se de uma questão trivial, posto que seria o ser o conceito mais universal, indefinível e evidente por si mesmo. Em que pese o desprezo por seu enfrentamento, destaca o filósofo que está longe de tratar-se de uma trivialidade, posto que a sua universalidade não o torna mais claro, ao contrário, continua ele sendo o mais obscuro. Por sua vez, a sua indefinibilidade somente teria sentido diante do tratamento do ser como um ente, o que deve ser rechaçado veementemente e assim, “a indefinibilidade do ser não dispensa a pergunta por seu sentido, mas, ao contrário, precisamente convida a ela” 108 (HEIDEGGER, 1997, p. 15)115. Finalmente a compreensão mediana do ser não afasta o fato de estar a questão acerca do seu sentido sempre envolta na obscuridade, pelo que é reforçada a sua necessidade. “A bem da verdade, não sabemos nada, ou melhor, o que esta compreensão ordinária do ’ser’ mostra é que ela é, precisamente, ordinária, mediana e vaga” (DUBOIS, 2004, p. 15). Destacada a importância do questionamento sobre o ser, Heidegger marca a relevância do modo de estruturar a questão, asseverando que nela podemos evidenciar três elementos estruturais: algo que está em questão (das Gefragte), algo que é perguntado (das Erfragte) e alguém a quem eu pergunto (das Befragte). Nesse modo estrutural de qualquer perguntar, a pergunta pelo sentido do ser põe em destaque um ente especial, qual seja o homem, posto que leva consigo a primazia ôntica de ser ontológico. Melhor explicando: é ele quem, dentre tantos entes, destacase pela possibilidade de compreender o ser e, ademais, por já levar consigo uma précompreensão acerca dele116. De notar-se, entretanto, que não se trata de uma possibilidade apenas de compreensão do seu próprio ser, mas do sentido do ser em geral. Isso justifica a empreitada de uma análise estrutural desse ente particular, a quem Heidegger denominou Dasein, pois é ele o “respondedor necessário da questão do ser” (DUBOIS, 2004, p. 17). Pois bem, a co-implicação da analítica do Dasein para a compreensão do ser dos entes é esclarecida no seguinte excerto (HEIDEGGER, 1997, p. 23)117: “Die Undefinierbarkeit des Seins dispensiert nicht von der Frage nach seinem Sinn, sondern fordert dazu gerade auf.” (HEIDEGGER, 1967, p. 4). 116 De fato, dentre todos os entes há um para quem a pergunta acerca do sentido do ser faz algum sentido. Uma mesa ou uma planta não colocam jamais em questão o sentido do ser! Somente alcançamos esse fim, por meio do acesso aos entes em geral, de um modo conceitual, por meio da compreensão etc. Todos esses caracteres e comportamentos estão na essência de um determinado ente, o ente que nós mesmos somos em cada caso. Daí dizer Heidegger que “o ente que somos em cada caso nós mesmos, e que, entre outras coisas, tem essa possibilidade de ser que é o perguntar, designamo-lo com o termo Dasein” (1997, p. 18). 117 “Wissenschaften sind Seinsweisen des Daseins, in denen es sich auch zu Seiendem verhält, das es nicht selbst zu sein braucht. Zum Dasein gehört aber wesenhaft: Sein in einer Welt. Das dem 115 109 As ciências são maneiras de ser do Dasein, nas quais ele se comporta também em relação a entes que podem ser outros que não ele. Agora bem, ao Dasein lhe pertence essencialmente o estar em um mundo. A compreensão do ser própria do Dasein comporta, pois, com igual originariedade, a compreensão de algo assim como um mundo e a compreensão do ser do ente que se faz acessível dentro do mundo. As ontologias cujo tema é o ente que não tem o caráter do ser do Dasein estão, por isso, fundadas e motivadas na estrutura ôntica do Dasein mesmo, que leva consigo a determinação de uma compreensão pré-ontológica do ser. Daí que a ontologia fundamental, que está na base de todas as outras ontologias, deva ser buscada na analítica do Dasein. Nessa linha, iniciaremos aqui com uma tipologia dos entes segundo a sua maneira de ser. Em um enquadramento inicial, podemos distinguir, de um lado, o Dasein; e, de outro, os entes intramundanos, não dotados do modo de ser daquele. De fato, o Dasein, já vimos acima, é este ente que nós mesmos somos, e que tem um privilégio ôntico-ontológico sobre os demais, caracterizado na sua forma de ser existente. Notem que “existente” não deve aqui ser tomado como a propriedade do que está meramente aí presente, mas como derivado de ek-sistenz, ou seja, aquele que se caracteriza como lançado para fora, em uma abertura própria que se manifesta em múltiplas possibilidades. É, pois, a existência o marco diferencial do Dasein em relação aos demais entes, tal como o confirma VATTIMO (1996, p. 25): [...] dizer que a natureza do homem é poder ser equivale a dizer que a sua natureza consiste em não ter uma natureza ou uma essência. Ainda mais complexo é o uso do termo «existência». Algo de existente é, geralmente, entendido como algo de «real» e, como já se disse, o seu modo de ser é o da possibilidade, e não o da realidade: o homem não é um existente no sentido da Vorhandenheit. Dizer que o homem existe não pode, pois, significar que o homem seja algo «dado», porque aquilo que o homem tem de específico e que o distingue das coisas é justamente o facto de estar referido a possibilidades e, portanto, de não existir como realidade simplesmente-presente. O Dasein zugehörige Seinsverständnis betrifft daher gleichursprünglich das Verstehen von so etwas wie »Welt« und Verstehen des Seins des Seienden, das innerhalb der Welt zugänglich wird. Die Ontologien, die Seiendes von nicht daseinsmäßigem Seinscharakter zum Thema haben, sind demnach in der ontischen Struktur des Daseins selbst fundiert und motiviert, die die Bestimmtheit eines vorontologischen Seinsverständnisses in sich begreift. Daher muß die Fundamentalontologie, aus der alle andern erst entspringen können, in der existenzialen Analytik des Daseins gesucht werden.” (HEIDEGGER, 1967, p. 13). 110 termo existência, no caso do homem, deve entender-se no sentido etimológico de exsistere, estar fora, ultrapassar a realidade simplesmente presente na direcção da possibilidade. Se entendemos o termo existência neste sentido, deve reservar-se só para o homem; a existência tal como a entende a ontologia tradicional (que não pode aplicar-se ao homem) é a simples-presença, a Vorhandenheit. Em outro polo encontramos os entes intramundanos, totalmente diversos dos existentes. De fato, porta, janela, livro, caneta, todos têm um modo de ser completamente diferente do homem, posto que, em um sentido muito próprio, embora estejam aí, não existem. E não existem porque não são dotados daquela abertura própria de estar lançado no mundo, porque jamais poderão, estando-aí, arvorarem-se em múltiplas possibilidades, tampouco poderão compreender o ser próprio e o dos outros entes. Da mesma forma o número e o espaço, porque são alguma coisa, não podem ser tomados como um nada, pelo que deles dizemos tratarem-se de coisas meramente consistentes. Dessa resumida abordagem já podemos perceber uma classificação dos entes como existentes, viventes (plantas e animais, que vivem, mas não existem), consistentes e as coisas que são à mão. Sem determo-nos em peculiaridades próprias, importa para os nossos objetivos destacar apenas duas classes de entes: o Dasein e os entes intramundanos, dada a radical diferença em seus modos de ser. E aqui já deixamos uma inquietação à mostra: quando estou junto aos entes intramundanos, por certo não estou simplesmente ao lado deles. Uma pedra estacionada em determinado lugar da montanha, ao lado de outra, conforma uma situação bem diversa daquela em que eu me ponho ao seu lado. Ademais, também é distinta a situação em que me coloco ao lado de um outro Dasein. Todos são modos de estar “um-ao-lado-do-outro”, contudo, no primeiro caso, é um estar ao lado como mero “subsistir-por-si-conjuntamente”; no segundo, um “estar-junto-a”; e no terceiro, um “ser-um-com-o-outro”. Os dois últimos são modos de ser próprios do Dasein, que adiante estudaremos. 111 4.2.1 O Dasein como ser-junto-a Retomando nosso rumo em direção à verdade, percebemos que a relação sujeito-objeto, conquanto não possa ser suprimida, deve ser revista, no sentido de que ela não poderia ser assumida como a origem da verdade, mas como derivação dela. A verdade deve ser buscada em algo mais originário, posto que, como vimos, para que algum enunciado seja feito em relação a um objeto, necessário primeiro que o sujeito já o tenha tocado por estar junto a ele. Somente assim poderíamos fazer alguma predicação adequada em relação a ele. Também observamos que se este estar junto a algo é um modo de ser que advém ao ente que existe, então, é no questionamento do próprio sujeito, ou mais propriamente da sua própria subjetividade118, que daremos um passo mais radical em direção à verdade. Em nossa lida diária com as coisas nós podemos delas nos ocupar como um estar atento. É o que ocorre quando, em minha biblioteca, por exemplo, dirigindo minha atenção ao livro, emito um enunciado sobre ele. De fato, aí está um modo de estar junto ao livro. Entretanto, quando o faço e percebo certas propriedades nele (volumoso, complexo, colorido, encadernado luxuosamente etc.) não saco essas características em razão da minha ocupação; ao contrário, é como se o livro desde sempre já estivesse ali antes dessa apreensão. “Nesse prestar atenção nas coisas não trazemos nada a elas nem – como diríamos – lhes contrabandeamos nada por meio do discurso, mas são elas, as coisas mesmas, que vêm ao nosso encontro dessa forma” (HEIDEGGER, 2008a, p. 78). Outra nota relevante do nosso estar-junto às coisas é que essa permanência sempre já nos atinge em uma multiplicidade. Há todo um contexto conjuntural em Para um leitor de Heidegger pode parecer estranho falar em sujeito e subjetividade ao discorrer sobre a analítica existencial, entretanto, são tais expressões aqui empregadas em um sentido radicalmente diverso daquele legado pela tradição filosófica. Veja a esclarecedora nota 290, mais adiante. 118 112 que elas se dão e a que nos remetem. De fato, em minha biblioteca, a mesa, o lápis, o computador, os livros, a luminária, todos esses entes não se põem uns ao lado dos outros como peças caóticas e desvinculadas; integram eles um conjunto situado em um contexto de serventia para o estudo e o aprendizado. Diria Heidegger que “esse estar ao lado do outro é um estar próximo um do outro totalmente determinado” (2008a, p. 79), um estar ao lado codeterminado pelo conteúdo objetivo que nos remete ao que as coisas mesmas são. Há, pois, em minha biblioteca, “uma totalidade de relações que perpassa e domina a multiplicidade de coisas que subsistem por si” (HEIDEGGER, 2008a, p. 79) e eu somente posso apreender esses entes tais como se anunciam, exatamente porque já compreendo antecipadamente esse todo estrutural. É porque já compreendo a biblioteca que consigo apreender o livro, a luminária etc. Resumindo (HEIDEGGER, 2008a, p. 81): É só após já termos descortinado o contexto conjuntural que o ente pode se tornar manifesto para nós [...] Portanto, o nosso estar junto a ... é em primeira linha um ser junto a uma multiplicidade de entes perpassada e dominada por uma determinada totalidade conjuntural. Nesse nosso ser junto à multiplicidade de coisas, o ente é manifesto no todo e, em verdade, de um só golpe. Por isso a esfera desse ente consegue se mostrar nele mesmo. O objeto singular que visualizamos é justamente esse objeto individual apenas no todo do contexto. Essas remissões são de extrema importância, posto que “O ser do homem consiste em estar referido a possibilidades; mas concretamente este referir-se efetuase não num colóquio abstrato consigo mesmo, mas como existir concretamente num mundo de coisas e de outras pessoas” (VATTIMO, 1996, p. 26). Por sua vez, as coisas que se encontram no mundo, na cotidianidade média do Dasein, não são simples presenças (Vorhandenheit), mas algo que para ele se revelam na sua instrumentalidade, prestam-se a algo (Zuhandenheit) em relação à sua vida, são inseridas em sua existência de alguma forma, para algum fim. Assim, os entes intramundanos representam uma via de acesso ao ser em geral. 113 Tal concepção vai romper bruscamente com a tradição filosófica de objetificação do mundo, captado por um olhar desinteressado do homem. Ao contrário, essa instrumentalidade dos entes intramundanos não é algo que se acrescente à sua essência, mas, sobretudo, a única forma com que eles originariamente se mostram em nossa experiência. Podem até não ser utilizadas como tais, já que o Dasein é projeto, é possibilidade, mas são dotadas de certo significado em nossas vidas. Rompe-se assim com a referida tradição, com a dicotomia do modo de conhecimento na base da relação sujeito-objeto. Como nos adverte G. Vattimo (1996, p. 28), A filosofia e a mentalidade comum pensam, desde há séculos, que a verdadeira realidade das coisas é a que se apreende «objectivamente» com um olhar desinteressado que é, por excelência, o olhar da ciência e das suas medições matemáticas. Mas se, como se viu, o modo originário de as coisas se apresentarem na nossa experiência não é aparecerem como «objectos» independentes de nós, mas darem-se como instrumentos, fica aberto o caminho para reconhecerem a própria objectividade das coisas como um modo particular de a instrumentalidade se determinar. Portanto, o verdadeiro modo de ser das coisas (dos entes intramundanos) é a sua prestabilidade, a sua instrumentabilidade, daí porque “as coisas não são em si, mas, antes de mais, estão em relação conosco como instrumentos; o seu ser está radical e constitutivamente em relação com o ser projetante do estar-aí” (VATTIMO, 1996, p. 29). Como veremos no próximo item, essa nota é importantíssima, pois marca um rompimento importante com o modo tradicional de enxergar as coisas como simples presenças, algo que simplesmente está aí diante de um sujeito, que por vezes escaparia da carcaça onde se enclausura para capturar objetos fora de si e retornar ao seu espaço transcendental para trabalhar as essências assim recolhidas em conexões que lhe proporcionariam algum sentido. Ao contrário, o Dasein é em sua abertura, e enquanto ente ek-sistenz, está sempre fora, o que nos permite romper com a dicotomia consciência-mundo, sujeito-objeto. 114 Assim, as coisas já sempre se mostram inseridas em um contexto de significados para o Dasein, que não se movimenta no mundo de forma desinteressada, mas, ao contrário, sempre envolvido em um projeto, tal como sintetiza Quintín Racionero (1991, p. 69, tradução nossa119): A geração do sentido procede do “projeto” (Entwurf) com que o homem organiza seu trato com as coisas, enquanto estas se lhes apresentam como úteis disponíveis (Zeuge) com vistas a um eventual rendimento. Deste modo, a significação não corresponde a presumíveis caracteres objetivos das coisas – como se estas pudessem consistir em estar presentes (vorhandene), com independência do valor ou da função que cumprem para o homem -, mas se ajusta à “antecipação” de possibilidades próprias do Dasein em que as coisas aparecem integradas, dis-postas em uma trama de sequências efetivamente realiáveis de vida. Já vimos mais acima que Heidegger toma a verdade como desvelamento (ἀλήθεια). E aqui constatamos que o ente somente se mostra porque está desvelado para nós e, portanto, é o ente mesmo que é verdadeiro. Somente porque ele é verdadeiro, podemos derivadamente fazer enunciados verdadeiros sobre ele. Então, é exatamente porque somos junto às coisas que elas se tornam manifestas para nós “elas mesmas vêm ao nosso encontro desveladamente e, com efeito, de um modo tal que se anunciam no todo de um contexto conjuntural” (HEIDEGGER, 2008a, p. 85). Que contexto conjuntural é esse? Eis o texto original: “la generación del sentido procede del «proyecto» (Entwurf) con que el hombre organiza su trato con las cosas, en cuanto que éstas se le presentan como útiles disponibles (Zeuge) con vistas a un eventual rendimiento. De este modo, la significación no se corresponde con unos presuntos caracteres objetivos de las cosas —como si éstas pudieran consistir en estar presentes (vorhandene), con independencia del valor o de la función que cumplen para el hombre—, sino que se ajusta a la «anticipación» de posibilidades propias del Dasein en que las cosas aparecen integradas, dis-puestas en una trama de secuencias efectivamente realizables de vida”. 119 115 4.2.2 O Dasein como ser-no-mundo A abordagem empreendida acima já faz ruir aquela estrutura do conhecimento sustentada na base de uma relação completamente fracionada entre o sujeito que conhece e o objeto do conhecimento. A mesma abordagem deixa claro ainda que, se de um lado essa estrutura efetivamente contempla essa diferença; por outro, não pode ela estabelecer uma cisão entre tais polos. Como nos ensina Miguel Reale, é preciso saber distinguir sem necessariamente separar120. De fato, a verdade configura um desvelamento do ente e, efetivamente, é ele quem aparecerá desvelado ao sujeito. Entretanto, ao desvelar-se, ele o faz sempre referido a um todo conjuntural que já de antemão é percebido pelo Dasein. Exatamente por isso, porque esse todo lhe toca de um só golpe, posso ver o objeto tal como ele é, inserido em um contexto de serventia, na abertura da existência. As coisas, portanto, nunca são coisas simplesmente dadas, que simplesmente estão-aí (Vorhandenheit); ao contrário, sãopara algo (Zuhandenheit). Daí dizer Heidegger que na fática abertura do mundo resta descoberto o ente intramundano e “isso implica dizer que o ser deste ente, em certa maneira, já é compreendido sempre, embora não ontologicamente conceitualizado de forma adequada” (1997, p. 200, tradução nossa)121. Assim, o Dasein não é apenas uma nova denominação conferida ao sujeito da relação sujeito-objeto, mas uma determinação essencial da própria subjetividade desse elemento da relação. A noção de sujeito como mera consciência, como mera substância pensante, ao molde cartesiano, acaba por operar uma redução no seu “[...] ao homem afoito e de pouca cultura basta perceber uma diferença entre dois seres para, imediatamente, extremá-los um do outro, mas os mais experientes sabem a arte de distinguir sem separar, a não ser que haja razões essenciais que justifiquem a contraposição” (REALE, 1986, p. 41). 121 “Esto implica que el ser de este ente en cierta manera ya es comprendido siempre, aunque no ontológicamente conceptualizado en forma adecuada”. Para conferência, o texto em alemão: “Darin liegt: Das Sein dieses Seienden wird in gewisser Weise immer schon verstanden, wenngleich nicht angemessen ontologisch begriffen” (HEIDEGGER, 1967, p. 200). 120 116 alcance, que macula toda a compreensão da verdade, e tal ocorre exatamente porque não se nota nela aquele existencial que lhe é próprio, o de estar-junto às coisas122. Como já dissemos, não podemos ver o “sujeito” como uma mônada, algo encapsulado e fechado ao exterior que, em dado momento, lança-se para fora para capturar as coisas e recolhê-las em seu interior para análise e determinação. Tal não ocorre pelo simples fato de o Dasein já estar naturalmente sempre fora, ele é ek-sistenz junto às próprias coisas. O Dasein é desde sempre em um mundo. Ser-no-mundo é um seu existencial que deve ser melhor compreendido, a fim de que se destaque a importância do seu papel no afastamento desta cisão entre sujeito e objeto na relação cognoscitiva. À primeira vista, pode parecer que estamos preocupados com uma demonstração da realidade e, sobretudo, com a independência do real em relação ao Dasein. De fato, se o Dasein é no mundo, que é então esse mundo em que ele é? Seria algo contraposto e externo ao próprio Dasein? Tal questionamento deriva da tendência realista em buscar o sentido da realidade e também de comprová-la123. Entretanto, o mundo aqui não é tomado como exterioridade, mas como um existencial do Dasein que, em sua abertura própria, desde sempre já o tem. O mundo não é algo, mas se faz mundo124, como adiante veremos. Reorientando-nos em nosso percurso, destacamos mais acima que, no afã de buscar uma explicação racional do seu mundo e de si mesmo, o homem acabou por deixar cair no esquecimento a questão do sentido do ser. Vimos ainda que o Dasein é o ente privilegiado que, dada a curvatura própria sobre si mesmo, é capaz de compreender o ser em geral e, portanto, somente a partir de uma análise da estrutura desse ente privilegiado lograremos êxito em nossa empreitada. Como é ele o único A rigor, não somente esse existencial, mas também o de ser-com os outros etc. A falta de sentido da tentativa de provar a existência do mundo exterior foi abordada mais acima (item 4.0). 124 “Welt ist nie, sondern weltet“ (HEIDEGGER, 2004, p. 164). 122 123 117 ente que existe, essa análise é feita através dos seus existenciais, dos quais, sobretudo para os nossos objetivos, sobressai o “ser-no-mundo”. O Dasein é-no-mundo125. Ser-no-mundo, como expressão composta, remete-nos a três indagações: quem é que é no mundo? O que é mundo? O que é “ser-em”? À primeira indagação responderemos: o Dasein. É ele que “é-no-mundo”126, mas o que é mundo? Como descrevê-lo como fenômeno? A primeira tentativa é de relacioná-lo ao conjunto de entes que estão no mundo: as árvores, as montanhas etc. (uma descrição de mundo do ponto de vista ôntico), mas essa ideia não alcança a resposta perseguida, pois se são coisas que estão no mundo, este conjunto de coisas que estão no mundo não é propriamente o mundo127. Uma segunda ideia seria a de ver o mundo como o conjunto de manifestações desses entes, de como eles são, e aí teríamos um perfil ontológico, mais próximo da ideia de natureza, a qual, per se, já é um ente. Aqui ainda poderíamos falar em um mundo das matemáticas, um mundo do Direito, um mundo animal etc. Podemos, ainda em um viés ôntico, falar de um mundo próprio de um Dasein efetivo, tal como o mundo acadêmico, ou um mundo circundante mais próprio, como o mundo doméstico. Finalmente, pode-se ainda conceber um mundo como conceito ontológico-existencial do Dasein, ao que Heidegger designa mundanidade. Ontológico porque revela o ser, e existencial porque tal revelação se dá na abertura do Dasein. Na tradução para o castelhano, do chileno Jorge Eduardo Rivera, é justificada a opção por “estarno-mundo”, em substituição à tradução ordinária de “In-der-Welt-sein” por “ser-no-mundo”. Para o tradutor, estar seria a forma forte de ser, no sentido de dar-se numa dinâmica de possibilidades, de “estar-sendo-no-mundo”. Aqui, manteremo-nos fiéis à tradução mais comum, mas atentos à advertência do tradutor citado. 126 No sentido de ser o único ente que aí se coloca sendo (vide advertência da nota anterior). 127 Talvez essa seja a acepção cotidiana de estar no mundo, ou seja, a ideia de algo que está aí inserido em outra coisa, tal como o garfo na gaveta, que por sua vez está na mesa, a qual está na cozinha etc. Algo pré-dado onde eu me coloco, uma visão material, meramente espacial. Entretanto, como já anotado acima, não é esse o mundo em que o Dasein é. O Dasein não é um ente intramundano (um ente meramente subsistente), porquanto dotado de existência. É um projeto que se realiza no mundo; não algo que estaticamente nele se encontre, pelo que o mundo é a própria condição de possibilidade desse existir, um existencial mesmo. 125 118 Essa polissemia da palavra mundo é assim posta por Heidegger (1997, p. 7374)128: 1. Mundo se emprega como conceito ôntico, e significa então a totalidade do ente que pode estar-aí dentro do mundo. 2. Mundo funciona como termo ontológico, e então significa o ser do ente mencionado no número 1. E assim ‘mundo’ pode converter-se no termo para designar a região que sempre abarca uma multiplicidade de entes: por exemplo, ao falar do ‘mundo’ do matemático, mundo significa a região dos possíveis objetos da matemática. 3. Mundo pode ser novamente entendido em sentido ôntico, mas agora não como o ente que por essência não é o Dasein e que pode comparecer intramundanamente, mas como ‘aquele no qual’ ‘vive’ um Dasein fático enquanto tal. Mundo tem aqui um significado existentivo pré-ontologicamente, no qual se dão novamente distintas possibilidades: mundo pode significar o nosso mundo ‘público’ ou o mundo circundante ‘próprio’ e mais próximo (doméstico). 4. Mundo designa, por último, o conceito existencial-ontológico da mundanidade. A mundanidade mesma é modificável segundo a variável totalidade estrutural dos ‘mundos’ particulares, mas encerra em si o a priori da mundanidade em geral. “1. Mundo se emplea como concepto óntico, y significa entonces la totalidad del ente que puede estar-ahí dentro del mundo. 2. Mundo funciona como término ontológico, y entonces significa el ser del ente mencionado en el número 1. Y así “mundo” puede convertirse en el término para designar la región que cada vez abarca una multiplicidad de entes: por ej., al hablar del ‘mundo’ del matemático, mundo significa la región de los posibles objetos de la matemática. 3. Mundo puede ser comprendido nuevamente en sentido óntico, pero ahora no como el ente que por es encia no es el Dasein y que puede comparecer intramundanamente, sino como “aquello en lo que” “vi ve” un Dasein fáctico en cuanto tal. Mundo tiene aquí un significado existentivo preontológico, en el que se dan nuevamente distintas posibilidades: mundo puede significar el mundo ‘público’ del nosotros o el mundo circundante ‘propio’ y más cercano (doméstico). 4. Mundo designa, por último, el concepto ontológico-existencial de la mundaneidad. La mundaneidad misma es modificable según la variable totalidad estructural de los ‘mundos’ particulares, pero encierra en sí el a priori de la mundaneidad en general.” Em alemão para conferência: “1. Welt wird als ontischer Begriff verwendet und bedeutet dann das All des Seienden, das innerhalb der Welt vorhanden sein kann. 2. Welt fungiert als ontologischer Terminus und bedeutet das Sein des unter n. 1 genannten Seienden. Und zwar kann »Welt« zum Titel der Region werden, die je eine Mannigfaltigkeit von Seiendem umspannt; z. B. bedeutet Welt soviel wie in der Rede von der »Welt« des Mathematikers die Region der möglichen Gegenstände der Mathematik. 3. Welt kann wiederum in einem ontischen Sinne verstanden werden, jetzt aber nicht als das Seiende, das das Dasein wesenhaft nicht ist und das innerweltlich begegnen kann, sondern als das, »worin« ein faktisches Dasein als dieses »lebt«. Welt hat hier eine vorontologisch existenzielle Bedeutung Hierbei bestehen wieder verschiedene Möglichkeiten: Welt meint die »öffentliche« WirWelt oder die »eigene« und nächste (häusliche) Umwelt. 4. Welt bezeichnet schließlich den ontologisch-existenzialen Begriff der Weltlichkeit. Die Weltlichkeit selbst ist modifikabel zu dem jeweiligen Strukturganzen esonderer »Welten«, beschließt aber in sich das Apriori von Weltlichkeit überhaupt.” (HEIDEGGER, 1967, p. 64-65). 128 119 Daí o acerto na afirmação de que o mundo não é (um ente, uma coisa); o mundo se faz mundo (welt ist nie, sondern weltet129). Confira (PAIVA, 1998, p. 117): O mundo se faz mundo, mundifica-se, revela-se na sua essência de mundaneidade, ou seja, fazer-se mundo significa recolher em si uma gama de sentido. Dizer que alguma coisa se faz mundo significa que eu experimento a significatividade da mesma, a sua função, a sua colocação no espaço, as pequenas histórias que giram em torno dela. Dizer que uma coisa se faz mundo equivale dizer: recolhe um inteiro mundo de significatividade no espaço e no tempo. Por tudo isso é que só podemos falar em mundo, em virtude do Dasein, sem ele não há mundo, só ele tem mundo. Em outras palavras, “o conhecimento é um modo fundado de acesso ao real” (HEIDEGGER, 1997, p. 202)130. O real, por sua vez, somente é acessível como ente intramundano, e este acesso é fundado ontologicamente na constituição fundamental do Dasein que denominamos ser-nomundo. Dessa breve abordagem, já podemos fazer uma aproximação ao Direito, vendo o mundo jurídico não como um lugar objetivo, ou um conjunto de leis (entes), um conjunto de instituições, mas todos os significados possíveis, relativos às pessoas que fazem parte daquele contexto. Daí derivamos que também não pode haver um mundo jurídico como conjunto de entes isolados do Dasein, que possam objetivamente ser acessados e considerados, posto que não há primeiro um Dasein sem mundo que possa, em um segundo momento confrontá-lo. Daí a precariedade pela pergunta sobre a exterioridade e pela necessidade de sua comprovação. O Dasein não pode ser destituído de mundo, posto que, se assim fosse, deixaria de ser ele próprio. É nesse sentido que, no contexto dessa pergunta, o Dasein chegaria sempre tarde. HEIDEGGER, 2004, p. 164. “[...] el conocimiento es un modo fundado de acceder a lo real”. Em alemão: “[...] ein fundierter Modus des Zugangs zum Realen” (HEIDEGGER, 1967, p. 202). 129 130 120 Prosseguindo no estudo desse existencial, Como bem adverte Gianni Vattimo, “o nosso ser no mundo não é só ou principalmente um estar em meio de uma totalidade de instrumentos, mas um estar familiarizado com uma totalidade de significados” (1996, p. 32). Nos instrumentos, há uma significatividade essencial à compreensão humana. De fato, a instrumentalidade daqueles entes não está relacionada apenas ao seu servir para algo, mas no seu valer para nós. Essas valências das coisas não são todas descobertas no uso efetivo delas, manifestam-se, em geral, através dos signos, possuem um significado desde sempre já trazido pelo Dasein, daí a familiaridade de que fala Vattimo. Há, pois, uma noção de mundo como totalidade de instrumentos, que se conjuga com outra, a de mundo como totalidade de significados. Por isso é que se diz que o Dasein tem mundo, no sentido de que desde sempre já está familiarizado com este complexo de significados. Da mesma forma, somente há mundo pelo Dasein, já que mundo é mundanidade (Weltlichkeit), este plexo de significância que ele próprio carrega. Assim, em seu modo de ser-no-mundo, o Dasein assume a possibilidade de desvelar em sua utilidade o ser do ente que vem ao seu encontro, exatamente em face desse complexo de significância de que ele já dispõe. Nesse contexto, destaca-se outro existencial do Dasein – a compreensão (Verstehen). Para o Dasein, ser-no-mundo equivale a ter originariamente intimidade com uma totalidade de significados (VATTIMO, 1996, p. 33). A partir dessa noção, conclui-se que não há um mundo prévio de objetos, ao qual posteriormente o Dasein se relacionaria, atribuindo-lhe significados e funções; ao contrário, as coisas se mostram já no âmbito de uma totalidade de significados possíveis de que aquele já dispõe. Como afirma Ernildo Stein, “antes que o Dasein teorize ou exponha no discurso o mundo, ele já possui uma compreensão de si, dos utensílios com que lida” (2005, p. 17). Assim, pode-se afirmar que o mundo somente nos é dado, na medida em que já o temos! Só compreendemos o mundo, a partir de uma pré-compreensão 121 que dele já possuímos, tal é a noção de círculo hermenêutico. Eis o que dele nos fala Gianni Vattimo (1996, p. 34): Se o mundo, como vimos, está «primeiro» que as coisas individuais - porque de outra maneira as coisas, que são só enquanto pertencem ao mundo como totalidade instrumental, não poderiam dar-se como tais -, também está primeiro que todo o significado particular e específico, a totalidade de significado a que se reduz o mundo. Por outras palavras, poderia dizer-se que o mundo só se nos dá na medida em que já temos sempre (isto é, originariamente, antes de toda a experiência particular) certo «patrimônio de ideias» e, se se prefere, certos «prejuízos», que nos guiam na descoberta das coisas. Acontece como na leitura de um livro; todos temos a experiência de que um livro nos fala na medida em que «buscamos» nele alguma coisa; ou, como dizia Platão, podemos reconhecer o verdadeiro quando o encontramos, porque de alguma maneira já o conhecemos. Essa ideia não nos põe em uma situação de prévia compreensão plena e total do mundo, dado o caráter instrumental das coisas, que se reflete no possível uso que delas podemos fazer. Tal possibilidade está intimamente ligada à compreensão, haja vista que, sendo o Dasein constitutivamente abertura (um poder-ser), as suas estruturas se caracterizam pelas possibilidades131. O Dasein, sendo-no-mundo como projeto, tem na sua pré-compreensão do mundo também mera possibilidade, sujeita a alterações, desenvolvimentos e ulterior elaboração132. “A essência do Dasein consiste em sua existência. Os caracteres destacáveis neste ente não são, por conseguinte, ‘propriedades’ que estejam-aí de um ente que está-aí com tal ou qual aspecto, mas sempre maneiras de ser possíveis para ele, e só isso.” (HEIDEGGER, 1997, p. 67-68, traduzimos). Portanto, “Falar de abertura radical significa, no contexto heideggeriano, referir-se ao modo de ser do Dasein, à existência do homem. Existir é ser na abertura do Ser [...] o Ser (Sein) do ser-aí (Dasein) expressa a relação essencial que o Ser possui com a essência humana, enquanto o aí (da) exprime a relação da essência humana à abertura, que constitui o horizonte da manifestação do Ser.” (PAIVA, 1998, p. 56). 132 Nas palavras de Gianni Vattimo (1996, p. 35): 131 Substancialmente, a ideia de projeto, que define a totalidade do modo de ser do Dasein, tem aqui dois sentidos: a compreensão é projeto porque é um possuir a totalidade dos significados que constituem o mundo, antes de encontrar as coisas individuais: mas isto acontece só porque estar-aí é, constitutivamente, poder-ser e só pode encontrar as coisas inserindo-as neste seu poder-ser e entendendo-as, por conseguinte, como possibilidades abertas. 122 5 CONCLUSÃO DA PRIMEIRA PARTE Consoante vimos, se na Antiguidade era Deus o centro do universo, a sua fonte explicadora, a própria razão de ser e a fonte do mundo; na Modernidade é o homem que ocupa este espaço. A fé é deslocada para a razão humana. Esse ideal de racionalidade contamina todas as ciências, a ponto de vermos um mundo nela edificado133. Entretanto, essa pujança da razão e da certeza sofrerá profundos abalos já mesmo no século XIX, com o materialismo histórico marxista, pelo qual a razão não seria “fruto de um exercício da liberdade de ser, pensar e criar, mas prisioneira da ideologia, um conjunto de valores introjetados e imperceptíveis que condicionam o pensamento, independentemente da vontade” (BARROSO, 2006, p. 6-7). Essa fissura no pensamento moderno se intensifica no século seguinte, com as profundas críticas que se instalam134. O ideal de certeza que projetou as ciências da natureza não mais se sustenta. Esse novo que se apresenta como pós-moderno é para Barroso (2006, p. 2) um “rótulo genérico que abriga uma mistura de estilos, a descrença no poder absoluto da razão, o desprestígio do Estado. A era da velocidade. A imagem acima do conteúdo”. Ainda para o jurista, nele “O efêmero e o volátil parecem derrotar o permanente e o essencial. Vive-se a angústia do que não pôde ser e a perplexidade de um tempo sem Como afirma Frankenberg (2007, p. 262-263), “No ponto central da Modernidade está o sujeito. Ele perdeu seu mundo. Ele depende de si e, porque é esclarecido, deve partir para certezas metafísicas. A filosofia consola o sujeito pela perda do mundo com a visão de que, aquém, tudo é teoricamente praticável, de que o mundo seria apto a ser construído [...] O pensamento clássico moderno entende o mundo como ideia e representação [...] a Modernidade dever haurir sua normatividade a partir de si mesma. Com isso cria-se a obrigação de autofundamentação. Portanto, subjetividade determina o conteúdo normativo da Modernidade”. 134 Para Frankenberg (2007, p. 265) essas críticas podem ser agrupadas em três categorias: a crítica sociológica, pela qual fica destituído o mito da autonomia da razão, desmascarando-se a sua impotência e a sua irracionalidade fática; a crítica da razão instrumental, pela qual “não é o sujeito que carimba o significado da objetividade, e, sim ela mesma se mediatizaria, subordinada às leis da técnica e da burocracia, ou seja, su-jeito (sub jectum: lançado por baixo)”; e a crítica filosófico-linguística. 133 123 verdades seguras. Uma época aparentemente pós-tudo: pós-marxista, póskelseniana, pós-freudiana” (2006, p. 2). Revisitar o passado procurando enquadrar o tempo vivido em arquétipos estruturais, certamente é mais fácil do que pretender situarmos o momento em que se vive. Não temos bem certo o presente, parecendo-nos um transitar por uma zona de penumbra, onde o novo se anuncia sem deixar determinar-se; onde o velho se vê abalado, sem também se ausentar. Entre passado e futuro, mostra-se um presente cintilante que turva a nossa percepção visual, tal como coloca Santos (2006, p. 13-15): Se fecharmos os olhos e os voltarmos a abrir, verificaremos com surpresa que os grandes cientistas que estabeleceram e mapearam o campo teórico em que ainda hoje nos movemos viveram ou trabalharam entre o século XVIII e os primeiros vinte anos do século XX, de Adam Smith e Ricardo a Lavoisier e Darwin, de Marx e Durkheim a Max Weber e Pareto, de Humboldt e Planck a Poincaré e Einstein. E de tal modo é assim que é possível dizer que em termos científicos vivemos ainda no século XIX e que o século XX ainda não começou, nem talvez comece antes de terminar. E se, em vez de no passado, centrarmos o nosso olhar no futuro, do mesmo modo duas imagens contraditórias nos ocorrem alternadamente. Por um lado, as potencialidades da tradução tecnológica dos conhecimentos acumulados fazem-nos crer no limiar de uma sociedade de comunicação e interactiva libertada das carências e inseguranças que ainda hoje compõem os dias de muitos de nós: o século XXI a começar antes de começar. Por outro lado, uma reflexão cada vez mais aprofundada sobre os limites do rigor científico combinada com os perigos cada vez mais verossímeis da catástrofe ecológica ou da guerra nuclear fazem-nos temer que o século XXI termine antes de começar. Recorrendo à teoria sinergética do físico teórico Hermann Haken, podemos dizer que vivemos num sistema visual muito instável em que a mínima flutuação da nossa percepção visual provoca rupturas na simetria do que vemos. Assim, olhando a mesma figura, ora vemos um vaso grego branco recortado sobre um fundo preto, ora vemos dois rostos gregos de perfil, frente a frente, recortados sobre um fundo branco. Qual das imagens é verdadeira? Ambas e nenhuma. É esta a ambigüidade e a complexidade da situação do tempo presente, um tempo de transição, síncrone com muita coisa que está além ou aquém dele, mas descompassado em relação a tudo o que o habita. Portanto, essa visão turva e ainda não bem delineada, própria dos períodos de transição, talvez recomende não falarmos em um quadro definido de uma pósmodernidade, mas em uma modernidade em crise, uma vez que “fica claro somente que o correio segue, mas é incerto para onde” (FRANKEMBERG, p. 270). 124 Esse quadro de crise é geral e colheu em cheio também o Direito. O positivismo, contaminado pelos métodos das ciências da natureza, procurando, ao apropriar-se dele, alçar o mesmo status de certeza e de segurança que lhes eram próprios, acabou sucumbindo antes mesmo de solidificar-se, deixando não só as marcas de um passado no presente, mas, muito pior, uma concepção atrasada introjetada na atual. Ver o Direito hoje, infelizmente é defrontar-se com essa ambiguidade, essa contradição, esse desajuste descompassado. Uma defasagem assustadora que mostra o velho resistindo ao novo, não se dando conta da mudança operada. Há juristas que ainda sobrevivem nesse contexto, insistindo no projetar um mundo alicerçado na segurança dos códigos, diante da incerteza dos fatos. Um papel contraposto entre o sujeito e o objeto, mediado pela linguagem como instrumento representacionista. Esquecem eles da lúcida advertência de Gadamer, no sentido de que não somos nós que possuímos a linguagem, mas ela quem nos possui. No marco pós-moderno, as figuras de Nietzsche e Heidegger são paradigmáticas. Com o primeiro, destacamos a impossibilidade de sustentação de um ideal metafísico que sirva de suporte às angústias e incertezas de nossas vidas. Tal como ele anunciou, “Deus está morto” e fomos nós que o matamos. Com Heidegger, desferimos a crítica à sociedade técnica, formatada em um modo de produção caracterizado pela disponibilidade. Aquilo que denominou de Gestell acaba por absorver o próprio homem, que perde a sua humanidade, ao tornar-se também disponível nesse modo próprio de produzir. As críticas são plenamente aplicáveis ao Direito, que se manifestando nas práticas dos tribunais, insiste em apoiar-se na lei como entidade metafísica, muitas vezes contraposta ao mundo da vida, que é então negado e, com isso, é o próprio acontecer do Direito que resta velado, impedindo o seu acontecer como instrumento de efetivação do projeto de vida boa que a sociedade persegue. 125 Insistimos que essa problemática resiste ao tempo, sobretudo mostrando-se em arquétipos epistemológicos que sucumbem frente à análise fenomenológica. Da busca de objetividade do conhecimento resulta o desvio de enxergar o mundo como exterioridade e o objeto que o integra como entidade cujo ser é independente do sujeito que intenta conhecê-lo. Tal a relação sujeito-objeto, ainda tão festejada no Direito, que insiste em uma relação objetiva e com os eventos, a fim de angariar espaço entre as ciências. Esquecem os juristas que sequer essas (refiro-me às pujantes ciências da natureza) sustentam-se no ideal de certeza e objetividade que hoje são acriticamente perseguidos pelo Direito. Vimos que, a despeito da diferença entre o Dasein e os demais entes, tal não significa que da diferença possa resultar a completa separação entre eles. E tal não pode ocorrer por uma razão muito simples: a realidade somente pode ser tomada como termo que designa o ser do ente intramundano, daí a necessidade de esclarecimento do fenômeno da intramundaneidade, à qual, por sua vez, está fundada no fenômeno do mundo. Este é um momento essencial da estrutura do serno-mundo, existencial do próprio Dasein. Portanto, a compreensão da realidade, ou seja, o acesso ao diversos sentidos de ser do ente intramundano, somente pode dar-se no âmbito da estrutura existencial do Dasein: o ser-no-mundo135. Mundo, como vimos, não significa um continente onde os entes possam aí ser abrigados, mas um plexo de significatividade de que já dispõe o próprio Dasein em sua abertura. Daí a afirmação de que o mundo não é um ente, ele se faz mundo (Welt ist nie, sondern weltet136). Mundo, na acepção ontológico-existencial que aqui é empregada, é mundaneidade137. Para sermos mais precisos, a essência da verdade não deveria ser buscada somente até aí, mas efetivamente em todo o complexo estrutural do Dasein, unificado pelo que Heidegger denominou de cuidado (Sorge). 136 HEIDEGGER, 2004, p. 164. 137 Como adiante veremos, não significa isso que o mundo seja um nada de ente, mas algo além do ente e, por isso mesmo, transcendente. Neste sentido, as lições de Christian Dubois: Em todo caso, o mundo não é nada, nada de ente – para além do ente, ele é no entanto sua condição de possibilidade, a 135 126 Assim, a verdade do ente se dá no seu desvelamento para o ente descobridor que o Dasein é. Ser-descobridor significa estar nesta abertura que permite o acontecer da verdade, onde o ser dos entes se dá não como um alliud, mas como um servir-para (Zuhandenheit). Ou seja, os entes intramundanos, não sendo simples presenças, jamais podem pretender incorporar-se ao polo extremado do sujeito para constituir a relação sujeito-objeto, nos moldes pretendidos pela teoria do conhecimento aqui tão criticada e tão celebrada pelos juristas. condição fenomenalizante. Este para além possibilitador pode ser nomeado: transcendência. O mundo é transcendente” (2004, p. 31). 127 2.ª PARTE O CAMINHO HERMENÊUTICO 6 INTRODUÇÃO À SEGUNDA PARTE A ideia do círculo hermenêutico138 é referencial em toda a exposição. As suas partes adiantam um sentido global que, por sua vez, presta-se a melhor esclarecê-las. Isso talvez explique a retomada dos temas já abordados à medida que vamos caminhando ao longo do texto. De qualquer forma, há um referencial constante que clama pela abertura do Direito à facticidade, uma abertura que nos convoca à correspondência ao apelo que o ser do ente nos faz. Assim, talvez se possa dizer, com Não há um sentido unívoco para a expressão. Mais acima (item 4.2.2), a ela nos referimos vinculando-a à ideia de pré-compreensão: “Só compreendemos o mundo, a partir de uma précompreensão que dele já possuímos, tal é a noção de círculo hermenêutico”. Heidegger se utiliza da noção de círculo no §2.º de Ser e Tempo, quando analisa a estrutura da questão acerca do sentido do ser. Ali ele evidencia que a colocação desta pergunta pressupõe a determinação de um certo ente em seu ser (o Dasein). Ora, aí está presente a figura geométrica em questão, posto que a elaboração da pergunta pressupõe a resposta que somente ela pode dar (1997, p. 18). O aparente paradoxo é dissolvido pelo filósofo quando refuta tratar-se aí de um círculo de prova vicioso, já que não estamos em meio a uma série dedutiva que parta de um princípio não demonstrado, mas apenas da colocação a descoberto desse fundamento, ainda que sem uma tematização explícita. Há ainda um sentido bem mais restrito para a expressão, tal como o encontrado em Schleiermacher, e que será adiante detalhado (item 8.4.3 ), em que o a progressão contínua no sentido se daria por meio de um processo circular, em que eu vou compreendendo as frações da obra, e remodelando essa compreensão parcial, à medida que caminho em direção ao todo dela. É neste sentido que colocamos a expressão nesta passagem comentada. 138 128 certa propriedade, que muitos dos problemas com que se depara o Direito hoje são derivados desse esquecimento do sentido do ser. Essa clareira onde o sentido se instaura há que se dar no plano de uma disposição afetiva que os antigos identificavam no espanto. De fato, já em Platão temos que “é verdadeiramente de um filósofo este phátos – o espanto; pois não há outra origem imperante da filosofia que este.” (Teeteto, 155, d)139. Para Heidegger é o espanto a arkhé da filosofia (1996b, p. 37), a origem, enquanto algo que não se esgota no impulso inicial que proporciona, mas perpassa todo o pensar filosófico. Um páthos, um deixar-se levar por aquilo que convoca. Não se trata de um mero sentimento psicológico, mas de uma tal disposição que nos detêm diante do ente e, assim nos pondo em suspensão, paradoxalmente a ele nos atrai, diante do fascínio que provoca o fato de ser ele assim e não de outra forma. Embora já encontremos nossa morada nesta correspondência ao apelo do ser, ele não chega a ser ordinariamente assumido. E o que tem a ver o espanto com o Direito? Já aqui nos permitimos um jogo com as palavras: tem a ver por não nos espantarmos com a falta de espanto! Efetivamente, já não nos encontramos assumindo esta disposição afetiva essencial que nos convoca a mantermo-nos a caminho do ente em seu ser, simplesmente nos facilitando uma antecipadora conceituação que recolhe um sentido que entifica o ser e, não raro, não apenas propõe um sentido, mas dele se apropria, contrariando o fenômeno que por si se mostra. Os casos referenciais estudados, sobretudo os dois primeiros (itens 2.2.2.1 e 2.2.2.2), dão mostra clara disso, quando o jurista insiste em pôr-se diante do dilema de decidir-se pelo mundo legal ou aquele sequestrado pela lei. Tal o afastar-se do No mesmo sentido: “os homens começaram a filosofar, agora como na origem, por causa da admiração, na medida em que, inicialmente, ficavam perplexos diante das dificuldades mais simples” (ARISTÓTELES, Metafísica A 2, 982 b 12 ss.). Ressaltamos que nessa tradução de Giovanni Reale, a palavra θαυμάζειν (“thaumázein”), normalmente assumida como espanto é aqui posta como admiração. 139 129 caminho, o desprezo pelo princípio convocador, a falta de correspondência ao apelo do ser do ente. Essa falha que se anuncia, buscamos identificá-la nos reflexos de um pensamento moderno objetificante, que clama pela certeza do Direito contra a pujança do ser. Um Direito que pretende ter-se sempre à mão, como instrumento à disposição de um operador, que lhe permita uma resposta aos problemas que se apresentam e, enquanto coisa posta (res-posta), subjaz diante de um sujeito que a utiliza em um desígnio que se presta à ideologia, que se imiscui no consciente coletivo reforçada pelo impessoal (das Man)140. Assim, mais do que uma res-posta pronta e acabada que nos é brindada antecipadamente pelo legislador, com seus discursos de validade, necessitamos co-responder ao apelo do ser, livrando do cativeiro a facticidade sequestrada metafisicamente e restituindo-a à sua morada no Direito que, chorando por sua ausência, definha e mantém-se velado. Parafraseando Heidegger, a crise do Direito é um tema vasto e, exatamente por ser vasto, permanece indeterminado. Por sua vez, sendo indeterminado, “podemos tratá-lo sob os mais diferentes pontos de vista e sempre atingiremos algo certo” (1996b, p. 27). Isso justifica a eleição de um caminho. Pois bem, o marco da modernidade foi adotado como ponto de partida para mostrar uma possível crise do Direito, porquanto, havendo este último com aquela se alinhado, acabou por também experimentar as suas vicissitudes. Neste trajeto, buscamos evidenciar as dificuldades com que nos deparamos ao incorporar um pensamento objetificante, onde a realidade é contraposta a um sujeito que agora deposita no potencial da racionalidade a sua mais alta crença no alcance do fundamento. Mas as veementes críticas a essa razão redentora, que se mostrou incapaz de atender às promessas formuladas, não querem significar o seu abandono, uma rejeição ao racional, posto 140 Veja mais adiante (no item 8.1) os reflexos que o indeterminado “se” provoca no Direito. 130 que a própria filosofia141 se apresenta como sua guardiã (cf. HEIDEGGER, 1996b, p. 28). O que se critica é a projeção do Direito na senda da busca de um fundamento inconcussum, seja nas leis eternas de Deus, seja na racionalidade humana. Isso nos conduz ao problema do fundamento. E como vimos já na introdução, ela é aqui tomada como condição de possibilidade da própria ciência e, também da Ciência do Direito. 141 131 7 A QUESTÃO DO FUNDAMENTO Ao assumir a cátedra de Filosofia em Freiburg, oriunda da vaga decorrente da aposentadoria de Edmund Husserl, Heidegger ministrou a sua aula inaugural com o título “Que é a Metafísica” (1929). Com a sua imediata publicação emergiram críticas ao autor, no sentido de que promovia o niilismo, de que, ao combater a validez da lógica, difundia o irracionalismo etc. A fim de esclarecer os mal-entendidos decorrentes do texto, com a quarta edição da preleção, em 1943, acresceu um pósfácio onde responderia às objeções formuladas e, posteriormente, com a quinta edição, em 1949, agregou uma introdução com o título “Retorno ao Fundamento da Metafísica”. Este último complemento inicia com a citação de uma carta de Descartes endereçada a Picot, que traduziu os Principia Philosophiae, onde uma árvore é sugerida como metáfora para todo o conhecimento humano. De acordo com tal figura, suas raízes seria a metafísica, o tronco a física e os ramos as demais ciências. Heidegger buscará algo mais profundo e indagará pelo solo em que aquelas raízes se apoiariam e receberiam as seivas e forças alimentadoras. Adiantando sua marca ontológica, Heidegger adverte que a metafísica pensa o ente enquanto ente; não à luz do ser que dá transparência ao último e, assim, diz que o chão buscado é exatamente a verdade do ser. Portanto, marcada pelo impensado do ser, “a filosofia não se recolhe em seu fundamento. Ela o abandona continuamente e o faz pela metafísica” (HEIDEGGER, 1996c, p. 78)142. Por isso mesmo, nosso filósofo abre a proposta de superação da metafísica. De fato, ao refletir sobre o seu fundamento, adentramos o campo da sua essência e a essência da metafísica já não é mais a metafísica, ou seja, este caminho assumido pelo pensamento já não se dá no “Die Philosophie versammelt sich nicht auf ihren Grund. Sie verläβt ihn stets, und Zwar durch die Metaphysik” (HEIDEGGER, 2004, p. 367). 142 132 âmbito da própria metafísica. De qualquer forma, isso não importa a sua negação, tampouco um pensamento contra ela, tal como esclarece (1996c, p. 78)143: Um pensamento que pensa na verdade do ser não se contenta certamente mais com a metafísica; um tal pensamento também não pensa contra a metafísica. Para voltarmos à imagem anterior, ele não arranca a raiz da filosofia. Ele lhe cava o chão e lhe lavra o solo. A metafísica permanece a primeira instância da filosofia. Não alcança, porém, a primeira instância do pensamento. A riqueza do excerto é de impressionar. De fato, se é o solo o elemento essencial para a filosofia e, por conseguinte, para o próprio pensar humano, o maior enraizamento e o seu aprofundamento (no próprio afundar, aprofundando na busca do fundo, do fundamento em que aquela árvore se estabilizará e se alimentará), o pensar o ser consistiria no cavar o chão e lavrar o solo, já sugerindo o ingresso da linguagem neste processo em que a pá lavra. O homem se vê premido por uma necessidade fundamental de encontrar-se no mundo, dando à sua própria vida um fundamento. Essa busca perpassa todo o seu pensar e agir, ainda que de uma forma secundária ou superficial. Todo enunciar, para tornar-se compreensível deve ser fundamentado, e ao fundamentar já me encontro no caminho para o fundamento. Mas antes mesmo de fundamentar enunciados, quando já me ocupo de algo sobre o qual eles se referem, esse ocupar-me já se dá de forma fundamentada144. Por vezes esse caminho se detém nos “Ein Denken, das an die Wahrheit des Seins denkt, begnügt sich zwar nicht mehr mit der Metaphysik; aber es denkt auch nicht gegen die Metaphysik. Es reiβt, um im Bild zu sprechen, die Wurzel der Philosophie nicht aus. Es gräbt ihr den Grund und pflügt ihr den Boden. Die Metaphysik bleibt das Erste der Philosophie. Das Erste des Denkens erreicht sie nicht“ (HEIDEGGER, 2004, p. 367). 144 É o que nos adverte Heidegger, quando afirma que (1999, p. 11-12): 143 O entendimento não exige apenas fundamentos para os seus enunciados, mas o representar humano procura já mostras de fundamentos, quando se ocupa daquilo acerca do qual antes de tudo devem ser feitos enunciados [...] Este aspirar aos fundamentos perpassa o representar humano, antes de ele se dedicar apenas a fundamentar os enunciados. 133 fundamentos mais salientes, superficiais, outras vezes nos mais remotos; e algumas vezes, nos últimos ou primeiros fundamentos. Essa reintrodução do tema aponta para a pujança da questão do fundamento em geral e sua ligação com a nossa existência. E aqui deixamos algumas questões preliminares: que isso tem a ver com o mundo do Direito? Se há alguma relação, que pertinência teria o fundamento com a crise do Direito e a sua superação? Melhor entendendo o fundamento como princípio, tentaremos encaminhar algumas respostas. 7.1 O princípio do fundamento Nihil est sine ratione! Nada é sem razão, sem fundamento, eis sinteticamente a anunciação do princípio do fundamento. Em sua formulação positiva, omne ens habet ratione, ou seja, todo ente tem um fundamento. O princípio manteve-se adormecido por um longo período de incubação, até que recebeu sua formulação sintética por Leibniz no século XVII. É imediato que em tudo que nos toca, o entendimento lança seu olhar para o fundamento, posto que ele mesmo reclama um fundamento. E como vimos, não só o fundamento deve estar presente nos enunciados, mais antes mesmo de fazê-los, nossa ocupação cotidiana com os entes, conosco mesmo e com os outros já é fundamentada. Entretanto, não nos deixemos tocar pela evidência do que o princípio enuncia. O princípio do fundamento, enunciado em sua forma negativa, comporta uma dupla negação (nada é sem fundamento), nada nos dizendo sobre o fundamento. Ele apenas nos fala sobre o ente, no sentido de que todo e qualquer ente tem um 134 fundamento. Entretanto, assim fazendo, torna-se digno de posicionar-se entre os princípios fundamentais ou, mais ainda, como o princípio fundamental. De fato, o princípio da identidade, tido em destaque entre os princípios fundamentais, costuma ser enunciado simbolicamente como “A=A”, uma igualdade que nada nos diz e que nada tem a ver com a identidade. Ao contrário, a identidade, no sentido de mesmidade, pressupõe a diferença. Tomemos um exemplo: nós, ao longo dos anos, tornamo-nos fisicamente diferentes, mas ainda assim permanecemos os mesmos! É como se alguém nos visse após longos anos de separação e dissesse: “Nossa, mas como você mudou!”. Veja que naquela diferença algo permaneceu o mesmo, sou eu mesmo que estou ali, diante do observador que anuncia a diferença, sem perder de vista que permaneço, a despeito dela, o mesmo. Por isso, Heidegger afirmará que a identidade significa a copertença de vários no mesmo e, mais claramente, a copertença de vários com fundamento no mesmo (1999, p. 19). Assim, o exaltado princípio lógico da identidade, ele mesmo requer um fundamento. Ora, embora sem com ele se identificar, é do fundamento que trata o princípio do fundamento e se o princípio da identidade requer um fundamento, então, podemos concluir que o princípio do fundamento deve posicionar-se anteriormente a ele, assim confirmando a assertiva de que o princípio do fundamento não é apenas um entre os princípios fundamentais, mas o princípio fundamental. Até aqui enfatizamos o caráter fundamental do princípio em questão, mas isso nos dá apenas um horizonte que nos remete para o aprofundamento no próprio princípio, sem que até agora o tenhamos esclarecido adequadamente. É que o princípio do fundamento, em sua versão afirmativa, assevera que tudo o que é de alguma maneira tem um fundamento. Sendo assim, o próprio princípio, não sendo um nada, ele mesmo estaria a exigir o seu fundamento. Essa máxima reivindicação que o princípio exerce sobre si mesmo nos põe em uma situação complicada, eis que se o encontrássemos, o princípio também exigiria uma fundamentação para esse 135 fundamento que o sustenta, o que nos conduziria a uma série infinita, exigindo um afundamento contínuo até o “sem-fundo”145. Que curiosa situação: “O princípio do fundamento é usado e seguido por nós em toda a parte como apoio e estaca, mas simultaneamente, ele precipita-nos, ainda que nós mal reflitamos sobre o seu próprio sentido, no sem-fundo” (HEIDEGGER, 1999b, p. 28)146. De fato, exigir um fundamento para o princípio do fundamento, logo nos faria deparar com a exigência do fundamento do fundamento do princípio, colocando-nos em um movimento circular. Dirá Heidegger que “O princípio fundamental da contradição, a sua pretensão a um cumprimento incondicional, é o incitamento secreto que impulsiona a ciência moderna” (1999b, p. 34)147. Tal princípio nos orienta no sentido de que tudo aquilo que encerra em si uma contradição não pode ser (esse non potest, quod implicat contradictionem). E exatamente com base nele seria estranho que um princípio de tal envergadura não se submetesse ao seu próprio campo de atuação. Seria mesmo contraditório e, portanto, não poderia ser, que nada sendo sem fundamento, o princípio do fundamento, que não é um nada, pudesse escapar da necessária fundamentação148. Nas palavras de Heidegger (1999b, p. 33)149: Em uma crítica a Descartes, Heidegger se vale das lições de Leibniz, quando, em uma carta a John Bernoulli diria que ele (Descartes) “errou duplamente, ao duvidar demais e ao se afastar com demasiada facilidade da dúvida”, posto que não teria esclarecido com propriedade em que consistiriam a clareza e a distinção das ideias fundadoras do pensamento correto (HEIDEGGER, 1999, p. 27). 146 “Der Satz vom Grund wird von uns überall als Stütze und Stab benützt und befolgt; zugleich stürzt er uns aber, kaum daß wir ihm in seinem eigensten Sinne nachdenken, ins Grundlose“ (HEIDEGGER, 1957, p. 30). 147 “Der Grundsatz des Widerspruchs, sein Anspruch auf unbedingte Befolgung, ist der geheime Stachel, der die moderne Wissenschaft antreibt“ (HEIDEGGER, 1957, p. 36-37). 148 Em que pese o enunciado do princípio da não contradição, Heidegger, assinalará que “Desde a lógica de Hegel, que já não é de modo algum imediatamente certo que, onde exista uma contradição, aquilo que é contraditório não possa ser efetivo” (1999, p. 34). 149 "Nihil est sine ratione. Nichts ist ohne Grund - sagt der Satz vom Grund. Nichts, also auch nicht dieser Satz vom Grund, er fürwahr am wenigsten. Es sei denn, gerade der Satz vom Grund und das, wovon er sagt, und dieses Sagen selber gehörten nicht in den Geltungsbereich des Satzes vom Grund. Dies zu denken, bleibt eine arge Zumutung. Sie meint, kurz gesagt: Der Satz vom Grund ist ohne 145 136 Nada é sem fundamento. Nada, por conseguinte, também não este princípio do fundamento. A não ser que, justamente o princípio do fundamento e aquilo de que ele fala, e esse próprio falar, não pertencessem ao campo de influência do princípio do fundamento. Pensar isso seria uma pretensão grave. Ela significaria, dito com brevidade: o princípio do fundamento é sem fundamento. Dito ainda mais claramente: “nada sem fundamento” – isso, por conseguinte, algo, sem fundamento. Veja, entretanto, que no próprio caminho da superação de contradições eis que surge o princípio do fundamento, tal como em síntese perfeita Heidegger põe (1999b, p. 52)150: [...] o questionar das ciências é sempre incitado de novo para superar contradições surgidas. A superação ocorre através de um avanço para uma dissolução das contradições numa unidade, que é apropriada para sustentar o aparentemente contraditório, isto é, para lhe dar um fundamento. No arrebatamento do conceber através de e para fora das contradições rege a reivindicação à entrega do fundamento apropriado. Tentemos dissolver este enigma que circunda o princípio. Em sua versão curta ou vulgar ele é dito: nada é sem fundamento, ou seja, todo ente tem fundamento. O princípio se refere ao ente, de uma forma universal. De fato, omne ens habet rationem. “A proposição enuncia sobre o ente e isto do ponto de vista de algo como “razão” (fundamento). Contudo, aquilo que constitui a essência do fundamento não é determinado nesta proposição”151 (HEIDEGGER, 1996a, p. 115)152. É que o princípio não fala do fundamento mesmo, tanto que nos deixou em apuros quando buscamos Grund. Noch deutlicher gesprochen: «Nichts ohne Grund» - dies, also etwas, ohne Grund“ (HEIDEGGER, 1957, p. 37). 150 "[...] das Fragen der Wissenschaften immer neu angestachelt wird, auftretende Widersprüche zu beseitigen. Die Beseitigung geschieht durch den Fortgang zu einer Auflösung der Widersprüche in eine Einheit, die geeignet ist, das anscheinend Widersprechende zu tragen, d. h. ihm einen Grund zu geben. Im Fortriß des Vorstellens und Fragens über die Widersprüche hinaus waltet der Anspruch auf Zustellung des gemäßen Grundes“ (HEIDEGGER, 1957, p. 59). 151 “Der Satz sagt über das Seiende aus und das aus der Hinblicknahme auf so etwas wie ‘Grund‘. Was jedoch das Wesen von Grund ausmacht, wird in diesem Satz nicht bestimmt” (HEIDEGGER, 2004, p. 127). 152 Em que pese esta afirmação, ela é válida enquanto pensado o princípio ouvindo-o a partir da primeira formulação ou tonalidade. Posto que, como logo veremos, sob outro tom acabamos por inaugurar uma abertura à essência do fundamento. Não de maneira tão clara, essa advertência pode ser encontrada na sexta aula de “O princípio do fundamento” (HEIDEGGER, 1999b, p. 73). 137 o seu próprio fundamento (do princípio), remetendo-nos a um abismo. Mas se destacarmos em sua enunciação não o “nada” e o “sem”, mas o “é” e o “fundamento”, então ele assume uma nova tonalidade. Ao enunciarmos “nada é sem fundamento”, aqui teremos uma evidenciação do ser e sua pertinência ao fundamento, e o princípio, que até então se referia ao ente, passa a nomear o ser enquanto tal. Agora podemos dizer que ao ser do ente enquanto tal pertence algo como fundamento, e a pertinência do princípio deixa de ser imediatamente referida ao ente para expressar o seu ser. “O princípio do fundamento é um falar sobre o ser” (HEIDEGGER, 1999, p. 78)153. Tal “falar sobre” não significa, entretanto, que aí se manifeste a mesma relação que esse falar ocupa quanto ao ente. Somente o ente pode ser fundamentado e reclamar seja-lhe entregue um fundamento em devolução (ratio reddendae); ao contrário, a relação entre ser e fundamento é de outra natureza. Portanto, quando Heidegger afirma que o princípio do fundamento é um falar sobre o ser, não se está aqui afirmando que o próprio ser caia sobre o domínio do princípio, a exemplo do que ocorre com todo ente. Não se diz com isso que o ser tenha um fundamento, pois se assim dispusermos, ao fundamentar o ente dizendo que é assim por isso ou aquilo, então nós o estaríamos entificando, vendo-o como algo. Muito mais profunda deve ser a oitiva do princípio quando enunciado nessa nova tonalidade. Aqui se nos dirige um chamado a ver o ser como fundamento. Ser e fundamento – o mesmo. Reiteramos aqui a advertência de que mesmidade não é sinônimo de identidade. De fato, a própria diversidade de vocábulos (ser, fundamento) já sinaliza para a diferença. Entretanto, na diferença sobressai o mesmo e, pelas razões acima expostas, para não dizermos que o ser é fundamento, aduz-se: ser e fundamento – o mesmo. Ora, porque o ser não pode ser algo, ele não cai sob o domínio do princípio do fundamento, já que ele e fundamento “são” o mesmo. Ser “é” o próprio fundamento, mas fundamento “sem-fundo”. 153 “Der Satz vom Grund ist ein Sagen vom Sein” (HEIDEGGER, 1957, p. 90). 138 Em sua primeira enunciação, o princípio nos fala do ente no sentido de que é desta ou daquela forma segundo um fundamento que, para sustentá-lo (na representação) exatamente dessa ou daquela forma, deve ser devolvido. Essa reclamação somente pode ser direcionada ao próprio homem que, imerso em um projeto lançado, a todo momento está envolvido pelo princípio do fundamento. Entretanto, na segunda tonalidade, o dito e, de certa forma, já ouvido, passa a ser digno de tornar-se pensado, estabelecendo à escuta e à visão uma abertura à essência do fundamento: ser e fundamento – o mesmo. Ora, se fundamento e ser “são” o mesmo, então não adianta precipitarmo-nos sobre o fundamento do princípio do fundamento, eis que o próprio ser não cai sob o domínio do princípio. Ser é enquanto é fundamento, ser já é fundado. Parece-nos que essa percepção da nova tonalidade do princípio é o grande contributo das lições heideggerianas incluídas na obra “O princípio do fundamento”, resumidamente consolidadas na conferência que levou o mesmo nome. De qualquer forma, novas perspectivas de enfrentamento da questão do fundamento serão essenciais para dimensionarmos a sua pujança no campo do Direito, o que justifica o tópico seguinte. 7.1.1 Fundamento, verdade e transcendência Por que razão vigora o princípio do fundamento? Para Leibniz se assim não fosse, subsistiriam entes sem razão (sem fundamento), infringindo-se, portanto, a natureza da verdade, cuja essência repousaria na conexão entre um sujeito (S) e um predicado (P). Uma conexão como nexus, por sua vez, um inesse, como idem esse. Eis que surge o princípio da identidade, novamente sustentado pela universalidade do princípio do fundamento. Assim, temos que, não se tratando de uma identidade 139 vazia de algo consigo mesmo, mas um fazer parte de uma “comum-unidade”, alcançamos a verdade enquanto concordância com aquilo que, na identidade, manifesta-se como unido. A verdade, assim concebida como verdade proposicional, portanto como enunciação verdadeira, exige uma referência a algo, em razão do que pode estar acordada. Esta visão não toca a essência da verdade, eis que, mais originariamente, antes de ser possível a predicação, algo deve estar aberto como objeto de uma possível enunciação. Aqui retomada (vide item 4.1), essa crítica à verdade proposicional nos remete a algo mais originário, que mais acima nos referimos como relação veritativa. Dissemos que a verdade é ordinariamente assumida como verdade da proposição, à qual se alinha uma “correspondência” do enunciado com algo sobre o que se enuncia. A par da crítica que já formulamos a este modelo, podemos inaugurá-la em outras bases. Para Leibniz, isto estaria assentado no princípio da razão suficiente, que impera em todo ente (omne ens habet rationem). De outra forma não poderia ser, já que admiti-la nos conduziria a uma negação da verdade, que de todo modo impera. Seguindo o modelo de verdade proposicional, ela residiria no nexus entre S e P. Nexus como inesse do P no S, mas inesse como idem esse, o que nos conduziu ao princípio da identidade. Identidade não como uma tautológica mesmidade consigo mesmo, mas como pertença a uma “comum-unidade”. Daí dizer-se que a verdade seria o acordo enquanto se manifesta como unido. Aqui chegamos a um ponto referencial: as enunciações, para revestirem-se desse atributo de verdade “recebem sua natureza por referência a algo em razão do qual podem ser acordos”154 (HEIDEGGER, 1996a, p. 117). Ora, mas para estarmos de acordo nesta proposição, antes dessa predicação há algo mais originário, “Die ‘Wahrheiten’ – wahre Aussagen – nehmen ihrer Natur nach Bezug zu etwas, auf Grund wovon sie Einstimmigkeiten sein können” (HEIDEGGER, 2004, p. 130). 154 140 antepredicativo, com o qual temos que concordar, pelo que a verdade reclama um desvelamento prévio à concordância. Nestes termos (HEIDEGGER, 1996a, p.117): Pode-se, entretanto, conseguir algo ainda mais originário sobre a delimitação da essência da verdade como caráter da enunciação? Nada menos que a compreensão de que esta determinação essencial da verdade — seja formulada como for em particular — e, por certo, iniludível, mas, todavia, derivada. A concordância do nexus com o ente e, como conseqüência, seu acordo, não tornam como tais primeiramente acessível o ente. Este deve, muito antes, como possível objeto (Worüber) de uma determinação predicativa, estar manifesto antes desta predicação e para ela. A predicação deve, para tornar-se possível, radicar-se num âmbito revelador, que possui caráter não predicativo. A verdade da proposição esta radicada numa verdade mais originária (desvelamento), na revelação antepredicativa do ente que podemos chamar de verdade ôntica155. No âmbito do Direito, essas advertências são de valor inestimável, mesmo as aplicando a modelos normativos simples, como o do primeiro caso referencial estudado (item 3.2.2.1), que podemos assim resumir: Se “A” é miserável, então faz jus ao benefício assistencial. A consequência jurídica está assentada em um modelo hipotético concebido como uma proposição (“A” é miserável). Essa conexio entre “S”e “P” será verdadeira se concordar com o objeto a que se refere. Entretanto, a verdade jamais será encontrada na própria proposição, e sim em algo mais originário, antepredicativo, como dissemos, na manifestação do ente por ele mesmo, em seu ser, no fenômeno (enquanto “phainestai”, aquilo que se mostra por si mesmo). Ora, quem deve “co-responder” ao apelo do ser do ente é o próprio Dasein, o que nos remete à “Läßt sich jedoch über die Umgrenzung des Wesens der Wahrheit als Charakter der Aussage hinaus noch Ursprünglicheres beibringen? Nichts weniger als die Einsicht, daß diese Wesensbestimmung der Wahrheit — wie immer sie im einzelnen gefaßt sein mag — eine zwar unumgängliche, aber gleichwohl abgeleitete ist. Die Übereinstimmung des nexus mit dem Seienden und ihr zufolge seine Einstimmigkeit machen als solche nicht primär das Seiende zugänglich. Dieses muß vielmehr als das mögliche Worüber einer prädikativen Bestimmung vor dieser Prädikation und für sie schon offenbar sein. Prädikation muß, um möglich zu werden, sich in einem Offenbarmachen ansiedeln können, das nicht prädikativen Charakter hat. Die Satzwahrheit ist in einer ursprünglicheren Wahrheit (Unverborgenheit), in der vorprädikativen Offenbarkeit von Seiendem gewurzelt, die ontische Wahrheit genannt sei.” (HEIDEGGER, 2004, p 130). 155 141 conclusão de que, com certa autoridade, podemos reclamar para o lugar da verdade não a proposição, mas o próprio homem. Essa incômoda ponte, que quebra o paradigma objetificante do positivismo, leva o Direito a redirecionar a outro enunciado paralelo o referencial com o qual o enunciado primário (“A” é miserável) deve se identificar. É o que ocorre quando afirmamos: enunciado primário “A” é miserável. E por que “A” é miserável? Enunciado secundário “A” ganha menos de ¼ do salário mínimo. E por que não nos remetemos, nesta linha, a um enunciado terciário para justificar a verdade da segunda proposição? Porque nos ancoramos em um marco matemático que dispensa regressões. Esbarramos em um postulado fundamental que nos desonera de continuar. Afinal, ¼ de algo é qualquer coisa com a qual todos concordamos! Veja que até para os formalistas jurídicos a essência da verdade repousa não em uma identidade (no sentido leibniziano), mas no acordo universal. Entretanto, não é essa ainda a oportunidade de prosseguirmos com a base do discurso, cuja exploração está reservada à terceira parte deste trabalho. Com a crítica à ideia de verdade proposicional, foi posta a necessidade de algo mais originário, algo antepredicativo. Ela aconteceria no sentir-se situado em meio ao ente, com certa “disposição de humor”, assumindo um comportamento em face do ente, daí porque ser chamada de verdade ôntica. Entretanto, mesmo aí não será possível acessar o ente, sem que essa ação reveladora seja iluminada pela compreensão do seu ser. Ou seja, “o desvelamento do ser é o que primeiramente possibilita o grau de revelação do ente”156 (HEIDEGGER, 1996a, p. 118). E a isso Heidegger irá referir-se pela expressão verdade ontológica157. Assim chegamos à questão da coimplicação entre verdade ôntica e ontológica, pois desvelar o ser é sempre alcançar a verdade do ser do ente, ao passo que, ao “Enthülltheit des Seins ermöglicht erst Offenbarkeit von Seiendem.” (HEIDEGGER, 2004, p. 131). Dirá nosso filósofo: “Esse desvelamento como verdade do ser é chamado verdade ontológica” (1996a, p. 118). 156 157 142 desvelar-se o ente, com ele aparece o seu ser, já que todo ente é no ser. Resumindo: “verdade ôntica e ontológica sempre se referem, de maneira diferente, ao ente em seu ser e ao ser em seu ente” (HEIDEGGER, 1996a, p. 119)158. Eis a essência ônticoontológica da verdade em geral, que só se torna possível no irromper dessa diferença. O Dasein, por sua vez, é exatamente o ente que compreende o ser, e o compreende a partir da diferença ontológica, mas qual seria o fundamento dessa diferença? Heidegger dirá: a transcendência do Dasein. É o que nos confirma PÖGGELER, ao afirmar que “A diferença ontológica é mantida em aberto pela existência, que se relaciona com o ente compreendendo o ser, e assim diferencia entre ser e ente. Esse diferenciar, a ascensão do ente para o ser, designa Heidegger por transcendência da existência” (2001, p. 93). Convém aqui olharmos para o caminho percorrido, a fim de nos orientarmos em nossa trajetória. Começamos registrando a pujança do princípio do fundamento em nossas vidas, posto que a todo momento damos fundamento às nossas relações com os entes, e mais originariamente, antes mesmo de fundamentar enunciados, quando já me ocupo de algo sobre o qual eles se referem, esse ocupar-me já se dá de forma fundamentada. Também no mundo do Direito, nossas ações reclamam por fundamento, o que justifica a busca por sua essência, a qual não é alcançada na simples alocação do princípio na categoria de princípio fundamental (ou mesmo o princípio fundamental). De fato, apenas delinear essa posição não nos esclarece nada sobre o fundamento em si, o princípio não fala do fundamento, mas do ente (“todo ente tem um fundamento”). Entretanto, tomado em uma nova tonalidade (nada é sem fundamento), vimos que essa premissa acaba por ser perturbada, já que o fundamento e ser tornam-se o mesmo. Exatamente por isso, buscar o fundamento para o próprio princípio é inócuo, já que o ser é o sem-fundo (Abgrund). Assim, “Ontische und ontologische Wahrheit betreffen je verschieden Seiendes in seinem Sein und Sein von Seiendem“ (HEIDEGGER, 2004, p. 134). 158 143 curiosamente, nessa busca penetrante à procura do fundamento último, que possa sustentar-nos na tarefa de erigir o projeto, acabou por lançar-nos no abismo, marcando, como adiante veremos, a nossa própria finitude e historicidade. De fato, na busca do fundamento damos um salto que nos lança em um abismo e numa queda, cuja profundidade não pode ser limitada a um chão, exatamente porque o fundamento “é” o mesmo que ser, e ser “é” o sem-fundo. Esse salto marca a nossa transcendência. Foi exatamente aí que registramos um ponto de inflexão em nossa jornada, partindo para a explicitação da conexão entre o princípio do fundamento e a verdade: a essência do fundamento está ligada à essência da verdade; por sua vez, a essência da verdade haure a sua possibilidade na essência da transcendência; e logo, a essência do fundamento tem que conectar-se à essência da transcendência. Esquematicamente: FUNDAMENTO TRANSCENDÊNCIA VERDADE Figura 3: fundamento, verdade e transcendência Fonte: elaborado pelo autor O entrelaçamento dessa tríade159 pode então ser assim resumido (HEIDEGGER, 1996a, p. 121): A breve exposição da dedução leibniziana do principio da razão, partindo da essência da verdade, tinha como meta elucidar a conexão do problema do fundamento com a questão da possibilidade interna da verdade ontológica, isto quer afinal dizer, com a questão ainda mais originária e, por conseguinte, ainda mais ampla da essência da Aqui centramo-nos nos três momentos referidos em uma unidade, mas bem poderíamos explicitar outros, a exemplo do que fez Pöggeler, ao inserir a diferença ontológica naquela linha de desdobramento: “A indagação pelo fundamento conduz à indagação pela verdade, a indagação pela verdade à indagação pela diferença ontológica, a indagação pela diferença ontológica à indagação pela transcendência da existência” (2001, p. 93). 159 144 transcendência. A transcendência é, assim, o âmbito em cujo seio o problema do fundamento deverá ser encontrado160. Então para mais nos aproximarmos da essência do fundamento, ocupemo-nos da transcendência. Para Heidegger ela significa ultrapassagem, e assim, pressupõe um transcendente que a realiza, algo que é transcendido nesta ultrapassagem e algo para o qual de transcende (de algo para algo). Pois bem, quem realiza a ultrapassagem e, portanto, quem transcende é o próprio Dasein. Por sua vez, o horizonte em direção ao qual essa ultrapassagem se realiza é o mundo. E aquilo (ou aquele) que é transcendido é o ente. Porque é o Dasein quem realiza a ultrapassagem, isso ficará mais claro ao longo do texto, entretanto, já podemos assegurar que não se trata de um modo de comportamento que se possa dizer voluntário, fruto de uma decisão, que se coloque ao lado de tantos outros possíveis, mas um modo de ser que ingressa na própria constituição fundamental da existência humana e que está na base de qualquer outro. Portanto, a ultrapassagem não é ela mesma uma possibilidade, mas a própria condição de possibilidade do Dasein, o qual, sendo-no-mundo, já sempre transcende os entes. E porque a transcendência copertence ao Dasein, ele não se põe anteriormente existente diante de uma barreira que necessita transpor, ou ainda diante de um abismo que lhe imponha ultrapassar; ao contrário, ele já é sempre lançado no mundo. Por isso mesmo, não há um sujeito ou ego isolado que seja antes dessa decisão ou momento da transcendência, o que acaba por rechaçar a ainda insistentemente sustentada relação sujeito-objeto, em que exatamente aí temos um mundo (ôntico) diante de um sujeito que se põe previamente e distintamente dele “Die kurze Darstellung der Leibnizischen Ableitung des Satzes vom Grunde aus dem Wesen der Wahrheit sollte den Zusammenhang des Problems des Grundes mit der Frage nach der inneren Möglichkeit der ontologischen Wahrheit, d.h. schließlich mit der noch ursprünglicheren und demzufolge umgreifenden Frage nach dem Wesen der Transzendenz verdeutlichen. Die Transzendenz ist demnach der Bezirk, innerhalb dessen das Problem des Grundes sich muß antreffen lassen.” (HEIDEGGER, 2004, p. 136-137). 160 145 para, após, penetrá-lo para desvendá-lo. Na verdade, essa totalidade de entes já é, desde sempre, ultrapassada pelo Dasein. Feitas essas considerações iniciais, se vimos que “da transcendência faz parte mundo, como horizonte em direção ao qual acontece a ultrapassagem”161 (HEIDEGGER, 1996a, p. 125), então o conceito de mundo se torna importante para que possamos melhor compreender a própria transcendência e, com ela, a essência do fundamento. Mais acima (item 4.2.2), nós o exploramos e àquelas considerações remetemos o leitor. De qualquer forma, destacamos que mundo não é um conceito objetivo que reflita uma totalidade de entes ou o lugar onde eles possam ser reunidos, a exemplo de um continente. Mundo faz parte da estrutura existencial do próprio Dasein (o Dasein “é-no-mundo”), ou seja (HEIDEGGER, 1996a, p. 134-135): É, por conseguinte, enganoso recorrer à expressão mundo, quer como caracterização da totalidade das coisas da natureza (conceito natural de mundo), quer como nome para a comunidade dos homens (conceito pessoal de mundo). Muito antes, a relevância metafísica do significado, mais ou menos destacado de “kosmos”, “mundus”, mundo, reside no fato de que visa à interpretação do ser-aí humano em sua referência ao ente em sua totalidade [...] mundo faz parte de uma estrutura referencial que caracteriza o ser-aí como tal, estrutura que já denominamos de serno-mundo162. E o filósofo complementa: “Mundo como totalidade não é ente, mas aquilo a partir do qual o ser-aí se dá a entender a que ente pode dirigir-se seu comportamento “Zur Transzendenz gehört Welt als das, woraufhin der Überstieg geschieht.” (HEIDEGGER, 2004, p. 141). 162 “Es ist daher gleich irrig, den Ausdruck Welt entweder als Bezeichnung der Allheit der Naturdinge (naturaler Weltbegriff) oder als Titel für die Gemeinschaft der Menschen (personaler Weltbegriff) in Anspruch zu nehmen. Vielmehr liegt das mein physisch Wesentliche der mehr oder minder klar abgehobenen Bedeutung von κόσμος, mundus, Welt darin, daß sie auf die Auslegung des menschlichen Daseins in seinem Bezug zum Seienden im Ganzen abzielt. Aus Gründen, die hier nicht zu erörtern sind, stößt aber die Ausbildung des Weltbegriffes zuerst auf die Bedeutung, gemäß der er das Wie des Seienden im Ganzen kennzeichnet, so zwar, daß dessen Bezug zum Dasein zunächst nur unbestimmt verstanden wird. Welt gehört zu einer bezughaften, das Dasein als solches auszeichnenden Struktur, die das In-der-Welt-sein genannt wurde.“ (HEIDEGGER, 2004, p. 155-156) 161 146 e como se pode comportar com relação a ele”163 (1996a, p. 135). Destaque-se que o fato de o conceito de mundo estar conectado diretamente ao Dasein, como um seu existencial, não pode nos conduzir a uma esfera ou horizonte interno de um sujeito, que privilegie esse polo de uma possível relação sujeito-objeto em toda tarefa do conhecimento. Da mesma forma que nos parece haver sido bem demarcado que mundo não é uma totalidade de entes, um conceito objetivo que venha a privilegiar o polo oposto daquela mesma relação. Heidegger é taxativo quanto a essa advertência (1996a, p. 136): Como determina a referência do ser-aí ao mundo? Já que ele não é ente e já que deve fazer parte do ser-aí, não pode, manifestamente, esta referência ser pensada como a relação entre o ser-aí como um ente e o mundo como outro. Se isto não é possível, não é então o mundo levado para dentro do ser-aí (sujeito) e declarado como algo puramente “subjetivo”? Trata-se, contudo, de primeiro conquistar pela clarificação da transcendência uma possibilidade para a determinação daquilo que significam “sujeito” e “subjetivo”. No fim o conceito de mundo deve ser assim entendido, que o mundo realmente seja subjetivo, mas que justamente por causa disso não caia como ente na esfera interna de um sujeito “subjetivo”. Pelo mesmo motivo, porém, não é o mundo também puramente objetivo, se isto significa: fazendo parte dos objetos que são.164 E complementa (1996a, p. 139): [...] a transcendência não pode ser nem revelada nem compreendida por uma fuga para o objetivo, mas unicamente por uma interpretação ontológica, constantemente “Welt als Ganzheit ist kein Seiendes, sondern das, aus dem her das Dasein sich zu bedeuten gibt, zu welchem Seienden und wie es sich dazu verhalten kann.” (HEIDEGGER, 2004, p. 157). 164 “Wie bestimmt sich nun der Bezug des Daseins zur Welt? Da diese kein Seiendes ist und Welt zum Dasein gehören soll, kann dieser Bezug offenbar nicht gedacht werden als die Beziehung zwischen dem Dasein als dem einen Seienden und der Welt als dem anderen. Wenn nicht, wird dann die Welt nicht in das Dasein (Subjekt) hineingenommen und für etwas rein »Subjektives« erklärt? Allein es gilt doch erst durch die Aufhellung der Transzendenz eine Möglichkeit zu gewinnen für die Bestimmung dessen, was »Subjekt« und »subjektiv« besagen. Am Ende muß der Weltbegriff so gefaßt werden, daß die Welt zwar subjektiv, d. h. daseinszugehörig ist, aber gerade deshalb nicht als Seiendes in die Innensphäre eines »subjektiven« Subjekts fällt. Aus demselben Grunde aber ist sie auch nicht bloß objektiv, wenn dies bedeutet: unter die seienden Objekte gehörig.”(HEIDEGGER, 2004, p. 158) 163 147 renovada, da subjetividade do sujeito, que tanto procede contra o “subjetivismo” como deve recusar-se ao “objetivismo”.165 Até aqui estudamos a transcendência para melhor compreendermos a essência do fundamento. Procuremos melhor esclarecer essa ponte. Vimos que a transcendência é um elemento da estrutura existencial do Dasein, de maneira que não somos primeiro para depois lançarmo-nos ao mundo, compreendendo os entes, os outros e nós mesmos; ao contrário, nossa natureza é ekstática, existencial, exatamente porque desde sempre já somos lançados no mundo e, por isso mesmo, transcender em direção a esse horizonte faz parte da nossa existência e torna-se possibilitadora de qualquer outro modo de ser e comportar-se. Ora esse horizonte determina nossas relações com os entes exatamente na base de um projeto lançado, cujo fundamento é a liberdade, é ela que faz imperar o mundo, não sendo ela, contudo, “apenas uma ‘espécie’ particular de fundamento, mas a origem do fundamento em geral. Liberdade é liberdade para o fundamento”166 (HEIDEGGER, 1996a, p. 141), daí Pöggeler referir-se à transcendência em três assertivas fundamentais (2001, p. 94): a) “Ela dever ser entendida como liberdade”; b) “liberdade como deixar viger o mundo”; e c) “liberdade como deixar viger o mundo é a origem do fundamento em geral”. A liberdade, enquanto deixar valer o mundo, manifesta-se no fundar, o qual, por sua vez, está estruturado em três modos que se articulam em uma unidade, a saber: a) fundar como erigir ou instituir (Stiften); b) fundar como tomar-chão (Bodennehmen); e c) fundar como fundamentar (Begründem). “daß die Transzendenz nicht durch eine Flucht ins Objektive enthüllt und gefaßt werden kann, sondern einzig durch eine ständig zu erneuernde ontologische Interpretation der Subjektivität des Subjekts, die dem »Subjektivismus« ebenso entgegenhandelt, wie sie dem »Objektivismus« die Gefolgschaft versagen muß.” (HEIDEGGER, 2004, p. 159-160). 166 “Die Freiheit als Transzendenz ist jedoch nicht nu reine eigene ’Art’ von Grund, sondern der Ursprung von Grund überhaupt. Freiheit ist Freiheit zum Grunde.” (HEIDEGGER, 2004, p. 165). 165 148 O instituir está conectado à noção de projeto, como possibilidade existencial do Dasein e, portanto, reflete mesmo o imperar da liberdade. Essa liberdade, enquanto deixar valer o mundo, está na base da própria transcendência, eis que é pela ultrapassagem do ente em direção ao seu ser (e, portanto, “instaurando” a diferença ontológica), que o horizonte do mundo se descortina como projeto concreto. Este contexto é bem esclarecido por Márcio Paiva (1998, p. 126): O projeto (Entwurf) das possibilidades existenciais se deixa explicar como “ultrapassamento” (Uberwurf) do ente, e do homem enquanto existente singular, na essencial abertura da transcendência ao mundo. Projetar significa transcender a realidade ôntica em direção ao seu significado ontológico. Mas este significado é ainda determinado no âmbito do mundo, num horizonte que, embora mais amplo que as possibilidades do Dasein, permanece sempre essencialmente finito. Assim, o Dasein, como ser lançado, deixa valer o mundo erigindo o projeto com fundamento na liberdade, e o faz enquanto transcende o ente, instaurando a verdade ontológica. Portanto, lançado em projeto, ele funda, mas para tanto tem que estar junto aos entes, sem o que não haverá a ultrapassagem, por isso, diz-se que o Dasein “toma-chão” em meio ao ente e assim conquista fundamento. Assim, “o Dasein funda (ou seja, institui) um mundo só fundando-se em meio ao ente. Ora o encontrar-se em meio ao ente expressa o fundar como tomar terra, tomar-base, Bodennehmen: tomando base, o fundar do instituir, do estabelecer é fundado” (DE PAIVA, 1998, p. 120-121), ganha fundamento. Essa correlação primordial entre o instituir e o tomar-chão é essencial para o projeto, uma vez que revela a própria finitude do Dasein, posto que, ao erigir, o Dasein sempre se excede, já que “o projeto de possibilidade é, segundo sua essência, sempre mais rico que a posse que repousa naquele que projeta”167 (HEIDEGGER, 1996a, p. 143), mas a posse é também própria do Dasein, porquanto está sempre “Der Entwurf von Möglichkeiten ist seinem Wesen nach jeweils reicher als der im Entwerfenden schon ruhende Besitz.” (HEIDEGGER, 2004, p. 167). 167 149 situado em meio ao ente, subtraindo-se dele certas possibilidades, o que é próprio da facticidade. Como afirma Ernildo Stein168: O fundar como transcender revela-se como excesso em face do fundar como tomarchão; e este revela-se como subtração em face daquele. Estes dois comportamentos em face do fundar, ou melhor, o fundar como estes dois comportamentos, revelam a estrutura ambivalente da finitude. Não há transcendência sem rescendência e viceversa; a transcendência exige o tomar-chão como sua possibilidade e o tomar-chão recorre à transcendência para a sua auto-revelação. Interessante notar que nosso estudo da transcendência e da liberdade acabou por nos lançar no plano da finitude. É curioso porque estamos na busca do fundamento e essa senda sempre esteve associada à procura de um alicerce seguro e absoluto, a partir do qual pudéssemos arquitetar deduções válidas e apodíticas. Essa anomalia do pensamento é justificada exatamente na tendência à construção de um horizonte fixo que sirva de base à construção do nosso edifício do conhecimento. Reportando-se ao clássico exemplo kantiano da pomba, que imaginaria pudesse alçar um voo de maior sucesso sem a resistência do ar, Ernildo Stein a ele atribui a abertura do caminho da finitude e, em feliz paralelo, estabelece (1969, p. 405): O movimento de transcendência não é tanto uma fuga da condição da finitude do homem e uma tentativa de projetá-la num outro fundamento. É antes a experimentação positiva da própria condição da finitude. O transcender é um esforço de penetrar nas raízes da própria finitude; é um movimento para sentir a feliz resistência do ar que é condição de o homem poder conhecer-se em sua profundidade. A resistência que o homem experimenta ao realizar o que a tradição pensava como vôo para além, para um outro mundo, para o desprovido, da sensibilidade, é precisamente a positiva condição da finitude e a transcendência é o próprio exercício da finitude. E complementa: “A transcendência não é a nostalgia do vácuo, da ausência de resistência do ar; é, isto sim, um ensaio constante para assumir, de modo próprio, o 168 Nota de rodapé na p. 141 em HEIDEGGER, 1996a. 150 peso e a resistência da finitude da condição humana como positiva” (STEIN, 1969, p. 409). Parece-nos então que o fundamental se encontra nesta diferença entre o erigir e o tomar-chão, como momentos complementares em que eu fundamento o meu projeto. O erigir está associado ao excesso que se apresenta na abertura, infinita em possibilidades, mas que deve vir acompanhada da restrição que o meu projeto possível e efetivo assume. O fundamentar o projeto, para que ele seja fundado, há que ser um ponto de convergência entre aquelas duas outras pontas. Mas como o excesso é contido? A contenção deriva do fato de o Dasein não existir antes como sujeito “para então, caso subsistam objetos, também transcender; mas ser-sujeito quer dizer: ser ente na e como transcendência”169 (HEIDEGGER, 1996a, p. 122). Portanto, sempre já me encontro lançado junto aos entes intramundanos e com os outros, por meio dos quais mantenho em aberto a verdade ontológica, pois me relaciono com os entes compreendendo o seu ser, e exatamente este diferenciar ser e ente é fruto da imagem de que neste último não me detenho, mas o ultrapasso, no horizonte do próprio mundo enquanto projeto aberto, ou seja, no âmbito da transcendência. Daí porque a transcendência é o fundamento da verdade ontológica. Agora, entendamos melhor como o fundar enquanto fundamentação mostrase como modo articulador que reúne os outros dois já estudados. O Dasein, enquanto ente lançado, assume possibilidades consolidadas em projeto marcado pelo excesso, sempre mais ricas que a posse efetiva, eis que, porque ele já sempre é situado junto aos entes, vêm contidas. Essa subtração de possibilidades do seu poder-ser no mundo decorre da sua própria facticidade. Reside exatamente aí a fundamentação. Nossa compreensão do porquê de ser assim e não de outra forma. O excerto é um resumo esclarecedor (HEIDEGGER, 1996a, p. 144): “Das Subjekt existiert nie zuvor als ‘Subjekt’, um dann, falls gar Objekte vorhanden sind, auch zu transzendieren, sondern Subjektsein heißt: in und als Transzendenz Seiendes sein.” (HEIDEGGER, 2004, p. 138). 169 151 O fundar que erige antecipa, como projeto de mundo, possibilidades de existência. Existir significa sempre: situado em meio ao ente, comportar-se em face dele — do ente que não possui o caráter do ser-aí, de si mesmo e de seu semelhante — de tal maneira que neste comportamento situado sempre esteja em mira o poder-ser do seraí. No projeto de mundo é dado um excesso de possível, em vista do qual e no ser perpassado pelo imperar do ente (real), que de todos os lados nos cerca no sentimento de situação brota o porquê.(grifamos)170 Comecemos com a quinta aula de Heidegger, inserida na obra “O princípio do fundamento”. Ali, nosso filósofo se vale dos versos de Angelus Silesius (HEIDEGGER, 1999, p. 59)171: A rosa é sem porquê; ela floresce, porque ela floresce, Ela não repara em si própria, não pergunta, se a vemos. Uma leitura apressada do excerto poderia nos conduzir à falsa impressão de que a rosa é sem fundamento, já que sem porquê. Entretanto, a aparente contradição que logo adiante se instaura já sinaliza para o contrário. É que o porquê instaura uma relação pautada no questionar, na pergunta pelas razões; ao passo que a resposta se dá no “porque” que, em seguida, o verso apresenta (porque ela floresce). Ora, se não há porquê, então por que adiantar que a rosa floresce porque ...? Mas toda essa aparente contradição se dissolve quando a nossa interpretação do texto marca que, “sem fundamento” e “sem porquê” não são o mesmo. Em verdade, não se está afirmando que a rosa não tenha um fundamento para florescer. Ela o tem, e o “Das stiftende Gründen gibt als Weltentwurf Möglichkeiten der Existenz vor. Existieren besagt immer: inmitten von Seiendem befindlich zu Seiendem — zu nicht-daseinsmäßigem, zu sich selbst und seinesgleichen — sich verhalten, so zwar, daß es in diesem befindlichen Verhalten um das Seinkönnen des Daseins selbst geht. Im Weltentwurf ist ein Überschwung von Möglichem gegeben, im Hinblick worauf und im Durchwaltetsein von dem in der Befindlichkeit umdrängenden Seienden (Wirklichen) das Warum entspringt.” (HEIDEGGER, 2004, p. 168-169). 171 “Die Ros ist ohn warum ; sie blühet, weil sie blühet, sie acht nicht ihrer selbst, fragt nicht, ob man sie siehet.“ (HEIDEGGER, 1957, p. 68) 170 152 “porque floresce” o confirma172. Entretanto, a despeito de cair sob o campo de influência do princípio, a rosa não pede a si mesma fundamentos para ser o que é (ela não tem porquê), este caráter é próprio do Dasein em sua existência, pois ao transcender, ultrapassa o ente desvelando o seu ser, e ao fazê-lo, exige fundamentação, a qual, em seu caráter transcendental (porque integra a estrutura da transcendência), é a origem do porquê em geral173. Nas palavras de Heidegger (1996a, p. 144-145): Pelo fato de a transcendência do ser-aí, enquanto projeta e está situada, enquanto elabora compreensão de ser, fundamenta, e pelo fato de este fundar ser co-originário com os dois primeiros citados, na unidade da transcendência, isto é, pelo fato de brotar da liberdade finita do ser-aí, por isso pode o ser-aí, em suas legitimações fáticas e justificações, desembaraçar-se das "razões", sufocar o apelo a elas, transtorná-las e encobri-las. Em conseqüência desta origem da fundamentação e, por conseguinte, também da legitimação, fica, em cada situação, entregue à liberdade, até que ponto a legitimação é exercida e se ela consente na fundamentação propriamente dita, isto é, no desvelamento de sua possibilidade transcendental.174 Para concluirmos este tópico, impõe-se uma consideração mais detalhada acerca da proposição exposta mais acima, no sentido de que a fundamentação é a origem do porquê em geral. Inicialmente, convém destacar que o fundar, em todos os seus três modos estudados, integra a estrutura unitária da transcendência e, por isso, porque faz parte dela, é que o seu conceito pode ser dito transcendental. Logo, De fato, a rosa floresce a partir de si, mas o princípio rationis também a ela se aplica, eis que, tornando-se ela objeto de nossa representação, assume para nós o caráter de reivindicação para a entrega de fundamentos (reddendae rationis), daí afirmar-se que o princípio “é legítimo a partir da rosa, mas não para a rosa” (HEIDEGGER, 1999, p. 64). 173 Mais adiante, ao final deste tópico, justificaremos esta afirmação e destacaremos a sua importância no âmbito do nosso estudo. 174 “Weil die Transzendenz des Daseins als entwerfend-befindliche, Seinsverständnis ausbildend, begründet und weil dieses Gründen in der Einheit der Transzendenz mit den beiden erstgenannten gleichursprünghch ist, d. h. der endlichen Freiheit des Daseins entspringt, deshalb kann das Dasein in seinen faktischen Ausweisungen und Rechtfertigungen sich der »Gründe« entschlagen, den Anspruch auf sie niederhalten, sie verkehren und verdecken. Diesem Ursprung der Begründung und damit auch der Ausweisung zufolge bleibt es im Dasein jeweils der Freiheit überlassen, wie weit die Ausweisung getrieben wird und ob sie sich gar zur eigentlichen Begründung, d. h. Enthüllung ihrer transzendentalen Möglichkeit versteht.” (HEIDEGGER, 2004, p. 170). 172 153 chamaremos de transcendental tudo aquilo que faz parte essencialmente da transcendência e que dela obtém a sua condição de possibilidade175. Portanto, porque a tripla raiz do princípio do fundamento está estruturada no âmbito transcendental, não devemos considerar que a “última” de suas vertentes (a fundamentação) seja aquela de que trata os arrazoados das decisões e posicionamentos do homem do Direito. De fato, o próprio Heidegger o afirma: “Fundamentar não será tomado aqui no estreito e derivado sentido do demonstrar de proposições ôntico-teoréticos, mas numa significação fundamentalmente originária”176 (1996a, p. 143). De qualquer sorte, todo questionar, exigir e oferecer razões, ou seja, o estabelecer o porquê das coisas e dos enunciados sobre elas, está possibilitado pelo próprio fundamento, daí a necessidade da busca de um chão mais originário a todo nosso questionar e propor razões. E sendo a ele mais originário, também com ele guarda imediata correlação e pertinência. Dito de outra forma e na linha do que estudamos até aqui, o Dasein, em seu projeto fático, ao transcender o ente, instaurando a diferença ontológica, ele o faz de forma fundamentada. É, pois, a fundamentação, o modo de fundar articulador do projeto com a posse fática que o torna possível. Assim, o ente, ao desvelar-se em seu ser, reclama fundamento que a ele deve ser devolvido (ratio reddendae). Ora, nós o fazemos pela linguagem, instaurando proposições, mas essas, antes mesmo de serem adotadas, já o são com substrato em uma possibilidade mais originária, já que eu somente fundamento meus enunciados representativos porque meu projeto é desde sempre fundado177. E porque todos os modos de fundar estão conectados e fazendo O conceito de mundo, tal como aqui estudado, também pode ser assim qualificado. “Begründen soll hier nicht in dem engen und abgeleiteten Sinne des Beweisens ontisch-theoretischer Sätze genommen werden, sondern in einer grundsätzlich ursprünglichen Bedeutung.” (HEIDEGGER, 2004, p. 168). 177 Aqui se aplicam inteiramente as considerações que mais acima fizemos acerca da verdade ontológica. Aliás, trata-se de uma aplicação que vai muito além de um simples paralelo, a relação de pertinência é essencial, como já nos alerta Heidegger: “chama-se o fundamentar transcendental verdade ontológica” (1966a, p. 144). 175 176 154 parte da transcendência, então é lícito afirmar que o plano da fundamentação aqui delineado é transcendental. De qualquer forma, se nossa preocupação está no plano do dar e exigir razões, legitimando nossa compreensão, seria impensável fazê-lo sem uma melhor explicitação dessa estrutura transcendental que a possibilita. E é exatamente nessa base transcendental possibilitadora do jogo das razões que nós podemos destacar a importância de que toda legitimação e fundamentação do meu instituir há que estar associada ao tomar-chão revelador de nossa finitude. E o que tem tudo isso a ver com o Direito e a sua crise? Quando pelo Direito é instituído um projeto que se pretende legitimar-se nele mesmo, na própria regra legal e desconsiderando o plano da facticidade, qualquer enunciado fundado nessa premissa desconsidera a estrutura transcendental da fundamentação em geral. Não é demasiado lembrar que o instituir se articula com o tomar-chão, que toda legitimação do projeto há que se dar no “comércio” dos homens com os entes, no plano da transcendência e da verdade ontológica. Portanto, também no mundo do Direito a legitimação há que se encontrar também nessas bases, e o problema é que muitas vezes a facticidade é dispensada porque o instituir está fundado no absoluto referencial do próprio Direito. Um círculo metafísico em que a lei assume a posição do ser como fundamento. 155 8 A QUESTÃO HERMENÊUTICA Em todo nosso caminho, há uma crítica perene ao ideal de um marco que se apresente como fundamento absoluto ao nosso pensar e agir no mundo do Direito. O item precedente deixa claro que todo agir é um agir fundado em seu tríplice modo, o que abarca a articulação de todo instituir com o chão em que o Dasein toma base, isso nos conduz necessariamente a um projeto marcado pela finitude. Em sua preleção de 1923, Heidegger desfere uma crítica à ideia de consciência histórica, estendendo-a também à própria filosofia, sob o argumento de que se pautam em um marco planificador, onde um substrato absoluto serviria de referência à alocação das diversas regiões de ser, mediante um processo classificatório e formal dentro deste sistema a priori erigido178. Entretanto, não se toma em conta que talvez seja o próprio ato de lidar com essas regiões, buscando interpretá-las e explicitá-las que consistiria o erigir do sistema. Esse referencial não explicitado ou não tomado de maneira apropriada faz com que se perca o que de essencial temos, que é exatamente este estar lançado em um projeto aberto em possibilidades e, portanto, toda interpretação somente será possível no âmbito desta abertura mesma. É aí, por uma abertura instaurada pelo próprio Dasein, que ele se dá 178 Essa morfologia daninha é assim exposta (HEIDEGGER, 2008b, p. 61): Lo universal, el todo único de lo ente, que lo engloba todo y reduce todo a unidad —ese es el tema. Dado que aparece una multiplicidad de regiones del ser, de capas y de niveles de ser, surge en consonancia con ella el cometido de crear una sistemática que la envuelva, lo que conlleva una doble tarea: en primer lugar, esbozar una estructura que sirva de marco, esto es, las líneas fundamentales de la trama de clasificación; luego, asignar (y demasiado pronto) a los entes concretos su lugar correspondiente en los apartados del sistema. En ese modo de observar el todo de lo ente disfrutan de un carácter señalado las relaciones de orden como tales, las posiciones jerárquicas como tales, el tener asignado un grado como tal, el ser siempre distinto de... y con ello otra vez igual que... como tal. Lo relacional en cuanto tal es lo que se antepone y acaba coinvirtiéndose en lo verdaderamente objetivo. Al ser lo que prevalece, lo que domina en todo, constituye el ser verdadero. Lo que procura orden es lo verdaderamente inalterable en sí mismo, lo que está libre de la variabilidad de lo subsumido en él, el en-sí supratemporal, ser. 156 a entender a si mesmo. Exatamente esse existir (ek-sistência), já desde sempre lançado e fora, é o que marca a facticidade179. Por sua vez, a facticidade conduz nossa reflexão ao campo da hermenêutica, aqui entendida como “o modo unitário de abordar, situar e aceder a ela, questionar e explicar a facticidade”180 (HEIDEGGER, 2008b, p. 27). Ocorre que esse questionar e entender integra o âmbito da própria facticidade, pelo que a hermenêutica é caminho e objeto de sua própria análise. Esse círculo curioso demonstra, em outras palavras, que somos enquanto na facticidade e, assim sendo, já desde sempre estamos imersos em um plano de compreensão e interpretação dessas possibilidades, havendo aí um envolvimento que não permite jamais um olhar desinteressado, não marcado por uma disposição afetiva, não condicionado por um haver prévio, aos moldes de um lidar e conhecer objetivos, tão idealizados pela ciência. Em uma linha: em seu poderser o Dasein está condicionado à facticidade. Há, pois, uma articulação essencial entre o Dasein e os demais entes, sem o qual não apenas não posso compreender-me, como sequer poderia ser. Essa correlação essencial é exposta com clareza por Emmanuel Carneiro Leão, em sua apresentação à tradução que fez da Introdução à Metafísica, de Heidegger (1999a, p. 12): Do ente o homem não pode prescindir. Em todas as suas indústrias e atividades, para pensar e querer, sentindo e amando, na vida e na morte, o homem não se basta a si mesmo. Sempre necessita de algo, que ele mesmo não é. Sem esse outro, o homem não pode ser. Edificando-se necessariamente dessa indigência, a existência humana exige que o ente a afete, se lhe dê e manifeste. Para existir o homem tem que imergirse e entregar-se aos entes. A palavra imanência indica essa contingência. A necessidade do homem de estar sempre presente ao mundo dos entes, para chegar a “Facticidad es el nombre que le damos al carácter de ser de nuestro existir proprio” (HEIDEGGER, 2008b, p. 25). Aqui já advertimos que o “próprio” antes referido não nos remete ao indivíduo individualizado. Afasta-se desde logo qualquer pretensão crítica de um solipsismo presente, tal como mais adiante endereçaremos uma fundação para esta afirmação, na base da própria analítica existencial. 180 “Der Ausdruck Hermeneutik soll die einheitliche Weise des Einsatzes, Ansatzes, Zugenens, Befragens und Explizierens der Faktizität anzeigen“ (HEIDEGGER, 1988, p. 09). 179 157 ser ele mesmo. Exprime que o homem não pode ser o ente que é, senão encarnado no mundo. Em contínua comunhão com os outros entes. Portanto, é pela hermenêutica que me dou a entender a mim mesmo, e esse entendimento não é marcado por um roteiro paramétrico e metódico que me permita alcançar esta meta de forma objetiva e determinantemente definitiva. Essa exposição em que o Dasein se põe para si mesmo não é algo que se submeta a qualquer cânone, mas colhida na própria existência concreta, de forma que a hermenêutica também há que se dar no viver fático, não podendo ela mesma ser definitiva e liquidada ao ser atingida uma meta supostamente final. Ao contrário, a hermenêutica é um modo de ser que se marca no demorar-se do Dasein junto a ela. Mas se é assim, se a hermenêutica tem uma associação direta com o compreender e o interpretar, sendo ela mesma um existencial do Dasein, e se ademais não podemos recrutá-la através de um método que lhe permita potencializar efeitos para uma melhor compreensão do modo pelo qual ele se entende no mundo, então isso não nos levaria já de antemão a uma frustração em nossa tarefa de compreensão do fenômeno jurídico e na busca de um caminho mais eficiente para que este mesmo fenômeno transpareça de maneira pujante? Qualquer esforço de autocompreensão do Dasein não acabaria por evidenciar o quanto impotente somos neste processo compreensivo? Não seria um sinal de que seguimos por um caminho que nos põe novamente junto ao abismo? As considerações que se seguem pretendem encaminhar algumas reflexões acerca das questões postas. 8.1 O impessoal Não há realmente que buscar algum método que me permita alcançar resultados eficientes neste processo compreensivo, posto que tal rumo nos coloca na 158 contramão de tudo que vimos até aqui. É que essa eficiência ou nos quer pôr a serviço de um produzir na forma da disposição, tal como advertimos no estudo da essência da técnica (item 2.3), ou está referida a um ideal objetivo (e objetificante) que sirva de referencial a qualquer compreensão, uma matriz comparativa que permita, por seu caráter inconteste e absoluto, aferir se minha compreensão de mim mesmo e do meu mundo se aproxima ou se afasta dela, hipótese que nossas colocações acerca da finitude rechaçariam de plano. Portanto, que o método adequado não seja o caso, nenhuma dúvida. Entretanto, tal não quer significar que não exista um modo de colocar-se no plano compreensivo, a fim de que se permita, não um modo eficiente de compreender, tampouco um modo correto referido a um paradigma inconteste, mas uma correspondência ao apelo do próprio ser e assim o seu desvelamento, mantendo-nos na verdade. Ademais, um “como hermenêutico” (que nada tem a ver com método, repita-se), que nos ponha diante do fenômeno que se apresenta; e não o encubra e a própria compreensão por um já interpretado comum, recepcionado de forma acrítica. É que nessa postura, conquanto aí vigore também um modo de ser do Dasein (e talvez o mais cotidiano), ele não se assegura de si mesmo. Esse automascaramento é assim posto por Heidegger (2008b, p. 52-53, tradução nossa181): “Lo ya-interpretado delimita de modo difuso el ámbito desde el cual el existir mismo plantea cuestiones y exigencias. Lo ya-interpretado es lo que da al «aquí» del estar-aquí fáctico el carácter de un estar orientado, lo que delimita concretamente su posible modo de ver y el alcance de su vista. El existir habla de sí mismo, se ve a sí mismo de tal y tal modo, y, sin embargo, eso es sólo una máscara con que el existir se cubre para no espantarse de sí mismo. Prevención «de» la angustia. Lo que se da a la vista es la máscara con la que el existir fáctico puede encontrarse consigo mismo, la máscara con la cual aparece ante sí como si «fuera». Eis o texto em alemão: “Die Ausgelegtheit umgrenzt flieβend den Bezirk, aus dem das Dasein selbst Fragen und Ansprüche stellt. Sie ist das, was dem «Da» im faktischen Da-sein den Charakter eines Orientiertseins, einer bestimmten Umgrenzung seiner möglichen Sichtart und Sichtweite gibt. Das Dasein spricht von ihm selbst, es sieht sich so und so, und doch ist es nur eine Maske, die es sich vorhält, um nicht vor sich selbst zu erschrecken. Abwehr «der» Angst. Solche Sichtgabe ist die maske, in der das faktische Dasein sich sich selbst begegnen läβt, in der es sich vor-kommt, als «sei» es [...]“ (HEIDEGGER, 1988, p. 32). 181 159 O já-interpretado delimita de modo difuso o âmbito a partir do qual o Dasein mesmo situa questões e exigências. O já-interpretado é o que dá ao “aqui” do estar-aqui fáctico o caráter de um estar orientado, o que delimita concretamente seu possível modo de ver e o alcance de sua vista. O Dasein fala de si mesmo, e, sem embargo, isso é somente uma máscara com que o Dasein se cobre para não espantar-se de si mesmo (prevenção da angústia). O que se dá à vista é a máscara com que o Dasein fático pode encontrar-se consigo mesmo, a máscara com a qual aparece ante si como se fosse [...] E quem lhe dá a máscara? Quem é que elabora essa interpretação determinante (o já interpretado)? Resposta: o impessoal, aquele que é todos e, ao mesmo tempo, não é ninguém! Salvemos a integridade do dito, em meio ao aparente paradoxo da frase. Após evidenciar a necessidade de retomar a pergunta pelo sentido do ser e ver o Dasein como o único ente capaz de compreender este sentido, Heidegger promoveu uma análise estrutural deste ente privilegiado, partindo não de uma tematização científica, mas essencialmente do seu modo de ser cotidiano. Essa analítica revelou a sua estrutura através do que denominou existenciais, em contraposição às categorias dos entes intramundanos, “puramente”182 subsistentes. Como insistentemente temos dito, o Dasein se peculiariza por ser ek-sistenz, por estar desde sempre lançado fora, como possibilidade, como projeto. É, pois, na existência que advém a sua singularidade, de forma que os existenciais, então, revelarão esse seu modo de ser na cotidianidade média. Nesse caminho, nem tanto por sua ontologia fundamental, mas sobretudo pela centralidade que o ente existente assume, a sua filosofia acaba sendo por muitos taxada de solipsista, individualista ou ainda ligada à filosofia da consciência183, destituída de preocupações éticas184, o que aliás, seus vínculos com o Partido Nazista Destaco o puramente subsistente entre aspas porque da análise do estar-junto aos entes intramundanos, a categorização desses entes como úteis, revela que seu ser se determina mais como instrumento, no seu ser-para algo, do que propriamente no modo de simples presenças. 183 Veja-se, nesse sentido, as observações de HABERMAS (2002, p. 196,197 e 212). 184 Cf. WOLIN (1990, p. 53). 182 160 confirmariam. Será? Seria Heidegger um pensador descomprometido com a ética? Ou em sua obra encontramos fundamentos convincentes para afirmar o contrário? Não ingressando no polêmico tema referente à sua vinculação ao nazismo, diríamos que o fato de a questão acerca do sentido do ser haver sido o cerne das preocupações do nosso filósofo, e o fato de que a colocação desta questão tenha passado pela estrutura do ser que poderia compreendê-la, tal não significa a impossibilidade de ver em sua obra espaço para a situação da questão ética. Muito ao contrário, se já não fosse o bastante a sua preocupação com a essência da técnica e os riscos que dela poderiam advir à humanidade, é essencialmente na colocação da analítica existencial do Dasein que se revelará a mais profícua compreensão do papel do outro em nossa maneira mais própria de existir. Como fundamento preliminar para essa assertiva, retornamos à questão dos existenciais. Dentre eles, assume relevo neste projeto o ser-no-mundo185 (in der Welt sein) e o ser-com os outros (Mitsein). Pelo primeiro, já o colocamos acima (item 4.2.2), o quanto é equivocada a ideia de que o mundo é uma exterioridade em que se lança o Dasein, juntamente com outros entes, à maneira de um continente que reúne esse conjunto ôntico como conteúdo, armadilha em que se cai fácil quando de uma precipitada interpretação do “ser em” um mundo. Da mesma forma, esclarecemos a noção de mundo como mundaneidade, como espaço de possibilidades em que se revela o Dasein. O que se põe de relevo neste momento é o fato de que esse mundo é um mundo desde sempre compartilhado com os outros (Mitwelt). Essa entrada do existencial do Mitsein não se dará de forma repentina, mas oportunamente será disposta em linha comparativa com o ser-junto aos entes intramundanos, a fim de que se perceba a radical diferença destes modos de ser do Dasein. Ademais, a importância dessa análise não se detém apenas no potencial elucidativo da O ser-no-mundo é um existencial tão fundamental que HEIDEGGER o vê como “constituição fundamental do Dasein que determina todo o seu modo de ser” (1997, p. 122, tradução nossa). 185 161 comparação, mas também no fato de que o Dasein, ao ser-junto aos entes intramundanos se revela na ocupação, onde o modo instrumental do uso das coisas nos eleva a um todo remissional que já abre o espaço para encontrar o outro. Heidegger exemplifica com a “descrição” do mundo circundante imediato do artesão, onde, trabalhando com o útil, comparecem os outros para quem a obra é destinada. Em suas palavras, “No modo de ser deste ente à mão, isto é, em sua condição respectiva, há uma essencial remissão a possíveis portadores, em relação aos quais o ente à mão deve estar feito sob medida” (1997, p. 122)186. Da mesma forma, ao contemplar uma paisagem natural, em que um barco se encontra ancorado em uma marina, dali me remeto ao seu possível dono etc.187 De notar-se que o encontro com os outros não se dá a partir de um eu isolado, enquanto uma substancialidade que se depara com semelhantes (mas diferentes) fora de si. O outro não se dá na forma de uma simples presença, exatamente porque se revela no mesmo modo de ser existencial que me é próprio. Assim, não se é primeiro para depois romper esse isolamento na revelação do outro, já se é com ele, ocupandose circunspectivamente de um mundo compartilhado (Mitwelt). Ser-com os outros é um existencial do Dasein. Esse aparecimento do outro revela então um caráter essencial ao plano ético, qual seja, o de que os outros não são aqueles que se distanciam de mim pela diferença, mas exatamente “aqueles de quem eu mesmo geralmente não me distingo” (HEIDEGGER, 1997, p. 123)188. “In der Seinsart dieses Zuhandenen, das heißt in seiner Bewandtnis liegt eine wesenhafte Verweisung auf mögliche Träger, denen es auf den »Leib zugeschnitten« sein soll“ (HEIDEGGER, 1967, p. 117). 187 Uma série de exemplos podem ser vistos na sequencia de “Ser e tempo” (1997, p. 122-123). 188 O trecho completo: “Los otros no quiere decir todos los demás fuera de mí, y en contraste con el yo; los otros son, más bien, aquellos de quienes uno mismo generalmente no se distingue, entre los cuales también está”. Eis o texto em alemão: “»Die Anderen« besagt nicht soviel wie: der ganze Rest der Übrigen außer mir, aus dem sich das Ich heraushebt, die Anderen sind vielmehr die, von denen man selbst sich zumeist nicht unterscheidet, unter denen man auch ist“ (HEIDEGGER, 1967, p. 118). 186 162 Exatamente porque o outro não é uma simples presença, dado que possui também o modo de ser existente, dele não posso ocupar-me, a exemplo do que faço com os úteis (o que, de certa forma, já nos aproxima da formulação kantiana que nos convoca a não usar o outro como um instrumento189). Daí dizer Heidegger não ser possível ocupar-se deste ente, já que ele é objeto de solicitude (Fürsorge) (1997, p. 126). A solicitude é, pois, um existencial do Dasein, podendo manifestar-se em formas negativas e positivas. Negativamente marcamos a convivência cotidiana, nas formas da indiferença e da deficiência (em que prescindimos um dos outros, passamos ao largo um do outro, não nos interessamos pelo outro etc.). Por sua vez, nos modos positivos de solicitude, vemo-nos diante da possibilidade de lançarmo-nos em substituição ao outro, suprimindo a sua liberdade de ser, quitando-se o seu cuidado próprio (forma substitutivo-dominadora); ou ainda na forma antecipativo-liberadora que, “ao invés de ocupar o lugar do outro, se antecipa ao seu poder-ser existentivo, não para quitar o seu cuidado, mas precisamente para devolvê-lo como tal” (HEIDEGGER, 1997, p. 126). Aqui se desfaz o uso do outro, ao modo de uma coisa, “ajudando-o a fazer-se transparente em seu cuidado e livre para ele” (HEIDEGGER, 1997, p. 127)190. De qualquer forma, é preciso ter em mente que esses modos da solicitude somente se tornam possíveis porque originariamente o Dasein é com os outros, o que nos remete à necessária marca da sua estrutura existencial e a uma conclusão importante: a de que o Dasein é por meio dos outros, ao que aliás Heidegger denominou “enunciado existencial de essência” (1997, p. 127)191. Em que pese essa relação de essência, cotidianamente o Dasein se absorve no mundo da ocupação sem ser ele próprio, “não é ele mesmo quem é, os outros lhe Cf. KANT, 1992, p. 69. “[...] ayuda al otro a hacerse transparente em su cuidado y libre para él”. Em alemão: “verhilft dem Anderen dazu, in seiner Sorge sich durchsichtig und für sie frei zu werden“ (HEIDEGGER, 1967, p. 122). 191 “Esto debe entenderse como un enunciado existencial de esencia”. Em alemão: “Das muß als existenziale Wesensaussage verstanden werden“ (HEIDEGGER, 1967, p. 123). 189 190 163 tomaram o ser” (HEIDEGGER, 1997, p. 130)192. O problema é que os outros que dispõem das possibilidades mais próprias do Dasein não são determinados. Quem realmente existe, assumindo a minha existência, são os outros, e aquele que toma em mãos o ser, enquanto conviver cotidiano “não é este nem aquele, não sou eu mesmo nem alguns, nem a soma de todos” (HEIDEGGER, 1997, p. 130)193, é o impessoal (das Man). Assim dissolvido em sua existência, o Dasein se incorpora ao modo de ser da impessoalidade, vivendo como os outros vivem, sentindo prazer naquilo que os outros sentem, opinando segundo a opinião dos outros, julgando como os outros julgam etc. Esse indeterminado “se” (tal como partícula de indeterminação do vendese, faz-se etc.) prescreve o modo de ser da cotidianidade, um modo de ser que se desvela na medianidade, na nivelação e na distancialidade, ao que Heidegger reuniu sob o título de publicidade. Com essa insensibilidade a qualquer diferença e sem qualquer relação originária com as coisas e com os outros, a publicidade nos dá a razão de tudo, regulando o horizonte de interpretação do mundo. Ela “obscurece todas as coisas e apresenta o assim encoberto como coisa sabida e acessível a qualquer um” (HEIDEGGER, 1997, p. 131)194. Assim fazendo, ele (o impessoal) antecipa qualquer juízo e alivia a carga da existência do Dasein, eis que lhe subtrai a responsabilidade, já que “na cotidianidade do Dasein, a maior parte das coisas são feitas por alguém de “No es él mismo quien es; los otros le han tomado el ser”. Em alemão: “Nicht es selbst ist, die Anderen haben ihm das Sein abgenommen“ (HEIDEGGER, 1967, p. 126) 193 “El quién no es éste ni aquél, no es uno mismo, ni algunos, ni la suma de todos”. Em alemão: “Das Wer ist nicht dieser und nicht jener, nicht man selbst und nicht einige und nicht die Summe Aller“ (HEIDEGGER, 1967, p. 126). 194 “La publicidad oscurece todas las cosas y presenta lo así encubierto como cosa sabida y accesible a cualquiera”. Em alemão: “Die Öffentlichkeit verdunkelt alles und gibt das so Verdeckte als das Bekannte und jedem Zugängliche aus“. (HEIDEGGER, 1967, p. 127). 192 164 quem temos que dizer que não foi ninguém” (HEIDEGGER, 1997, p. 131)195, um verdadeiro fantasma que caminha ao lado do existir fático. A radicalização de sentidos por uma doação prévia exaure o modo de ser mais próprio do Dasein, fazendo-o recair no impessoal (das Man), situação que o põe fora de uma autêntica relação com o outro. E o que isso tem a ver com o Direito? Muito! E aqui já podemos reunir em uma unidade o estudo anterior, desenvolvido em torno do princípio do fundamento, e o caminho hermenêutico que estamos instaurando. A jurisdição, enquanto atividade concernente ao Estado-juiz visando a dizer o Direito (juris dictio), acaba vendo o seu principal agente em uma forma decaída de ser, lançado no modo da publicidade. Decide-se de acordo com “a melhor doutrina”196 ou com a “jurisprudência dominante sobre o tema”197, em manifesta adesão ao impessoal. Muitas vezes o suporte fático que daria ensejo à eclosão do direito invocado pela parte acaba por diluir-se no falatório jurídico, sublimado na impessoalidade de uma manifestação prévia a que se adere acriticamente. Ademais, o impessoal não apenas suprime o âmbito de todo questionamento originário e todo pensar, mas também já me antecipa o fundamento de qualquer tomada de posição. Portanto, o fato de a compreensão ser um existencial, de estar incorporada ao modo de ser do próprio Dasein, não se prestando a uma tutela metodológica que lhe “En la cotidianidad del Dasein la mayor parte de las cosas son hechas por alguien de quien tenemos que decir que no fue nadie”. Em alemão: “In der Alltäglichkeit des Daseins wird das meiste durch das, von dem wir sagen müssen, keiner war es“ (HEIDEGGER, 1967, p. 127). 196 Apenas para exemplificar, eis o seguinte aresto (EREsp n.º 661.858 / PR, Rel. Min. Fernando Gonçalves): 195 CIVIL. VENDA. ASCENDENTE A DESCENDENTE. ATO ANULÁVEL. 1 – A venda de ascendente a descendente, sem a anuência dos demais, segundo melhor doutrina, é anulável e depende da demonstração de prejuízo pela parte interessada. Precedentes. Além deste, dentre um universo imenso de acórdãos, veja-se esta pequena amostra: REsp 825496, RMS 26503, REsp 1034650, REsp883990, HC 78343, CC 67343, EDcl na SEC 880, REsp 848161, HC 66853, REsp 744077, REsp 823847, REsp 680591, REsp 813293, REsp 698195, REsp 556653, AgRg no AgRg no REsp 617002, REsp 665880, REsp573312, REsp258389, REsp713367 e REsp550092, REsp 659772. 197 Veja-se, dentre outros, o REsp n.º 221.987. 165 permita endereçar, daí não significa que não exista espaço para qualquer reflexão acerca do tema, tampouco que dela não se possa adiantar uma nova postura em relação ao mundo, em nosso estar junto às coisas e em nosso ser com os outros. É que, como vimos, a despeito de estarmos condenados a existir (ek-sistenz) lançados em um projeto, daí não decorre que necessariamente tomemos nas mãos nosso ser mais próprio. Ao contrário, o mais comum é que ele nos tenha sido arrebatado pelo impessoal, que estrangula nossas possibilidades. Ora, é então que podemos retomar a ideia de um “como hermenêutico”, não no sentido de qualquer metodologia, mas de um deixar acontecer que nos proporcione uma abertura originária que permita o desvelamento do ser do ente que nos vem ao encontro. Esse “como” nos é dado pela fenomenologia. 8.2 A fenomenologia Não descarto a possível contradição que nos pode ser imputada ao pontuarmos, de um lado, a advertência de que a hermenêutica não se submete a um método, também não sendo ela mesma um método e, ao mesmo tempo, dizendo que tem um “como ser” que nos é dado pela fenomenologia; essa, como cediço, tratada tanto por Husserl quanto por Heidegger como um método (o método fenomenológico). Vejamos então se as coisas podem ser melhor esclarecidas. Vimos que a compreensão marca nosso modo de ser, somos lançados no mundo sendo compreensores, e é exatamente esse caráter que nos dá uma primazia ônticoontológica sobre os demais entes198. Assim, não se trata de pôr essa compreensão no “O Dasein usufrui de uma tripla primazia: ôntica, ontológica, ôntica-ontológica. Articulemos esta tripla primazia: o Dasein, entre todos os entes, é aquele determinado em seu ser pela existência; existir 198 166 domínio de uma teoria, envolvendo-a uma epistemologia que a discipline. A hermenêutica não é, pois, um método, mas se insere no plano do próprio viver fático. Ocorre que no nosso comércio com os entes, damo-nos à compreensão e ao fazê-lo, bem podemos, na interpretação do compreendido, extrair do ente mesmo os conceitos correspondentes, ou podemos “forçar ao ente conceitos aos quais ele resiste por seu próprio modo de ser” (HEIDEGGER, 1997, p. 153)199. Então, o método fenomenológico será exatamente aquele que permitirá que o ente se mostre por si mesmo, assim servindo como uma via de acesso a uma interpretação que ponha o Dasein de forma imediata com o compreendido. Diz-se, pois, que a fenomenologia é uma forma de abordagem, e assim um método, mas não no sentido de um cânone procedimental do agir humano; senão, exatamente o contrário, um deixar acontecer. Pois bem, feitos esses esclarecimentos prévios, o que é afinal o fenômeno e a fenomenologia? Em primeiro lugar estamos no âmbito de uma tarefa, qual seja, a de desvelar o ser dos entes em geral. Para isso iremos recorrer à fenomenologia, que então deverá ser tomada por um como da nossa própria investigação, já o dissemos, Portanto, trata-se de uma orientação metodológica pela qual poderemos nos confrontar com as coisas mesmas, de forma a distanciarmo-nos da manipulação técnica abundante nas ciências e também no Direito. A expressão comporta a reunião de duas outras: “logos” e “fenômeno”, o que nos remeteria às similares geologia, sociologia etc., a invocar o sentido de uma ciência dos fenômenos, mas não é o caso. Suas palavras componentes têm origem grega, pelo que o retorno a elas ser-nos-á útil. Comecemos com o fenômeno. Derivada de φαίνεσθαι (“pháinestai”), significa mostrar-se, sendo então o fenômeno implica compreender o ser; como ente que compreende o ser, o Dasein é a condição de possibilidade de todas as outras ontologias” (DUBOIS, 2004, p. 19). 199 “La interpretación puede extraer del ente mismo que hay que interpretar los conceptos correspondientes, o bien puede forzar al ente a conceptos a los que él se resiste por su propio modo de ser”. Em alemão: “Die Auslegung kann die dem auszulegenden Seienden zugehörige Begrifflichkeit aus diesem selbst schöpfen oder aber in Begriffe zwängen, denen sich das Seiende gemäß seiner Seinsart widersetzt” (HEIDEGGER, 1967, p. 150). 167 aquilo que se mostra em si mesmo200. Por sua vez, segue-se o λόγος (“logos”), palavra com uma dimensão semântica extensa, e já por nós abordada mais acima, no item 2.3, ao estudarmos a questão da técnica. Aqui, λόγος é assumido em sua significação primária de discurso e, mais propriamente o dizer pelo qual faz acessível aquilo do que se fala, fazendo-o ver a quem o diz e aos que se falam entre si, uma função mostrativa que está relacionada à palavra grega ἀποφαίνεσθαι (“apopháinesthai”). Confira (HEIDEGGER, 1997, p. 42, tradução nossa201): No dizer (ἀπόφανσις), na medida em que o dizer é autêntico, o dito deve ser extraído daquilo de que se fala, de tal sorte que a comunicação falante faça patente no dito, e assim acessível ao outro, aquilo do que se fala. Esta é a estrutura do λόγος enquanto ἀπόφανσις. Da conexão das duas palavras-chave vistas acima é possível afirmar com Heidegger que a fenomenologia é λέγειν τὰ φαινόμενα (“légein tá phainómena”),ou seja: “o fazer ver desde si mesmo aquilo que se mostra e fazê-lo ver tal como se mostra desde si mesmo” (1997, p. 44)202. Neste sentido, é fácil conectar a fenomenologia a máxima husserliana que nos convoca a voltarmo-nos “às coisas mesmas”. Exatamente por isso é que ela não delimita um campo objetal próprio de determinada investigação, a exemplo do que fazem a biologia, (seres vivos), a teologia (Deus), a zoologia (animais) etc. Não trata ela de nomear o objeto de uma determinada ciência, tampouco tem por escopo determinar o conteúdo desse; o que se tem aqui é apenas o como abordar o objeto, mostrando-o. E essa mostração há que Vide HEIDEGGER, 2008, p. 91 e também o mesmo autor em 1997, p. 38-41. “En el decir, (ἀπόφανσις), en la medida en que el decir es auténtico, lo dicho debe extraerse de aquello de lo que se habla, de tal suerte que La comunicación hablante haga patente en lo dicho, y así accesible al otro, aquello de lo que se habla. Esta es la estructura del λόγος en cuanto ἀπόφανσις.” Em alemão: “ist. In der Rede (ἀπόφανσις) soll, wofern sie echt ist, das, was geredet ist, aus dem, worüber geredet wird, geschöpft sein, so daß die redende Mitteilung in ihrem Gesagten das, worüber sie redet, offenbar und so dem anderen zugänglich macht. Das ist die Struktur des λόγος als ἀπόφανσις” (HEIDEGGER, 1967, p. 32). 202 “hacer ver desde sí mismo aquello que se muestra, y hacerlo ver tal como se muestra desde sí mismo”. Em alemão: “Das was sich zeigt, so wie es sich von ihm selbst her zeigt, von ihm selbst her sehen lassen.” (HEIDEGGER, 1967, p. 34). 200 201 168 se determinar pelo próprio ente que se mostra. A isso Heidegger denominou de conceito formal e vulgar da fenomenologia. A desformalização do conceito, superando a sua vulgaridade, há que ser feita na medida em que anunciamos o que é isso que a fenomenologia deve fazer ver, ao que encaminhamos para “aquilo que de um modo imediato e regular precisamente não se mostra, aquilo que fica oculto no que imediata e regularmente se mostra”203, mas que lhe pertence como fundamento. Tal é o ser do ente204, como mais acima já estudamos. Acreditamos que já tenha ficado claro que o ser não é um ente, e, portanto, além do ser não há outro algo que possa ser encontrado. Ora, se no comércio do Dasein com os entes é a fenomenologia quem assegura um modo de acesso que permitirá o mostrar-se do fenômeno, e se aquilo que enquanto fenômeno se mostra é o próprio ser, então a ontologia somente é possível enquanto fenomenologia, essencial e necessária exatamente porque é possível que isso que deve exatamente converter-se em fenômeno pode permanecer encoberto. Essa correlação entre ontologia e fenomenologia é essencial para que possamos perceber que ao delimitarmos o campo objetal de qualquer ciência, isso somente se tornou possível porque os próprios objetos de estudo foram tomados sob certo ângulo de manifestação, o que já pressupõe um movimento fenomenológico e, portanto, a própria ontologia. Daí a importância desse substrato filosófico para a própria Ciência do Direito, e se os inúmeros pontos de conexão que se vão apresentando ao longo deste estudo são possíveis, tal possibilidade se dá exatamente em razão desse fundamento. “[...] aquello que de un modo inmediato y regular precisamente no se muestra, aquello que queda oculto en lo que inmediata y regularmente se muestra” (HEIDEGGER, 1997, p. 44). Em alemão: “was sich zunächst und zumeist gerade nicht zeigt, was gegenüber dem, was sich zunächst und zumeist zeigt” (HEIDEGGER, 1967, p. 35). 204 “Ahora bien, aquello que eminentemente permanece oculto o recae de nuevo en el encubrimiento, o sólo se muestra ‘disimulado’, no es este o aquel ente, sino, como lo han mostrado las consideraciones anteriores, el ser del ente” (HEIDEGGER, 1997, p. 44). 203 169 Mas não devemos parar por aí. O campo conceitual que envolve a fenomenologia já nos parece bem delineado para os nossos fins, entretanto, impõe-se ainda melhor explicitar o que tem isso a ver com a hermenêutica, o caminho que já no início desta segunda parte da tese deixa-se anunciar como possibilidade para o descortinar de um novo horizonte para o Direito. Vejamos então. Seguindo o caminho do nosso filósofo, ao esclarecer a tarefa da ontologia, surge a necessidade e podemos pensar em uma ontologia fundamental, aquela que se volte ao ser do ente que detém um certo privilégio ôntico-ontológico205 (v. item 4.2), consistente no seu modo de ser caracterizado pela possibilidade de compreensão do próprio ser. Ora, então essa ontologia fundamental irá voltar-se a pôr à mostra o ser do próprio Dasein (tarefa que a analítica existencial desempenhará), que se deixará mostrar enquanto fenômeno, pelo que também aí essa ontologia é (como não poderia deixar de ser) fenomenológica. Agora vejamos: esse acesso se dá no âmbito da facticidade, em que, no trato com os entes, o Dasein possibilita o compreender-se, pondo-se à mostra para si mesmo enquanto fenômeno sujeito à interpretação, mas eis que essa descrição fenomenológica é a própria interpretação. A fenomenologia do Dasein é hermenêutica, tal como assevera Heidegger (1997, p 46-47, tradução nossa206): Como assevera Emmanuel Carneiro Leão, “na questão metafísica do ente enquanto ente um dentre todos os entes ocupa um lugar privilegiado: o homem, que investiga a questão” (In HEIDEGGER, 1999, p. 21). 206 “El sentido de la descripción fenomenológica en cuanto método es el de la interpretación (Auslegung). El λόγος de la fenomenología del Dasein tiene el carácter de ἐρμενεύειν, por el cual le son anunciados a la comprensión del ser que es propia del Dasein mismo el auténtico sentido del ser y las estructuras fundamentales de su propio ser. La fenomenología del Dasein es hermenéutica, en la significación originaria de la palabra, significación en la que designa el quehacer de la interpretación. Ahora bien, en tanto que por el descubrimiento del sentido del ser y de las estructuras fundamentales del Dasein se abre el horizonte para toda ulterior investigación ontológica de los entes que no son el Dasein, esta hermenéutica se convierte también en una ‘hermenéutica’ en sentido de la elaboración de las condiciones de posibilidad de toda investigación ontológica.” Em alemão: “[...] der methodische Sinn der phänomenologischen Deskription ist Auslegung. Der λόγος der Phänomenologie des Daseins hat den Charakter des ἐρμενεύειν, durch das dem zum Dasein selbst gehörigen Seinsverständnis der eigentliche Sinn von Sein und die Grundstrukturen seines eigenen Seins kundgegeben werden. Phänomenologie des Daseins ist Hermeneutik in der 205 170 [...] o sentido da descrição fenomenológica, enquanto método é o da interpretação (Auslegung). O λόγος da fenomenologia do Dasein tem um caráter de ἐρμενεύειν, pelo qual lhe são anunciados à compreensão do ser que é própria do Dasein mesmo o autêntico sentido do ser e as estruturas fundamentais do seu próprio ser. A fenomenologia do Dasein é hermenêutica, na significação originária da palavra, significação em que se designa o que fazer da interpretação. Agora bem, enquanto pelo descobrimento do sentido do ser e das estruturas fundamentais do Dasein se abre o horizonte para toda ulterior investigação ontológica dos entes que não são Dasein, esta hermenêutica se converte também em uma “hermenêutica” no sentido da elaboração das condições de possibilidade de toda investigação ontológica. Rearticulemos a questão. O homem, enquanto ente que é, tem um modo de ser que se peculiariza em relação aos entes que com ele não se identificam, qual seja, a possibilidade de pôr a questão e compreender o sentido do ser em geral, aí incluindo o seu próprio ser. Ocorre que é da essência do homem ser de certa maneira indigente, de necessitar daquilo que exatamente não é para poder ser o que é. É somente envolvido em comunhão com o mundo dos entes que o Dasein se torna possível. É o que precisamente põe Emmanuel Carneiro Leão (In HEIDEGGER, 1999, p. 12): Do ente o homem não pode prescindir. Em todas as suas indústrias e atividades, para pensar e querer, sentindo e amando, na vida e na morte, o homem não se basta a si mesmo. Sempre necessita de algo, que ele mesmo não é. Sem esse outro, o homem não pode ser. Edificando-se necessariamente dessa indigência, a existência humana exige que o ente a afete, se lhe dê e manifeste. Para existir o homem tem que imergirse e entregar-se aos entes. A palavra imanência indica essa contingência. A necessidade do homem de estar sempre presente ao mundo dos entes, para chegar a ser ele mesmo. Exprime que o homem não pode ser o ente que é, senão encarnado no mundo. Em contínua comunhão com os outros entes. Destacamos ainda que esta vida de relação não se limita àquela com o ente intramundano, sendo essencial ao Dasein ser também com os outros para poder desvelar-se a si como aquilo que ele mesmo é, ou seja, o Dasein é por meio dos outros. ursprünglichen Bedeutung des Wortes, wonach es das Geschäft der Auslegung bezeichnet. Sofern nun aber durch die Aufdeckung des Sinnes des Seins und der Grundstrukturen des Daseins überhaupt der Horizont herausgestellt wird für jede weitere ontologische Erforschung des nicht daseinsmäßigen Seienden, wird diese Hermeneutik zugleich »Hermeneutik« im Sinne der Ausarbeitung der Bedingungen der Möglichkeit jeder ontologischen Untersuchung” (HEIDEGGER, 1967, p. 37). 171 Tal a potencialidade desta afirmação que Heidegger chegará a afirmar que esse é um “enunciado existencial de essência” (1997, p. 127)207. Por tudo isso é que a compreensão que temos de nós mesmos somente pode dar-se no âmbito assim posto, na própria facticidade. Essa, entretanto, deve ser entendida de forma correlacionada à diferença ontológica. Enquanto ser lançado, o Dasein sempre transcende, no horizonte do mundo, o ente em seu ser. Eis que a transcendência somente é possível na base da diferenciação de ser e ente, uma diferenciação que não é posta por nós, mas instaurada perante nós que nela somos postos. Nesse sentido a advertência de Heidegger à Gadamer (GADAMER, 2007, p. 92): Para ilustrar o caráter enigmático dessa distinção, gostaria de contar uma história. Ela aconteceu em Marburgo. Juntamente com o meu amigo Gerhard Krüger, estava acompanhando Heidegger até a sua casa depois da preleção [...] Outrora, já tínhamos sido habilmente tratados com a "diferença ontológica", e, assim, perguntamos a Heidegger como é que se fazia propriamente, como é que se chegava ao ponto de fazer uma tal diferenciação ontológica. É bem provável que quiséssemos chegar ao conceito de reflexão que formava no idealismo alemão o começo do pensamento. Heidegger, porém, olhou para nós bastante pensativo e disse: "Mas não! Essa distinção não é de modo algum feita por nós". Mais acima, vimos que a hermenêutica é um modo de compreensão da própria facticidade, não podendo sobre ela mesma teorizar, posto que ela ocorre também na própria facticidade. De fato, já havíamos asseverado a conexão entre facticidade e hermenêutica posto que essa última deveria ser entendida como o próprio modo de abordar e situar e questionar aquela, sendo que esse questionar e entender já integra o âmbito da própria facticidade, daí porque a hermenêutica seria caminho e objeto de sua própria análise. Mas é dessa hermenêutica que estaremos tratando quando falamos em uma hermenêutica setorial, própria do Direito? Sim e não! Em um primeiro momento, se 207 “Das muß als existenziale Wesensaussage verstanden werden” (HEIDEGGER, 1967, p. 123). 172 tomamos a hermenêutica como o caminho pelo qual nos damos a compreender a nós mesmos, a resposta somente pode ser negativa. Entretanto, para que tal compreensão se instaure, dada a nossa “indigência”, é preciso que estejamos em comunhão com o mundo dos entes, e aí, aquela compreensão que se dá no âmbito da fenomenologia hermenêutica do próprio Dasein (a qual se revela como um seu existencial) servirá de condição de possibilidade para qualquer hermenêutica no âmbito das ciências em geral. A hermenêutica assim tomada é universal. Daí a afirmação de Heidegger, no sentido de que (1997, p 46-47, tradução nossa208): [...] pelo descobrimento do sentido do ser e das estruturas fundamentais do Dasein se abre o horizonte para toda ulterior investigação ontológica dos entes que não são Dasein, esta hermenêutica se converte também em uma “hermenêutica” no sentido da elaboração das condições de possibilidade de toda investigação ontológica. Tentaremos arriscadamente esboçar um esquema gráfico que correlacione estes temas que até agora nos foram tão caros nesta segunda parte. Para tanto, não poderíamos pensar uma outra figura geométrica, que não o círculo. De fato, nele não encontramos pontos de inflexão, rupturas que possam indicar um começo e um término, ali estamos ligados de forma imbricada e contínua, sem pontos de destaque e todos radialmente equipotentes do centro. Inicialmente, é preciso destacar que o Dasein se incorpora como figura central da imagem, fixando-se a sua pertinência a todas as seis esferas conceituais periféricas, as quais, por sua vez, também se correlacionam formando um todo, que na verdade não é tudo, já que outros conceitos poderiam penetrar neste grande “Ahora bien, en tanto que por el descubrimiento del sentido del ser y de las estructuras fundamentales del Dasein se abre el horizonte para toda ulterior investigación ontológica de los entes que no son el Dasein, esta hermenéutica se convierte también en una ‘hermenéutica’ en sentido de la elaboración de las condiciones de posibilidad de toda investigación ontológica.” Em alemão: “Sofern nun aber durch die Aufdeckung des Sinnes des Seins und der Grundstrukturen des Daseins überhaupt der Horizont herausgestellt wird für jede weitere ontologische Erforschung des nicht daseinsmäßigen Seienden, wird diese Hermeneutik zugleich »Hermeneutik« im Sinne der Ausarbeitung der Bedingungen der Möglichkeit jeder ontologischen Untersuchung” (HEIDEGGER, 1967, p. 37). 208 173 círculo e somente não o fizeram porque nosso intuito é apenas tentar, por mais uma vez, articular essa “totalidade” (limitada) até aqui estudada. Com esse esclarecimento inicial, segue a figura para podermos prosseguir na sua análise: MUNDO ENTE TRANSCENDÊNCIA SER A ONTOLOGIA FUNDAMENTO F B Dasein E C HERMENÊUTICA FACTICIDADE D FENÔMENO Figura 4: alguns existenciais Fonte: elaborado pelo autor Como visto, enquanto ente que compreende o ser e é capaz de colocar a pergunta acerca do seu sentido, o Dasein é um ente privilegiado e, por isso mesmo, 174 ocupa a nossa posição central, o que afasta desde logo qualquer primazia por um eu isolado ou uma filosofia solipsista etc. Sua centralidade decorre do privilégio ônticoontológico de que desfruta entre os entes. Como ente existente, está sempre fora (eksistenz), lançado em um projeto. O Dasein é um ser-no-mundo, sendo mundo aqui entendido não como totalidade de entes (como vimos, o mundo não é um ente), mas como plexo de significatividade em que esse projeto pode dar-se a realizar, portanto, é tomado em um caráter existencial e ontológico, mundo como mundaneidade. Pois bem, daí já evidenciamos um primeiro elemento “periférico” e a sua ligação com o Dasein: o mundo. Prosseguindo, destacamos que o homem é um ente que, de certa forma, é matizado por certa indigência, na medida em que para ser o que é necessita daquilo que ele não é: os entes intramundanos (e também os outros). É imerso no mundo dos entes que ele pode dar-se a compreender a si mesmo, entretanto o ente não lhe é desvelado em si mesmo, mas à luz do ser, razão pela qual o Dasein está sempre lançado na diferença ontológica, fundamento da própria transcendência, em que ele ultrapassa o ente em seu ser, no horizonte do mundo. “O termo transcendência indica essa excelência do homem de ultrapassar e superar a obscuridade do ente, com o qual constantemente se comunica em sua existência, iluminando-lhe o sentido, tornando-lhe transparente o ser na luz da Verdade”.209 Aqui firmamos a conexão (A). Por sua vez, vimos no item 7.1.1 que há uma ponte entre a transcendência e a essência do fundamento. Ali demarcamos com o auxílio de Pöggeler que a transcendência deve ser tomada como liberdade, liberdade para deixar viger o mundo, e a liberdade como deixar viger o mundo é a origem do fundamento em geral. Resta assim demarcada a conexão entre (A) e (B). Por sua vez, se o Dasein é o ente que realiza a transcendência, e este salto o põe diante de um abismo (Abgrund), ainda assim ele é dito fundado, embora fundamentado em sua própria finitude. Há 209 Emmanuel Carneiro Leão na apresentação à sua tradução de HEIDEGGER, 1999, p. 14. 175 aí, e esse jogo de palavras já a evoca, uma paradoxal situação em que o Dasein se põe no confronto dialético entre transcendência e imanência. De fato, a ele somente é dado transcender o mundo dos entes quando encarnado nele. Não é por outra razão que a potencialidade do projeto, demonstrada no modo de fundar que acima evocamos como instituir, é sempre um excesso que não se ajusta à posse, daí porque todo fundar o é fundamentado em um solo a que Heidegger denominou tomar-chão (Boden-nehmen). Esses aspectos dão boa mostra de que todo projeto se temporaliza no âmbito da finitude. Mais uma vez as precisas palavras de Carneiro Leão (In HEIDEGGER, 1999, p. 15-16): Que o homem só possa transcender o mundo dos entes na medida em que nele se encarna e mergulha, já mostra a finitude inexpurgável de sua transcendência. Ele só consegue atingir a verdade do ente, enquanto habita a luz do Ser, na qual o ente se manifesta como tal. Assim, até no mais elevado grau de sua potência, na própria excelência de seu ser o homem permanece ente sensível. Um ente, que deve receber de outro as virtualidades de sua própria humanidade. Nessas bases o tema da diferença ontológica eclodiu em toda a sua força, e aqui atrai mais um conceito: o de fenômeno. É que, radicado em suas origens gregas, ele é visto como aquilo que se mostra em si e por si mesmo. Ora, o que se mostra não é o ente, mas o seu ser; não é aquilo com que imediatamente contatamos, mas precisamente aquilo que normalmente se oculta, resplandecendo o ente sob sua luz e imediatamente retornando ao velamento. Precisamente por isso é preciso assegurarmo-nos de um modo de abordagem do ente, que permita colher e recolher aquilo que deve ser posto à mostra (logos), e tal se dará com o método fenomenológico. Portanto, fenômeno e fenomenologia são modos de abordagem que o Dasein empreenderá no seu contato com os entes, para assegurar-lhe o permanecer na verdade do ser (referência “D”). Ora, essa é uma tarefa da interpretação e, portanto, hermenêutica (esfera “E”). Nesse âmbito compreensivo, decorrerá do próprio privilégio desfrutado pelo Dasein que haverá uma ontologia que sobressairá exatamente por seu caráter 176 possibilitador de todas as demais, aquela que se refere a ele mesmo, onde seu próprio ser o ponha à mostra para a sua própria compreensão. Assim, aqui temos uma ontologia hermenêutica e que é a tarefa da própria filosofia, portanto, também uma filosofia hermenêutica (conexões “E” e “F”). Essa interpretação que o Dasein toma de si mesmo não pode ser colhida a exemplo de uma “res” posta diante de si, como se ele mesmo se colocasse como objeto da sua compreensão. Não, o seu ser é desvelado no âmbito da própria facticidade. Daí porque, também ela guarda uma conexão direta com o Dasein (ligação “C”). Todo esse desenvolvimento se prestará a apontar, insistimos, o papel central da hermenêutica fundamental a toda interpretação que se dê no âmbito das ciências em geral, como uma sua condição de possibilidade. E se ela é uma referência necessária e indissociável à ontologia fundamental, necessário se faz prosseguir na analítica existencial do Dasein, explorando os temas da compreensão e da interpretação. 8.3 Os existenciais da compreensão e da interpretação Começando pelo princípio do fundamento, nosso caminho nos conduziu a uma ontologia fundamental, de caráter fenomenológico, consistente na explicitação do modo de ser do ente que somos nós mesmos. E essa adjetivação de fundamental se dá exatamente pelo fato de que é a partir dela que poderei derivar qualquer outra ontologia. Como esta abordagem assume um caráter hermenêutico, posto que se insere no âmbito da interpretação que o próprio Dasein faz de si, qualquer hermenêutica que se volte à compreensão do ser dos entes em geral será derivada dela. Então, parece-nos justificável asseverar que a hermenêutica assim tomada é 177 condição de possibilidade de qualquer compreensão (portanto, ela mesma é uma hermenêutica fundamental). Se isso não bastasse, ficou delineado que o Dasein não poderá expor-se ao modo de um objeto diante de si mesmo. Essa autorreflexão, essa curvatura sobre si, não é passível de ser tomada como um outro que se mostra, mas somente através de uma exposição reflexa em que me dou a perceber no modo de ser em que sou inserido no mundo dos entes intramundanos e com os outros, ou seja, na própria facticidade, daí porque a ontologia fundamental é uma hermenêutica da facticidade. E se é assim, haverá também uma conexão entre esta que denominamos hermenêutica fundamental e toda forma de compreensão dos entes em geral. Então, o âmbito referente a esse modo compreensivo de ser do Dasein (quanto ao seu próprio modo de ser) revelará parâmetros que serão aplicáveis a qualquer compreensão. Eis aí o ponto de relevo da analítica dos existenciais. Nesse contexto, é importante considerar que o Dasein nunca é-no-mundo desprovido de alguma tonalidade afetiva. A sua própria abertura é conquistada por certo temperamento que o põe junto aos entes e com os outros. Dentre outras características dessa disposição, destacamos aquela em que Heidegger a relaciona ao modo possibilitador da sensitividade dos sentidos. Ele dirá: “somente por pertencer ontologicamente a um ente cujo modo de ser é o de ser-no-mundo na disposição afetiva, podem os sentidos ser tocados e ter sentido para, de tal maneira que o que os toca se mostre na afecção” (1997, p. 141)210. De fato, o exemplo da ameaça que pode provir de um ente qualquer é esclarecedor, eis que o ameaçante somente pode sê-lo não por uma característica sua mesma, mas por nossa abertura ao ameaçante. É somente aí que o ameaçante ameaça. “Y sólo por pertenecer ontológicamente a un ente cuyo modo de ser es el del estar-en-el-mundo en disposición afectiva, pueden los ‘sentidos’ ser ‘tocados’ y ‘tener sentido para’, de tal manera que lo que los toca se muestre en la afección”. Em alemão: “Und nur weil die »Sinne« ontologisch einem Seienden zugehören, das die Seinsart des befindlichen In-der-Welt-seins hat, können sie »gerührt« werden und »Sinn haben für«, so daß das Rührende sich in der Affektion zeigt” (HEIDEGGER, 1967, p. 137). 210 178 Arriscamos dizer que a disposição afetiva se encontra no âmbito da própria possibilitação compreensiva da teia remissional. Tomemos um exemplo. Eu transito pela calçada e me deparo com um cão enorme solto. O sentido a que este evento me remete não é necessariamente o mesmo do dono do animal, uma vez que ele não está aberto à possibilidade de ser tocado por qualquer ameaça envolvendo o cão. A ameaça não seria assim algo intrínseco ao animal (embora comumente esteja ele associado ao ameaçante). A disposição afetiva, do ponto de vista ontológico, não se identifica tampouco com algum estado psicológico; ao contrário, esses somente são possíveis diante de uma abertura para que eclodam. Assim, o medo de algo, somente poderá instaurar-se enquanto um estado psicológico, quando estiver aberto ao caráter ameaçante do ameaçador, somente enquanto a “medrosidade” o permitir. E não é por outro motivo que Heidegger dará especial atenção à distinção entre medo e angústia para, nesta última, vislumbrar um estado revelador do caráter primordial da abertura do Dasein. De fato, enquanto o medo se depara com um ameaçante concreto, temos sempre medo de algo; na angústia não encontramos um referente como destinatário dela, ela é angústia por nada. Fica então claro que nesse estado, o caráter ontológico e possibilitante de qualquer estado de ânimo, que é próprio da disposição afetiva, revela-se em sua plena efervescência. Essa introdução ao estudo dos existenciais da compreensão e da interpretação teve por escopo, já de início, mostrar quão ingênua é a pretensão de confrontar o mundo dos entes tomando-os enquanto simples presença, como algo que, como objeto, está posto e dis-posto a um sujeito compreensor, para por ele ser capturado em sua essência. Uma pretensão muito cara inclusive ao Direito, que se pretende científico exatamente porque seus enunciados deônticos põe o mundo como objeto para um sujeito conhecedor, que o interpreta anulado em sua própria subjetividade, e assim queremos métodos que, favorecendo este quadro, permitam uma abordagem 179 objetiva do mundo (sabe-se lá o que é isso211). O que se perde nisso tudo é exatamente essa disposição afetiva do Dasein que o põe aberto a qualquer compreensão e que, sem ela, qualquer compreensão não seria possível, tornando impensável o Dasein tal como ele é. Portanto, mundo não é uma objetividade que se põe diante de um sujeito conhecedor, tal como dispõe Heidegger (STEIN, 2005, p. 2930)212: Conhecimento do mundo é um modo de ser do estar-aí e um modo de ser que está onticamente fundado em sua constituição fundamental, o ser-no-mundo [...] Conhecimento não é um comportamento que começa num ente que ainda não tem mundo, que estivesse livre de qualquer relação com o seu mundo; conhecimento é sempre um modo de ser do estar-aí na base de seu já-estar-junto-do-mundo. Ainda com caráter propedêutico, na primeira parte do trabalho, desferimos nossa crítica à tendência logocêntrica da sociedade moderna que, pelos conceitos, buscam capturar o mundo e, entretanto, talvez tenhamos seguido nossa exposição firmando conceitos a todo tempo. Porém, essa teia conceitual que vamos tecendo presta-se como mero indicador formal. Se alguém pretende efetivamente compreender o que ali é mostrado, há que fazê-lo por seu próprio caminho, por meio de uma experiência própria. Isso já era sinalizado no curso de 1923, quando Heidegger, referindo-se à fenomenologia, dizia que dela alguém “somente pode apropriar-se de maneira fenomenológica, isto é, não repetindo frases, adotando princípios ou crendo em dogmas escolares, mas demonstrando-a” (2008b, p. 67, Talvez no sentido de que o sujeito seja tornado objeto compreensor ou porque o objeto seja tomado exclusivamente em sua própria objetividade, sem interferência de espúrios componentes anímicos e pré-compreensões que venham a interferir na determinação da sua essência, tudo isso é claro, no âmbito de uma reflexão aos moldes da metafísica clássica. 212 “Wie kommt das Erkennen, das seinem Sein nach drinnen ist, im Subjekt, hinaus aus seiner ‘Innensphäre‘ in eine ‘andere, äuβere Sphäre‘, zur Welt? [...] Erkennen ist nun nicht eine Verhaltung, die in einem Seienden ansetzte, das noch nicht eine Welt ‘hat‘, das jedes Bezuges zu seiner Welt ledig wäre, sondern Erkennen ist immer eine Seinsart des Daseins auf dem Grunde seines Schon-seins-bei der Welt.” (HEIDEGGER, 1979, p. 216-217). 211 180 tradução nossa)213. É o que também confirma Gadamer quando afirma que com a expressão em questão Heidegger “queria dizer que o máximo que se pode fazer é mostrar a direção no pensamento. É preciso abrir os olhos por si mesmo. Somente então se descobre a língua que diz isso que se vê” (GADAMER, 2007, p. 66). Também Jean Grondin é claro quanto a este aspecto (1999, p. 169): A fim de tornar novamente acessíveis essas experiências básicas, a hermenêutica filosófica realmente não pode deixar de elaborar uma conceituação própria. Heidegger é muito cauteloso neste ponto. Para obviar ao perigo de uma nova escolastização, ele introduz os seus conceitos como meros "indicadores formais". O conceito do indicador formal, básico para o Heidegger da primeira fase, quer insinuar que locuções sobre o ser-aí requerem, por parte de quem compreende, uma ação pessoal de apropriação. Elas não podem ser concebidas como sentenças que descrevem teoricamente uma realidade presente, porém como desafios à autoapropriação no terreno de cada ser-aí. O seu "sentido predicativo primário" não é, pois, a "indicação de algo presente", porém um "permitir a compreensão de um seraí", que desperta uma ação de interpretação específica para o Dasein. Sentenças filosóficas têm o caráter de indicativos, só entendidos, enquanto se procura efetiválos concretamente por empenho pessoal — cada um à sua maneira e com responsabilidade pessoal. Inaugurando nosso estudo do existencial da compreensão, nós o fazemos no âmbito desta advertência inicial, procurando inclusive escapar à tentativa de encerrálo em algum conceito. Heidegger o concebe no plano ontológico, o que torna árido o trecho que ora devemos atravessar em nossa senda. É que herdamos uma tradição filosófica e nela estamos inseridos em nosso modo de refletir e lidar com os entes na forma de simples presenças, um modo objetificante, centrado na relação sujeitoobjeto etc. Assim enraizados, torna-se árdua a tarefa de romper com esse paradigma e pensar segundo categorias mais originárias, vistas como possibilitadoras das ontologias regionais. E tal se torna ainda mais difícil quando nos deparamos com “De la fenomenología sólo puede apropiarse uno de manera fenomenológica, es decir, no repitiendo frases, adoptando principios o creyendo en dogmas de escuela, sino demostrándola”. Em alemão: “Phänomenologie kann nur phänomelogisch zugeeignet werden, d.h. nicht so, daβ man Sätze nachredet, Grundsätze übernimmt oder an Schuldogmen glaubt, sondern durch Ausweisung” (HEIDEGGER, 1988, p. 46). 213 181 expressões que já nos envolvem naquela moldura cotidiana, como o “mundo” e a “compreensão”. Em linhas muito gerais já nos referimos ao uso das expressões ôntico e ontológico como respectivamente correlatas àquilo que é relativo ao ente e ao ser. Dizer, pois, que a compreensão é tomada no plano ontológico significa que está conectada a um modo de ser do próprio Dasein; e não como o compreender cotidiano em que me refiro aos objetos, a um texto que requer esclarecimento ou explicação (e também ao próprio homem, não tomado como existência). Trata-se de um modo mais originário que bem poderíamos qualificar de “a priori” de qualquer compreensão desta segunda natureza (no plano ôntico). Porém, tal não significa que a compreensão seja algo subjetivo, que está enclausurada em uma interioridade, que tem caráter subjetivo etc. Essas expressões mesmas já destoam do plano da existência que é sempre lançada, sempre fora, ek-sistenz, como insistentemente vimos afirmando. Aliás, o contrário deve ser já posto em suspensão e suspeição pela simples notícia de o ente ser algo e o é enquanto a ele se dá ser (es gibt). Há, pois, uma diferença irredutível entre ser ente, acompanhada de uma referência necessária entre um e outro, posto que diferir não significa necessariamente ter que por em separado.214 Por tudo isso é que, conquanto a compreensão seja tomada no plano ontológico, como um existencial do Dasein, ela não se dá fora do mundo, revelandose exatamente no plano da facticidade. Quando estudamos o existencial “mundo”, cuja remissão a ele fazemos a todo momento, enfatizamos que ele não diz respeito a um ente especial, ou a uma totalidade de entes. Como vimos, o mundo não é um ente, mas deve ser tomado como um plexo de possibilidades em que se lança o Dasein em sua existência. Assim, ao estar junto aos entes, o Dasein já dispõe de uma compreensão possibilitadora da A noção de λόγος como colher e recolher mantendo ao abrigo, tal como posto em nota apresentada na primeira parte do trabalho, pode aqui revelar um significativo papel da linguagem nesse contexto da diferença ontológica (v. item 2.3 supra). 214 182 interpretação deles como algo que está à mão para algo. Ademais, esse objeto não se põe isoladamente visto, mas está conectado, em sua significatividade para o Dasein, a uma teia de remissões, sendo visto dentro de um olhar circunspectivo que o abarca compreensivamente. Alguns exemplos serão esclarecedores. Em nosso lidar cotidiano no mundo dos entes, temos a impressão de que a essência das coisas nos é dada na sua descrição material objetiva. Paralelamente, também constatamos que a essas mesmas coisas podemos “agregar” valor, qualificando-as por sua utilidade, funcionabilidade, beleza etc. Assim, aquela base de coisa espacial (ou essência material), por sobre a qual seriam postos predicados de valor, dado o seu caráter possibilitador dos valores a ela agregados, é tomada pela verdade. Entretanto, nossa lida diária com os entes não faz eclodir essa forma de apreensão teorética; ao contrário, as coisas são assumidas em seu caráter instrumental e é como tal que seu ser transparece. O útil não tem um caráter de “algo para” agregado ao suporte material que agora enuncio, mas exatamente o contrário. Dirá então Heidegger (1997, p. 153, traduzimos215): A interpretação não lança certo significado sobre o ente nu que está-aí, nem o reveste com um valor, mas o que comparece dentro do mundo, já tem sempre, enquanto tal, uma condição respectiva aberta na compreensão do mundo, e esta condição fica exposta por meio da interpretação. Tomemos a cadeira que neste momento uso para acomodar-me enquanto digito este texto. Poderíamos, na linha tradicional, vê-la como um objeto de madeira, “La interpretación no arroja cierto ‘significado’ sobre el nudo ente que está-ahí, ni lo reviste con un valor, sino que lo que comparece dentro del mundo, ya tiene siempre, en cuanto tal, una condición respectiva abierta en la compresión del mundo, y esta condición queda expuesta por medio de la interpretación.” Em alemão: “Sie wirft nicht gleichsam über das nackte Vorhandene eine »Bedeutung« und beklebt es nicht mit einem Wert, sondern mit dem innerweltlichen Begegnenden als solchem hat es je schon eine im Weltverstehen erschlossene Bewandtnis, die durch die Auslegung herausgelegt wird.” (HEIDEGGER, 1967, p. 150). 215 183 revestido de couro, com largura, altura e profundidade de tantos centímetros, lisa etc., ao qual agrego o valor de beleza e conforto. De fato isto é correto, mas não significa que aí resida o verdadeiro. A cadeira é originariamente apreendida enquanto cadeira, coisa que se presta a determinado uso. Mais ainda, ela não está tomada isoladamente, mas conectada à teia remissional de que falamos mais acima, na medida em que é uma cadeira que, mesmo na sua impossibilidade de prestar-se ao uso que dela faço, ela ainda é a cadeira que me conecta aos meus livros do escritório, ao meu computador, às longas horas de leitura que sobre ela me lancei etc. Muito mais que um objeto de linhas curvas, com um encosto em arco de raio de “x” centímetros e estrutura tubular de ferro inoxidável, a minha cadeira é esse ente que se presta aos meus estudos, mediante um apoio confortável. Ela não é antes aquele suporte de bases materialmente descritas ao qual adiciono estas características; ao contrário, ela já é apreendida desde o início desta forma, como um útil que está à mão para algo. No logos hermenêutico, a cadeira é apreendida enquanto cadeira! Mesmo na sua imprestabilidade a este “para que”, os entes não perdem seu caráter remissivo. O brinquedo de criança, já quebrado em meu depósito de bagulhos, ainda continua sendo o que é e invoca minha infância em seus momentos de prazer. É por isso que, mesmo antes de qualquer derivação conceitual ou predicação linguística, a coisa já foi compreendida em seu ser. A compreensão é um modo tão originário de nosso ser-no-mundo que nele já sempre compreendemos216. Todo entendimento e qualquer predicação lhe é posterior. Tomemos ainda outro exemplo, o de uma maçaneta. Ela não é compreendida originariamente como um substrato material de aço inox e de alta resistência, com um acabamento lustroso e formas retas, de dimensões tais e tais, sobrepostas a uma Esse caráter da compreensão como um existencial do Dasein é pontuada por Ernildo Stein (2004, p. 62): “A compreensão desta totalidade implica em dar-se conta que o compreender que sempre parecia ser uma alteração da minha mente, uma pura alteração da minha inteligência, este compreender é constitutivo da própria condição humana. Portanto, o ser humano é compreender”. 216 184 base de madeira etc. A maçaneta é imediatamente apreendida por sua utilidade na abertura da porta, mesmo que isso não venha a ser tematizado. Aliás, no uso que normalmente fazemos dela praticamente não nos damos conta de que ela esta aí, mas está e nós já a compreendemos como algo para a abertura da porta, tanto que a uso naturalmente assim. Ela é assumida como algo enquanto algo (etwas als etwas). Essa maneira quase despercebida com que já compreendemos os entes torna-se mais transparente quando o útil falha, quando ele se torna imprestável ao seu uso. No caso, quando a maçaneta quebra, é aí que, sentindo a sua falta, ela transparece exatamente naquilo que falta, como instrumento para abrir a porta. Falta a maçaneta exatamente enquanto o algo que ela é, e não como aquele suporte material objeto de nossas predicações. Portanto, a “compreensão não é simplesmente uma forma de cognição entre outras, mas nossa mais básica habilidade para viver em nosso mundo e lidar habilmente com ele” (HOY, 1993, p. 173, tradução nossa217). Ora me vejo como um profissional, ora como um membro da família, ora como um professor, ora como estudante, e toda mudança de comportamento que cada um desses mundos requer somente é possível porque originariamente eu já o compreendo. Todo o interpretar que se desenvolve em torno das coisas que me tocam nestes diversos mundos é feita diante de possibilidades já abertas por minha compreensão que deles tenho. É, pois, a compreensão, correlativamente à disposição afetiva, que abre o Dasein ao mundo. Essa abertura e o estar junto ao ente dentro dela são assim abordados por Heidegger: “O ocupado estar em meio do à mão se dá a compreender desde a significatividade aberta na compreensão do mundo, a condição respectiva que pode ter o que comparece” (1997, p. 152, traduzimos218). E todo o desenvolver desta “[…] understanding is not simply one form of cognition among others, but our most basic ability to live in and copy skillfully with our world.” 218 “El ocupado estar en medio de lo a la mano se da a comprender desde la significatividad abierta en la comprensión del mundo, la condición respectiva que puede tener lo que comparece”. Em alemão: “Aus der im Weltverstehen erschlossenen Bedeutsamkeit her gibt sich das besorgende Sein 217 185 compreensão que permita ao Dasein um apropriar-se dela é o que nosso filósofo denomina interpretação (Auslegung). Assim, quando interpretamos, tornamos transparente a situação do intérprete que o põe na abertura. Ela não faz da compreensão algo diverso; apenas a explicita (e não necessariamente na forma de um enunciado, como veremos). É o que pontua Heidegger (1997, p. 152, traduzimos219): [...] o explicitamente compreendido tem a estrutura de algo enquanto algo. À pergunta circunpectiva acerca do que seja este determinado ente à mão, a interpretação circunspectiva responde dizendo: é para ... A indicação do que não consiste simplesmente em nomear algo, mas que o nomeado é compreendido nesta forma: o que está em questão deve ser considerado como tal. O aberto no compreender, o compreendido, já é acessível sempre de um modo tal que nele se pode destacar explicitamente seu “enquanto que”. O “enquanto” expressa a estrutura explicitante do compreendido; é o constitutivo da interpretação. Assim, haverá na hermenêutica heideggeriana uma inversão radical do papel da interpretação tradicional, que nos permite falar em um giro hermenêutico. É que ordinariamente vemos a necessidade de interpretação quando estamos diante do não compreendido, a fim de que a compreensão se instale sobre ele. É o caso, por exemplo, da tradição herdada de Schleiermacher quando, afirmando a universalização do não compreendido no discurso, assevera que daí decorre a beim Zuhandenen zu verstehen, welche Bewandtnis es je mit dem Begegnenden haben kann” (HEIDEGGER, 1967, p. 148). 219 “[…] lo explícitamente comprendido, tiene la estructura de algo en cuanto algo. A la pregunta circunspectiva acerca de lo que sea este determinado ente a la mano, la interpretación circunspectiva responde diciendo: es para … La indicación del para-qué no consiste simplemente en nombrar algo, sino que lo nombrado es comprendido en esta forma: lo que está en cuestión debe ser considerado como tal. Lo abierto en el comprender, lo comprendido, ya es accesible siempre de un modo tal que en él se puede destacar explícitamente su “en cuanto qué”. El “en cuanto” expresa la estructura explicitante de lo comprendido; es lo constitutivo de la interpretación.” Em alemão: “[...] das ausdrücklich Verstandene, hat die Struktur des Etwas als Etwas. Auf die umsichtige Frage, was dieses bestimmte Zuhandene sei, lautet die umsichtig auslegende Antwort: es ist zum... Die Angabe des Wozu ist nicht einfach die Nennung von etwas, sondern das Genannte ist verstanden als das, als welches das in Frage stehende zu nehmen ist. Das im Verstehen Erschlossene, das Verstandene ist immer schon so zugänglich, daß an ihm sein »als was« ausdrücklich abgehoben werden kann. Das »Als« macht die Struktur der Ausdrücklichkeit eines Verstandenen aus; es konstituiert die Auslegung” (HEIDEGGER, 1967, p. 149). 186 necessidade de interpretação220. É, pois, a interpretação algo que permite a compreensão. Em Heidegger teremos exatamente o contrário, já que o Dasein, sendono-mundo, já está sempre em certa abertura que o põe na compreensão, cabendo à interpretação explicitá-la, tornando, v.g., o útil transparente em seu “para” (para isso ou aquilo). Essa compreensão “a priori”, que se dá na própria abertura do Dasein, nos remete também a uma outra inversão, que coloca o discurso hermenêutico à frente do apofântico, ou como afirma Heidegger, “a articulação do compreendido na aproximação interpretante do ente na forma de algo enquanto algo é prévia ao enunciado temático acerca dele” (1997, p. 152, traduzimos221). Quando lanço mão de um enunciado assertórico predicativo acerca de determinado ente (inclusive pondo à mostra o útil enquanto algo para ...), tal enunciado somente encontra a sua condição de possibilidade na base da compreensão apropriadora que dele já temos. Neste sentido, a lição de Ernildo Stein (2005, p. 17): E antes que o Dasein teorize ou exponha no discurso o mundo, ele já possui uma compreensão de si, dos utensílios com que lida. Esta estrutura que Heidegger chama de “como hermenêutico” que é mais originária que o “como apofântico” do dizer, compromete o Dasein com o mundo, numa relação anterior a teoria e práxis. Schleiermacher verá a hermenêutica como “ars interpretandi” (2005, p. 99) e, ademais, haveria uma práxis não rigorosa nesta arte que estaria baseada na ideia de que os mal-entendidos devem ser evitados. Entretanto, “a práxis mais rigorosa baseia-se na ideia de que a não-compreensão se dá por si” (2005, p. 113). Essa assertiva é comentada por Jean Grondin (1999, p. 127): 220 A visão da hermenêutica tradicional era de que se entende tudo de modo correto e liso, até que se tope com uma contradição. Uma hermenêutica só se faz necessária, quando não (mais) se entende. A compreensibilidade era antigamente o primário ou inato, a não-compreensão, por assim dizer, a exceção. Schleiermacher põe esta perspectiva “ingênua”, provinciana, de cabeça para baixo e pressupõe o mal-entendido (o equívoco) como realidade básica. Desde o início do esforço de compreensão o hermeneuta se previne ante um possível equívoco. A compreensão deve, pois proceder artificialmente em todos os seus passos.” “La articulación de lo comprendido en el acercamiento interpretante del ente en la forma de ‘algo en cuanto algo’ es previa al enunciado temático acerca de él”. Em alemão: “Die Artikulation des Verstandenen in der auslegenden Näherung des Seienden am Leitfaden des »Etwas als etwas« liegt vor der thematischen Aussage darüber” (HEIDEGGER, 1967, p. 149). 221 187 Jean Grondin retoma um exemplo de Heidegger para melhor esclarecer essa precedência (1999, p. 171): O lidar inicialmente com a ferramenta sem falar, torna-se, aos poucos, incômodo para o artesão. Aí o martelo é concebido "como" algo pesado (para o ser-aí). O "como" sugere, no caso, um processo de interpretação, o qual, no entanto, não precisa expressar-se: "A realização originária da interpretação não se encontra numa sentença predicativa teórica, porém no cuidadoso e circunspecto pôr de lado, e respectivamente, na troca da ferramenta inadequada, sem que nisso se perca uma palavra." No pôr de lado já se manifesta a interpretante relação com o mundo do hermenêutico "como". Evidentemente, pode-se expressar isso nas palavras: "o martelo é pesado", mas o hermenêutico "como" sofre aí determinada modificação. Do originário "como", no qual se anunciara a sofredora experiência de mundo do artesão, resulta uma sentença locucional predicativa sobre um objeto presente (o martelo), ao qual é atribuída uma propriedade (ser pesado). Na terminologia de Heidegger: "Pela realização locucional na forma da predicação (...) nivela-se simultaneamente o primário "como" do entender numa pura e simples determinação da coisa." A locução coisifica, por assim dizer, a relação originária, i.é, a hermenêutica, de modo que "o com quê do ter-de-fazer" é transformado "no sobre quê de uma indicação". Por isso Heidegger dirá insistentemente que a compreensão interpretativa do ente assume um caráter pré-predicativo. Tal não quer dizer que a linguagem seja despojada do seu caráter relevante, mas apenas sublinhado que deve ela ser “recebida por sua vontade de expressão, contra o sentido potencialmente objetificante, que se fixa no conteúdo meramente lógico do que foi expresso” (GRONDIN, 1999, p. 172). Há aqui uma advertência de relevo que merece reprodução (GRONDIN, 1999, p. 172): O aceno para o “como” hermenêutico pré-predicativo recorda que, em princípio, cada enunciado dá testemunho desse enraizamento e assim está direcionado para uma retomada de compreensão. Quem quer entender hermeneuticamente um assunto linguístico, deve sempre considerar conjuntamente o que não é expresso de imediato por ele, mas pensado com ele. Sem desconsiderar as advertências de Grondin, a prioridade do como hermenêutico sobre o apofântico tem na sua base a compreensão, o que significa que o Dasein se põe junto aos entes não de uma forma ingênua e isenta, para somente em 188 um momento posterior atribuir-lhes determinado predicado. Ao contrário, desde sempre ele já os toma de um só golpe e os acolhe em uma matriz de significados que os coloca inseridos no seu campo de circunvisão, o qual, além de permitir seja ele tomado por algo enquanto algo, remete-nos a todo um conjunto temático relacionado. Por isso dirá Heidegger que nossa interpretação está sempre fundada em um “haver-prévio” (Vorhabe). O que pela interpretação fazemos então é guiarmos nossa visada do ente, de maneira tal que se desvele (em seu ser), o que se conduz desde sempre por uma determinada maneira prévia de ver (Vorsicht), ou simplesmente, por uma “visãoprévia”, que “recorta o dado no haver prévio através de determinada interpretabilidade” (HEIDEGGER, 1997, p. 153222), daí porque o Dasein, ao interpretar, sempre já se decida por determinada conceitualidade, caindo aquela interpretação sempre em uma maneira prévia de entender (Vorgriff). Essa estrutura tríplice da interpretação quer significar que a nossa compreensão já sempre abre o mundo como possibilidades, dando-nos algo que será apreendido na interpretação sob um matiz determinado pelo recorte temático em que eu tomarei o ente. Por exemplo, o rio pode ser tomado sob o ângulo de uma linda paisagem para o artista que o pinta, mas também poderá ser visto como o elemento propulsor das turbinas que irão gerar energia elétrica para a usina, ou ainda como a fonte de vida do pescador etc. Assim tematizado o ente por esta visão prévia, ele será conceitualizado de uma determinada maneira (ainda que não seja uma conceitualização teórica, mas prática). Eis, em sua dinâmica, essa estrutura em operação que, de início, já nos convoca a abandonar qualquer pretensão de uma interpretação não situada, objetiva, isenta de subjetividade, que capte a coisa em si “La interpretación se funda siempre en una manera previa de ver (Vorsicht) que ‘recorta’ lo dado en el haber previo hacia una determinada interpretabilidad”. Em alemão: “Die Auslegung gründet jeweils in einer Vorsicht, die das in Vorhabe Genommene auf eine bestimmte Auslegbarkeit hin »anschneidet«”(HEIDEGGER, 1967, p. 150). 222 189 etc. Portanto, porque assim triplamente fundada a interpretação, ela jamais será uma apreensão isenta de pressupostos. Essa estrutura prévia da interpretação nos remete também à ideia de círculo hermenêutico. Essa circularidade deve ser aprendida em dois significados distintos: pelo primeiro, temos que ao compreender o mundo com ele compreendo também o próprio Dasein223, e ao compreender este último, dou-me à compreensão do próprio mundo; e, pelo segundo, ao interpretar ganho compreensão, mas simultaneamente, a interpretação já se desenvolve dentro de certa compreensão224. A lógica nos remete à fuga do círculo, por considerá-lo vicioso, daí porque nosso padrão hermenêutico ou deveria ser deslocado para outros parâmetros que permitisse superar a circularidade ou então deveríamos nos conformar com a assunção de que a hermenêutica não se presta à produção de resultados científicos sérios, pautados em uma demonstração evidenciante. Em verdade, o círculo não pode ser evitado, eis que, como vimos, a interpretação se estabelece baseada em um subtrato que abarca um “haver-prévio”, uma “visão-prévia” e um “conceito-prévio”, razão pela qual já sempre somos no mundo na forma da compreensão, que é um existencial do Dasein e, por isso mesmo, não podemos suprimir esta estrutura por um ato volitivo. “O que está em questão não é o que nós fazemos, ou o que nós deveríamos fazer, mas o que, ultrapassando nosso querer e fazer, nos sobrevêm, ou nos acontece” (GADAMER, 2002a, p. 14). Portanto, o importante não é tomar o círculo em questão por um vício. Na verdade, trata-se de um círculo virtuoso, em que o determinante não é a saída dele (que de qualquer forma seria impossível, como vimos), mas de nele entrar e permanecer de forma adequada.225 Mas o que significaria essa adequação? Daí falar Gadamer que “todo compreender acaba sendo um compreender-se” (2002, p. 394). Como afirma Jean Grondin, “a compreensão humana se orienta a partir de uma pré-compreensão que emerge da eventual situação existencial e que demarca o enquadramento temático e o limite de validade de cada tentativa de interpretação” (1999, p. 159). 225 V. HEIDEGGER, 1997, p. 156. 223 224 190 Desde logo, tal objetivo não se pode pretender alcançá-lo por meio de um método pré-estabelecido, um cânone que guiaria nossa atuação interpretativa. Isso já foi explicado. Muito ao contrário, o importante é que não tomemos essa nossa compreensão prévia como definitiva, impondo-a ao ente. Tampouco que essa visada de fundo seja-nos imposta pelo “se”, o impessoal (das Man)226. O como entrar e permanecer no círculo é de índole fenomenológica, de forma que se deixe mostrar a coisa por ela mesma. Neste sentido (HEIDEGGER, 1997, p. 156, traduzimos227): Nele (o círculo) se encerra uma positiva possibilidade de conhecimento mais originário, possibilidade que, sem embargo, somente será assumida de maneira autêntica quando a interpretação haja compreendido que sua primeira, constante e última tarefa consiste em não deixar que o haver prévio, a maneira prévia de ver e a maneira de entender prévia lhe sejam dados por simples ocorrências e opiniões populares, mas em assegurar-se o caráter científico do tema mediante a elaboração dessa estrutura de prioridade a partir das coisas mesmas. Como já adiantamos mais acima, “a interpretação pode extrair do ente mesmo que há que ser interpretado os conceitos correspondentes, ou bem pode forçar ao ente conceitos aos quais ele resiste por seu próprio modo de ser” (HEIDEGGER, 1997, p. 153, traduzimos228). Eis aí evidenciada a importância do método fenomenológico, cujo lema husserliano era o retorno às coisas mesmas. Por isso, Vide item 8.1. “En él se encierra una positiva posibilidad del conocimiento más originario, posibilidad que, sin embargo, sólo será asumida de manera auténtica cuando la interpretación haya comprendido que su primera, constante y última tarea consiste en no dejar que el haber previo, la manera previa de ver y la manera de entender previa le sean dados por simples ocurrencias y opiniones populares, sino en asegurar-se el carácter científico del tema mediante la elaboración de esa estructura de prioridad a partir de las cosas mismas.” Em alemão: “In ihm verbirgt sich eine positive Möglichkeit ursprünglichsten Erkennens, die freilich in echter Weise nur dann ergriffen ist, wenn die Auslegung verstanden hat, daß ihre erste, ständige und letzte Aufgabe bleibt, sich jeweils Vorhabe, Vorsicht und Vorgriff nicht durch Einfälle und Volksbegriffe vorgeben zu lassen, sondern in deren Ausarbeitung aus den Sachen selbst her das wissenschaftliche Thema zu sichern” (HEIDEGGER, 1967, p. 153). 228 “La interpretación puede extraer del ente mismo que hay que interpretar los conceptos correspondientes, o bien puede forzar al ente a conceptos a los que él se resiste por su propio modo de ser.” Em alemão: “Die Auslegung kann die dem auszulegenden Seienden zugehörige Begrifflichkeit aus diesem selbst schöpfen oder aber in Begriffe zwängen, denen sich das Seiende gemäß seiner Seinsart widersetzt” (HEIDEGGER, 1967, p. 150). 226 227 191 “nem mesmo para Heidegger o conhecimento histórico é um projetar planejador, não é uma extrapolação de metas da vontade, nem pôr em ordem as coisas de acordo com desejos, preconceitos ou sugestões dos poderosos, mas é e continua sendo uma adequação à coisa, uma mesuratio ad rem” (GADAMER, 2002a, p. 395). Realmente, esse sobrepor da estrutura, guiando a interpretação pelo que não se mostra, não desvela o ser; nega-lhe a aparição e, portanto, recusa a verdade, mas quando isso acontece, “a personalidade, tornada objeto de expressão mais do que órgão de penetração, sobrepõe-se à verdade, contribuindo para encobri-la e ocultá-la ao invés de captá-la e revelá-la” (PAREYSON, 2005, p. 55), e aí onde o fenômeno se verifica, não se pode dizer haver ocorrido interpretação efetiva. Assim, não se trata de uma advertência emblemática da operação hermenêutica, mas de um vício que a desnatura. Para percebermos a repercussão dessas reflexões no Direito, retomemos o primeiro caso referencial (item 3.2.2.1). A Constituição assegura ao idoso ou incapacitado “miserável” o direito a uma prestação mensal no valor de um salário mínimo (CRFB/88, art. 203, V). Alguém postula o benefício assistencial e o INSS o nega sob o argumento de que ele tem condições de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. Em juízo, um detalhado laudo elaborado por assistente social evidencia que o ambiente familiar é miserável, que a família vive em estado de completa penúria etc. O juiz nega o benefício sob o argumento de que, a despeito de tudo que se mostra, a renda mensal per capita familiar é de ¼ do salário mínimo, portanto, acima do critério fixado em lei para que a miserabilidade do postulante possa ser atestada (a renda deve ser inferior a ¼ do s.m.). Eis a rememoração do caso. Uma primeira pergunta há que ser feita: se o juiz não se interessa por aquilo que se mostra, porque determina a realização da perícia social? Bastaria que exigisse do postulante que comprovasse o ganho familiar abaixo do teto fixado em lei. Ou seja, o que se está fazendo é decidindo à revelia do mundo! E por que assim o faz? 192 Porque esse mundo já lhe foi dado antecipadamente pelo conceito legal. E aí, forçamos o conceito contra aquilo que se mostra, mesmo que contra isso ele resista. Assim fazendo, não permitimos o desvelar do ser, e o acontecimento é sonegado e desprezado. Nossa (de)formação jurídica abre um horizonte de compreensão deficiente e, por ele inauguro dois mundos. E neste ambiente platônico, o idealizado e fetichizado é a lei, em detrimento do mundo do Dasein. O lamentável caso se presta como advertência a que deixemos o ente ser no que é, e que a nossa pré-compreensão possibilitante de qualquer interpretação não seja aquela do impessoal (das Man). Quando o benefício é postulado por um idoso, então a coisa fica extremamente fácil, pois qualquer semianalfabeto com uma calculadora à mão resolve o caso. Idoso: pessoa com 70 anos ou mais (Lei n.º 8.742/93: Art. 20, caput); miserável: pessoa que tenha renda mensal per capita familiar inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo (Lei n.º 8.742/93: Art. 20, §3.º). Preenchidos os requisitos (idoso + miserável), defiro o benefício assistencial; não preenchidos ambos os requisitos, indefiro o benefício assistencial. 8.4 A hermenêutica filosófica de Gadamer Analisamos alguns existenciais do Dasein, concluindo com uma abordagem acerca da interpretação e a sua tríplice estrutura prévia. Vimos como desta estrutura somos sempre lançados em um círculo hermenêutico que determina toda nossa compreensão, inclusive no plano ôntico, o que acaba por abalar qualquer pretensão de objetividade do conhecimento, no sentido de uma abordagem dos entes que seja ausente de qualquer prévia compreensão ou ângulo de visada prévio com que o objeto é tomado em nossa experiência. Agora, saltamos para a contribuição de 193 Gadamer no campo da hermenêutica e, por isso mesmo, parece-nos importante introduzir a forma e a finalidade da apropriação da analítica do existencial da compreensão por ele. É preciso retomar a questão do historicismo e sua ligação com o tema do método. Indagando o porquê da proeminência das ciências da natureza, a ponto de justificar a sua posição referencial para qualquer pretensão científica, Droysen afirmou que ela derivaria da clareza com que tomavam seu objeto, conscientes dos recursos de que dispunham para tal abordagem. Em última análise, detinham uma perfeita delimitação de um método próprio para fazê-lo. Assim, a pretensão de cientificidade de qualquer âmbito investigativo também careceria dessa fundação metodológica. A tradição inglesa, marcada por David Hume, propunha-se a uma universalização do método indutivo, exatamente porque sua tarefa não era a de estabelecer causas para os fenômenos naturais, mas constatar regularidades nos eventos observados229. Por isso mesmo, independentemente da natureza deste evento, a pujança da indução se manifestaria. Sequer a alegação da intervenção de caracteres psicológicos neste processo da sua eclosão seria impeditiva a esta Essa regularidade é constatada na forma do que Hume denominou de “conjunção constante” entre dois eventos, a qual seria a base para a sua negação do princípio da causalidade, sintetizada no excerto seguinte (2009, p. 116): 229 É apenas pela EXPERIÊNCIA, portanto, que podemos inferir a existência de um objeto da existência de outro. A natureza da experiência é a seguinte. Lembramo-nos de ter tido exemplos freqüentes da existência de objetos de uma certa espécie; e também nos lembramos que os indivíduos de uma outra espécie de objetos sempre acompanharam os primeiros, existindo em uma ordem regular de contigüidade e sucessão em relação a eles. Assim, lembramo-nos de ter visto aquela espécie de objetos que denominamos chama, e de ter sentido aquela espécie de sensação que denominamos calor. Recordamo-nos, igualmente, de sua conjunção constante em todos os casos passados. Sem mais cerimônias, chamamos à primeira de causa e à segunda de efeito, e inferimos a existência de uma da existência da outra. Em todos os casos com base nos quais constatamos a conjunção entre causas e efeitos particulares, tanto a causa como o efeito foram percebidos pelos sentidos, e são recordados. Mas em todos os casos em que raciocinamos a seu respeito, apenas um é percebido ou lembrado, enquanto o outro é suprido em conformidade com nossa experiência passada. 194 afirmação, eis que elas entrariam no jogo dos fatores interferentes, sem que, por isso, viessem a obstacularizar a própria regularidade do evento230. Gadamer aponta o desvio de foco desta premissa, marcando que a análise do fenômeno histórico não se volta à busca de uma lei de regularidades, não se trata de realizar inferências que baseiem previsões, mas de explorar a riqueza do próprio fenômeno em sua singularidade. Em suas palavras (2002a, p. 41): [...] o conhecimento histórico não aspira, no entanto, a abranger o fenômeno concreto como no caso de uma regra geral. O caso individual não serve simplesmente para confirmar uma legalidade, a partir da qual seja possível, numa reversão prática, fazer previsões. Mais do que isso, seu ideal é compreender o próprio fenômeno na sua concreção singular e histórica. Nesse particular, pode influir ainda quanta experiência genérica se quiser: o objetivo não é confirmar nem ampliar essas experiências genéricas, para se chegar ao conhecimento de uma lei, ou seja, como é que, afinal, se desenvolvem os homens, os povos, este povo, este estado é o que ele se tornou - dito genericamente: como pode ter acontecido que agora é assim. Por outros motivos, Droysen via como um desvio positivista a submissão da ciência histórica aos métodos matemáticos das ciências naturais e justificava essa objeção exatamente pela diversidade radical existente entre elas. A coleta de dados empíricos estaria vinculada (na linha kantiana) a conceitos e categorias a priori, como espaço e tempo, e231 o tratamento deste dados percebidos nos levaria no espaço a No pensamento medieval acreditava-se que pelo método dedutivo poderíamos aumentar nosso conhecimento do mundo, crença que sofreu impacto pela obra de Francis Bacon, que, por meio da indução, pretendia abalá-la, vendo na dedução apenas a possibilidade de estabelecer a correção do caminho do pensamento, sem que daí se pudesse ampliar o conhecimento acerca das coisas. Hume, ao criticar a ideia de causalidade, acaba por estabelecer que também a indução constituiria uma ilusão do pensamento, e o primado não estaria na razão, mas na experiência mesma. Assim, ao falarmos aqui em uma tradição inglesa marcada por Hume, queremos apenas fixar que, ao mitigar a ideia de causalidade para o conhecimento, abriu-se a possibilidade de aplicar um método unitário, independentemente do objeto estudado, eis que o alvo do conhecimento não estaria no objeto mesmo, mas na regularidade entre os eventos. 231 Nesse sentido, Emerich Coreth (1973, p. 19-20): 230 (Droysen) caracteriza a diferença entre os métodos das ciências naturais e os históricos pelos dois conceitos: "esclarecimento" e "compreensão". Esclarecer significa a redução causal de cada fenômeno a leis gerais e necessárias; compreender, pelo contrário, corresponde a apreender o individual em sua peculiaridade e em sua significação. 195 uma predominância do estático, daquilo que pode ser percebido de maneira uniforme pelos sentidos. Este o padrão da natureza, de forma que seu método deve voltar-se à descoberta das leis que regem o fenômeno observado. Por sua vez, no âmbito da história, prevaleceria o tempo, onde a inconstância, a mutabilidade e o dinamismo deixariam a sua marca. Exatamente por isso é que a investigação histórica é um processo contínuo, sem que se possa visar um momento terminal, sendo-lhe vedado um conhecimento definitivo. Portanto, se havia uma resistência à importação daquele paradigma científico das ciências naturais, então seria necessário o desenvolvimento de um método próprio para abordagem do seu objeto. Eis aí o que podemos dizer de uma tentativa de, desvencilhando-se do arquétipo metodológico das ciências da natureza, inaugurarmos uma autoconsciência histórica232. Na linha de Droysen, Dilthey também se lançava na cruzada para o desvencilhamento das ciências históricas das ciências naturais, muito embora o fascínio de um ponto seguro que servisse de fundação às últimas denunciava ainda os efeitos da visada referencial que aquelas ciências proporcionavam233. Portanto, “Dilthey se deixou influenciar profundamente pelo modelo das ciências da natureza, Como anota Gadamer, “O modelo das ciências da natureza, que Droysen conclama aqui, nada tem, portanto, a ver com o conteúdo, no sentido de uma adaptação teorético-científica, mas, ao contrário, no sentido de que as ciências do espírito deveriam deixar-se fundamentar, da mesma forma, como um grupo independente de ciências. O "historicismo" de Droysen é a tentativa de solucionar essa tarefa” (2002, p. 43). 233 É o que Jean Grondin pontua claramente (1999, p. 147): 232 [...] conceber as ciências do espírito em seu próprio direito científico, protegendo-as, dessa forma, da incursão da metodologia das ciências naturais, pretendia ele justificar as suas bases gnoseológicas universalmente válidas. Assim, perguntava ele, no prólogo à introdução de sua obra básica inconcluída, sobre a "sólida retaguarda" para a concatenação de sentenças, no campo das ciências do espírito, que podem reivindicar a pretensão de certeza. Embora Dilthey se posicione abertamente no sentido de libertar a autonomia das ciências do espírito de uma dependência das ciências naturais, que ele percebia no positivismo de Mill e Buckle, não obstante, o discurso sobre uma procurada retaguarda inabalável dá testemunho da fascinação que o modelo cientificista foi capaz de exercer sobre sua concepção. Pois parece indubitável que as ciências humanas, que tratam de realidades sublineares, também necessitem de algo como um ponto de Arquimedes, para poderem continuar existindo como ciências respeitáveis. 196 embora quisesse justificar justamente a independência metódica das ciências do espírito” (GADAMER, 2002a, p. 44). Como visto, toda essa preocupação separatista está sempre referida à questão do método, mas Gadamer textualmente diz que “não existe nenhum método para as ciências do espírito” (2002a, p. 45). 234 Heidegger entra em cena desconsiderando esta pretensa autonomia metódica, exatamente por ver a compreensão como um existencial do próprio Dasein. Ademais, o sentido do ser que ela proporciona somente pode dar-se na sua própria temporalidade. Não se trata, pois, como assinalou Gadamer, de um processo metódico, mas de um acontecer conosco. Nossa incursão acerca da questão do fundamento já dava conta dessa filosofia da finitude, tal como bem anota Grondin (1999, p. 180): O retorno a uma compreensão metodizável seria a desesperada tentativa, em face da historicidade que se abre ao século 19, de encontrar principalmente um "firme respaldo". O que Heidegger problematizava, quando desmascarava os seus pressupostos metafísicos, era, no fundo, a idéia de um tal ponto de Arquimedes. A idéia de um último fundamento atemporal derivaria, afinal, de uma fuga do homem ante sua própria temporalidade. A concepção de que existe uma verdade absoluta, brotaria, pois, de uma repressão ou esquecimento da própria temporalidade. Em vez de perseguir o fantasma de um último fundamento, Heidegger recomendava estabelecermo-nos radicalmente ao nível da finitude, elaborando a própria estrutura preconceituosa como estrutura positiva e ontológica da compreensão, para percebermos as nossas próprias possibilidades, a partir da nossa situação existencial. Dessa forma, Heidegger recuperou o questionamento epistemológico do historicismo. Não é do lado fantasmagórico de um respaldo universalmente válido, filho do positivismo e por isso da metafísica, que se pode tratar na compreensão, porém de um dar-se conta do eis-aí-ser, ou ser-aí, a ser conquistado com base nas possibilidades que estão à sua disposição. É inegável que a busca de uma verdade universalmente válida ameaça encobrir a realidade da compreensão, direcionando-a para um ideal de conhecimento que ela jamais irá concretizar. Gadamer dirá ainda que “Pode até ser que Dilthey tenha batalhado muito a favor da independência teorético-cognitiva das ciências do espírito (mas) o que se denomina método na ciência moderna é algo único e o mesmo por toda parte e só especialmente nas ciências da natureza cunha-se como modelar” (2002, p. 45). 234 197 Se o foco de Heidegger ao tangencialmente tocar a questão da hermenêutica e das críticas ao historicismo foi estabelecer uma análise existencial do Dasein, em torno da compreensão; por sua vez, a profundidade deste debate empreendido por Gadamer se dá por razões diversas, ainda que, ao final, conduza sua trajetória partindo da apropriação desse solo heideggeriano. Para ele, a questão seria “como, uma vez liberada das inibições ontológicas do conceito de objetividade da ciência, a hermenêutica pôde fazer jus à historicidade da compreensão” (GADAMER, 2002a, p. 400). Gadamer afirma então que tradicionalmente o humanismo estaria fundado em conceitos como os de formação, juízo e gosto, os quais, sobretudo por influencia da obra de Kant, teriam sido estetizados e subjetivados, criando uma dicotomia entre os parâmetros metódicos das ciências da natureza e o meramente subjetivo e estético. Isso teria feito com que as ciências históricas perdessem a sua vinculação a um suporte legitimador próprio, levando-as a buscar junto às ciências da natureza uma orientação para uma nova determinação235. Essa pretensa objetividade que deveria também presidir as ciências do espírito não poderia sustentar-se após a demarcação da estrutura prévia da interpretação, que já nos lança em um movimento pré-compreensivo e circular, tal como posta pela reflexão hermenêutica de Heidegger. E Gadamer, recepcionando-a, irá qualificá-la sobretudo pelo fato de haver visto neste círculo um sentido ontológico positivo. Assim, o importante não seria o escape do círculo, mas, reconhecendo a existência dessa estrutura prévia, não deixar-se levar por preconceitos ilegítimos, assim entendidos aquelas opiniões arbitrárias que não se confirmam nas próprias coisas, e esse deixar-se assim determinar “não é para o intérprete uma decisão heróica, tomada de uma vez por todas, mas verdadeiramente a tarefa primeira, constante e Não é por outro motivo que a primeira parte da sua obra capital começa com este diálogo com a tradição do historicismo e, de maneira crítica àquela perda de autorreferência legitimadora, inicia por tentar restabelecê-la, apontando para a função de verdade que do juízo estético poderia advir (“A liberação da questão da verdade desde a experiência da arte”). 235 198 última” (GADAMER, 2002a, p. 402). Portanto, voltando-se à interpretação de textos, há uma permanente reelaboração daquele projeto, à medida que se penetra no sentido. Essa importância da coisa interpretada como referencial da tarefa hermenêutica é assim pontuada por Gadamer (2002a, p. 405): Aquele que quer compreender não pode se entregar, já desde o início, à casualidade de suas próprias opiniões prévias e ignorar o mais obstinada e conseqüentemente possível a opinião do texto - até que este, finalmente, já não possa ser ouvido e perca sua suposta compreensão. Quem quer compreender um texto, em princípio, (tem que estar) disposto a deixar que ele diga alguma coisa por si. Por isso, uma consciência formada hermeneuticamente tem que se mostrar receptiva, desde o princípio, para a alteridade do texto. Mas essa receptividade não pressupõe nem "neutralidade" com relação à coisa nem tampouco auto-anulamento, mas inclui a apropriação das próprias opiniões prévias e preconceitos, apropriação que se destaca destes. O que importa é dar-se conta das próprias antecipações, para que o próprio texto possa apresentar-se em sua alteridade e obtenha assim a possibilidade de confrontar sua verdade com as próprias opiniões prévias. A resistência ao reconhecimento de preconceitos no operar da compreensão teria decorrido para Gadamer da atuação do Aufklärung (Iluminismo), que teria elegido a razão como marco legitimador de qualquer verdade, contra qualquer tipo de preconceito, aliás, como nos dá mostra a veemente postura de Descartes na superação de qualquer tomada prévia como verdadeira, senão após autorizada pelo crivo do teste racional236. O Aufklärung dirigiu a sua crítica à tradição religiosa cristã que, na autoridade do papado, teria buscado reforçar o caráter dogmático das escrituras. Exatamente por isso, os preconceitos eram vistos como decorrentes da autoridade ou da precipitação. Os primeiros impediriam o uso da nossa própria razão; ao passo que os últimos se instalariam em função de equívocos no uso de nossa razão mesma. Aqui cabe também a menção positiva que Gadamer faz a Francis Bacon (2002, p. 516-517), quando se refere a sua contribuição ao estudo dos preconceitos (ídolos), mas o faz com a reserva de que, diferentemente dele, não se pode pretender expurgá-los todos. Uma vez consciente deles, devemos sim submetê-los à prova constante e até corrigi-los e, se chegamos a eliminá-los, é tão somente porque os substituímos por outros. (Cf. REALE; ANTISERI, 2006, p. 256). 236 199 E ainda que se admitisse moderadamente a existência de certos preconceitos verdadeiros, isso em nada mudaria o panorama de “preconceito contra os preconceitos”, eis que, ao final, seria à razão que deveríamos apelar para selecionálos e admiti-los. Enfim, “a fonte última de toda autoridade já não é a tradição, mas a razão” (GADAMER, 2002a, p. 410). Para Gadamer, o romantismo teria provocado uma fissura nessa premissa, ao admitir a superação do logos pelo mito. Assim, “arremetendo contra a crença na perfeição do Aufklärung, que sonha com a plenitude da liberação de toda superstição e de todo preconceito do passado, agora, os tempos primitivos, o mundo mítico” (GADAMER, 2002a, p. 411). Aí se vislumbra uma mera inversão de polaridade, posto que ”a crença na perfeição da razão se converte na crença na perfeição da consciência mítica e se reflete em um estado originário paradisíaco anterior à queda no pecado de pensar” (GADAMER, 2002a, p. 412). Qualquer que seja o caminho que adotemos, vale mais uma vez a advertência de Gadamer, no sentido de que somos entes históricos e que qualquer tentativa de encontro de um ponto arquimédico para apoiar nossas pretensões de verdade é marcada por uma busca natimorta, eis que “a ideia de uma razão absoluta não é uma possibilidade da humanidade histórica. Para nós a razão somente existe como real e histórica [...] a razão não é dona de si mesma, pois está sempre referida ao dado no qual se exerce” (2002a, p. 415). Se nós pertencemos à história, então é necessário afastar essa imagem negativa atribuída ao preconceito pelo Aufklärung e assim reabilitar a autoridade da tradição, apontando-a como marco inicial do problema hermenêutico. Nesta trilha, importa redimensionar o conceito de autoridade, desvirtuado pelo Aufklärung, no sentido de um oposto à razão e à liberdade, que serviria de preconceito espúrio à toda correta interpretação. Gadamer destaca que aí não reside a essência da autoridade, já que, longe de residir ela em um atributo pessoal que se imponha ao intérprete contra sua atividade racional, ela deriva exatamente de um 200 processo de acolhimento em que é exatamente a razão quem seleciona. “Na realidade, autoridade não tem nada a ver com obediência, mas com conhecimento” (GADAMER, 2002a, p. 420). Inclusive no plano da ordenação que dela provém, é preciso notar que a ordem se legitima na autoridade como atributo mais originário; e não em si mesma. Portanto, a autoridade não é um contrário da razão, mas exatamente algo outorgado por ela, consoante nos mostra Gadamer (2002a, p. 419420): [...] reconhece-se que o outro está acima de nós em juízo e perspectiva e que, por consequência, seu juízo precede, ou seja, tem primazia em relação ao nosso próprio. Junto a isso dá-se que a autoridade não se outorga, adquire-se, e tem de ser adquirida se a ela se quer apelar. Repousa sobre o reconhecimento e, portanto, sobre uma ação da própria razão que, tornando-se consciente de seus próprios limites, atribui a outro uma perspectiva mais acertada. Eis aí o ponto que nos conecta à tradição, exatamente por revestir-se ela de autoridade, uma autoridade que não se estabelece por força externa, mas exatamente porque desde sempre já estamos inseridos nela. Podemos aqui conceber a tradição como o conjunto de normas e vivências que nos são “transmitidas”237 pelo passado e que, sem negar o futuro, se projeta sobre ele, sustentando a própria historicidade humana, o que faz dela (a tradição) a expressão de uma continuidade238. A conclusão é a de que a historicidade nos põe sob o influxo da tradição, não como algo determinante, mas, com certeza, dotado de uma autoridade que não podemos recusar, porque já somos inseridos nela, tal como Gadamer nos alerta (2002a, p. 423): No nosso comportamento com relação ao passado, que constantemente estamos confirmando, o que está em questão realmente não é o distanciamento nem a A expressão tem sua valência e se harmoniza com o conteúdo semântico que lhe é destacado por Manfredo A. de Oliveira, no sentido de que “tradição quer dizer entrega, transmissão. Algo nos é transmitido, é dito a nós no mito, nos costumes, nos textos” (2006, p. 233). De qualquer forma, as aspas foram propositalmente aqui postas para destacar o caráter de um horizonte sempre em formação, que impede ver qualquer sentido como algo definitivamente dado. 238 Ver MORA, 1965, p. 822. 237 201 liberdade com relação ao transmitido. Antes, encontramo-nos sempre em tradições, e esse nosso estar dentro delas não é um comportamento objetivador, de tal modo que o que diz a tradição fosse pensado como estranho ou alheio - isso já é sempre algo próprio, exemplar e intimidante, um reconhecer-se, no qual, para nosso juízo histórico posterior, quase já não se divisa conhecimento, porém a mais singela e inocente transformação da tradição. Do que acabamos de anotar, resta claro que essa pertença à tradição que lhe confere autoridade, faz com que sempre estejamos por ela já situados de alguma forma, e isso terá um impacto sobre a nossa condição hermenêutica, tal como adiante ficará claro ao estudarmos a questão da distância temporal e o princípio da história efeitual. 8.4.1 A distância temporal e o princípio da história efeitual O que até aqui procuramos destacar foi a noção de que o ideal de um método que nos permita angariar uma compreensão objetiva é inviável, exatamente porque já estamos desde sempre inseridos em uma tradição histórica que, dotada de autoridade, impõe-se em qualquer plano compreensivo, legando-nos uma visada prévia de todo o observado e já nos projetando em uma situação hermenêutica que interfere na elaboração de um projeto ou caminho compreensivo. Daí Gadamer afirmar que “o sentido da pertença, isto é o momento da tradição no comportamento histórico-hermenêutico, realiza-se através da comunidade de preconceitos fundamentais e sustentadores” (2002a, p. 442). Tomando-se por base um texto, quando o intérprete se depara com ele, já nesta situação pode destacar uma certa familiaridade e, concomitantemente, uma estranheza. Daí porque a sua tarefa não pode ser a de pura e simplesmente afirmar o familiar, tampouco, em polo inverso, rejeitá-lo por completo, mas estabelecer a compreensão na base dessa comunhão, ou seja, reconhecendo a autoridade da tradição que nos põe na pertença com o passado 202 histórico que pelo texto se faz presente e, simultaneamente, dar oportunidade para que ele seja interpelado pelo estranho. Aí reside exatamente a correção da afirmação de que a tradição e o sentido não são algo que possam ser tomados em absoluto e acabado, mas algo que se projeta em um perene desenvolvimento239. Mas se essa comunidade com o “a compreender” é objetivada em preconceitos que carrego, na minha visão prévia que me põe sob determinado ângulo de visada com ele, então como seria possível separar os denominados preconceitos produtivos que possibilitam a compreensão, daqueles mal-entendidos que a desnaturam? Aí não estaria evidenciada uma tarefa racional a necessitar de um método que pudesse operar esta seletividade? A despeito das críticas que adiante serão levantadas quanto à pretensão universal da hermenêutica filosófica, “sua tarefa não é desenvolver um procedimento de compreensão, mas esclarecer as condições sob as quais surge a compreensão” (GADAMER, 2002a, p. 442). É que essa distinção deve ocorrer no próprio desenvolver da compreensão, em que assume relevo a distância temporal entre a produção do “a compreender” e o “compreendido”. Na visão romântica a tarefa da hermenêutica seria a de reprodução do produzido originariamente, o que acabou por levantar a divisa de que devemos compreender melhor um autor do que ele mesmo se compreendia240. Para Gadamer, essa premissa está sustentada em algo mais originário, consistente no distanciamento entre o tempo do autor e o do intérprete, consoante adiante vemos (2002a, p. 443): Daí Gadamer afirmar que “o verdadeiro sentido contido num texto ou numa obra de arte não se esgota ao chegar a um determinado ponto final, pois é um processo infinito” (2002, p. 446). Essa infinitude da compreensão, à medida que penetro no sentido é também esclarecida por Reale e Antiseri (2006, p. 252): 239 cada interpretação se efetua à luz do que se sabe; e o que se sabe muda; no curso da história humana mudam as perspectivas (ou conjeturas ou pré-juízos) com que se olha um texto, cresce o saber sobre o “contexto” e aumenta o conhecimento sobre o homem, a natureza e a linguagem. Por isso, as mudanças, mais ou menos grandes, que ocorrem em nossa précompreensão podem constituir, conforme o caso, outras formas de releitura do texto, novos raios de luz lançados sobre ele, em suma, novas hipóteses interpretativas a submeter à prova. “se há qualquer coisa de verdadeiro na fórmula segundo a qual a mais alta completude da interpretação consistiria em compreender um autor melhor do que ele de si mesmo pode dar conta [...]” (SCHLEIERMACHER, 2003, p. 43). 240 203 O verdadeiro sentido de um texto, tal como este se apresenta ao seu intérprete, não depende do aspecto puramente ocasional que representam o autor e seu público originário. Ou pelo menos não se esgota nisso. Pois esse sentido está sempre determinado também pela situação histórica do intérprete, e, por consequência, por todo processo objetivo histórico. Aí que o sentido o texto, não apenas pode superar o seu autor, mas necessariamente o faz, e tal se dá exatamente em razão desse distanciamento histórico a que mencionamos. Isso faz da tarefa hermenêutica não apenas uma reprodução do dito, mas também uma produção e um dizer, que, não necessariamente é um melhor do que o dito, mas um outro em relação a ele, algo diferente dele. Isso só é possível na base de uma distância temporal entre autor e intérprete, que faz do tempo não mais um obstáculo à interpretação, ou uma dificuldade com que tenha que superar ou tolerar, mas algo possibilitador dela, tal como nos adverte Gadamer (2002a, p. 445): O tempo já não é mais, primariamente, um abismo a ser transposto porque divide e distancia, mas é, na verdade, o fundamento que sustenta o acontecer, onde a atualidade finca suas raízes. A distância de tempo não é, por conseguinte, algo que tenha de ser superado. Esta era, antes, a pressuposição ingênua do historicismo, ou seja, que era preciso deslocar-se ao espírito da época, pensar segundo seus conceitos e representações em vez de pensar segundo os próprios, e somente assim se poderia alcançar a objetividade histórica. Na verdade trata-se de reconhecer a distância de tempo como uma possibilidade positiva e produtiva do compreender. Não é um abismo devorador, mas está preenchido pela continuidade da herança histórica e da tradição, a cuja luz nos é mostrado todo o transmitido. Não será exagerado, se falarmos aqui de uma genuína produtividade do acontecer. Nesse contexto, não há dúvidas de que todo compreender partirá do reconhecimento de dois tempos, o do autor da obra interpretada e o do intérprete, sendo exatamente este distanciamento dos tempos que permitirá o acontecer da compreensão. A dimensão do tempo pode então ser deslocada para uma metáfora do espaço, tornando-se enriquecedora, e isso o faremos através da noção de horizonte. Este horizonte é o que nos projeta na visão para mais além do que está mais próximo, 204 do que é imediato, sem que, com isso, essa proximidade seja perdida241. Ao contrário, é o horizonte que nos possibilitará melhor compreendê-la. Acerca da expressão Gadamer estabelece (2002a, p. 452): Horizonte é o âmbito de visão que abarca e encerra tudo o que é visível a partir de um determinado ponto. Aplicando-se à consciência pensante falamos então da estreitez do horizonte, da possibilidade de ampliar o horizonte, da abertura de novos horizontes etc. [...] Aquele que não tem um horizonte é um homem que não vê suficientemente longe e que, por conseguinte, supervaloriza o que lhe está mais próximo. Pelo contrário, ter horizontes significa não estar limitado ao que há de mais próximo, mas poder ver para além disso. Aquele que tem horizontes sabe valorizar corretamente o significado de todas as coisas que caem dentro deles, segundo os padrões de próximo e distante, de grande e pequeno. A elaboração da situação hermenêutica significa então a obtenção do horizonte de questionamento correto para as questões que se colocam frente à tradição. Portanto, o horizonte não é uma determinação estática, mas caminha pari passu com a existência, deslocando-se à medida que nos movemos, daí porque é ele sempre revelador da nossa própria finitude, que não permite jamais tocá-lo. Parafraseando Eduardo Galeano, podemos dizer que à medida que dou dez passos, meu horizonte também recua dez passos; se caminho dez passos mais, lá se vai ele também mais dez passos, e assim sucessivamente, o que poderia nos levar a indagar o porquê de fixarmos em nossa mirada esse horizonte, ao que poderíamos responder: para fazernos caminhar. É por isso que a noção de horizonte, ao mesmo tempo que nos revela nossa própria finitude, também determina nosso caminhar pela compreensão. Essencialmente, esse horizonte não é algo conquistado. Não se ganha o horizonte histórico lançando-nos a uma situação histórica, tal como pretendiam os românticos ao hipervalorizarem o mítico, mas desde sempre requeremos o horizonte para podermos empreender qualquer deslocamento. Já sempre nos encontramos em “Ganhar um horizonte quer dizer sempre aprender a ver mais além do próximo e do muito próximo, não para apartá-lo da vista, senão que precisamente para vê-lo melhor, integrando-o em um todo maior e em padrões mais corretos” (GADAMER, 2002, p. 456). 241 205 determinado horizonte e daí dizermos que sempre estamos situados hermeneuticamente. E porque todo horizonte se mostra a partir dele mesmo, é que ele somente se descortina como um todo integrado entre o presente e o passado, formando o substrato de qualquer compreensão que nele se desenvolva. Por isso “compreender é sempre o processo de fusão desses horizontes presumivelmente dados por si mesmos” (GADAMER, 2002a, p. 457). Dizemos presumivelmente dados por si mesmos para evitar mal entendidos que derivariam de uma leitura apressada. De fato há aí uma aparente contradição quando falamos no descortinar de um único horizonte e, logo após, mencionamos uma fusão de horizontes, o que nos remete a uma pluralidade. Ela se dissolve quando vemos que o horizonte do presente nunca se forma destacadamente do passado, “a fusão se dá constantemente na vigência da tradição, pois nela, o velho e o novo crescem sempre juntos para uma validez vital, sem que um e outro cheguem a se destacar explicitamente por si mesmos” (GADAMER, 2002a, p. 457). Esse processo contínuo de formação é destacado mais uma vez por Gadamer (2002a, p. 460): A consciência histórica é consciente de sua própria alteridade e por isso destaca o horizonte da tradição com respeito ao seu próprio. Mas, por outro lado, ela mesma não é, como já procuramos mostrar, senão uma espécie de superposição sobre uma tradição que continua atuante, e por isso ela recolhe em seguida o que acaba de destacar, com o fim de intermediar-se consigo mesma na unidade do horizonte histórico que alcança dessa maneira. O projeto de um horizonte histórico é, portanto, só uma fase ou momento na realização da compreensão, e não se prende na autoalienação de uma consciência passada, mas se recupera no próprio horizonte compreensivo do presente. É tarefa da consciência histórico-efeitual esse envolvimento que deriva da nossa situação hermenêutica e faz com que ela sempre se determine no decorrer de uma fusão de horizontes, em que a tradição atua no presente. Assim, perante o intérprete não é disposto um objeto para uma captação desinteressada e inerte; ao contrário, o fenômeno histórico é captado de forma tal 206 que, fazendo valer a sua pretensão de sentido, contribui na formação do próprio horizonte do presente. Essa sua autoridade, que autoriza o seu projetar-se sobre ele, recompõe este horizonte em decorrência deste processo de fusão que se estabelece e por onde nem a tradição é reassumida acriticamente, tampouco é desconsiderada. É dessa recuperação da tradição em seu atuar no presente formando uma unidade, que temos no fenômeno histórico não um dado objetivo a ser interpretado, mas o seu atuar na própria história. A esse processo unitário que decorre da fusão de horizontes, Gadamer designou princípio da história efeitual. Confira (GADAMER, 2002a, p. 448): A ingenuidade do chamado historicismo reside em que se subtrai a uma reflexão desse tipo e esquece sua própria historicidade com sua confiança na metodologia de seu procedimento. Nesse ponto convém deixar de lado esse pensamento histórico mal entendido e apelar a outro, que deve ser melhor entendido. Um pensamento verdadeiramente histórico tem de pensar ao mesmo tempo a sua própria historicidade. Só então deixará de perseguir o fantasma de um objeto histórico, que é objeto de uma investigação progressiva, aprenderá a conhecer no objeto o diferente do próprio e conhecerá assim tanto um como outro. O verdadeiro objeto histórico não é um objeto, mas é a unidade de um e de outro, uma relação na qual permanece tanto a realidade da história como a realidade do compreender histórico. Uma hermenêutica adequada à coisa em questão deve mostrar na própria compreensão a realidade da história. Ao que é exigido com isso, eu chamo de "história efeitual". Entender é, essencialmente, um processo de história efeitual. A consciência da história efeitual está ligada à ideia de experiência, tem a estrutura dela. Na recomposição deste conceito, vemos que o cientificismo histórico somente atribui a dignidade à experiência quando, pela forma controlada em que ela é conduzida, pode ser repetida e, com isso, confirmadora das pretensões de validade de nossas conclusões racionais. Isso unicamente seria alcançado quando a própria experiência fosse tomada de forma objetiva e, portanto, despojada de qualquer interferência do sujeito interpretante, o que acaba por despojá-la de qualquer carga ou momento histórico. Mas se nossa experiência hermenêutica interfere em nosso horizonte, ela modifica o nosso saber e, por isso mesmo, torna irreprodutível a 207 experiência vivida. É que ao tentar repeti-la, já não se está perante o novo, mas diante de uma expectativa. No lugar do inesperado, o previsível. No desenvolver da experiência hermenêutica algo nos fala e, por isso, tenho que manter-me na abertura para essa pretensão, ou seja, estar aberto para o outro, disposto a deixar que algo valha contra mim, mesmo que esta pretensão não se efetive com êxito, ou seja, “eu tenho que deixar valer a tradição em suas próprias pretensões, e não no sentido de um mero reconhecimento da alteridade do passado, mas na forma em que ela tenha algo a me dizer” (GADAMER, 2002a, p. 533). Vimos então que toda experiência está fundada na abertura para que um outro nos fale e essa abertura será possibilitada por um perguntar. Portanto, é na estrutura da pergunta que a experiência se desenvolve. O que, entretanto, deve ser realçado é que todo perguntar que me coloca na abertura, já pressupõe uma limitação, posto que se dá já delineada em função de certos pressupostos, em uma visão prévia que me conduz. Nessa linha, se tratamos da compreensão de um texto, por exemplo, a abertura necessária à sua compreensão será proporcionada por uma pergunta que, curiosamente, será posta pelo próprio texto que nos oferece a resposta. Que se esclareça, entretanto, que a elaboração dessa pergunta não é uma tarefa tomada no âmbito de uma mera reconstrução historiográfica, porquanto o horizonte do texto é fundido com o nosso, através de uma automediação do pressente com a tradição, tal como nos alerta Gadamer (2002a,p. 550): Assim, pois, na realidade a relação entre pergunta e resposta inverteu-se. O transmitido, que nos fala - o texto, a obra, o indício - coloca, ele próprio, uma pergunta e situa portanto nossa opinião no aberto. Para poder dar resposta a esta pergunta que se nos coloca, nós, os interrogados, temos que começar, por nossa vez, a interrogar. Procuramos reconstruir a pergunta a que o transmitido poderia dar resposta. Todavia, não podemos fazê-lo se não superamos, com nossas perguntas, o horizonte histórico que com isso ganha um perfil. A reconstrução da pergunta, a que o texto deve responder, está, ela mesma, dentro de um perguntar, com o qual nós mesmos procuramos buscar a resposta à pergunta que a tradição nos coloca. Pois uma pergunta reconstruída não pode nunca se encontrar em seu horizonte originário, já que o horizonte histórico, descrito na reconstrução, não é um 208 horizonte verdadeiramente abrangente. Encontra-se, antes, ele próprio, abrangido pelo horizonte que nos abrange a nós que perguntamos, e que somos atingidos pela palavra da tradição. (grifamos) Embora essa pergunta seja por nós trazida à fala, não significa que dela estejamos na posse, que seja arbitrária, eis que sempre seremos conduzidos pela resposta latente que subjaz no próprio texto. Não se trata, da mesma forma de uma arbitrariedade porque a pergunta mesma é um elemento de abertura que nos abre à pretensão da tradição de nos dizer algo. Por isso mesmo, pela fusão de horizontes que se dá na compreensão temos o atuar da própria linguagem, porquanto trás à fala a própria coisa interpretada, evidentemente em seu perene atuar sobre nossa compreensão, como uma possibilidade histórica do compreendido. Essa perene atualização é fruto da atuação do princípio da história efeitual, que nos pondo na historicidade, revela nossa própria finitude242. Ao falar dessa impossibilidade de uma reconstrução historiográfica da pergunta, erige-se no âmbito do Direito um argumento convincente contra a pretensão de uma interpretação subjetivista que prestigia a intenção originária do legislador e, da mesma forma, a ideia de uma interpretação autêntica, o que redundaria na máxima reconstrução. Aqui, nem mesmo ele teria, nos moldes gadamerianos, como reconstruir originariamente a sua intenção (pergunta), pois a experiência não é autenticamente repetível243. Daí a conclusão de Gadamer no sentido de que “na finitude da nossa existência está o fato de que sejamos conscientes de que, depois de nós, outros compreenderão cada vez de maneira diferente” (2002, p. 549). 243 Refiro-me à polêmica no campo da hermenêutica jurídica clássica entre a interpretação objetiva ou subjetiva, comumente postas em termos da voluntas legis ou da voluntas legislatoris (cf. FERRARA, 2005, p. 29-32), discussão que se dá no plano ainda de uma dicotômica relação sujeito-objeto, cuja crítica já fizemos no item 4 deste trabalho. Da mesma forma, quanto à prevalência da interpretação conduzida pelo autor da regra jurídica, por entendê-la “autêntica”, no quarto caso referencial (item 3.3.1) também já nos posicionamos. 242 209 8.4.2 A questão da aplicação Embora tangencialmente já tenhamos tocado este tema244, os elementos trazidos por nossas reflexões acerca da historicidade presente em toda compreensão nos ajudará a melhor entender a questão da aplicação. Originariamente, o problema hermenêutico era subdividido em etapas, de forma que em primeiro lugar eu deveria compreender (subtilitas intelligendi), em seguida interpretar (subtilitas explicandi), para somente então realizar a aplicação (subtilitas applicandi). O romantismo reconhecerá a unidade interna entre as duas primeiras fases, de forma que compreender será sempre um interpretar e esse, a explicitação do compreender. Em que pese essa unidade entre intelligere e explicare, certo é que a aplicação continua a ser vista como uma fase posterior ao processo compreensivo, o que a hermenêutica filosófica irá necessariamente rejeitar, pois a compreensão sempre envolve um ato de aplicação, já que o horizonte histórico do evento interpretado se projeta, autorizando a pretensão da tradição de ser trazida à fala, mas não como uma mera reconstrução objetiva, senão como uma incorporação ao horizonte do presente interpretante (daí falarmos em uma fusão de horizontes). Ora, se é assim, então é forçoso também reconhecer que a compreensão se dá no espaço promovido por esta abertura proporcionada por este horizonte formado dessa interseção. Há sempre aí então uma aplicação a uma “realidade” presente, ou seja, “na compreensão, sempre ocorre algo como uma aplicação do texto a ser compreendido à situação atual do intérprete” (GADAMER, 2002a, p. 460). Exatamente por isso é que aquele fracionamento do processo hermenêutico não pode sustentar-se, e a compreensão é 244 Ver item 3.3. 210 sempre apropriada enquanto interpretada, da mesma forma que somente há compreensão quando diante de um ato de aplicação. Ao apresentar a estreita ligação entre as hermenêuticas setoriais, Gadamer assinala o marco comum da aplicação como momento da própria compreensão (2002a, p. 461): A estreita pertença que unia na sua origem a hermenêutica filológica com a jurídica repousava sobre o reconhecimento da aplicação como momento integrante de toda compreensão. Tanto para a hermenêutica jurídica como para a teológica, é constitutiva a tensão que existe entre o texto proposto - da lei ou da revelação - por um lado, e o sentido que alcança sua aplicação ao instante concreto da interpretação, no juízo ou na predica, por outro. Uma lei não quer ser entendida historicamente. A interpretação deve concretizá-la em sua validez jurídica. Da mesma maneira, o texto de uma mensagem religiosa não deseja ser compreendido como um mero documento histórico, mas ele deve ser entendido de forma a poder exercer seu efeito redentor. Em ambos os casos isso implica que o texto, lei ou mensagem de salvação, se se quiser compreendê-lo adequadamente, isto é, de acordo com as pretensões que o mesmo apresenta, tem de ser compreendido em cada instante, isto é, em cada situação concreta de uma maneira nova e distinta. Aqui, compreender é sempre também aplicar. Diante dos nossos objetivos, voltados ao Direito, resta evidente que a tese da subsunção245 é inaplicável ao âmbito da hermenêutica filosófica. Isso porque a interpretação não é um procedimento inicial, por meio do qual eu trago à compreensão a norma a ser aplicada em uma fase posterior, mediante um acoplamento a um determinado caso concreto que estaria subsumido à descrição hipotética nela contida. Não se trata de uma aplicação do modelo geral ao caso particular, mas qualquer pretensão de compreensão resulta do confronto da situação atual do intérprete com a tradição e, portanto, sempre somente compreenderemos quando já aplicamos. Nesse sentido (GADAMER, 2002a, p. 481-482): O intérprete que se confronta com uma tradição procura aplicá-la a si mesmo. Mas isso tampouco significa que o texto transmitido seja, para ele, algo dado e 245 Ver item 3.2.1. 211 compreendido como um algo geral que pudesse ser empregado posteriormente para uma aplicação particular. Pelo contrário, o intérprete não pretende outra coisa que compreender esse geral, o texto, isto é, compreender o que diz a tradição e o que faz o sentido e o significado do texto. E para compreender isso ele não deve querer ignorar a si mesmo e a situação hermenêutica concreta, na qual se encontra. Está obrigado a relacionar o texto com essa situação, se é que quer entender algo nele. 8.4.3 O círculo hermenêutico Os conceitos que vimos destacando ao longo desta exposição da hermenêutica filosófica de Gadamer não têm uma existência autônoma, mas apenas realçam aspectos de uma totalidade, sendo, por isso mesmo, correlacionados e quase sempre somente compreendidos à luz dos demais com que se relacionam. Tal é o que ocorre com o círculo hermenêutico. Em verdade, sua aparição não se deu com Gadamer, mas nele assumiu uma conotação bem distinta da que lhe foi legada. Já em Droysen e Dilthey a estrutura circular se mostra no âmbito da compreensão, tal como adverte Emerich Coreth (1973, p. 82): O particular deve ser compreendido no todo, mas este a partir do singular. Logo, a compreensão do particular pressupõe uma pré-compreensão do todo, dentro do qual ele deve ser entendido, mas a compreensão do todo se forma da compreensão dos momentos particulares, que se estruturam na totalidade. Também em Schleiermacher encontramos referência ao círculo hermenêutico. Em linhas muito gerais, a sua arte da compreensão está pautada na ideia de que seu esforço se volta à superação do mal-entendido, o qual tomou por base estar 212 generalizado, posto que se dá por si mesmo246. Porque a linguagem é histórica, ela nunca está disponível em sua totalidade ao intérprete, razão pela qual devemos promover uma recuperação objetiva do discurso originário, pela via gramatical em que o autor do texto se pronunciou. Por isso Schleiermacher afirma que “tudo que, num determinado discurso, ainda necessita de uma definição mais acurada somente pode ser definido a partir do âmbito da linguagem comum do autor e ao seu público originário” (2005, p. 123). A isso, ele agrega seu segundo cânon, que nos incita a buscar o sentido de cada termo em determinada passagem, mediante a sua correlação com os que lhe são próximos247. Por isso mesmo, haverá uma diferença entre o múltiplo significado das palavras, tomadas isoladamente, e o sentido que delas derivam quando incorporadas a uma totalidade. Não bastasse isso, o discurso se reveste de uma outra particularidade, ele está sempre dimensionado na esfera criativa do seu autor, que manipularia a linguagem por meio de “regras” subjetivas, conferindo-lhe um estilo próprio. Portanto, o que aqui está em jogo é “o princípio que move aquele que escreve, e os traços fundamentais da composição como sua natureza peculiar que se revela naquele movimento” (SCHLEIERMACHER, 2002, p. 199). A recuperação desse momento subjetivo do discurso seria então levada a efeito por uma interpretação psicológica248, sendo exatamente por meio dela que se justificaria a afirmação de que devemos compreender melhor o autor do que ele próprio, “pois nele muitas coisas são, dessa maneira, inconscientes, que em nós precisam tornar-se conscientes, em parte já, de maneira genérica, na primeira visão panorâmica, em parte nas particularidades, tão logo surjam dificuldades” (SCHLEIERMACHER, 2002, p. 127). “A práxis mais rigorosa baseia-se na idéia de que a não-compreensão se dá por si e que a compreensão precisa ser querida e buscada sob todos os aspectos” (SCHLEIERMACHER, 2005, p. 113). 247 Cf. SCHLEIERMACHER, 2002, p. 140. 248 “Como todo discurso tem uma dupla relação, com a totalidade da linguagem e com o pensar em geral de seu autor: assim também toda compreensão consiste em dois momentos; compreender o discurso enquanto extraído da linguagem e compreendê-lo enquanto fato naquele que pensa” (SCHLEIERMACHER, 2002, p. 95). 246 213 Como nem a linguagem nos é dada em sua totalidade, tampouco a vida do autor, esse processo de interpretação e penetração no sentido não pode nunca terminar249. Aqui já se nos apresenta uma primeira possível ideia de circularidade: a derivada da correlação entre o autor e a linguagem, tal como esclarece o excerto seguinte (SCHLEIERMACHER, 2002, p. 197): Podemos imaginar que compreendemos de tal maneira um texto numa perspectiva da linguagem, que possamos ter nisso uma medida para a peculiaridade psicológica do autor. Isso, porém, supõe que naquele aspecto estejam resolvidas todas as dificuldades, ou que não existam dificuldades. Da mesma forma, se conheço bem a peculiaridade psicológica de um autor, também posso compreender sem dificuldade o aspecto lingüístico, ainda que isso seja mais custoso e, contudo, sempre supõe o conhecimento do lingüístico. Considerando melhor, também o aspecto lingüístico supõe, por sua vez, o psicológico. É impossível não relacionar sempre os dois aspectos; se não fosse assim, teríamos de abandonar a relação entre linguagem e pensamento e abstermo-nos totalmente da leitura continuada. Mas não é efetivamente aí que a circularidade costuma ser invocada em Schleiermacher250. Na tentativa de eliminar o estranho que resulta do texto, nosso hermeneuta propõe a adoção de um método divinatório compartilhado com um comparativo. Pelo primeiro tentamos captar o que o autor quis dizer em determinada passagem do texto, por meio de um movimento de transposição subjetiva, em que o intérprete, “transformando-se” nele, procura compreender diretamente o singular. Por sua vez, pelo método comparativo, partimos do gênero e, por contraste, buscamos compreender o singular. De qualquer forma, “os dois procedimentos não podem ser separados entre si, pois, a divinação apenas obtém sua certeza mediante a comparação confirmadora” (SCHLEIERMACHER, 2002, p. 203), daí porque não podem jamais se separar. “A verdade é que, no trabalho de interpretação, o passar do mais indefinido para o definido é uma tarefa infinita” (SCHLEIERMACHER, 2002, p. 124). 250 Que se faça justiça a José Carlos Moreira da Silva Filho, que ao círculo se refere “em ambos os aspectos da interpretação (gramatical e psicológico), bem como na utilização dos métodos (comparativo e divinatório) e refere-se à relação entre o todo e o particular” (2006, p. 15). Para a explicitação desses movimentos circulares, veja-se na mesma obra as p. 15-16. 249 214 Pois é aqui que Schleiermacher, reconhecendo o desenvolvimento deste princípio hermenêutico em Friedrich Ast, estabelece que “assim como o todo seguramente é compreendido a partir do particular, também o particular apenas pode ser compreendido a partir do todo” (2003, p. 47). Essa progressão contínua no sentido se daria então por meio de um processo circular, em que eu vou compreendendo as frações da obra, e remodelando essa compreensão parcial, à medida que caminho em direção ao todo dela. Notamos que o círculo hermenêutico em Schleiermacher assume uma conotação bem distinta daquela que é formatada por Heidegger (e posteriormente trabalhada em maiores detalhes em Gadamer). É que naquele, toda essa circularidade se dá em um plano “objetivo”, relativo ao conteúdo do texto; ao passo que em Heidegger, o sujeito penetra na circularidade, por meio da já descrita estrutura prévia da compreensão. Sobre o tema já nos debruçamos em detalhes mais acima (item 8.3), o que nos permite um tratamento mais conciso. De fato, vendo o Dasein como ser-no-mundo, o mundo mesmo é tomado com um seu existencial, que se faz por meio de um plexo de significatividade em que desde sempre eu já estou lançado. A compreensão é então tomada em seu caráter ontológico, enquanto algo originário que está na base dos enunciados que faço acerca dos entes. É que o discurso apofântico somente é possível porque já estamos junto a eles, diante de uma compreensão prévia que deles tenho, a qual se dá na forma de algo enquanto algo (etwas als etwas). De fato, antes de definirmos a caneta como um cilindro pequeno, de material composto e preenchido por uma fluido de cor azul, ela já é sempre tomada na sua instrumentalidade para o escrever, é algo para isso. E não apenas assim, ela também me remete ao todo remissional a ela conectado, como meu caderno e livros em que com ela faço anotações, meu escritório como um todo, e inclusive o outro para quem escrevo etc. Assim, nossa relação com os entes se dá por meio de um haver-prévio 215 que se insere em uma estrutura tal em que a interpretação se dá sempre no âmbito de uma compreensão prévia. Portanto, ao contrário da hermenêutica tradicional em que eu interpreto para compreender, em Heidegger teremos exatamente o contrário, já que o Dasein, sendono-mundo, já está sempre em certa abertura que o põe na compreensão, cabendo à interpretação explicitá-la, tornando, v.g., o útil transparente em seu “para” (para isso ou aquilo). Portanto, o círculo hermenêutico se manifesta exatamente em razão dessa estrutura prévia, através da qual, ao interpretar ganho compreensão, mas simultaneamente, a interpretação já se desenvolve dentro de certa compreensão. Em Gadamer a questão do círculo é apoiada exatamente nessa estrutura prévia do compreender, lançada por Heidegger. Também aqui é feita uma distinção do círculo da hermenêutica tradicional, de caráter meramente formal entre as partes e o todo. Ao contrário, na hermenêutica filosófica o círculo está apoiado na historicidade, em que a tradição se incorpora ao presente como um ato de aplicação, de tal forma que a fusão de horizontes irá explicitar o próprio desenvolver-se da tradição no princípio da história efeitual251. É bom que se compreenda que não se trata de um círculo lógico que nos coloque em uma tautologia, onde minha compreensão é conquistada a partir do momento em que ela já me é dada. Como assinala Emerich Coreth, o círculo não tem natureza lógica, mas hermenêutica; e o conhecimento que daí deriva não é idêntico à pré-compreensão que a possibilita, mas apenas é fundado no mostrar-se da própria coisa, embora esse mostrar-se esteja enquadrado sob determinado ângulo de visada prévio. É por esta razão que “estritamente falando, não é um círculo no sentido de Como citamos mais acima, “O horizonte do presente não se forma pois à margem do passado. Nem mesmo existe um horizonte do presente por si mesmo, assim como não existem horizontes históricos a serem ganhos. Antes, compreender é sempre o processo de fusão desses horizontes presumivelmente dados por si mesmos” (GADAMER, 2002, p. 457). 251 216 uma circunferência que se fecha em si mesma, mas antes – para permanecer na imagem – um acontecimento em espiral” (CORETH, 1973, p. 90)252. 8.4.4 A linguisticidade A hermenêutica romântica de Schleiermacher assumia um enfoque bem diverso da que ora estudamos, posto que seu objetivo final era sobretudo a compreensão do autor, o que permite matizá-la de psicológica253. Contrariamente, em Gadamer temos sempre demarcada a pretensão de que o texto fale por si, que se tenha um entender-se a respeito da coisa mesma, ou seja, “a compreensão ganha encaminhamento por completo através do próprio assunto” (GADAMER, 2002a, p. 573). Por isso mesmo, ele irá asseverar que esse entendimento se dá como compreensão, a qual é apreendida na forma de interpretação que se desenvolve no seio da linguagem254, uma “linguagem que pretende deixar falar o objeto e é, ao mesmo tempo, a linguagem própria do seu intérprete” (GADAMER, 2002a, p. 566567). A superação desse modelo psicológico herdado da tradição romântica é mais claramente observada na interpretação de textos, porquanto ele rompe de certa forma tanto com o vínculo pessoal com seu autor, como com o seu destinatário, já que o texto fala por si e está para todos. Daí a afirmação de que “na escrita, o sentido do falado está aí por si mesmo, inteiramente livre de todos os momentos emocionais da expressão do anúncio” (GADAMER, 2002a, p. 571). Por isso é que a compreensão Reforçando o caráter espiral da hermenêutica, “caso fosse literalmente circular, o intérprete sairia do movimento da mesma forma que entrou, ou seja, com os mesmos preconceitos originais. Não poderia ter, por isso, nenhum juízo sobre suas validades, nem conquistar qualquer ganho em qualidade” (PEREIRA, 2007, p. 37-38). 253 Neste sentido: OLIVEIRA, 2006, p. 232-233. 254 Cf. GADAMER, 2002, p. 566. 252 217 do intérprete não pode estar focada na repetição de algo pretérito que o reconduza a um “primum originário, em que algo foi dito ou escrito, enquanto tal. A leitura compreensiva não é repetição de algo passado, mas participação num sentido presente” (GADAMER, 2002a, p. 571). Esse auto-alheamento do texto faz com que a sua compreensão não derive de uma relação entre pessoas, tal como intuitivamente nos remetemos ao vermos as figuras do seu autor e do seu intérprete, mas uma participação no que o texto nos comunica, o que nos confere uma autonomia da leitura que impede sejam os textos apreendidos como uma expressão da subjetividade do seu autor. Como decorrência dessa autonomia que decorre da separação do enunciado daquele que enuncia, quanto ao intérprete poderemos dizer que “aquilo que ele compreendeu será sempre mais que uma opinião estranha; já será sempre uma possível verdade” (GADAMER, 2002a, p. 574). Na base da estrutura prévia da compreensão, Gadamer ilustrará a impossibilidade de superá-la com a ingênua pretensão dos historiadores de tentar compreender os eventos históricos apenas como objetos, descrevendo-os, portanto, objetivamente. É que “apesar de toda a sua metodologia científica, comporta-se da mesma maneira que todo aquele que, como filho do seu tempo, está dominado acriticamente pelos conceitos prévios e pelos preconceitos do seu próprio tempo” (2002a, p. 577). E quando, dando-se conta de que está diante dos preconceitos, põe-se em ingenuidade ainda mais abissal ao tentar colocá-los de lado no processo compreensivo, pois “o intérprete não consegue alcançar, em grau suficiente, o ideal de deixar-se a si mesmo de lado” (2002a, p. 577). É o que, em sentido idêntico, Rodolfo Viana Pereira nos diz, em inspirada metáfora, que não nos é dado “pular a nossa própria sombra” (2007, p. 33). O absurdo da tentativa natimorta de tentar eliminar nossos preconceitos no processo de compreensão reside exatamente na consciência de que em todo 218 compreender o intérprete deve buscar que a intenção do texto seja trazida à fala, jogando com seus próprios conceitos prévios, e isso ele fará por meio da linguagem. Essa inseparável conexão entre compreender, interpretar e a própria linguisticidade, decorre do caráter de abertura ao mundo que a última nos proporciona. Embora a reflexão em torno da linguagem não se dê originariamente em Gadamer, é com ele que assumirá destaque a sua conexão com o processo hermenêutico, a ponto de fazer dele algo universal. Já no Crátilo de Platão encontramos indícios de uma linguagem tomada como forma, como mero conjunto de sinais convencionalmente estabelecidos e destinados a expressar o já pensado. Esse aspecto formal será bem destacado na apropriação que lhe deu o Primeiro Wittgenstein em seu Tractatus, onde ela estaria orientada pelos próprios objetos denotados, por meio de uma isomorfia lógica entre linguagem e mundo. Essa concepção é revista pelo próprio Wittgenstein em suas Investigações Lógicas, inaugurando-se aí uma concepção pragmática para a linguagem, por meio do que denominou jogos de linguagem. Aqui já não mais teríamos para as palavras um sentido unívoco “a priori” que me permitisse usá-las posteriormente como elemento designativo das coisas; ao contrário, elas primeiro seriam usadas na vida e por esse emprego é que chegaríamos à sua significação. O que queremos aqui delinear é a impossibilidade de termos um pensamento desconectado da linguagem e que, o assim pensado, somente após pudesse ser “verbalizado”. Na verdade, todo pensamento e toda reflexão se dá já na base da linguagem, posto que o homem é um ser vivo que se peculiariza exatamente por ser dotado de linguagem, tal como já nos advertia Aristóteles255. Trata-se do seguinte excerto: ζῳον λόγον ἔχον, em que a palavra λόγος é normalmente traduzida como razão e, portanto, o homem seria um ser dotado de razão. Entretanto, Heidegger nos adverte que na filosofia clássica grega, a expressão jamais foi assumida como razão, mas como fala ou conversação, daí dizer que “o homem é um ente que tem seu mundo na forma do falado” (2008, p. 42). 255 219 Essa linguagem, entretanto, não pode ser concebida como um mero instrumento, mas como o ser que possui λόγος, ele experimenta o mundo (sentindo, compreendendo etc.) no meio256 da linguagem. Portanto, toda a nossa compreensão nos leva a uma verdade mediada, ou seja (ROHDEN, 2005, p. 235): A verdade não está aí propriamente ante nós de uma maneira imediata. É algo que “acontece” na forma de relacionar-nos com as coisas e na forma em que as coisas interpelam a nós. Como nossa apreensão das coisas não se dá de forma imediata/intuitiva, enquanto seres finitos, filosofamos a partir do medium linguístico na forma dialógica. Essa posição acaba por fazer da linguisticidade um índice da nossa própria finitude, posto que “o ser que pode ser compreendido é linguagem” (GADAMER, 2002a, p. 687)257. Na medida em que todo anúncio se manifesta enquanto linguagem e que toda compreensão que dele tenho também se dá por este meio258, então o dizer e o compreender estão na base da linguagem, o que já justifica uma insinuação aqui para a dimensão universal da hermenêutica. De qualquer forma, é preciso prosseguir ainda mais, a fim de atentarmos para a repercussão dessas premissas. Essa advertência não passou ao largo para Gadamer, que então toma o homem como o ente dotado de linguagem e exatamente por isso se peculiariza como tal. 256 Que se note a advertência de Luiz Rohden, no sentido de que o medium a que se refere Gadamer não deve ser tomado como meio no sentido de instrumento, mas como lugar, espaço, meio-ambiente e modo de algo ser (2005, p. 227). 257 Essa mediação linguística de todo acontecer da verdade é que marca nossa limitação, tal como exemplarmente nos coloca Luiz Rohden (2005, p. 227): Com e pela linguagem, marca da finitude humana, a realidade constitui-se mediada lingüisticamente, e desse modo também a “força de nossa reflexão é sempre uma força limitada pelo acontecer da lingüisticidade” que se compreende como “condição de possibilidade de toda compreensão, a condição de possibilidade de que todo horizonte de sentido seja determinado por sua vinculação ao acontecer da experiência humana finita”. Do ponto de vista da hermenêutica filosófica, a linguagem não é apenas condição de possibilidade, mas ela mesma é constituinte e constituidora do filosofar. Como citamos mais acima, é a “linguagem que pretende deixar falar o objeto e é, ao mesmo tempo, a linguagem própria do seu intérprete” (GADAMER, 2002, p. 566-567). 258 220 Na base do que acabamos de expor, estamos autorizados a dizer que a tradição se manifesta enquanto linguagem e a sua apropriação renovada no ato aplicativo ao horizonte do intérprete também se dá nesta via, pelo que a linguagem não é um dado objetivo, mas um acontecer que se renova historicamente e, muito mais do que algo que possuímos, é ela quem nos possui. Por isso dirá Luiz Rohden que a linguagem “sempre nos ultrapassa, p. ex., no sentido da palavra falada que visa, no encontro com o outro, a algo para além do dito: abre um horizonte de sentido não pré-pensável, in-determinado, que dá sempre o que pensar” (2005, p. 227). É esse impensado do texto que nos remete à hermenêutica como um compreender linguisticamente que não pode ser tomado por qualquer pretensão formal ou semântica que aprisione o sentido antecipadamente, já que a linguagem, enquanto meio da compreensão, forma-se e se transforma na própria historicidade. Há aí um sentido que não se esgota na expressão verbal e isso, longe de ser uma deficiência da linguagem é o que a torna fecunda. “Não é que a expressão verbal seja inexata e esteja necessitada de melhora, mas, justamente é o que pode ser, transcende o que evoca e comunica” (ROHDEN, 2005, p. 238). Na linguagem haverá sempre um não-dito e algo encoberto. Essa fecundidade da linguagem torna completamente absurda a pretensão de um sentido jurídico estagnado nos textos normativos, tal como se vê no cânone interpretativo propugnado no âmbito do Direito Tributário, que “nos determina” a aplicar literalmente as regras concernentes à concessão de isenções (dentre outras259). O curioso é que acreditamos na possibilidade de uma tal interpretação limitada e que Eis o que dispõe o Código Tributário Nacional (CTN), em seu art. 111: “Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre: I - suspensão ou exclusão do crédito tributário; II - outorga de isenção; III - dispensa do cumprimento de obrigações tributárias acessórias”. 259 221 não deixa o texto ser trazido à fala, tal como se pode ver no aresto adiante transcrito (AgRg no REsp 953130 / RS, Relator Min. Humberto Martins, DJ 26/03/2008)260: TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL - IPVA - ISENÇÃO – INTERPRETAÇÃO LITERAL - AGRAVO REGIMENTAL. 1. As isenções, diante da inteligência do art. 111, II, do CTN devem ser interpretadas literalmente, ou seja restritivamente, pois sempre implicam renúncia de receita. 2. In casu, a isenção é concedida a ônibus e não a micro-ônibus, de tal sorte que não pode o intérprete/aplicador da lei estendê-la, diante da exegese literal da isenção. Agravo regimental improvido. (grifamos) Prosseguindo em nosso caminho, se como diz Heidegger é a linguagem a casa do ser, então o ser somente nela se manifesta enquanto tal. Assim, a expressão do anúncio é o mostrar o ser tornando-o patente, mas este mostrar também somente pode ser visto enquanto apreendido no meio da linguagem. Logo, de um lado é a tradição conduzida pela linguagem e também por ela apropriada e, portanto, todas aquelas estruturas da mediação, fusão de horizontes e da aplicação somente podem ser concebidas por e na linguagem, o que faz da compreensão, da interpretação e da própria hermenêutica filosófica, ser impensável desconectada dela. Extraio ainda um outro acórdão da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (REsp. n.º 492077/RJ, Relator Min. José Delgado, DJ 30/06/2003, p. 153): 260 PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. ART. 111, DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL. INTERPRETAÇÃO LITERAL. APLICAÇÃO. ADIANTAMENTO DE VALORES AO MUNICÍPIO. CONTA PESSOAL DE SERVIDOR. ISENÇÃO DE CPMF. DESCABIMENTO. LEI 9.311/96, ART. 3º, I. INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO. 1. Ao artigo 111, do Código Tributário Nacional, deve ser aplicada interpretação literal, porquanto esta regra traduz mera liberalidade fiscal, sendo de todo incompatível com a exegese sistemática ou teleológica. 2. O adiantamento de numerário ao Município, feito por intermédio de depósito em conta pessoal de servidor (designado para geri-lo), não usufrui de isenção da CPMF. 3. A Lei 9.311/96, em seu art. 3º, I, autorizou a isenção da CPMF, tão-somente, a lançamentos em conta do Município, não estendendo tal benefício a importâncias destinadas a contas pessoais de servidores (regime de adiantamento previsto na Lei 4.320/64, art. 68), em que pese o fato de o destinatário final ser a própria entidade pública. 4. Recurso Especial conhecido e desprovido. 222 Se agora invertermos o ângulo de visada, vendo a linguagem como o meio pelo qual o mundo se dá ao Dasein, então todo o nosso modo de ser-no-mundo também será por ela mediado e isso fará com que a hermenêutica filosófica assuma pretensões de universalidade. Dito de outra forma, se nossa relação com o mundo tal como ele se apresenta é sempre mediada e dada por meio da linguagem, então efetivamente estará com razão Gadamer ao asseverar, como já assinalamos, que “o ser que pode ser compreendido é linguagem”, sendo ela, portanto, locus privilegiado de toda e qualquer compreensão, inclusive a própria linguagem, tomada como fenômeno, somente por ela poderá ser compreendida, confirmando o caráter universal da hermenêutica261. “nada diz contra a pertença essencial entre compreensão e linguisticidade. Ela está verdadeiramente apropriada pra confirmar por si mesma essa pertença essencial. Pois toda crítica que se eleva para além do esquematismo de nossas frases, com o fim de entender, encontra por sua vez sua expressão na forma linguística. Nesse sentido a linguagem rebaixa qualquer argumentação contra sua competência. Sua universalidade se mantém na altura da universalidade da razão” (GADAMER, 2002, p. 584). 261 223 9 CONCLUSÃO DA SEGUNDA PARTE Ao longo da primeira parte do trabalho, delineamos um esboço crítico da crise em que se encontra o Direito, avançando como uma sua possível origem a incorporação do paradigma racional-objetificante moderno que, sucumbente, refletiria sua degradação no próprio Direito. Nesta segunda parte, deixamos sugerir um possível caminho para tornar mais promissor o horizonte jurídico, insinuado na filosofia hermenêutica de Heidegger e, na sequência, na hermenêutica filosófica de Gadamer. Antes de debruçarmo-nos diretamente sobre esses temas, destacamos que se um dos pontos críticos que o Direito herdou do pensamento moderno foi exatamente a pretensão de erigir um ponto arquimédico, a partir do qual pudéssemos dar sustentação ao mundo, o que notadamente estaria refletido na busca por um fundamento inconcussum, daí imediatamente aflora como tema de nossa análise a questão do fundamento262. Salientamos que o homem é constrangido por uma necessidade primordial de encontrar-se no mundo, dando à sua própria vida um fundamento, o que deixaria a marca dessa busca em todo momento do seu pensar e agir, daí porque, como ente lançado no mundo, ele é sempre em meio a um projeto fundado. Por sua vez, a tríplice estrutura do fundar indicaria que todo projeto tem um excesso que é contido enquanto o Dasein toma-chão, aí se revelando a marca da sua finitude. Ao conectarmos o fundamento à transcendência, vimos que essa ultrapassagem do ente em seu ser se dá no horizonte do mundo, mas o mundo, As razões que adiante serão dadas para justificar a inclusão do princípio do fundamento em nossa análise não são completas, posto que ela também se justifica pela apropriação que se fará na terceira parte deste estudo. 262 224 enquanto projeto aberto, nunca pode ser tomado em sua totalidade, posto que o Dasein é finito. Portanto, aqui já se deixa mostrar um rompimento paradigmático, já que a filosofia que se instaura é posta no plano da facticidade humana, desconectada de qualquer pretensão de atingir o absoluto. Esse ponto de inflexão também se revelou por ocasião da tentativa de fundamentar o próprio princípio do fundamento, momento em que nos deparamos com o sem-fundo. É que o princípio em questão fala do ser, e o ser é Abgrund, tal como emblematicamente Heidegger colocou ao estabelecer: ser e fundamento – o mesmo (conclusão derivada da confrontação com o enunciado leibniziano do princípio da razão suficiente em uma nova tonalidade: “Nada é sem fundamento”). Daí termos afirmado que na busca por fundamento damos um salto que nos lança a um abismo que se desfunda, revelando a nossa própria finitude. Por isso, nesse caminho que constrange o homem em sua existência, o que no fundo ele busca é encontrar-se, mas quanto mais procura o que ele encontra é o mistério. O tema do fundamento também nos deslocou para a questão da diferença ontológica, a qual nos remeteu, por sua vez, à questão da verdade, da compreensão e da interpretação. Aqui a presença de Heidegger foi marcante, porquanto deslocou todos esses temas para o âmbito da existência. São eles modos de ser do Dasein. Tal conexão permitiria a Gadamer destacar que a pretensão de apoiar as ciências do espírito em uma metodologia ainda estaria vinculada àquele ideal racional das ciências da natureza, mesmo que seja para negar o espelhamento dos seus métodos e para sustentar uma metodologia própria (tal como vimos na primeira parte, através das lúcidas advertências de Boaventura Santos). De qualquer forma, elas estão aí como referência a um processo exitoso, pautado no método. Com Gadamer, não que o método seja completamente repudiado, mas na linha de Heidegger, torna-se necessário aprender que todo processo compreensivo se dá de 225 forma ontológica, mais originária, já que a compreensão, independentemente de qualquer método, ela está sempre aí, como um modo de ser humano. Ao destacarmos as notas típicas da hermenêutica filosófica, pudemos perceber o vínculo existencial do homem com a tradição, o que faz com que a sua finitude agora seja uma decorrência da sua própria historicidade. Por outro lado, a linguagem alçará uma posição de destaque neste processo compreensivo, tornando-se dele indissociável, pois ser que se pode compreender é linguagem. Se fizermos uma parada no caminho para reflexão, o que poderemos atribuir de ganho para o nosso horizonte? Parece-nos que está na revelação da finitude, seja pela impossibilidade de apropriação totalizante do projeto de mundo, seja pela historicidade que nos permeia e nos constrói, destronando qualquer pretensão de ver o Direito ancorado em um porto seguro, a ponto de erigir-se, nesse viés totalizante, a segurança jurídica como princípio. Não há segurança no Direito, como ademais em qualquer modo de ser humano (se ela é tomada em absoluto, insistimos)! Ao contrário, toda tentativa de estagnar o acontecer é próprio da contenção da temporalidade e, portanto, acaba com a fertilidade do solo que viabiliza a compreensão do ser em geral263. Assim, interpretação literal, interpretação autêntica, voluntas legislatoris, povoamento de critérios matemáticos como regra de decisão (ao que denominamos emblematicamente de “matematização do Direito”), tudo isso deve ser transposto se queremos nos defrontar com o acontecer do Direito, se queremos deixar o mundo jurídico valer. Nenhum método nos fará ganhar segurança jurídica, na forma como pretendida. Nenhuma restrição normativa ao julgador permitirá implementar um Direito mais justo; ao contrário, todas essas raízes acabarão por, inseridas no Aliás, a advertência se conecta à indicação inicial do projeto de Ser e Tempo, em que Heidegger afirma que o tempo é interpretado como horizonte de possibilidade para toda compreensão do ser em geral (1997, p. 12). 263 226 processo de formação dos juristas, revelar o domínio de ideologias que irão aflorar na práxis posterior, como supressoras da própria liberdade, tornando-nos a boca que pronuncia a palavra do outro, e o que é pior, um outro que não se revela, um alguém que na verdade é ninguém, tal como a análise do impessoal (das Man) fez mostrar. Tampouco pode prosperar qualquer intenção objetificante no Direito, tal como uma interpretação pautada na voluntas legis. A linguisticidade de todo acontecer da compreensão deixa isso muito claro, pois se de um lado não se pode tomar a tradição de maneira acrítica, tampouco, o texto é uma unidade de sentido independente dela. Sempre somos carreados de pré-juízos que fazem com que nossa tomada de posição seja assegurada em determinada visada prévia do ente. Essa estrutura prévia da compreensão é esclarecedora, portanto, da impossibilidade de uma interpretação estéril, despersonalizada, pois a compreensão se dá no meio da linguagem e essa é a marca do humano. Ademais, ficou bem claro que se toda compreensão ocorre no âmbito de uma fusão de horizontes, então, como registramos com Gadamer, “na escrita, o sentido do falado esta aí por si mesmo, inteiramente livre de todos os momentos emocionais da expressão do anúncio” (2002a, p. 571). Finalmente, no processo de aplicação não estamos diante de um sentido geral, previamente dado, ao qual se subsume um caso específico. Aplicar significa exatamente a impossibilidade de recebermos esse sentido pronto e acabado como um dado prévio, pois o texto que vem à fala somente pode ser ouvido à luz da situação hermenêutica do intérprete. É o que basta também para repudiar a pretensão de uma subsunção jurídica pura, aos moldes da dedução lógica264. Nem se diga que, como críticos do positivismo jurídico, ainda estamos presos a processos que sequer os positivistas acatam, que uma tal metodologia talvez apenas seria festejada no rastro histórico fossilizado deixado pela Escola da Exegese, tal como quer fazer crer Dimitri Dimoulis (cf. 2006, p. 45 e ss.). Não se trata, como ele assevera, de uma crítica meramente retórica, que vise apenas a impressionar quem desconhece o tema, mas exatamente está alicerçada no modo em que o Direito se apresenta na práxis dos tribunais, espaço por excelência para a sua realização (embora não o único). E exatamente daí que os casos referenciais que elencamos na primeira parte, somados aos demais 264 227 Entretanto, o realçar da compreensão como um modo de ser humano, debilitando a pujança metódica que lhe pretende atribuir certeza e correção, bem como a revelação da sua estrutura prévia, destacando o papel de nossos prejuízos em todo compreender, seriam definitivamente o caminho para a superação daquelas estruturas ancilosadas que permeiam o modo de ser do Direito? Reconhecermo-nos como seres finitos e o processo compreensivo como inesgotável não acabaria por lançarmo-nos em uma perspectiva niilista, negativa e relativista frente a toda tarefa de interpretação no Direito? Não deveríamos recorrer a alguma metódica que permitisse um controle racional desses pressupostos reconhecidamente interferentes no processo de compreensão? Essa falta de uma instância de controle racional nos pressupostos de toda compreensão não nos conduziria à aceitação acrítica de ideologias que permeiam a trama social? O que aqui, portanto, assumimos como ganho já não se estaria mostrando como algo negativo? O só fato de ainda estarmos formulando essas questões já nos sinaliza para a necessidade de mantermo-nos a caminho. E o horizonte que agora já se descortina na terceira e última parte deste estudo nos mostra as críticas incidentes sobre a perspectiva de Gadamer, a fim de encaminharmos uma proposta mais abrangente para o projeto hermenêutico, que perpassará a dimensão do outro com maior incisividade do que o fez Gadamer. Entretanto, destacamos que o manter-se a caminho não despreza o fato de que ele segue do ponto já alcançado. Não é uma volta ou retorno, mas um caminhar com esses filósofos, mas para além deles. registros distribuídos ao longo do texto, transpõem nossa crítica para o plano daquele modo encoberto de ser que obnubila o acontecer do Direito. 228 3.ª PARTE A HERMENÊUTICA ARGUMENTATIVA 10 INTRODUÇÃO À TERCEIRA PARTE Ao encaminharmos alguns questionamentos dirigidos contra a hermenêutica filosófica, marcamos a necessidade de prosseguirmos para além dela. Esta última parte de nosso trabalho pretende cumprir este desiderato, iniciando com uma breve abordagem crítica que a ela é dirigida, na esteira do conhecido debate instalado entre Habermas e Gadamer, reforçado pelas pontuais restrições que a ela são opostas por Karl-Otto Apel. Ainda nesse viés crítico, realçaremos por nossa conta a ainda tímida consideração do outro na exploração do processo hermenêutico, muito embora esse tratamento tangencial não importe per se uma negação ou impossibilidade do criticado, pois o fato de nosso filósofo não haver registrado a contento o papel do outro naquele processo não significa que sua teoria impossibilite tal colmatação; ao contrário, a justificativa da sua necessidade derivará exatamente da analítica do Dasein empreendida por Heidegger, especialmente quanto aos existenciais do sercom (Mitsein) e do mundo compartilhado (Mitwelt); e da linguisticidade, tal como delineada pelo próprio Gadamer. A ideia não é aqui a de estabelecer uma proposta ética para o nosso plano, muito embora tal perspectiva seja possível, mas a de mostrar que, sendo um 229 postulado de essência para o Dasein o de ser ele com os outros e de ter ele um mundo compartilhado, o mesmo destino há que ser reconhecido também à compreensão. Aqui, portanto, compreensão será compreensão compartilhada e, com isso, fazemos nela penetrar o outro pelas portas da argumentação, o que sucintamente já se presta a justificar o título que acabamos de avançar: hermenêutica argumentativa. 230 11 AS CRÍTICAS À HERMENÊUTICA FILOSÓFICA Neste tópico pretendemos reconstruir o conhecido debate instalado entre Gadamer e Habermas, em torno da universalidade da hermenêutica. Esse percurso será retomado de maneira rápida, apenas para registrar os traços essenciais dessa disputa. Em seguida, destacaremos a crítica de Karl-Otto Apel a Gadamer, no sentido de que, ao formular as condições de possibilidade de todo e qualquer compreender, deixou esquecida a pergunta por sua condição de validade. Por fim, lançaremos nossa própria crítica, que das demais se aproxima ao registrar a deficiência do modelo exposto por Gadamer, mas delas se distancia por postular algo mais para a própria hermenêutica e não para além dela. Esse algo mais seria encontrado no próprio avançar da análise estrutural do compreender, contemplando aí um processo de compartilhamento no logos argumentativo, que será melhor esclarecido nos itens subsequentes. 11.1 O debate com Habermas Na terceira e última parte de Verdade e Método, Gadamer deixa mostrar a sua pretensão de universalidade da hermenêutica, exatamente o título de um artigo posterior (1966), em que ele expressa a sua intenção de estabelecer a relação entre nossa imagem natural de mundo e a autoridade científica. Com este intuito, inicia correlacionando duas experiências de estranhamento à hermenêutica: a consciência estética e a histórica. Pela primeira, procura demonstrar que a consciência da arte é 231 sempre secundária frente à pretensão de verdade que provém da obra, o que nos leva a uma alienação ao juízo estético, decorrente da subtração que nos toma quando não correspondemos ao que nos interpela. Quanto à consciência histórica, critica a pretensão dos historiadores de tomar objetivamente a tradição, de forma a buscar a compreensão dos testemunhos de uma época desvinculando-os das realidades atuais que nos prendem à vida presente, o que nos conduz a uma cegueira axiológica que contrapõe “o mundo histórico alienado e as forças vitais da atualidade” (GADAMER, 2002b, p. 258). Aliás, já assinalamos acima que essa pretensão se configura impossível, pois não podemos transcender o diálogo que nós somos. Daí que a tarefa hermenêutica de compreensão não pode prescindir de uma reabilitação dos preconceitos, diante da interação necessária entre aqueles dois polos mencionados. “Os resultados da investigação realmente grandes e produtivos conservariam sempre algo da magia de um espelhamento imediato do presente no passado e do passado no presente” (GADAMER, 2002b, p. 258). Assim, a abrangência da hermenêutica estaria diretamente ligada a esta pretensão de superação do objetivismo histórico e também dessa limitação da consciência estética265. Afastando a hermenêutica do campo de absorção do objetivismo histórico, não poderíamos assumi-la como uma arte de superar mal-entendidos266, pois embora não É o que textualmente ele assevera: “Assim, quando proponho o desenvolvimento da consciência hermenêutica como uma possibilidade mais abrangente, como contraponto a essa consciência estética e histórica, minha intenção imediata é buscar superar a redução teórico-científica que sofreu o que chamamos tradicionalmente de "ciência da hermenêutica" pela sua inserção na ideia moderna de ciência” (GADAMER, 2002b, p. 259). 266 Retomando as marcas deixadas por Schleiermacher, Gadamer afirma que “A ciência da hermenêutica quer-nos fazer crer que o texto que devemos compreender seria algo estranho, que tenta induzir-nos a mal-entendidos. Nesse caso, deveríamos eliminar todos os momentos que pudessem permitir a infiltração desses mal-entendidos, através de um controlado método da educação histórica, pela crítica histórica e por métodos de controle reforçados pela empatia psicológica” (2002b, p. 259), para, em seguida, esboçar a sua crítica: “Isso me parece a descrição, em parte válida mas muito fragmentária, de um fenômeno de vida abrangente que constitui o "ser-nós", do qual todos 265 232 seja de todo incorreta tal pretensão, ela não dá conta de que aí se perde o que na hermenêutica temos de essencial. É que mesmo o estranhamento que se nos defronta no texto (por exemplo), ele somente é percebido na base de algo que é comum. Portanto, ao invés de focarmos nossa atenção na superação de mal-entendidos, devemos passar à crítica à consciência histórica tomada como dado objetivo e também a uma metodologia de recuperação empática da psicologia do autor do texto. Isso nos remete imediatamente ao resgate dos preconceitos, afastando a ideia de que neles sempre teremos algo destrutivo e negativo, para então vermos aí a própria condição de possibilidade de qualquer compreensão, na linha da estrutura prévia desse existencial. É o que sucintamente expõe Gadamer (2002b, p. 261): Os preconceitos não são necessariamente injustificados e errôneos, de modo a distorcer a verdade. Na realidade, o fato de os preconceitos, no sentido literal da palavra, constituírem a orientação prévia de toda nossa capacidade de experiência é constitutivo da historicidade de nossa existência. São antecipações de nossa abertura para o mundo, que se tornam condições para que possamos experimentar qualquer coisa, para que aquilo que nos vem ao encontro possa nos dizer algo. De certo, isso não significa que estejamos cercados por um muro de preconceitos, e que somente permitiríamos o acesso a quem mostrasse seu passaporte, contendo a seguinte inscrição: aqui não se diz nada de novo. Ao contrário, é bem-vindo o hóspede que promete nos trazer algo novo para nossa curiosidade. Mas como vamos reconhecer o hóspede, admitido na nossa companhia, que vai dizer-nos algo novo? Também nossa expectativa e nossa disposição para ouvir o novo não são trazidas necessariamente pelo antigo, onde nos encontramos? A comparação deve servir como uma espécie de legitimação para justificar por que o conceito de preconceito, que contém uma relação interna profunda com o conceito de autoridade, necessita de uma reabilitação hermenêutica. Assim, a hermenêutica está relacionada ao “modo da experiência no mundo em geral” (GADAMER, 2002b, p. 268), razão pela qual temos com ele sempre já certa familiaridade que nos remete ao afastamento da pretensão de associar essa experiência ao mal-entendido que necessita ser superado, e assim se dá porque “o as- participamos. Creio que a tarefa consiste em evitar os pressupostos que estão à base da consciência estética, da consciência histórica e da técnica de evitar os mal-entendidos, superando assim as alienações presentes neles” (2002b, p. 259-260). 233 sentamento no que é familiar e no acordo possibilita o trânsito para o estranho, a assunção do que vem deste, e com isso a ampliação e enriquecimento de nossa própria experiência de mundo” (GADAMER, 2002b, p. 268). Esse processo de assimilação ocorrido na compreensão, com base no preconceito assim redimido, se dá no medium da linguagem natural, na qual sempre já estamos e que por ela somos o que somos. Portanto, toda experiência compreensiva se dá linguisticamente, o que justifica a assertiva de que ser que pode ser compreendido é linguagem. Eis aí então o caráter universal da hermenêutica. Contra tal pretensão se insurgirá Habermas, em um artigo veiculado em 1967 (“Sobre Verdade e Método de Gadamer”), onde embora concorde com o acerto da crítica à autocompreensão objetiva, entende que daí não estaria justificada “a suspensão até do estranhamento metódico do objeto, que distingue entre uma compreensão que se reflete e a experiência comunicativa do cotidiano” (1987, p. 13). Ora, Gadamer desde cedo demonstrou que seu intento não era o de explorar os caminhos científicos da metodização do processo de compreensão, mas de manterse nas balizas de uma especulação propriamente filosófica em que, para além de qualquer tentativa metódica e de objetivação científica da tradição, algo acontece conosco quando, no medium da linguagem natural, damo-nos a compreender algo267. Habermas reputa, como já o dissemos, que a crítica à objetivação histórica da tradição é correta, mas daí não significa que Gadamer tenha razão ao contrapor isso ao método. Para ele, a tese de que “a apropriação refletida da tradição rompe a substância naturalística da tradição e modifica a posição dos sujeitos nela” (1987, p. 15) não pode ser suficiente para afastar a reflexão metódica. Por isso, Habermas vai se insurgir contra essa assimilação do processo de reflexão científica, metodicamente conduzido, pelo modo natural da consciência, ou seja, ele irá contrapor a Daí dizer no prefácio da sua obra: “Minha intenção verdadeira, porém, foi e é uma intenção filosófica: o que está em questão não é o que nós fazemos, o que nós deveríamos fazer, mas o que, ultrapassando nosso querer e fazer, nos sobrevém, ou nos acontece” (2002a, p. 14). 267 234 compreensão no modo da existência do Dasein e a compreensão no modo crítico da cientificidade. E qual seria então o papel da reflexão metódica? Basicamente promover um movimento emancipatório calcado na crítica aos preconceitos inculcados por meio de ideologias que os introjetam de forma ilegítima em nosso inconsciente. Para ele, a reflexão “não apenas ratifica, mas também rompe ou derruba poderes dogmáticos” (1987, p. 18). Por isso que o processo de reabilitação dos preconceitos, tal como conduzido por Gadamer, será seu próximo alvo, posto que a tradição, conquanto reconhecidamente opere no processo compreensivo, não poderia ser assimilada de modo acrítico, sem passar pelo crivo da racionalidade reflexiva. Na visão de Habermas, Gadamer teria promovido uma reabilitação dos preconceitos, negando a força da reflexão sobre a qual eles devem curvar-se. Reabilitando tal força, ele então dirá que “o substancial do historicamente pré-dado não fica intocado ao ser assumido na reflexão” (1987, p. 17), e assim, “A estrutura preconceitual que se tornou transparente não pode mais funcionar à maneira de preconceito” (1987, p. 17). Reabilitando a força da reflexão sobre as tradições, ele estabelecerá que ela não trabalha na facticidade das normas transmitidas sem deixar vestígios, e embora condenada a chegar depois, ao olhar para trás, desenvolve uma força retroativa (p. 1987, p. 18). Mesmo assumindo a linguagem como uma metainstituição onde as ações sociais se desenvolvem, e da qual todas as demais dependem, o fato supostamente não percebido por Gadamer seria o de que também ela seria influenciada por contextos sociais, onde serviria de instrumento de dominação e de poder social (HABERMAS, 1987, p. 21): Esta meta-instituição da linguagem como tradição é evidentemente, por sua vez, dependente de processos sociais, que não ficam absorvidos por contextos normativos. Linguagem também é médium de dominação e de poder social. Ela serve à legitimação de relações de violência organizada. Na medida em que as legitimações não manifestam a relação de violência, cuja institucionalização possibilitam, e na 235 medida em que isso apenas se exprime nas legitimações, a linguagem também é ideológica. Aí não se trata de enganos numa linguagem, mas sim de engano com a própria linguagem. Por isso, Habermas dirá que os sistemas de trabalho e de dominação relativizam o evento da tradição, razão pela qual não se poderia outorgar a ela uma autoridade tal que não a fizesse submeter-se à força da reflexão racional, a fim exatamente de fazer despontar essas ideologias e relações de dominação, pelo que a pretensão de universalidade da hermenêutica filosófica não poderia sustentar-se ao largo da reflexão crítica. Em uma réplica a esta crítica, Gadamer insiste em sustentar a tarefa universal da hermenêutica filosófica que projetaria seu significado “a todo o conjunto de nossa compreensão de mundo, em todas as suas formas, desde a comunicação entres os seres humanos até a manipulação social” (2002c, p. 270). Essa projeção ampliada é tributária da base linguística que a ela franqueia o ingresso em absolutamente tudo que é assumido pela compreensão, pois “a universalidade da estrutura da linguagem humana mostra-se como um elemento ilimitado que sustenta tudo, não somente a cultura transmitida pela linguagem, mas simplesmente tudo, porque tudo é assumido pela compreensibilidade na qual nos relacionamos uns com os outros” (GADAMER, 2002c, p. 276). O que nos parece importante é o destaque que Gadamer dá ao fato de que jamais pretendeu atribuir uma contraposição radical e excludente entre hermenêutica e método, tal como o título de sua obra poderia sugerir. Tanto assim que iniciou sua abordagem com a experiência da arte e da cultura (cunhada historicamente), as quais estão fora do campo científico. A experiência hermenêutica assumiria um caráter mais originário que qualquer método, posto que por ela é que estaria viabilizada a abertura de qualquer questionamento científico. Não há, pois, uma negação da ciência, mas o reconhecimento de que a compreensão não é algo que seja somente 236 por ela alcançado, eis que se trata de um modo de ser do Dasein, um seu existencial, que o faz já sempre ser “compreensor”. Para Gadamer, as ciências sociais não buscam compreensão, mas a apreensão científica da estrutura real da sociedade, mediante a inclusão das compreensibilidades alojadas na estrutura da linguagem. O problema de Habermas estaria em contrapor hermenêutica e reflexão, posto que “o sujeito que reflete, mesmo nas ciências da compreensão, não consegue evadirse do contexto histórico-efeitual de sua situação hermenêutica, visto que sua compreensão está sempre implicada nesse acontecer” (GADAMER, 2002c, p. 280). Por isso mesmo, a questão hermenêutica assume realmente um caráter tão universal que não se poderia justificar o destaque de quaisquer fatores sociológicos do âmbito do compreensível. Se Habermas afirma que a hermenêutica se movimenta no âmbito limitado pelos muros dos nexos da tradição, essa afirmação está pautada na falsa ideia de um extramuro, algo que estaria fora daquela arbitrariamente fixada linha limítrofe. Essa demarcação é que é problemática, posto que a tarefa hermenêutica consiste em “buscar compreender tudo que pode ser compreendido” (GADAMER, 2002c, p. 283), e tudo que pode ser compreendido é linguagem. Esse meio universal em que tudo que é se dá à compreensão confere à hermenêutica filosófica um alcance universal. É certo que a linguagem mesma ela pode ser afetada por ideologias e servir de instrumento de dominação social, mas a reflexão que pretenda expor essas vicissitudes também somente poderá realizar-se em meio à própria linguagem e, portanto, hermeneuticamente. A pretensão de escape para além dessa originariedade do compreender é uma tentativa de fuga da lama içando-se pelo próprio cabelo, pois a rejeição de preconceitos por apreendê-los como frutos de uma ideologia sutil que se instalou em nosso modo de vida, somente pode dar-se partindo da compreensão guiada por esses mesmos preconceitos. Antes de refutá-los eles já devem estar aí. Ademais, também 237 seu abandono ou reformulação reinstaura uma nova carga de preconceitos a guiar nossa compreensão prévia, tal como nos alerta Gadamer (2002c, p. 288): Se a reflexão hermenêutica pode produzir o que realiza toda conscientização, isso deve ser mostrado dentro da própria ciência. A reflexão de uma determinada compreensão prévia coloca diante de mim algo que antes se dava às minhas costas. Algo, não tudo. Pois a consciência histórico-efeitual é insuperavelmente mais ser que consciência. Mas isso não significa que possa prescindir de uma constante conscientização sobre o perigo do enrijecimento ideológico. É só com essa reflexão que posso superar a falta de liberdade que me prendia a mim mesmo e posso sentirme livre diante do direito ou não de minha compreensão prévia - mesmo que seja apenas no modo em que aprendo a alcançar uma nova compreensão de coisas que eu via guiado por preconceitos. Mas isso implica que os preconceitos que guiavam minha compreensão prévia sempre estão em jogo também - até serem abandonados, o que pode significar, também, até serem reformulados. A força incansável da experiência consiste em formar sempre uma nova compreensão prévia em toda instrução. 11.2 A crítica de Karl-Otto Apel A crítica que Apel desfere ao modelo hermenêutico de Gadamer está baseada em três teses: a) a sua equivocada referência à Kant e à ideia de filosofia transcendental; b) o questionamento das condições de possibilidade do compreender deveria vir acompanhada por uma indagação acerca também de suas condições de validade268; e c) a falha da abordagem heideggeriana da verdade como desvelamento. Apel deixa clara a importância do corretivo fenomenológico-hermenêutico proposto por Gadamer em face dos preconceitos normativo-metodológicos de índole científica, quando torna transparentes as condições de possibilidade da compreensão. Contudo, deveria tornar claro por meio do círculo hermenêutico, o modo pelo qual seria possível manter ou corrigir aqueles preconceitos evidenciados em todo compreender científico ou não. Para ele a falha de Gadamer estaria exatamente em 268 Muito embora, como veremos, essa segunda crítica já é sugerida na primeira. 238 pretender eximir-se de qualquer instância crítica de índole reflexiva, ao simplesmente limitar-se a evidenciar como as coisas são, o que acabaria por revelar “um indício de que a hermenêutica transcendental não é capaz de responder justamente a pergunta sobre as condições de possibilidade de todo Compreender, à medida que deixa tudo como está” (APEL, 2005, p. 42). A crítica remonta a sua ligação a Kant, em torno da distinção entre questio juris e questio facti, onde Gadamer nela veria um mal-entendido, posto que não teria sido a “intenção de Kant, na verdade, prescrever à ciência moderna da natureza, como ela teria de se comportar para ser aprovada diante do tribunal da razão” (2002, p. 16). Ao perguntar pelas condições de todo conhecimento possível, Kant teria colocado uma questão filosófica, a exemplo do que ele mesmo fez quando da apropriação da estrutura da compreensão estabelecida na analítica existencial heideggeriana. Para Apel, essa referência a Kant seria equivocada, pois o problema da justificação da validação do conhecimento por ele posta não poderia ser minimizado a tal ponto, ainda que por meio de uma justificativa de índole prática plausível como esta. E tal se dá porque “no que diz respeito à descoberta (Auffindung) de princípios metódicos, o filósofo tem todas as bases para dar precedência à ciência calcada na prática; não decorre daí, porém, em hipótese alguma, que ele deva abdicar também de sua pretensão à justificação de uma validação normativamente relevante, ao proceder à sua reflexão ex post factum” (APEL, 2005, p. 41). E efetivamente, Kant não teria ficado apenas no campo do conhecimento possível, já que tentaria validá-lo não na base metodológica, mas de uma dedução transcendental. Daí porque a apropriação que Gadamer faz de Kant não seria adequada. A segunda crítica acaba por concluir-se na mesma linha que a primeira, no sentido da reclamação de uma estrutura não só de explicitação das formas a priori que possibilitam toda compreensão (no sentido heideggeriano de uma estrutura précompreensiva), mas também de condições de sua validação, de maneira que aí não se veja apenas em operação um destino do ser que simplesmente ocorre. É a conclusão a 239 que Apel chega após reconhecer o êxito de Heidegger ao estabelecer uma nova noção de intencionalidade, não como uma constituição subjetiva de um eu puro transcendental, nos moldes husserlianos, mas vendo os fenômenos já desde sempre constituídos para nós269. Finalmente, a terceira via crítica é uma mera progressão sobre a segunda. Partindo da noção de que o mundo nos é dado no fenômeno da abertura, em que as estruturas prévias do compreender vão se expor, Apel afirma que a admissão dessa visão da instauração do sentido legitimada na sina do ser acabaria por demolir os alicerces racionais da metafísica moderna, substituindo-os por uma nova alienação fundada na credulidade do destino. Heidegger teria desenvolvido somente a questão da constituição do sentido na base da estrutura prévia da compreensão, sem, entretanto, prosseguir no problema da sua validade. Por isso Apel dirá que se pode “pôr em dúvida a necessidade intrínseca da separação entre a problemática da constituição de sentido do compreender como uma ocorrência da verdade, de um lado, e a problemática da validação de sentido, de outro” (2005, p. 48). Para Apel, Heidegger teria valorado equivocadamente a sua afirmação de prevalência da instância hermenêutica sobre o logos apofântico, tal como já esclarecemos acima, no sentido de que qualquer enunciado sobre os entes deve darse na base de uma abertura já instalada para a significatividade. Conquanto indiscutível, daí não poderia ter Heidegger identificado esta abertura de sentido com a verdade, no sentido de desvelamento270. A consequência é que “somente no caso da Também da explicitação dessa estrutura prévia de todo compreender apreendida por Gadamer, ver-se-á superada a visão kantiana de um sentido constituído por uma subjetividade isolada da história, posto que ele sempre deverá ser evidenciado diante de nossa pertença à tradição, ou, como afirma Manfredo Araújo, “Não se trata mais de uma subjetividade pura isolada do mundo e da história, mas de uma subjetividade que se constitui enquanto tal condicionada e marcada por seu mundo, que, por sua vez, é historicamente mediado e linguisticamente interpretado” (2006, p. 228). 270 “Quanto ao descerramento de sentido – que é também sempre ‘ocultamento’ de sentido -, Heidegger deixou de perceber a distinção essencial entre ele e a verdade declarativa (possibilitada pelo próprio descerramento de sentido, em determinadas circunstâncias)” (APEL, 2005, p. 49). 269 240 verdade declarativa subsiste um diferencial entre as instâncias subjetiva e objetiva; e é por intermédio desse diferencial que se podem tomar as coisas como base para a refutação ou justificação de nossas asserções” (APEL, 2005, p. 49). Associar a verdade ao desvelamento repercute na impossibilidade de qualquer justificação, eis que, a despeito de um espaço de manobra proporcionado pela abertura, em que tenho margens de possíveis enunciações (e impossíveis, portanto), “a verdade, quando equiparada à ‘clareação’ de sentido, pode surgir como objeto de uma ‘sina’ pela qual não se podem mais assumir responsabilidades” (APEL, 2005, p. 50). Por qualquer uma das três vias, o que Apel pretende em sua crítica dirigida a Gadamer é indicar que um questionamento sério acerca da possibilidade do compreender não pode vir desacompanhada de outra pergunta: a da validade do compreender271. Seria necessário, pois, fixar algum critério que avaliasse nosso progresso no compreender; e não sujeitar-se a uma mera apropriação do interpretandum de uma maneira diferente do seu autor, como pretende Gadamer272. Para esse objetivo, não é suficiente destacar na estrutura do compreender a ação da fusão de horizontes, posto que ela opera não apenas na compreensão adequada, mas também na inadequada. Daí, em duras linhas, chega Apel a afirmar que se o intérprete “não atribui a si mesmo o direito ao julgamento crítico do que há para entender, e dessa forma não confia a verdade a si mesmo, então ele não chega nem mesmo a assumir o ponto de vista de uma hermenêutica filosófica; insiste, sim, em Daí falar ele que “para a pergunta sobre a possibilidade do Compreender possa ser respondida é preciso que se indique um critério de diferenciação entre o Compreender (Verstehen) adequado e o Compreender mal” (APEL, 2005, p. 52). 272 Mais ainda, esse critério validante deve ser auto-referencial para poder também validar-se, tal como bem anota Regenaldo da costa (2002, p. 39): 271 [...] para Apel, portanto, este critério é suficientemente relevante para dar conta da problemática da validade dos pré-juízos ou da compreensão válidos, pois para isso se faria necessária não só uma distância temporal, mas, essencialmente, uma distância reflexiva e crítica, ou seja, um julgar a compreensão e os pré-juízos a partir de uma dimensão críticonormativa capaz não só de validar seu julgamento, mas, também, de se auto-validar como instância critica, como critério válido. 241 permanecer aferrado ao ponto de vista de uma hermenêutica que se põe a serviço de uma crença dogmática” (2005, p. 56). 11.3 Um balanço das críticas No que se refere à crítica de APEL, parece-nos que ele tem razão quanto à indevida apropriação que Gadamer faz de Kant, pois na Primeira Seção do Capítulo II da primeira crítica kantiana, ao tratar da dedução transcendental, é estabelecido um paralelismo com a atividade jurídica, em que se faz a distinção nos litígios entre a questão de direito (quid juris) e as questões de fato (quid facti)273. A primeira seria a denominada dedução, onde se demonstraria o direito ou a legitimidade da pretensão posta em juízo. Segue ele dizendo que há dois tipos de conceitos que em comum ostentam a referência totalmente a priori aos objetos, a saber: os conceitos de espaço e tempo e as categorias. Os primeiros seriam as formas da sensibilidade, pelas quais nossas sensações seriam percebidas; e as últimas, os conceitos do entendimento, que organizariam as percepções. Essa tentativa de proceder de percepções singulares para alcançar conceitos gerais nunca nos faria alcançar os conceitos puros a priori, eis que são completamente independentes da experiência. Tal tentativa, denominada por Kant de derivação fisiológica, sequer poderia ser considerada propriamente uma dedução, posto ser uma questionem facti, a mera explicação da posse de um conhecimento puro. Assim, em todos esses conceitos a dedução empírica seria esforço vão, devendo dar-se na forma transcendental. Voltemos aos conceitos puros a priori. Quanto ao espaço e tempo, embora não determinados pela experiência (pois, ao contrário, são eles quem a determinam, já Aliás, mais uma dicotomia metafísica que precisa ser ultrapassada no Direito, pois precisamos indagar se realmente teremos em um litígio “fatos brutos” ou alguma questão jurídica desvinculada de fatos. 273 242 que qualquer objeto somente pode dar-se à nossa percepção nestas formas), são condições de possibilidade dela, daí porque, referidas a objetos, ostentam uma condição de validade objetiva. Entretanto, quanto às categorias, não representam elas condições de possibilidade para nossas intuições dos objetos, daí porque, sua validade objetiva poderia ser posta em dúvida. Confira (KANT, 2008, p. 122): As categorias do entendimento, pelo contrário, de modo algum apresentam as condições em que os objetos nos são dados na intuição; por conseguinte, podem-nos sem dúvida aparecer objetos, que se não relacionem necessariamente com as funções do entendimento e dos quais este, portanto, não contenha as condições a priori. Eis porque se nos depara aqui uma dificuldade, que não encontramos no campo da sensibilidade e que é a seguinte: como poderão ter validade objetiva as condições subjetivas do pensamento, isto é, como poderão proporcionar as condições da possibilidade de todo o conhecimento dos objetos. (grifamos) Portanto, quando Kant faz essa analogia ao procedimento judicial, onde distingue o procedimento da dedução das questões de fato, ele o faz exatamente para estabelecer um paralelismo onde a validação poderia dar-se referida a objetos da experiência (quid facti) ou somente por meio de uma verdadeira dedução (quid juris). No caso das formas puras da intuição, embora não derivem dos fatos, guardam uma conexão direta com eles, posto que são condições de possibilidade para que possamos percebê-los; porém, quanto às categorias, tal já não ocorre, o que põe em suspeita a sua validade objetiva274. Eis a razão pela qual, a sua dedução se impõe como processo de sua validação (dedução que, por óbvio, não poderá partir da experiência, mas há que ser transcendental). Novamente, referindo-se aos conceitos puros do entendimento (categorias), Kant irá sustentar também nesta passagem a necessidade da sua validação, exatamente em razão da sua influência na determinação dos objetos não radicar na experiência (KANT, 2008, p. 121).: 274 Na verdade, esses conceitos puros determinam os objectos, não por predicados da intuição e da sensibilidade, mas pelo pensamento a priori e referem-se aos objectos em geral sem qualquer condição da sensibilidade; como não se fundam na experiência, não podem mostrar, na intuição a priori, objecto algum sobre o qual fundassem a sua síntese anterior a toda a experiência; e, por conseguinte, [...] despertam suspeitas quanto à validade objectiva e os limites do seu uso. 243 Assim, temos que realmente a apropriação do tema por Gadamer, não foi das mais felizes para justificar a postura kantiana como meramente descritiva do processo de compreensão. Superada esta questão, parece-me que há uma referência comum nas objeções formuladas. Todas parecem convergir para a necessidade de uma certa reflexividade da compreensão histórica que poderia, validando-a, exercer uma crítica acerca dos preconceitos que nos são legados pela tradição, seja para evidenciar e afastar o papel das ideologias que nos perpassam, seja para desenvolver um caminho tendente ao encontro com a verdade. Diferentemente do que muitos dos seus críticos supõem, Gadamer não reabilita os preconceitos para fundamentar a recepção acrítica da tradição. Isso nos parece claro, sobretudo na mediação temporal e na fusão de horizontes que perpassam todo o processo de compreensão. Insistir nesse ponto seria realmente temerário para um leitor sério de “Verdade e Método”, onde expressamente vemos a referência crítica de seu autor ao historicismo ingênuo, que pretendia assimilar exatamente essa tradição de forma asséptica. Gadamer procura exatamente mostrar que essas radicalidades devem ser evitadas, tanto a do Aufklärung, que expurgaria toda a autoridade da tradição diante de uma razão redentora; como a do romantismo que, exaltando o preconceito do passado, faria dele um mundo mítico a ser venerado275. A reabilitação dos preconceitos seria uma decorrência de nossa pertença à história, que concederia à tradição algum direito, inclusive no âmbito das ciências. Daí Gadamer colocar “o problema de como achar a saída do cabo de força das próprias opiniões prévias. Não se pode, de modo algum, pressupor como dado geral, que o que nos é dito em um texto se encaixe sem rupturas nas próprias opiniões e expectativas” (2002, p. 404). E prossegue conclusivamente (2002, p. 405): 275 Aquele que quer compreender não pode se entregar, já desde o início, à causalidade de suas próprias opiniões prévias e ignorar o mais obstinada e consequentemente possível a opinião do texto – até que este, finalmente, já não possa ser ouvido e perca sua suposta compreensão. Quem quer compreender um texto, em princípio, (tem que) estar disposto a deixar que ele diga alguma coisa por si, Por isso uma consciência formada hermeneuticamente tem que se mostrar receptiva, desde o princípio, para a alteridade do texto. 244 Portanto, essa reabilitação tão criticada, em verdade, está aí mais com a finalidade de mostrar nossa estrutura pré-compreensiva, com a qual os críticos mencionados concordam plenamente. Ademais, é o próprio Apel quem reconhece que seria ingênuo não perceber que todo o movimento crítico-reflexivo já se daria também imerso neste contexto da tradição276. Mas nos parece que Gadamer parou onde deveria ter prosseguido, mesmo no coerente caminho traçado de apenas expor a estrutura em que acontece todo compreender, o que significa que ela está incompleta. Ele destacou a estrutura prévia da compreensão e a associou à historicidade e à linguisticidade, mas nada disse da validação na sua conexão com o outro. O outro de Gadamer é limitado, somente aparecendo na relação do intérprete com o passado da nossa tradição e na sua interpelação pelo texto (interpretandum). Não desconsidero que a nossa compreensão é por ele reassumida como uma nova pré-compreensão que se protrai no tempo, tornando a própria tradição dinâmica. Contudo, essa projeção é insuficiente para o aclaramento do fenômeno compreensivo, pois não a vemos articulada no discurso com o outro do presente. Como dissemos, o outro de Gadamer é o do passado, é com ele que o diálogo se estabelece. Assim, há um caminho ainda a perfazer na descrição da estrutura hermenêutica277. Veja que aqui o caminhar não se justifica nas bases de uma necessidade crítica no âmbito social, em que as ideologias que interferem subliminarmente na formação de nossas pré-compreensões fossem evidenciadas e possivelmente dissipadas, “de fato, a hermenêutica não pode partir do pressuposto — hoje novamente tão em voga — de que seja tacitamente possível avançar em direção à ‘análise objetiva’ ou à ‘crítica’ das relações sociais, sem que se devotem quaisquer preocupações ao fato de que as próprias pessoas, mesmo quando dispõem de pontos de vista críticos, mantêm-se ainda assim integradas a uma relação de comunicação intersubjetiva e de inserção na tradição” (APEL, 2005, p. 56). 277 Um esclarecimento se impõe de imediato. Não pretendemos compor aqui alguma figura mitológica, em que a visada ontológica estivesse mesclada à epistemológica. Consoante veremos, a associação a que visamos ainda está pautada no primeiro desses dois planos. 276 245 tampouco de uma necessidade de estabelecer um caminho no sentido de um “princípio regulativo do progresso do conhecimento” (APEL, 2005, p. 57) que imponha ao questionar sério pelas condições de possibilidade de todo compreender a associação à pergunta pelas condições de sua validade, mas, sobretudo, porque esta fundamentação é também um existencial do Dasein que se mostrará, em todo o processo de compreensão, articulada com os existenciais do Mitsein (ser-com) e do Mitwelt (mundo compartilhado), a conformar outro existencial que, embora não dito por Heidegger, assumo aqui na expressão Mitverstehen (compreensão compartilhada)278. Então, o caminho que agora se descortina deve orientar-se pelas seguintes questões: por que razão toda compreensão é e deve ser fundada? Que isso tem a ver com a fundamentação? Mas não nos deparamos por vezes com articulações e enunciados linguísticos não fundamentados? E que isso tem a ver com o Direito e a sua crise? É o que pretendemos responder nas seções que se seguem. Basta notarmos que a própria descrição deste processo compreensivo, em que agora postulamos a fundamentação como elemento da compreensão, ela mesma é fundamentada. Esse dizer algo sobre o modo de ser do Dasein se conforma em enunciações que reclamam fundamentação para serem válidas, e diríamos que a própria linguagem pela qual Gadamer aponta a linguisticidade inerente a todo compreender já se revela como fundamentação e é a fundamentação quem confere validade a toda compreensão, é por ela que nos pomos em uma situação fundada. 278 246 12 COMPREENSÃO E FUNDAMENTAÇÃO Vimos no item 8.3 que a compreensão é um existencial do Dasein e, portanto, tomada ontologicamente, revela nosso próprio modo de ser. Entretanto, ela não se identifica com o compreender cotidiano, por meio do qual nos referimos aos objetos em geral279. Ontologicamente tomada, a compreensão já a leva desde sempre o Dasein consigo, sendo um modo dele entender-se no mundo, de compreender a si mesmo. Mas não podemos nos iludir com esse distanciamento que a visada inicialmente proporciona, posto que a sua conexão com o sentido comum a que estamos habituados é muito próxima, porquanto o Dasein somente se dá a entender acerca de si no comércio com os entes intramundanos280. Trata-se daquela indigência a que nos referimos no item 8, uma imanência que exige dele a constante permanência no mundo dos entes, necessitando de algo que ele não é para poder ser o que é. Portanto, no compreender os entes nos damos a compreender a nós mesmos. Nós somente podemos compreender os entes na abertura, e é esta abertura a compreensão originária281 que viabiliza o compreender dos entes. Eis a relação vinculativa entre os sentidos da expressão. Por tudo isso é que, conquanto a compreensão seja tomada no plano ontológico, como um existencial do Dasein, ela não se dá fora do mundo, revelando- Nesse sentido, é esclarecedora a nota de Eduardo Rivera, em sua tradução de “Ser e Tempo”, quando afirma que a palavra compreensão não se reveste do sentido que usualmente lhe damos, não se trata do ato intelectual de captação da significação de alguma coisa, nem tampouco se aproxima daquele que lhe dá Dilthey quando, distinguindo-o do explicar, refere-se ao compreender das ciências do espírito; ao contrário, “compreender é um ato que se identifica com o ser mesmo do Dasein. Simplificando muito as coisas, poderíamos dizer: o ser do Dasein é um saber de si mesmo, é um saber o que passa consigo mesmo, é um experimentar o próprio ser como possibilidade existencial” (1997, p. 435, tradução nossa). 280 E não apenas com eles, mas também com os outros que se revestem da mesma natureza dele, daí o “ser-com” (Mitsein) como um seu existencial. 281 Daí a afirmação de Heidegger: “esta abertura tem sido chamada compreender” (1997, p. 146, traduzimos). 279 247 se exatamente no plano da facticidade. E é exatamente essa nota que nos permite apropriar a estrutura de todo compreender também no Direito, superando assim uma sugestiva distância que se deixa insinuar, ao ver a compreensão como modo mais originário a qualquer discurso apofântico. Daí que Gadamer pôde incorporar a estrutura prévia de toda compreensão à base de sua hermenêutica filosófica. Entretanto, de forma curiosa, deu pouca atenção ao caráter da fundamentação desta compreensão. Aí reside o ponto por onde intentamos prosseguir. Mas ao advogarmos para a fundamentação o mesmo destino dado à compreensão no plano hermenêutico, com que direito o fazemos? É que também a fundamentação está associada à estrutura existencial do Dasein, como vimos no item 7.1.1. Portanto, assim como Gadamer partiu da compreensão como um existencial e daí viu a hermenêutica não como um método, mas como algo que acontece ao homem, também a fundamentação deve receber o mesmo tratamento. Aquele item é elucidativo, mas aqui faremos apenas uma abordagem rememorativa para tornar clara a consequência que deriva daquele estudo. Pois bem, estabelecemos uma estreita ligação entre o fundamento e a verdade e entre esta e a transcendência, pelo que a essência do fundamento deveria ser buscada na essência da transcendência. A verdade tomada no sentido proposicional está assentada em uma relação mais originária, denominada por Heidegger de relação veritativa. De fato, antes que a correspondência entre o enunciado e o ente sobre o qual enuncio ocorra, algo antepredicativo é exigido: que o próprio ente já se tenha manifestado, sem o que nenhum enunciado sobre ele seria possível. Assim, a verdade proposicional estaria assentada na verdade ôntica. Entretanto, tal acesso ao ente somente pode dar-se à luz do seu ser. Já o dissemos com Heidegger, ao pontuarmos que o “desvelamento do ser é o que 248 primeiro possibilita o grau de revelação do ente” (1996a, p. 118)282, eis a verdade ontológica. Deixa-se aí transparecer a coimplicação entre verdade ôntica e ontológica, posto que todo ente é em seu ser e todo ser se dá no ente. Sendo o Dasein o ente que compreende o ser, ele o faz na base da diferença ontológica, cujo fundamento é a transcendência, entendida como ultrapassagem. Portanto, o Dasein transcende o ente em seu ser, e o faz segundo um horizonte: o mundo. Mundo, por sua vez, é um conceito transcendental que se refere ao campo de significatividade em que o Dasein se abre em projeto. Essa abertura, rica em possibilidades nos remete, por sua vez, à liberdade. Com Pöggeler vimos que transcendência deveria ser entendida como liberdade, liberdade para deixar viger o mundo, a qual é a origem do fundamento em geral. Essa liberdade se manifestaria no fundar, através de uma tripla estrutura: instituir, tomar-chão e fundamentar. Sendo lançado no mundo, o Dasein o deixa valer, erigindo o projeto com fundamento na liberdade, e o faz transcendendo o ente em sua verdade ontológica, eis a marca do fundar enquanto instituir (Stiften). É ele caracterizado pelo projeto em direção ao seu poder-ser, onde, jogado além de si, o Dasein se excede. Mas este excesso é contido exatamente porque o Dasein, ao fundar (instituir) o projeto ele o faz tomando-chão (Boden-nehmen) em meio aos entes, o que lhe subtrai certas possibilidades, revelando sua finitude, daí dizer Heidegger que “o projeto de possibilidade é, segundo sua essência, sempre mais rico que a posse que repousa naquele que projeta” (1996a, p. 143)283. Essa unidade entre excesso e privação se articula na fundamentação, como origem do porquê em geral, através do qual me indago de o ente ser assim e não de outra forma, de ser o ente e não antes o nada etc. “Como o ente é dado sempre segundo um modo de ser, deve a verdade “Enthülltheit des Seins ermöglicht erst Offenbarkeit von Seiendem” (HEIDEGGER, 2004, p. 131). “Der entwurf von Möglichkeiten ist seinem Wesen nach jeweils reicher als der im Entwerfenden schon ruhende Bseitz” (HEIDEGGER, 2004, p. 167). 282 283 249 ôntica, o porquê de o ente ser assim, de alguma forma legitimar-se, fundamentar-se, apresentar suas causas e seus motivos” (FERREIRA, 2007, p. 71). Assim, a liberdade passa a ser concebida como “liberdade para o fundamento”. Efetivamente que todo ente tem a sua razão e, portanto, cai sob a influência do princípio do fundamento. Entretanto, o ente intramundano não o reclama para si, não pede a si seus fundamentos para ser o que é, diferentemente do Dasein que, em sua existência transcende, ultrapassa o ente desvelando o seu ser, e ao fazê-lo, exige fundamentação. Portanto, qualquer compreensão se dará no plano dessa transcendência em que já sempre estamos e, portanto, toda compreensão será fundamentada, ou seja, fruto de um instituir fundado junto aos entes. É preciso ressaltar que esse triplo modo do fundar não é cronologicamente distanciado, seus elementos são cooriginários, de forma que todo projetar já o é situado e enquanto o Dasein elabora a compreensão de ser, já fundamenta. Exatamente por isso que ele pode “em suas legitimações fáticas e justificações, desembaraçar-se das ‘razões’, sufocar o apelo a elas, transtorná-las e encobri-las” (HEIDEGGER, 1996a, p. 144)284. Essa análise pretendeu mostrar que a fundamentação está na base da própria existência e de toda sua compreensão, razão pela qual a hermenêutica, que se estrutura basicamente em torno deste último existencial, não pode desconsiderar a fundamentação. Compreensão e fundamentação são ontologicamente cooriginários! O que falta a Gadamer, no contexto da sua hermenêutica é exatamente ressaltar o papel do fundar de todo compreender, sobretudo no modo da fundamentação, posto que os outros dois se mostram implicados com a sua tese. É que, ao ressaltar no momento da compreensão a indissociável presença das nossas “[...] deshalb kann das Dasein in seinen faktischen Ausweisungen und Rechtfertigungen sich der ‘Gründe‘ entschlagen, den Anspruch auf sie niederhalten, sie verkehren und verdecken” (HEIDEGGER, 2004, p. 170). 284 250 pré-compreensões, evidenciou que já sempre somos lançados no mundo. Por sua vez, percebendo que essas pré-compreensões não podem afirmar-se por si e que, portanto, entram em um diálogo com o próprio interpretandum, deixando-nos abertos ao que ele nos oferece em seu dizer, resta também claro que o nosso projeto é sempre limitado em uma relação com os entes. Mas o que não está claro em suas reflexões é exatamente o modo de unificação em que a fundamentação opera. Portanto, a compreensão está integrada a um modo de ser fundado e fundamentado que a valida. Esse processo pode até não ser explicitado, mas quando o fazemos, nós deixamos transparecer o que nos acontece durante a compreensão. Da mesma forma que as pré-compreensões atuam para além de todo nosso querer ou percepção delas, também assim se dá com a fundamentação, mesmo quando temos uma compreensão decaída, fundada no impessoal (ver item 8.1), ou ainda quando omitimos a enunciação dos fundamentos, sufocando o apelo às razões, transtornando-as e encobrindo-as, como já dissemos. E como regulamos ou fazemos transparecer esses fundamentos que se instalam em toda compreensão? Nós o fazemos na linguagem, dando razões e pedindo por elas. Nesse sentido, efetivamente vai bem Robert B. Brandom, quando vê nesse jogo de linguagem a nota característica da pertença àquilo que chamamos de “nós”. Não somos apenas entes sensitivos, mas racionais, não apenas no sentido de que somos dotados de razão, mas que existimos por meio de razões285. Portanto, a validação que necessariamente deve fazer-se acompanhar todo questionamento acerca da possibilidade do compreender não decorre de um fim emancipatório, como quer Habermas, ou ainda de uma abertura a uma ideia Referindo-se à nossa capacidade de compreensão como elemento de destaque na delimitação daquilo que podemos chamar de nós, Brandom dirá que “esta estratégia demarcacional sublinha a clássica identificação de nós como seres racionais [...] Dizer nós neste sentido significa colocar nós mesmos e cada outro no espaço das razões, dando e pedindo por razões para nossas atitudes e performances” (1998, p. 5, traduzimos). Assim, quando nos definimos como seres racionais, estamos nos posicionando entre os “entes que vivem, movem-se e existem no espaço das razões” (1998, p. 5, traduzimos). 285 251 reguladora de um progresso no conhecimento, na linha de Apel, mas uma decorrência ainda da própria estrutura do Dasein e da própria compreensão. Ou seja, toda compreensão é fundada e, portanto, situada e fundamentada. O que isso tem a ver com o Direito é uma questão que já foi parcialmente respondida na conclusão do item 7.1.1. Lá afirmamos que se todo projeto instituído é fundado em meio ao ente, então, quando o Direito pretende legitimar-se nele mesmo, desconsiderando o plano da facticidade, perde-se a relação com essa necessária estrutura transcendental-ontológica de todo fundar. Daí concluirmos que o problema é que muitas vezes a facticidade é dispensada porque o instituir está fundado no absoluto referencial do próprio Direito. Um círculo metafísico em que a lei assume a posição do ser como fundamento. Aqui já até podemos dar como satisfatoriamente respondidas aquelas perguntas entabuladas ao término do item anterior. Mas elas bastam ao nosso propósito de descortinar um horizonte mais promissor para o Direito? A resposta é negativa. Acreditamos que há ainda um degrau, mais um apenas, para que se inaugure uma série de consequências, essas sim, que podem ser trabalhadas em maior extensão, para além deste estudo, certamente. E que tema seria esse tão relevante para o desfecho do nosso trabalho? Habermas diria: a inclusão do outro! 286 A frase em destaque, em franca alusão à obra de Habermas que leva o mesmo nome, serve de abertura à crítica de sua equivocada análise da filosofia heideggeriana, por vê-la ainda presa ao solipsismo de um sujeito que conquista o mundo a partir de si, como mera continuidade da herança que lhe foi legada pela subjetividade husserliana. Neste sentido, o excerto seguinte (2002, p. 195): 286 A filosofia do sujeito não é, de modo algum, aquele poder absolutamente reificante, que mantém preso todo pensamento discursivo, permitindo somente a evasão na imediatidade do recolhimento místico. Existem outros caminhos que conduzem para fora da filosofia do sujeito. Que Heidegger, apesar disso, não perceba na história da filosofia das ciências depois de Hegel outra coisa que um soletrar monótono dos pré-juízos ontológicos da filosofia do sujeito, explica-se apenas pelo fato de, mesmo na recusa, ainda permanecer preso à problemática que lhe fora dada previamente pela filosofia do sujeito, sob a forma da fenomenologia de Husserl. E conclui em mais dois trechos (2002, p. 196-197): Heidegger livra-se tão pouco dos limites da problemática da consciência transcendental, que não pode rebentar a redoma conceitual básica da filosofia da consciência senão pela via da negação abstrata [...] também Heidegger acaba por ficar preso, de um modo negativo, ao fundamentalismo da filosofia da consciência. 252 Mas perguntamos: em algum momento ele foi excluído? Questionando mais radicalmente, seria mesmo possível uma tal exclusão? Seria possível alguma existência sem referência ao outro? Poderíamos legitimamente pôr em confrontação “a intersubjetividade do mundo da vida e o solipsismo do Dasein”287? E se as respostas a essas questões forem negativas, então em que tonalidade poderia ser reassumida aquela pergunta inicial? 12.1 A “inclusão” do outro A referência central que o Dasein assume na filosofia heideggeriana acaba por levar alguns intérpretes a vê-lo como um mero substituto do sujeito da filosofia moderna, o que os conduziria a uma equivocada ideia de que nosso filósofo ainda estaria preso à filosofia da consciência288. Entretanto, é preciso desde logo salientar que a centralidade do Dasein na ontologia hermenêutica não decorre de um matiz solipsista de sua filosofia, mas do privilégio ôntico-ontológico de que ele se reveste, no sentido de ser o único ente capaz de pôr e compreender a pergunta pelo sentido A “provocativa” questão que ora estabelecemos se refere ao título do capítulo 2 da obra “Hermenêutica jurídica e(m) debate”, de Álvaro Cruz (2007, p. 59). 288 Como assinala Ernildo Stein, desde Descartes o método é a grande questão da filosofia moderna. E Heidegger, mesmo influenciado por Husserl, logo percebeu que “o método fenomenológico pagava seu tributo às teorias da consciência e representava uma recuperação da tradição cartesiana” (2005, p. 31), à qual se opunha veementemente. O seu desligamento dessa tradição se confirma na crítica que contra ela apresentou, tal como destaca o mestre (STEIN, 2005, p. 32): 287 Como crítico particular desta tradição, do dualismo cartesiano, da relação sujeito-objeto, a crítica da fenomenologia como método se tornaria um dos motivos principais do confronto com o mestre Husserl. Todo Ser e Tempo se desenvolve na direção de um novo começo, mesmo de uma nova questão do método. Nele apareceria uma nova figura, uma nova metáfora (a geométrica) opondo-se às metáforas da luz das teorias da consciência e seus métodos: o círculo hermenêutico. Desaparece a ideia da transparência, do espelhamento, da re-flexão, da introspecção, da reduplicação do mundo na consciência. 253 do ser. Posto ser essa a questão fundamental que é colocada por Heidegger289, então a analítica da estrutura existencial desse ente privilegiado assume relevância primordial no seu tratado. Ademais disso, a compreensão do modo de ser deste ente há que ser fixada em primeiro plano, já que o Dasein se compreende na sua ek-sistência, estando lançado no mundo enquanto projeto e, portanto, em meio aos entes intramundanos e aos outros. Assim, a compreensão dos entes em geral e da natureza, como conjunto ou totalidade deles, irá aflorar no próprio modo de ser do Dasein, eis que ele, enquanto existe, compreende. Por isso a filosofia de Heidegger é uma ontologia, uma ontologia hermenêutica e, portanto, é uma filosofia hermenêutica. De qualquer forma, é um erro considerar o mundo como um mero continente que abriga os entes; ele é a própria abertura em que eles se dão a acontecer e, enquanto projeto aberto, é sempre um projeto compartilhado, que daí nos remete a também um mundo compartilhado (Mitwelt). Assim, cumprindo a promessa feita no item 8.1, desenvolveremos adiante um estudo acerca do existencial Mitsein, em linha comparativa com o ser-junto aos entes, com o intuito de revelar o caráter compartilhado da verdade, que inviabiliza qualquer visão solipsista da filosofia heideggeriana. 12.1.1 O Dasein como ser-com os outros Heidegger estabelecerá uma distinção capital entre o ser conjuntamente de dois entes e o ser-com os outros. Duas pedras subsistem em conjunto uma ao lado da outra e podem inclusive, segundo lei física de mediana compreensão, provocar “A elaboração concreta da pergunta pelo sentido do ser é o propósito do presente tratado” (HEIDEGGER, 1997, p. 12). 289 254 interferências (gravitacionais) uma sobre a outra, mas tal não significa que sejam uma com a outra, no sentido que nosso filósofo dá a essa expressão. Da mesma forma, a pedra, colocada sob a visada da sua relação conosco, nunca nos põe em uma situação de ser-com ela, posto que o “com” aí significa um modo próprio de ser. Em suma: “realidade simultânea, isto é, ser-real simultaneamente a outros entes, não significa necessariamente ser-um-com-o-outro” (HEIDEGGER, 2008a, p. 89). Portanto, instalase a diferença conceitual entre o “um-ao-lado-do-outro” na forma do simples “subsistir-por-si-conjuntamente” e do “ser–com-o-outro”. Mas onde ela se revelaria? Em um primeiro momento somos tentados a estabelecer a diferença desses modos com o recurso à ideia de consciência. Duas pedras subsistem uma ao lado da outra sem ter consciência uma da outra; diferentemente do homem, em que se poderia pensar em uma apreensão mútua. Ocorre que, muitas vezes, em meio inclusive a uma multidão, estamos absorvidos em nossas mais profundas reflexões, experimentando alguns momentos da mais completa solidão em que, a rigor não estou voltado aos outros que me circundam, razão pela qual, a essência do ser-com não pode dar-se na possibilidade da apreensão mútua; muito ao contrário, é exatamente porque sou com os outros que se torna possível tal apreensão. Portanto, ao afirmamos que o Dasein é-com os outros, o “com” deve aqui ser tomado em uma dimensão semântica própria, específica, com a qual não se admitirá a sinonímia com a noção de estar-junto a algo. O “com” não é aqui uma simples conjunção. Os entes intramundanos, simplesmente subsistentes, jamais são uns com os outros, embora subsistam conjuntamente. O Dasein, por sua vez, é junto a tais entes e também é com os outros entes que, à sua maneira, são existentes. Imaginemos um cenário cotidiano em que caminho pelas ruas acompanhado de um amigo, quando subitamente ouvimos um estrondo de uma colisão de um veículo em um poste. Exatamente neste momento, sou arrebatado por aquele acontecimento, de tal forma que temporariamente sou absorvido pelo evento, deixando de focar a minha consciência no outro que me acompanha, mas nem por 255 isso posso afirmar que sou sem ele. Na verdade, dirá Heidegger, é mais precisamente nesta situação que sou com ele. Mas o que ocorre exatamente aí para que originariamente se evidencie o existencial em estudo? Neste contexto estamos compartilhando algo, que vale “igualmente” para ambos. Ser-com é, pois, compartilhar um mesmo. A mesmidade aqui, a exemplo do que já afirmamos mais acima, não é apenas uma vazia afirmação de uma igualdade em si de um objeto, posto que essa sequer pode existir. Vejamos um outro exemplo que melhor esclarecerá isso. Em uma fazenda, encontro-me distante da casa e vejo algo aparentemente fixo que se assemelha a um mourão. Em seguida esse objeto se movimenta e desfaço aquela ideia inicial, pensando agora tratar-se de algum semovente, um boi por exemplo. Ocorre que este suposto animal se encaminha à porta de entrada da casa e ali a abre e desaparece para o seu interior. Imediatamente percebo meu equívoco e indubitavelmente vejo que é alguém que se encaminhava a casa. Que isso tem a ver com o ser-com? Compartilhamos um mundo exatamente quando a porta e a maçaneta são entes que estão postos a nós como um útil inserido em um contexto estrutural de significatividade que é comum. Maçaneta e porta estão aí como um mesmo para nós. Evidentemente que tal não se trata de identidade ou igualdade. A maçaneta para aquele que dela se utilizou não é idêntica àquela que de longe eu avisto. Há ângulos de visada distintos que me dão aspectos diferentes daquele objeto, sendo-nos impossível superar esta diversidade, posto que, ainda que me coloque no mesmo lugar do outro, não poderei fazê-lo ao mesmo tempo. Assim, sempre teremos diversidades de perspectivas, mas essa diferença somente pode ser compreensível enquanto referida a um mesmo. De fato, fico magro, engordo, envelheço, faço uma cirurgia plástica e “rejuvenesço”, estou constantemente experimentando mudanças, mas algo permanece e o confirma a assertiva do tipo “Nossa, como você está diferente!”. Nunca deixo de ser quem sou enquanto o mesmo, ainda que sempre modificado 256 (note o “você” em destaque na frase acima). Não há aí um outro que tenha entrado em meu lugar, que me tenha substituído; ao contrário, sou eu mesmo que, a despeito das mudanças constatadas, continuo aí. Assim, mesmidade não é sinônimo de igualdade, “mesmidade não significa simplesmente ausência de alteração [...] alteração sempre pressupõe que algo permanente, algo idêntico, persevere” (HEIDEGGER, 2008a, p. 98). Neste sentido, o Dasein compartilha um mundo com os outros, exatamente enquanto compartilhamos um mesmo. Não no sentido de um idêntico ou de um igual comportamento diante de algo, mas sobretudo, de um mesmo em relação ao que nos comportamos, tal como Heidegger destaca (2008a, p. 95): Ele não reside nem no fato de nós nos comportarmos de igual maneira em relação a algo, nem no fato de aquilo em relação ao que nós sempre a cada vez nos comportamos ser algo igual. Ao contrário, o um-com-o-outro pode agora significar, quando muito, que várias pessoas se comportam de maneira diversa em relação ao mesmo. Nossa insistência nos exemplos deriva da importância do tema para a discussão que se seguirá. Imaginemos uma sessão de desenho artístico em que é posto um modelo em um ponto central do ateliê (uma cesta de frutas ou um modelo vivo), o qual servirá de base para a figuração por parte de cada um dos artistas que o circundam. Ao final da sessão, todos desenharam algo diferente, mas em todos os desenhos, a despeito das diversas perspectivas ou ângulos de visada, temos figurado o mesmo. Aqui temos a essência do “estar-com”. Somos postos em relação com o mesmo, sendo exatamente por isso que, se no lugar da modelo mulher, desenho um homem ou, retratando um erro menos grosseiro, desenhe uma pessoa de cabelos longos, quando na verdade o modelo tem cabelos curtos, ou ainda, quando na cesta de frutas figuro um abacaxi no lugar da maçã que se apresenta no modelo, em todos esses casos será possível ao professor apontar um erro em meu desenho, será possível afirmar que o que figurei não é verdadeiro. Tal é possível exatamente 257 porque o que nele despontou é o fato de que não figura ali o mesmo que se apresenta a todos. Assim, longe da coisa em si kantiana, nós experimentamos os entes sempre desde uma perspectiva (aliás, como ficou claro quando da abordagem da estrutura prévia da compreensão) e jamais como algo igual. Contudo, essa diferença não dissolve a mesmidade, e aí talvez resida a pedra de toque para o afastamento da crítica daqueles que veem como impertinente ao Direito a absorção dessas estruturas filosóficas de todo compreender, eis que o permearia de um relativismo perigoso. Como se pudéssemos nos colocar de lado quando no mundo jurídico, existindo de uma maneira diversa da que sempre somos. Mal comparando, é como se disséssemos a alguém que está se afogando que não respire, pois do contrário, irá morrer asfixiado pelo afogamento! O problema não está na negação das estruturas ontológicas que presidem nosso modo de ser no mundo, mas de apreendê-las de tal forma que possamos não nos dissipar em empreitadas com elas incompatíveis. Do exemplo dado destacamos algo essencial: ao trabalharmos o conceito de mesmidade, o que se manteve em questão não foi uma relação do ente com ele mesmo, mas uma mesmidade que convém a nós. Daí dizer Heidegger (2008a, p. 102): Podemos dizer agora que a mesmidade é certamente uma determinação do próprio objeto, mas antes esse ente idêntico a si mesmo se encontra além disso em uma relação na qual é apreendido” [...] no ser-um-com-o-outro junto ao mesmo, a mesmidade expressa uma relação essencial e, com efeito, uma relação que não se volta simplesmente para trás, na direção do ente mesmo, mas justamente se evade e se move na direção de muitos. Assim, do estudo da mesmidade destacamos um referencial importantíssimo para elucidar o existencial do ser-com. Os entes são os mesmos de uma forma compartilhada por nós, e isso que nós compartilhamos é o seu desvelamento e, portanto, a verdade (HEIDEGGER, 2008a, p. 111): 258 Partilhamos entre nós o desvelamento do ente. O compartilhamento é a verdade do ente. A verdade é aquele mesmo que estávamos buscando, e esse mesmo também é o que possibilita, como desvelamento, que o que está manifesto no desvelamento se mostre como o próprio mesmo; e que, em verdade, se mostre a todos os que têm em comum o desvelamento. A verdade, enquanto desvelamento, embora possa suscitar a ideia de que pertença ao próprio ente, ela está para além dele, no compartilhamento que dela faz o Dasein em sua relação com o outro. E tal é correto porque independentemente de o desvelamento ocorrer ou não, ou seja, mesmo quando velado o ente, ainda assim, não deixa ele de ser o que é. Por isso, não podemos pretender determinar exatamente o que seja algum ente, incluindo o seu desvelamento como uma sua propriedade, já que sua essência permite também que permaneça velado. Ou seja, “desvelamento não é nenhuma determinação essencial do ente por si subsistente” (HEIDEGGER, 2008a, p. 116.), daí porque a verdade não lhe pertence, sendo algo que lhe advém (ou pode advir). Quando desvelado o ente em seu ser, algo lhe ocorre, ele entra em uma história. Dessa conclusão não se pode, entretanto, inferir que a verdade seja algo “subjetivo”, uma pura questão do sujeito, que acabaria por nos reconduzir à crítica relativista. Enfrentemos desde logo esta crítica. Se a verdade pertence ao Dasein e apenas advém aos entes intramundanos, então parece irrefutável que aqui tenhamos uma pertença ao “sujeito”. Entretanto, não se pode daí concluir, senão por uma eloquência retórica, que nada tenha de objetivo, sendo, portanto, relativa. O problema está em como compreendemos o sujeito neste contexto. Não é sem razão que Heidegger tenha optado por uma expressão diversa da tradicional, referindo-se ao Dasein, que não é qualquer mônada encapsulada em si, mas que já está sempre junto ao ente por si subsistente (lembremo-nos daquela indigência a que reiteradamente nos referimos ao longo deste estudo). Essa coimplicação originária é tão fundamental que se a retirarmos já não teremos mais nenhum “sujeito”. Portanto o Dasein não é nenhum 259 sinônimo de sujeito ou de subjetividade, tal como assimilado pela tradição filosófica290, exatamente porque o estar-junto aos entes intramundanos e o ser-com os outros são existenciais seus e, portanto, integram a sua própria estrutura, sem qualquer proeminência de um sobre o outro291 (HEIDEGGER, 2008a, p. 121): Esse ser junto ao ente por si subsistente pertence ao conceito de sujeito. Deparamonos, assim, com o seguinte resultado: A tese acerca do pertencimento da verdade ao sujeito não explica a verdade como algo "subjetivista", mas determina justamente a subjetividade em seu ser junto ao ente por si subsistente, que é desvelado. Portanto, a essência da verdade qua ἀλήθεια dá uma indicação para a clarificação do conceito de subjetividade. Portanto, o problema de todo solipsismo está no empobrecimento do conceito de sujeito (quando é pensado!), exatamente por considerá-lo e à subjetividade como isolados e desprovidos de qualquer ligação com os entes (ser junto a ...) e com os outros (ser com)292. Em que pesem estas considerações, poderíamos aventar a possibilidade de estarmos junto aos entes intramundanos de maneira isolada e, portanto, a verdade, enquanto desvelamento, poderia dar-se de maneira singular, não compartilhada. Ocorre que mesmo quando estamos sozinhos, tal não significa que não sejamos com Heidegger não afasta a pulsão da expressão que nos convoca a utilizá-la, tal como o fizemos reiteradas vezes ao longo deste trabalho. Entretanto, é preciso tomá-la em um significado mais radical e próprio, dentro do contexto de sua obra. Heidegger então irá diferenciar a “subjetividade” do Dasein daquela “má-subjetividade” da tradição: “no sentido tradicional, o sujeito é um eu inicialmente encapsulado em si e cindido de todos os outros entes, um eu que se comporta de maneira bastante alto-efervescente no interior de sua cápsula. Denominamos essa concepção do mero sujeito a másubjetividade; má porque ela não toca absolutamente a essência do sujeito. Designamos terminologicamente o sujeito com a palavra ‘ser-aí’. Por fim, a essência da subjetividade não é justamente algo ‘subjetivo’ no mau sentido” (2008, p. 120). 291 Essa inexpurgável correlação entre esses existenciais revela um argumento importante na crítica à “relação sujeito-objeto”, no sentido em que a estudamos no item 4 deste trabalho. 292 Assim, para toda crítica contra um Heidegger apegado ainda ao solipsismo e à filosofia da consciência, essas observações bastariam para socavá-las. De qualquer sorte, segue a contraposição do próprio filósofo (2008a, p. 124-125): “com ele (Descartes) começa propriamente a fatalidade da filosofia moderna, porque nele o ego, o eu é de tal forma empobrecido que não é mais nenhum sujeito. O ego sum em Descartes é sem o ser junto a..., sem o ser-um-com-o-outro [...] O erro fundamental do solipsismo é que, em meio ao solus ipse, ele se esquece de levar realmente a sério que todo ‘eu sozinho’ já é, enquanto um estar sozinho, essencialmente um ser-um-com-o-outro”. 290 260 os outros. Ao contrário, somente posso compreender a solidão (aqui tomada como o modo mais radical de se estar sozinho) diante da ausência do outro. O outro, a ele estou remetido em toda e qualquer situação. Mesmo quando estou sozinho, significa isso que estou sem o outro, eis que ele aparece como um modo de ser com ele293. O contexto significativo sempre nos remete também ao outro: deparo-me com um barco ancorado, “largado” na margem do rio, e ele não me aparece como um objeto isolado, apenas materialmente delimitado, ao qual posteriormente pudesse agregar algumas qualidades ou referências, como o da sua pertença a alguém. Ao contrário, o barco já é desde sempre aquele que o vizinho usa em seus passeios, aquele em que também naveguei com seu dono, gozando de momentos alegres partilhados com nossas esposas etc. Enfim, o Dasein jamais é alguém único no mundo, um primogênito de origem divina a que mais tarde outros viessem a acompanhá-lo em sua existência. Ele é, desde sempre, com os outros. Ora, se este existencial se revela no compartilhamento de um mesmo que identificamos no desvelamento, então é a própria verdade que sempre é compartilhada, jamais sendo restrita a alguém isoladamente. Se descubro os efeitos medicinais de uma determinada planta e não quero que os outros saibam disso, se quero resguardar este segredo, então tenho que assimilá-lo na forma de uma retenção tal, que o oculte dos demais. E porque tenho que ocultá-lo? Porque a planta pode desvelar-se também aos outros, esta aí para o ente descobridor que todos nós somos. Não bastasse isso, não fosse a razão de ser-com os outros, não haveria qualquer necessidade de ocultamento, o que nos leva a concluir que essa retenção que faço já é, por si, um modo de compartilhar com o outro. Guardar para si a verdade é um modo de protegê-la do outro. Portanto, é preciso incorporar na linha da ontologia fundamental, a existência desse existencial que para o Dasein é, como diz Heidegger, um enunciado de 293 “Tan solo en y para un coestar puede faltar el otro” (HEIDEGGER, 1997, p. 125). 261 essência, posto que integra a sua própria constituição, o seu modo de ser. Sem os outros não há Dasein! Se é assim, não faz qualquer sentido falar em um solipsismo, em uma ontologia hermenêutica fixada pelas amarras da filosofia da consciência e coisas do gênero. Da mesma forma, não faz sentido também postular a “inclusão do outro”, eis que o outro nunca foi excluído, pela simples razão de que sem ele não há “eu”. Em que pese a falha na apreciação que Habermas fez à filosofia heideggeriana, não pretendemos aqui retribuir-lhe com uma precipitada crítica, procurando resguardar o seu intento emancipatório como elemento importante na condução da análise da sua pretensão inclusiva. Assim, em que sentido o outro deveria ser “incluído”? Respondida essa primeira questão, afloram outras duas: qual a relevância dessa “inclusão” e como implementá-la? 12.1.1.1 O sentido da inclusão do outro Da análise empreendida no item anterior, destacamos que jamais somos isoladamente junto aos entes intramundanos, para depois vermo-nos agregados a outros entes que, tal como nós, também se mostram no modo da existência. Somos sempre com eles, não no sentido categorial de co-estar-aí; e sim existencial, como um compartilhamento da verdade que se dá no desvelamento. O núcleo conceitual do ser-com é, portanto, o próprio compartilhar da verdade, sendo exatamente por isso que o mundo, enquanto abertura em que o Dasein está294, é também um mundo compartilhado (Mitwelt). Por isso dirá Heidegger que o outro não está em um horizonte temporal distinto do meu, alguém de que me distingo enquanto fora de Aqui nos valemos da alternativa da tradução do “sein” do Dasein , aventada por Eduardo Rivera, em sua tradução de “Ser e Tempo”. 294 262 mim, mas exatamente o contrário, é aquele que, tal como eu mesmo, está-aí sempre também lançado na abertura e compartilhando o mundo, o que vem resumido assim: “os outros não quer dizer todos os demais fora de mim, e em contraste com o eu; os outros são muito mais aqueles de quem alguém mesmo geralmente não se distingue” (1997, p. 123, traduzimos295). Com isso pudemos concluir que o outro nunca está fora, excluído. Embora não iremos nos deter nessa importante nota, é importante ressaltar que na coexistência (Mitdasein) ingressa um elemento fundamental: a liberdade. Tal é a referência de Heidegger: “empregamos o termo ’coexistência’ para designar aquele ser com vistas ao qual os outros são deixados em liberdade dentro do mundo” (1997, p. 125, traduzimos) 296. Essa liberdade não tem qualquer relação com um algum estado de completa anomia; ela está posta no plano ontológico e passível de ser encontrada na instituição do meu projeto, em toda a extensão em que ele é fundado, como também se refletirá na linha da existência compartilhada, momento em que remeto o leitor às nossas considerações no item 8.1, quando tratamos do impessoal. Ali vimos que a relação do Dasein com o outro não se dá na forma da simples ocupação tal como se fora o outro um ente simplesmente ao modo do intramundano, ao contrário, ele é objeto de solicitude (Fürsorge). Esta pode dar-se na forma negativa da deficiência e da indiferença, em que vivo à margem dos outros, prescindindo deles ou não me interessando por eles; ou, ao contrário, posso deixar revelar a solicitude em seus modos positivos, no extremo em que ao outro quita-se-lhe o seu “Los otros no quiere decir todos los demás fuera de mí, y en contraste con el yo; los otros son, más bien, aquellos de quienes uno mismo generalmente no se distingue”. Em alemão: “»Die Anderen« besagt nicht soviel wie: der ganze Rest der Übrigen außer mir, aus dem sich das Ich heraushebt, die Anderen sind vielmehr die, von denen man selbst sich zumeist nicht unterscheidet” (HEIDEGGER, 1967, p. 118). 296 “[...] no debe pasarse por alto que empleamos el término ‘coexistencia’ para designar aquél ser con vistas al cual los otros son dejados en libertad dentro del mundo”. Em alemão: “daß wir den Terminus Mitdasein zur Bezeichnung des Seins gebrauchen, daraufhin die seienden Anderen innerweltlich freigegeben sind” (HEIDEGGER, 1967, p. 120). 295 263 cuidado, substituindo-o (uma forma substitutivo-dominante), ou se lhe antecipa o seu poder-ser existentivo não para suprimir-lhe o cuidado, mas exatamente para devolvê-lo, de tal forma que se manifeste uma autêntica solidariedade em que se revele uma autêntica liberdade em que o outro possa ser ele mesmo (solicitude antecipativo-liberadora). Em seu modo cotidiano de ser, o Dasein se vê marcado na sua relação com o outro pela distancialidade, em que, ultrapassado pelos demais, pretende superar essa diferença e, em um patamar superior, pretende manter a distância. Assim, vê-se ele marcado pela intranquilidade desse distanciamento. Ademais, é uma marca existencial do Dasein a busca por manter-se na medianidade, ou seja, movimenta-se no espaço daquilo que normalmente se aceita ou recusa, permanecendo velado todo esforço de rompimento, de exceção. No dizer poético de Heidegger, “todo o originário se torna da noite à manhã banal, como se fosse coisa longamente conhecida, todo o laboriosamente conquistado se torna trivial, todo mistério perde a sua força”’ (1997, p. 131, traduzimos)297. A essa consequência da medianidade, chamou de nivelação. Esse conjunto constituído pela distancialidade, medianidade e nivelação, configura a publicidade, que nos saca da nossa própria existência, em que nos projetamos como nós mesmos e a assume o público. Assim, a publicidade indica a sujeição ao domínio do outro no viver cotidiano do Dasein, razão pela qual não é ele mesmo quem assume o seu ser, mas o outro, um outro que não é propriamente alguém, mas precisamente ninguém, a quem Heidegger denominou de impessoal (das Man). Assim, a “inclusão do outro” somente pode ser assumida no sentido metafórico de uma reassunção autêntica de mim mesmo, do meu existir fático, usurpada pelo impessoal. As ideologias que dominam o cotidiano de nossa vida “Todo lo originario se torna de la noche a la mañana banal, cual si fuera ya largo tiempo conocida. Todo lo laboriosamente conquistado se vuelve trivial. Todo misterio pierde su fuerza.” Em alemão: “Alles Ursprüngliche ist über Nacht als längst bekannt geglättet. Alles Erkämpfte wird handlich. Jedes Geheimnis verliert seine Kraft” (HEIDEGGER, 1967, p. 127). 297 264 coletiva e que tão notoriamente foram criticadas por Habermas, exatamente refletem e somente se tornam possível à luz desse existencial do Dasein (impessoal). Assumilo significa dar-se conta da sua presença em nosso viver fático. 12.2 A compreensão em três momentos Mais acima atentamos para o nosso modo duplo de experimentarmos o mundo: o hermenêutico e o apofântico. O dizer do discurso, porque inserido no último, seria possibilitado pelo modo originário do primeiro, daí dizer-se que “vem depois” ou que “chega tarde”. Essa é uma distinção que se encontra na base de todo o visto. Os modos originários que tornam possível toda existência no plano dos entes estão na estrutura ontológica do Dasein. Entretanto, daí não decorre uma pretensa rejeição ou primazia hierárquica entre esses planos, já que o binômio ôntico-ontológico é da essência estrutural mesma. Assim, conquanto distintos, não podem ser separados. Por isso mesmo, o que propomos aqui não chega a ser a superação desta distinção, mas uma simbiose produtiva para todo compreender, em que esse se realizaria em momentos. Nessa linha teríamos uma compreensão primária, rigorosamente no modo da hermenêutica filosófica, mas que não bastaria para fundamentar-se, necessitando projetar-se ao outro. Esse compartilhamento não é algo que possamos evitar, como adiante veremos, mas está também inserido em nosso modo de ser. Esse encontro de fundamentos dados e recebidos na linguagem operaria um segundo momento que passo aqui a chamar de compreensão secundária. Ao longo de nossa exposição deixamos explícito o caráter fático da hermenêutica e daí derivamos as suas bases finitas. A marca da nossa finitude impede qualquer estagnação em um referencial absoluto que nos sirva de ponto 265 arquimédico para erigir conceitos e compreensões universais e eternas. Assim marcados pela finitude, somos obrigados a manter o espaço da fundamentação sempre aberto, firmando uma ideia reguladora que chamo de compreensão terciária. O objetivo deste tópico é exatamente articular esses três momentos compreensivos, seguido de seus reflexos no Direito. 12.3 A compreensão compartilhada Para que não se perca de vista nosso trajeto, partimos neste item da postulação de uma posição para a fundamentação tão originária como a própria compreensão: toda compreensão é fundada. No estudo do fundar, destacamos a sua tríplice estrutura, de onde surgiu a fundamentação, aqui entendida como a origem do porquê em geral. Todo esse longo caminho pretende descrever um modo de ser que nos é próprio, através do qual toda a nossa compreensão há que se dar no espaço das razões que a fundamentam, as quais serão postas na linguagem e, enquanto tal, terão referência ao outro, permitindo uma circularidade hermenêutica ampliada (se comparada ao arquétipo comum). Conquanto essa visada mais ampla da estrutura compreensiva, como algo compartilhado (Mitvestehen), seja a base de alguns pontos favoráveis ao Direito, ela não é fruto de uma postura volitiva que tenha determinado a sua inclusão, posto que se encontra no plano da estrutura ontológica do próprio Dasein. Assim, andamos dois passos em nossa caminhada: o primeiro, na associação da compreensão à fundamentação; e a segunda, na vinculação da compreensão ao outro, como compartilhamento da verdade. 266 Toda essa estrutura se dá no plano ontológico e, portanto, como possibilidades do Dasein em sua existência. Exatamente por isso é possível que na práxis jurídica ela se encubra, que os procedimentos judiciais não raro obscureçam as razões, sufoquem o apelo a elas, desconsiderem os potencialmente afetados pela decisão judicial etc. De qualquer forma, não pretendemos apenas fazer um inventário de possibilidades, mas registrar que a inclusão do plano da fundamentação no discurso jurídico é da essência da própria estrutura da compreensão humana, e se desejamos um estado que se pretenda democrático, não podemos perdê-la de vista, pois somente por ela poderemos assegurar uma convivência pautada no respeito à liberdade. Ora, todo esse estudo está na base da hermenêutica e agora da hermenêutica no viés da argumentação. Mas o que ganhamos com essa análise? Toda a metodologia jurídica está voltada a questões de essência, dentre elas, pensamos ser fundamental a que articula o paradigma do Estado Democrático de Direito com a necessidade de assegurar os direitos fundamentais na base da atividade jurisdicional, de forma tal que, sem proclamar ativismos e dirigismos, tenhamos uma recuperação da instância fática no Direito pela via da hermenêutica e da argumentação. Isso nos leva ao problema crucial de uma possível resposta correta como adequada à solução das questões que alcançam o Judiciário. Portanto, nessa linha, alguns temas se vinculam ao problema como pertinentes, a saber: o fenômeno e a aparência, verdade e errância, o impessoal e a liberdade etc. Assim, seguiremos na abordagem de dois deles antes da conclusão. O primeiro aponta para o que aqui denominamos de realinhamento do fenômeno no processo compreensivo; e o segundo, trata da articulação das razões no plano da linguagem e de como se dá o sentido. 267 12.3.1 O encobrimento do fenômeno Iniciemos com a exposição de uma estrutura conceitual que se prestará à preparação do contexto da discussão que se seguirá. Quando estudamos o método fenomenológico (item 8.2), esclarecemos que a expressão fenômeno, derivada de φαίνεσθαι, aquilo que se mostra por si mesmo, o que pode ser sacado à luz, o que pode dar-se de diversas formas, inclusive podendo ele mostrar-se como aquilo que não é. Ora, esse modo de mostração é o que denominamos de aparência. Assim, a aparência seria um modo de mostrar-se pelo encobrimento do que realmente se é. O encobrimento pode dar-se na forma do não descoberto ou do recoberto, aquilo que já se mostrou e retornou ao velamento. Isso pode dar-se de forma total ou parcial. Na última modalidade, algo permanece ainda visível, mas visível como mera aparência, uma dissimulação. É ela a forma mais comum de encobrimento, e também a mais perigosa. Por outro lado, o fenômeno não é a mera manifestação (Erscheinung). Essa última é o anunciar-se de algo que não se mostra, portanto é um não mostrar-se. Tomemos o exemplo de uma determinada doença que se anuncia por meio da febre. A doença mesma não se mostra, senão que é apenas anunciada por algo que se manifesta, a febre, um mero sintoma que se manifesta e, nesse manifestar-se revela algo que não se mostra (a doença). O “não” da manifestação é distinto do “não” da aparência. Aqui há um fenômeno, algo que se mostra, embora naquilo que ele não é; ao passo que lá, estamos diante do não se mostrar do fenômeno (ex. da doença). Pois bem, se estamos sempre lançados no mundo transcendendo os entes em seu ser, essa ultrapassagem pode restar comprometida, no sentido de estar ganhando um fundamento impróprio, em razão de que o fenômeno mesmo está encoberto pela dissimulação, como modo de aparência. Esse comprometimento que se refletirá na 268 nossa compreensão dos entes não derivará tão somente desse aspecto, aparentemente de caráter apenas “sensível”, posto que o ser que se mostra é sempre ser já compreendido e, portanto, articulado em razões de ser (toda compreensão é fundada!). Assim, o espaço determinado pela medianidade, pela compreensão niveladora do impessoal também pode encobrir o fenômeno. No Direito, o tema assume centralidade. Se nosso projeto é descrever as estruturas amplas imbricadas com a nossa compreensão do fenômeno jurídico, é preciso assumir a possibilidade de, lidando com o mundo fático, o fenômeno ser explorado de forma encoberta, sobretudo dissimuladamente. E se a hermenêutica e a argumentação, tal como propomos aqui, podem ou não enfrentar esse problema, é algo que discorreremos adiante. 12.3.2 Discurso, linguagem e sentido Ao estudarmos logo acima o existencial do ser-com (Mitsein), restou esclarecido que a verdade não é algo que pertença ao ente, posto que ele pode permanecer velado. A verdade é algo que lhe advém quando o ente descobridor (o Dasein) lhe toma em sua abertura, aí algo acontece com ele, ele entra em uma história, ele se insere em uma estrutura compreensiva, e exatamente esse evento é o que denominamos sentido. Portanto, o sentido não está lá no ente, pronto para ser revelado através de algum procedimento logicamente correto que permita abrir as comportas da cápsula que o resguarda. Esse é o problema da hermenêutica tradicional que, ainda presa às amarras de uma teoria do conhecimento de índole metafísica, pretende alicerçar-se na relação sujeito-objeto, ora prestigiando a busca pelo sentido como intenção do texto (mens legis), ora na intenção do legislador, a qual, em última análise, acaba nos 269 conduzindo ao mesmo ponto, pois o sentido conferido por ele estaria armazenado no próprio texto legal, à espera de um intérprete que deveria estar limitado a, explorando-o, resgatar esse momento originário. O sentido não é então algo que pertença ao ente, sendo ele um existencial do próprio Dasein que se mostra no evento da compreensão. Quando o ente é levado à compreensão, então isso que lhe advém é o sentido. Entretanto, é preciso cautela, pois o que é compreendido não é o sentido, mas o ente (em seu ser). Por isso dirá Heidegger que “o sentido é aquilo no qual se move a compreensibilidade de algo. Sentido é o articulável na abertura compreensora” (1997, p. 154, traduzimos)298, e assim, somente o Dasein tem sentido, somente ele pode evidenciar sentidos para o mundo, quando a abertura da sua existência é ocupada pelo ente. Todo projeto do Dasein está estruturado em um tríplice modo prévio de abordar o ente, em que eu o já tenho sob uma determinada visada e entendimento (Vorhabe, Vorsicht e Vorgriff). O sentido é articulável dentro desta estrutura compreensiva. Articulado na interpretação, pode ela ser conduzida a um enunciado (ou juízo), mas o sentido não se encontrará nele. Vejamos em maior detalhe a questão. Heidegger assinará três significados ao enunciado. Vale ele como um modo de colocar a descoberto à nossa visão o ente tal como ele é, e a tal modo de ver o enunciado, chamou de mostração. Por sua vez, no âmbito do discurso apofântico, experimentamos uma mudança do acento em que o enunciado é tomado, deslocando o foco da nossa visão não para o sujeito, mas para o que predicamos a ele. Trata-se da visada do enunciado como predicação. Finalmente, o enunciado pode significar comunicação. Aqui temos uma função essencial ao nosso projeto, eis que, pelo enunciado assim concebido, envolvemos as duas outras acepções do termo, na forma “Sentido es aquello en lo que se mueve la comprensibilidad de algo. Sentido es lo articulable en la apertura comprensora.” Em alemão: “Sinn ist das, worin sich Verständlichkeit von etwas hält. Was im verstehenden Erschließen artikulierbar ist, nennen wir Sinn” (HEIDEGGER, 1967, p. 151). 298 270 compartilhada. Por ela, levamos aos demais o ente que se mostra no enunciado, sobretudo determinado na forma da predicação, àqueles que não estão em sua proximidade. Mas mesmo assim, é o ente mesmo que pelo enunciado se mostra, pois, como nos adverte Heidegger, “também o ouvir dizer é um estar-no-mundo e um estar voltado à coisa da qual se ouve falar” (1997, p. 158, traduzimos)299. Por isso, o enunciado é uma mostração que determina e comunica (Heidegger, 1997, p. 159). Esta análise do enunciado, conectando-o à própria interpretação, como um seu modo possível de experimentar-se, prestou-se à abertura do tema do discurso e da linguagem. De fato, a visada do enunciado como comunicação nos levou ao dizer e ao falar do ente, encaminhando-nos ao tema da linguagem. Na estrutura fundamental do Dasein, o discurso se apresenta cooriginariamente com a disposição afetiva e a compreensão. É nele que se articula a compreensão, e como ela está na base de toda interpretação, então, pode-se dizer que também é ele quem funda o enunciado. Tentemos esclarecer em passos mais curtos. Se toda a interpretação é a apreensão do compreendido, tal como vimos no item 8.3, e se agora acrescentamos que a compreensão ela se articula no discurso, então tão originariamente quanto ela, é também o discurso que estará na base de toda interpretação. Como o enunciado é um dos modos em que a interpretação se manifesta, então também o enunciado decorre do discurso. Assim, o discurso se revela como um existencial do próprio Dasein, e como ele é-no-mundo, também o discurso leva esse caráter, ou seja, do mundano, no sentido de que deve converter-se em linguagem. Brevemente, a linguagem é a exteriorização do discurso. A expressão não deve ser entendida no sentido de que ele se projete de uma esfera interior para outra externa, pois o Dasein já está sempre fora (o que já “También el oír decir es un estar-en-el-mundo y un estar vuelto hacia la cosa de la cual se oye hablar.” Em alemão: “Auch das Hörensagen ist ein In-der-Welt-sein und Sein zum Gehörten” (HEIDEGGER, 1967, p. 155). 299 271 insistentemente afirmamos), significa, entretanto, que ele se projeta no âmbito daquela dualidade fundamental ôntico-ontológica, ou seja, o discurso sai do plano estritamente ontológico e passa ao plano ôntico por meio da linguagem. Nas esclarecedoras anotações de Eduardo Rivera300, “o discurso, por ser a articulação em significações do Dasein, vê-se lançado ao ôntico do mundo e necessitado dele, o que não poderia ocorrer se o discurso não se fizesse linguagem”. E de maneira definitiva, “O fundamento ontológico-existencial da linguagem é o discurso” (HEIDEGGER, 1997, p. 163, traduzimos)301. Agora vejamos: se o sentido se articula na compreensão e essa articulação é o próprio discurso, que se projeta no plano ôntico por meio da linguagem, então, podemos dizer que “as significações, lhes brotam palavras, ao invés de serem as palavras as que, entendidas como coisas, se veem providas de significações” (HEIDEGGER, 1997, p. 163, traduzimos)302. 12.4 Hermenêutica argumentativa e Direito Embora hermenêutica e argumentação sejam ordinariamente tratadas como polos distintos, não se pode dizer que o encontro entre ambas seja uma proposta incoerente. É o que se vê, por exemplo, na hermenêutica de Paul Ricoeur, que aqui será esboçada com vistas à sustentação da validade da proposta de uma aproximação entre ela e a argumentação jurídica, muito embora, como cedo evidenciaremos, essa conexão aí se sustente em bases diversas do solo ontológico em A referência se encontra na nota deste tradutor, lançada em HEIDEGGER, 1997, p. 437. “El fundamento ontológico-existencial del lenguaje es el discurso.” Em alemão: “Das existenzialontologische Fundament der Sprache ist die Rede” (HEIDEGGER, 1967, p. 160). 302 “A las significaciones les brotan palabras en vez de ser las palabras las que, entendidas como cosas, se ven provistas de significaciones.” Em alemão: “Den Bedeutungen wachsen Worte zu. Nicht aber werden Wörterdinge mit Bedeutungen versehen.” (HEIDEGGER, 1967, p. 161). 300 301 272 que pretendemos fundá-la. Assim, realizaremos aqui um pequeno desvio da nossa rota para contemplarmos esse viés novo, após o que retornaremos a ela, enriquecidos com novos elementos de contraste que nos darão um ganho em nosso projeto. 12.4.1 Hermenêutica e argumentação em Paul Ricoeur Em um significativo estudo, Paul Ricoeur discorreu acerca da possibilidade de estabelecer uma ponte entre interpretação jurídica e argumentação, de maneira tal que fossem superadas as insuficiências dos modelos centrados em uma ou outra, isso com fundamento na analogia experimentada entre o referido par no plano jurídico e a dicotomia explicar/compreender, no plano da teoria do texto. Para tanto, valeu-se do modelo de Dworkin, exposto em sua obra “A Matter of Principle”, que privilegia o plano hermenêutico; e, por outro lado, da teoria da argumentação jurídica, tal como exposta por Robert Alexy e Manuel Atienza. Para Ricoeur, haveria uma razão estratégica para que Dworkin houvesse adotado os casos difíceis (hard cases) como ponto de partida, consistente na repulsa à tese da ausência de resposta (no answer), utilizada pelo positivismo jurídico como justificativa para a adoção de um campo de discricionariedade judicial303. No cerne desse problema está a seguinte questão: “como justificar a ideia de que sempre há uma resposta válida, sem recair seja no arbitrário, seja na pretensão do juiz de colocar-se como legislador?” (RICOEUR, 1995, p. 167, tradução nossa)304. A expressão « casos difíceis » foi empregada por Dworkin para designar aquelas situações em que “uma ação judicial não possa ser submetida a uma regra jurídica clara, antecipadamente estabelecida por alguma instituição” (DWORKIN, 1999, p. 81, traduzimos). 304 No original: “[...] comment justifier l'idée qu'il y a toujours une réponse valable, sans tomber soit dans l'arbitraire, soit dans la prétention du juge à se poser en législateur?”. 303 273 Estariam aí abertas as portas para a utilização da teoria literária como cânone para a teoria jurídica, pois a interpretação seria sustentada nas possibilidades abertas pelo próprio texto à comunidade de leitores, de forma tal que o sentido do texto seria reconstruído recorrendo-se a relações de conveniência e ajuste entre a interpretação de um trecho difícil e o todo da obra. Contudo, esse “fit” interpretativo não se dá no caso isolado, mas na historicidade de uma empreitada judiciária, cuja dinâmica é associada à metáfora de uma cadeia de narradores, em que cada um acrescenta um capítulo à obra sem ter conhecimento do todo dela, embora dele se valha presumidamente para viabilizar a máxima coerência da narrativa. Ricoeur aponta aí para a perda da oportunidade de remissão a uma teoria da argumentação jurídica, que bem serviria à pretendida coerência. Ele busca a resposta para essa omissão em outro ponto de polemização entre Dworkin e o Positivismo Jurídico, a saber, a distinção entre regras e princípios. De fato, um sistema jurídico rígido estaria vinculado à ideia de regras unívocas, as quais, porque insuficientes à solução dos hard cases, abririam espaço à discricionariedade judicial. Entretanto, o Direito não se identificaria apenas com um sistema de regras, mas seria composto também por princípios, cuja natureza ético-política não se ajusta à ideia de sentido unívoco. Novamente aqui o papel da hermenêutica seria fundamental, eis que os princípios não seriam válidos em razão de um pedigree, tampouco seriam unívocos, mas deveriam ser interpretados a cada vez, sendo que cada interpretação pesaria mais ou menos, contaria a favor ou contra essa ou aquela solução do caso, razão pela qual teríamos aí uma importante ferramenta na solução dos casos difíceis, mediante uma interpretação de moldes flexíveis e não codificável, que se insurge contra o formalismo de uma teoria da argumentação jurídica305. Para Ricoeur, essa rejeição põe Dworkin diante de alguns problemas, como a possibilidade de uma controvérsia interminável, somente mitigada por um elevado “On comprend que cette conception souple et non codifiable de l'interprétation soit rebelle au formalisme d'une théorie de l'argumentation juridique.” (RICOEUR, 1995, p. 171). 305 274 consenso democrático; bem como a fragilidade de julgamentos em que estão envolvidos públicos diversos, como as partes, advogados e juízes, doutrinadores etc., problemas que uma teoria da argumentação jurídica poderia contribuir para mitigar. Assim, teríamos uma proposta de um caminhar da hermenêutica à argumentação. No outro polo, em que se posicionam Alexy e Atienza, a argumentação jurídica é situada como um caso específico do discurso normativo prático geral e, como tal, pressupõe um campo de interações humanas que, regido por normas, aspira a uma pretensão de correção, o que lhe daria uma feição formal (embora não se limite à lógica formal). Ao mesmo tempo, sua correção não poderia ceder a decisionismos ou ainda a um parâmetro moral normativo intuído. O critério de correção seria então o da comunicabilidade universal, em que o bom argumento seria como tal definido se, além de inteligível, fosse assumido como plausível e aceitável por todos os potenciais afetados pela decisão que visa a sustentar. “É sobre esse horizonte de consenso universal que se situam as regras formais de toda discussão que pretenda à correção” (RICOEUR, 1995, p. 173, tradução nossa)306. Conquanto aqui demasiadamente simplificadas as premissas gerais que devem presidir o discurso, as quais poderiam ser situadas no plano de uma ética do discurso que o distanciaria de uma argumentação estratégica, importa notar que a marca do discurso se insere no campo pragmático porque “pelo seu caráter contrafatual, a noção de situação ideal do discurso oferece um horizonte de correção a todo discurso onde os parceiros busquem o convencimento por meio de argumentos: o ideal não é somente antecipado, mas já em operação” (RICOEUR, 1995, p. 175, tradução nossa)307. “C'est sur cet horizon de consensus universel que se placent les règles formelles de toute discussion prétendant à la rectitude.” 307 “par son caractère contrefactuel, la notion de situation idéale de discours offre un horizon de rectitude à tout discours où les partenaires cherchent à convaincre par des arguments: l'idéal n'est pas seulement anticipé, mais déjà à l'œuvre.” 306 275 No âmbito do discurso jurídico (seja ele jurisdicional, legislativo ou dogmático), há uma série de injunções que o peculiarizam, sem que, para Alexy, isso possa comprometer as regras formais do discurso prático normativo geral, de forma que se “as novas injunções devem ser trazidas à teoria da discussão normativa, elas devem entrar em composição com as regras formais sem enfraquecer de forma alguma essas últimas” (RICOEUR, 1995, p. 178, tradução nossa)308. Embora alguma concessão possa ser feita, Alexy fará distinção entre os contextos de descoberta e contexto da justificação, propondo, portanto, uma separação entre interpretação e argumentação jurídica. Entretanto, em interessante nota, Ricoeur sinalizará para a fragilidade da separação (1995, p. 180, traduzimos)309: Autores como Engisch e Larenz – citados por R. Alexy, A Theory of Legal Argumentation, op.cit., p. 228, nota 44 – sublinham o papel da “descoberta” na operação de justificação e falam a este respeito da hermenêutica jurídica. Alexy remete o momento da “descoberta” à descrição psicológica do processo e o separa da justificação. Mas não tem a argumentação jurídica por característica primeira a não separação entre descoberta e justificação? Para Ricoeur, em todo esse espaço da argumentação jurídica a hermenêutica deve ter franqueado o seu ingresso. No plano da denominada justificação interna (argumentação como inferência), impõe-se uma coerência lógica entre premissas e conclusão, o que não se limita a um simples silogismo, exigindo sempre um caráter apropriativo que exige interpretação, pois “a aplicação de uma regra é de fato uma operação muito complexa, onde a interpretação dos fatos e a interpretação da norma “Si donc des contraintes nouvelles doivent être apportées à la théorie de la discussion normative, celles-ci doivent entrer en composition avec les règles formelles sans aucunement affaiblir ces dernières”. 309 “Des auteurs comme Engisch et Larenz - cités par R. Alexy, A Theory of Legal Argumentation, op. cit., p. 228, note 44 - soulignent le rôle de la «decouverte» dans l'opération de justification et parlent a cet égard d'herméneutique juridique. Alexy renvoie du côté de la description psychologique du procès ce moment de «découverte» et le disjoint de la justification. Mais l'argumentation juridique n’a-t-elle pas pour caractéristique première de ne pas séparer decouverte et justification ?”. 308 276 se condicionam mutuamente” (RICOEUR, 1995, p. 178, tradução nossa)310, e neste sentido a afirmação de Ricoeur de que a interpretação é o órganon da inferência (1995, p. 179). Por aí também se visualiza a importância que a interpretação joga no plano fático ou, do que se convencionou denominar, justificação externa, eis que, fatos jamais são fatos brutos, mas já sempre carregados de sentido e, portanto, interpretados. E se não bastasse, no plano do uso da argumentação com base em precedentes judiciais, esses não são também simples dados recolhidos antecipadamente em uma unidade de sentido autônoma, que possam ser manejados em uma mera operação dedutiva, mas aí importa o reconhecimento da semelhança entre os casos que aspiram à universalização de critérios de solução. Como afirma Ricoeur, “o precedente remete à similaridade, que não é dada nem inventada, mas construída. No vocabulário de Dworkin, é um caso de interpretação construtiva” (1995, p. 182183, tradução nossa)311. Dessa análise, partindo-se da argumentação chegaríamos à interpretação e, com base nisso, propõe Ricoeur que a interpretação deve ser encontrada no ponto de contato entre as trajetórias ascendente de Dworkin e descendente de Alexy e Atienza312, concluindo que argumentação e interpretação não podem ser postas em “[...] l'application d'une règle est en fait une opération très complexe où l'interprétation des faits et l'interprétation de la norme se conditionnent mutuellement [...]”. 311 “Le précédent renvoie à la similarité, laquelle n'est ni donnée, ni inventée, mais construite. Dans le vocabulaire de Dworkin, c'est un cas d'interprétation constructive”. 312 Em termos mais amplos (RICOEUR, 1995, p. 183-184): 310 Le point où interprétation et argumentation se recoupent est celui où se croisent la voie régressive et ascendante de Dworkin et la voie progressive et descendante d'Alexy et Atienza. La première prend son départ dans la question pointue posée par les hard cases et de là s'élève vers l'horizon éthico-politique de «l'entreprise judiciaire» considérée dans son déploiement historique. La seconde procède d'une théorie générale de l'argumentation valable pour toute forme de discussion pratique normative et rencontre l'argumentation juridique comme une province subordonnée. La première voie atteint le carrefour commun au moment où la théorie de l'interprétation rencontre la question posée par le modèle narratif lui-même des critères de cohérence du jugement en matière juridique. La seconde l'atteint lorsque, pour rendre compte de la spécificité de l'argumentation juridique, les procédures d'interprétation retrouvent leur pertinence à titre d'organon du syllogisme juridique en vertu duquel un cas est placé sous une règle. 277 polos extremados do discurso jurídico, mas se correspondem e se imbricam mutuamente, já que a interpretação se torna o caminho que segue a imaginação produtora, quando o problema não é mais o de aplicar uma regra conhecida a um caso supostamente descrito corretamente, como no julgamento determinante, mas de “encontrar” a regra sob a qual seja apropriado localizar um fato que demande ele mesmo ser interpretado. (RICOEUR, 1995, p. 184, tradução nossa)313 Em tudo isso fica exposta a fundamentação para a pretensão de um encontro entre hermenêutica e argumentação, mas deve ele ainda ser melhor e mais originariamente fundado. O próprio Ricoeur o faz em outros escritos seus, justificando a assertiva que inicialmente foi posta, no sentido de que tal aproximação estaria centrada na dissolução do aparente conflito entre explicação e compreensão. É o que iremos explorar em seguida. 12.4.1.1 A linguística da fala e a linguística do discurso Para Ricoeur, a aporia fundamental da hermenêutica seria a alternativa, a seu ver desastrosa, entre explicar e compreender (2008, p. 23). Daí decorreria o fato de a hermenêutica, ao visar o status de um saber científico, ter ultrapassado a barreira dos domínios particulares a que se aplicava, pretendendo tornar-se um saber geral. A esse movimento denominou-se desregionalização. Ocorre que a isso se deve agregar um movimento mais radical (radicalização), “pelo qual a hermenêutica se torna não somente geral, mas fundamental” (RICOEUR, 2008, p. 24). Isso somente se alcançará “l'interprétation devenant le chemin que suit l'imagination productrice lorsque le problème n'est plus d'appliquer une règle connue à un cas supposé correctement décrit, comme dans le jugement déterminant, mais de «trouver» la règle sous laquelle il est approprié de placer un fait qui demande lui-même à être interprété.” 313 278 quando essa preocupação de caráter científico-epistemológico estiver subordinada a preocupações ontológicas, por onde “compreender deixa de aparecer como um simples modo de conhecer para tornar-se uma maneira de ser e relacionar-se com os seres” (2008, p. 24). Para Ricoeur, o movimento de desregionalização teve início com Schleiermacher; ao passo que o de radicalização, é notoriamente percebido na ontologia fundamental de Martin Heidegger, a qual julgamos desnecessária aqui retomar, em face da larga exposição já feita ao longo deste trabalho. Não se trata aqui de uma proposta de abandono do caminho até então percorrido pela radicalização, mas de um fazer operar uma nova revolução copernicana, onde as questões do método estariam recolocadas sob o controle de uma ontologia prévia. Exatamente por isso é que Ricoeur não vê no avanço proporcionado por Heidegger a solução para aquela aporia, pois, ao desviar-se para o solo mais originário da ontologia, a hermenêutica não percorreu o caminho de volta à epistemologia. Confira (RICOEUR, 2008, p. 44): A meu ver, a aporia não está resolvida; foi simplesmente deslocada e, assim, agravada; não se encontra mais na epistemologia, entre duas modalidades de conhecer, mas situa-se entre a ontologia e a epistemologia tomadas em bloco. Com a filosofia heideggeriana, não cessamos de praticar o movimento de volta aos fundamentos, mas tornamo-nos incapazes de proceder ao movimento de retorno que, da ontologia fundamental, conduziria à questão propriamente epistemológica do estatuto das ciências do espírito. A grande crítica estaria no fato de que se há uma tríplice estrutura da interpretação, que determina que toda compreensão deve ser atravessada por uma visão prévia que assegure um manifestar-se da coisa mesma, e não de intuições e noções populares, como então, sucessivamente, pode-se afirmar a transcendência dos supostos ontológicos de todo conhecimento histórico da ideia de rigor das ciências da natureza? Perde-se o rigor das próprias ciências históricas. Em última análise a questão seria: como criticar as pré-compreensões não autênticas? Portanto, “a preocupação em se enraizar mais profundamente o círculo que (rectius: de) toda 279 epistemologia impede que se repita a questão epistemológica após a ontologia” (RICOEUR, 2008, p. 45). Parece-nos que aqui retomamos a crítica que Apel fez a Gadamer, no sentido de que o questionamento das condições de possibilidade do compreender deveria vir acompanhado por uma indagação acerca também de suas condições de validade. Inspirado nas noções gadamerianas de linguisticidade, diálogo e no modelo da pergunta e reposta, Ricoeur assumirá o texto como um elemento privilegiado da compreensão que o homem tem de si e do seu mundo, outorgando-lhe um lugar de destaque na hermenêutica. Esse destaque não é assumido por ele como um retorno à regionalização, mas visto como um caso particular da comunicação humana que mostra o paradigmático distanciamento comunicativo, o qual, por sua vez, “revela um caráter fundamental da própria historicidade da experiência humana, a saber, que ela é uma comunicação na e pela distância” (RICOEUR, 2008, p. 52). Nesse contexto, Ricoeur partirá da dicotomia entre língua (langue) e fala (parole), proposta por Ferdinand Saussure, para estabelecer o que denominou dialética entre evento e significação. Comecemos com a visada deste par linguístico. Muito resumidamente, a língua seria o código da linguagem, de caráter social, sobre o qual cada indivíduo estruturaria a sua fala, enquanto uma mensagem particular314. Dessa distinção essencial outras seriam derivadas, tais como o caráter arbitrário e contingente da fala A língua seria o produto social da faculdade de linguagem, associada a um conjunto de convenções necessárias, adotadas por este mesmo corpo, que viabiliza o exercício dessa faculdade nos indivíduos. Assume ela, portanto, um caráter social, exterior ao indivíduo (cf. SAUSSURE, 1995, p. 25). Ao mesmo tempo, ela não existe sem que se faça a fala, por isso apresenta também uma dimensão individual. Pode ser ela assumida como um acervo psíquico pertencente a cada indivíduo do corpo social, à semelhança de um dicionário cujos exemplares idênticos estivessem repartidos entre os indivíduos. Nas palavras de Saussure (SAUSSURE, 1995, p. 30) : 314 C’est un trésor déposé par la pratique de la parole dans les sujets appartenant à une même communauté, un systéme grammatical existant virtuellement dans chaque cerveau, ou plus exactement dans les cerveaux d’un ensemble d’individus; car la langue n’est complète dans aucum, elle n’existe pafaitement que dans la masse [...] La parole est au contraire un acte individuel de volonté et d’intelligence [...] 280 contra a sistematicidade e compulsoriedade da língua, de forma que, enquanto a fala se permite tomar-se por objeto de diversas ciências, a língua estaria sob o crivo analítico da linguística. Essa polarização do estruturalismo linguístico levou a uma segregação do discurso do plano das suas preocupações315, já que, na visão de Ricoeur, discurso deve ser assumido como o evento da fala. Essa reabilitação da linguística do discurso, contraposta a uma linguística da fala é uma das tarefas por ele pretendidas. O primeiro passo seria então visar o discurso como evento, o que significa destacar nele quatro marcas características, a saber: a) o discurso se realiza temporalmente, ao passo que o sistema da língua é atemporal e virtual; b) a instância do discurso é autorreferencial, posto que o evento se vincula à pessoa que fala; c) o evento é sempre “a vinda à linguagem de um mundo mediante o discurso” (RICOEUR, 2008, p. 54), ou seja, o discurso é sempre discurso acerca de algo que vem por ele à presença; e d) no discurso se evidencia a figura do outro, um interlocutor a quem o sujeito se dirige. Embora Saussure reconheça que há uma interdependência entre língua e fala, confere explícita proeminência à primeira no plano de estudo da linguagem, como comprova o seguinte excerto (1995, p. 36): 315 Em accordant à la science de la langue sa vraie place dans l’ensemble de l’étude du langage, nous avons du même coup situé la linguistique tout entière. Tous les autres éléments du langage, qui constituent la parole, viennent d’eux-mêmes se subordonner à cette première science, et c’est grâce à cette subordination que toutes les parties de la linguistique trouvent leur place naturelle. Daí ser acertada a afirmação de Ricoeur, no sentido de um deslocamento da linguística do discurso para um plano secundário, o que se justificaria, em razão da sua ausência de sistematicidade (RICOEUR, 2000, p. 15): Este rápido panorama das principais dicotomias estabelecidas por Saussure é suficiente para mostrar porque é que a linguística conseguiu progredir sob a condição de pôr entre parênteses a mensagem por mor do código, o evento por mor do sistema, a intenção por mor da estrutura, e a arbitrariedade do ato pela sistematicidade das combinações dentro de sistemas sincrônicos. 281 Assumir o discurso como evento foi um primeiro passo para estabelecer o que Ricoeur denominou de dialética entre evento e significação. Isso significa que se o evento é instável e fugidio, há, entretanto, algo que permanece: a significação. Assim, é ela o alvo da compreensão; não o evento em si. Portanto, a linguística do discurso seria o espaço onde evento e significação se articulariam, residindo aí o núcleo do problema hermenêutico. “Assim como a língua, ao articular-se sobre o discurso, ultrapassa-se como sistema e realiza-se como evento, da mesma forma, ao ingressar no processo da compreensão, o discurso se ultrapassa, enquanto evento, na significação” (RICOEUR, 2008, p. 55). Um segundo passo seria ver o discurso como obra. A obra seria marcada por três traços característicos: composição, pertença a um gênero e marca do estilo individual. Reconhecer a obra como uma composição significa percebê-la como uma sequência mais longa que a frase, de maneira tal que a sua compreensão somente pode dar-se na totalidade da obra enquanto tal. Esse conjunto da obra subordina-se a certa codificação, um modo de composição, que permite o enquadramento do discurso no âmbito de certas classes, tais como um relato, um poema, etc. Tal codificação recebe o nome de gênero literário. Finalmente, dentro deste gênero os discursos, como eventos singulares daquele que fala, recebem um traço singular a que denominamos estilo. Essa marca do discurso permite vê-lo como um fazer, uma prática que se põe em obra e, por isso mesmo, não se subsume pura e simplesmente no contexto de um determinado gênero, mas deve ser, como obra humana singular e formatada dentro de um estilo próprio, compreendida em seu significado. No momento em que o autor imprime à obra o seu estilo, estamos diante de um evento único, singular, mas que, a despeito disso, permite identificar aí um sentido reproduzível. Ora, há na estrutura do próprio discurso uma possibilidade de abertura que se mostra no evento singular da obra mesma, ou, como afirma Ricoeur, “A estilização surge no seio de uma experiência já estruturada, mas comportando aberturas, possibilidades de jogo, 282 indeterminações” (2008, p. 59). Por isso mesmo, é no estilo que o autor promove a sua singularidade, as suas posições, destacando o caráter de evento do discurso, mas, simultaneamente, esse acontecimento não é inapreensível, mas pode ser captado e reproduzido enquanto sentido que se mostra no bojo da própria obra. De notar-se que por meio do estilo, como dissemos, o autor promove a sua singularidade, o que confere um novo enfoque à posição do sujeito, já que ele se revela enquanto produz a obra (RICOEUR, 2008, p. 61): Porque o estilo é um trabalho que individua, vale dizer, que produz o individual, também designa, retroativamente, seu autor. Assim, o termo autor pertence à estilística. Autor diz mais que locutor: é o artesão em obra de linguagem. Ao mesmo tempo, porém, a categoria do autor é uma categoria da interpretação, no sentido em que é contemporânea da significação da obra como um todo. A configuração singular da obra e a configuração singular do autor são estritamente correlativas. O homem se individua produzindo obras individuais. A assinatura é a marca dessa relação. Mas qual o interesse da analítica estrutural do discurso para a hermenêutica? Ao inseri-lo na categoria da obra, estabelecemos que, para além das frases que o compõe, há uma estrutura genética mais ampla que o determina: a composição e o gênero. Essa lógica fundamental pode ser aplicada à sua compreensão, enquanto sentido que se dá na singularidade de um estilo determinado, já que este não se pode encontrar fora dela. Assim, a compreensão se dará em plena dialética com a explicação do discurso. Uma aproximação entre lógica e ontologia, entre linguística da fala e linguística do discurso, que irá tocar naquela aporia fundamental inicialmente posta, umbilicalmente ligada a Dilthey, qual seja, a que contrapõe o compreender ao explicar. Portanto, a noção de discurso como obra inaugura uma nova época para a hermenêutica, onde “a explicação é o caminho obrigatório da compreensão” (RICOEUR, 2008, p. 61), ou, como diria Ricoeur em outra oportunidade, é preciso 283 “explicar mais para compreender melhor” (1995, p. 183)316. E assim, “o termo interpretação deve, pois, aplicar-se não a um caso particular de compreensão, a das expressões escritas da vida, mas a todo o processo que abarca a explicação e a compreensão” (RICOEUR, 2000, p. 86). Se até aqui, foi posta a justificativa para a existência dessa dialética entre compreender (verstehen) e explicar (erklären), importa agora evidenciar o modo como tal interação ocorre. É essa passagem de uma anatomia estrutural para uma fisiologia do discurso que será abordada no item seguinte. 12.4.1.2 A dialética entre compreensão e explicação No tópico anterior restou demonstrada a existência de uma dialética entre evento e significação, a qual está polarizada no âmbito do sujeito que se expressa no discurso que realiza. Ao deslocar o foco para a perspectiva do leitor, uma nova dialética se apresentaria, a da compreensão e da explicação. No âmbito da hermenêutica romântica, esse último par é contrastado de forma irredutível, de tal forma que seus elementos se voltam a objetos totalmente distintos. A explicação presidiria o campo das ciências naturais; ao passo que a compreensão, o das ciências do espírito. E dessa dicotomia ontológica derivaria também uma autonomia epistemológica para cada integrante do par. Entretanto, esta cisão precisa ser dissolvida, por meio de um fluxo dialético entre compreensão e explicação, que se daria, segundo Ricoeur, na própria interpretação, a qual seria “uma espécie de processo: a dinâmica da leitura 316 “Expliquer plus pour comprendre mieux.” 284 interpretativa” (2000, p. 86). Essa dinâmica se daria em meio a dois caminhos: um ascendente e outro descendente. Nos estudos precedentes, evidenciamos que a máxima romântica segundo a qual devemos entender o autor melhor do que ele mesmo, expressaria uma certa cogenialidade psicológica que deturpa o processo interpretativo, na medida em que desconsidera a “disjunção do sentido verbal do texto, relativamente à intenção psicológica do autor” (Ricoeur, 2000, p. 87), ou, como afirmou Gadamer, “na escrita, o sentido do falado esta aí por si mesmo, inteiramente livre de todos os momentos emocionais da expressão do anúncio” (GADAMER, 2002a, p. 571). Essa cisão inaugura uma nova problemática para a interpretação, pois se o sentido do texto é distinto da intenção psicológica do autor, então ele pode construir-se de várias maneiras, tornando o mal-entendido inevitável. Assim, não se podendo mais retornar a uma paradigmática intenção do autor como critério corretivo, então a compreensão deve dar-se no âmbito de uma conjectura. “Construir o sentido como o sentido verbal do texto é fazer uma conjectura [...] se não há regras pra fazer boas conjecturas, há métodos para validar as conjecturas que fazemos” (RICOEUR, 2000, p. 88). Ainda neste plano, retorna-se à ideia do discurso como uma obra, de tal forma que ele mesmo, como um todo, apresenta uma certa plurivocidade que difere da polissemia das palavras e da ambiguidade das frases que o compõem. Dessa maneira abre-se uma espécie de movimento circular em que, à medida que vou caminhando pelo texto, vou abrindo sentidos por meio de conjecturas que adiantam o sentido do todo, mas esse somente vai se construindo nos pormenores das próprias partes que o compõem. O texto seria sempre visto desde uma perspectiva e as conjecturas que vão aí se estabelecendo podem ser validadas, mas não do ponto de vista de uma lógica cuja verificação possa ser empiricamente dada; e sim de uma lógica da 285 probabilidade317 e, por isso mesmo, o processo de validação não pode ser tomado como verificacionismo318. Não podemos, entretanto, imaginar que o texto se abra a qualquer interpretação, eis que há limites conjecturais, de forma que podemos rechaçar interpretações improváveis no processo de validação. Como afirma Ricoeur, “se é verdade que há sempre mais de um modo de construir um texto, não é verdade que todas as interpretações sejam iguais. O texto apresenta um campo limitado de construções possíveis” (2000, p. 91). Assim, o processo interpretativo se abre com o adiantamento de sentidos e, portanto, de uma compreensão sustentada em conjecturas, as quais vão sendo validadas ou não por meio de uma lógica própria que se inscreve no plano da explicação. Esse peculiar movimento ascendente da compreensão à explicação é uma feição da dialética entre ambas. O mesmo caminho pode ser tomado em sentido inverso para demonstrar as possibilidades dessa dialética. O estruturalismo linguístico centra seu estudo na frase como máxima unidade da linguagem, entretanto, a visão do discurso como obra sinalizou para a possibilidade de reconhecimento de unidades mais extensas, composta por conjunto de frases, onde teríamos sentidos determinados por lógicas a elas aplicadas. Partindo do modelo do texto escrito, ali temos expressões com sentido, mas que, dado o distanciamento próprio deste tipo de diálogo, a referência a que ele faz não é dada imediatamente ao leitor ou, em outras palavras, seus termos não mostram aquilo a que fazem referência. A menção ao texto escrito é aqui tomada exatamente em face desta peculiaridade, a distorção da sua natureza referencial, que Ricoeur afirma que “mostrar que uma interpretação é mais provável à luz do que sabemos é algo de diferente de mostrar que uma conclusão é verdadeira” (2000, p. 90). No caso do Direito, talvez fosse melhor afirmar, com Recasens Siches, uma lógica do razoável (2008, p. 641-645), no sentido de que uma determinada conjectura ou interpretação se mostra mais ajustada (mais justa) à pauta de valores que presidem aquela sociedade. 318 Aqui Ricoeur faz uma imediata ponte com a interpretação jurídica, afirmando que este processo de validação é “uma disciplina argumentativa comparável aos procedimentos jurídicos usados na interpretação legal, uma lógica da incerteza e da probabilidade qualitativa” (2000, p. 90). 317 286 é “profundamente afetada pela ausência de uma situação comum ao escritor e ao leitor” (RICOEUR, 2000, p. 92). Dada essa peculiaridade, pode o intérprete focar-se no texto, “suprimindo” a referência ou “imaginativamente atualizar as potenciais referências não ostensivas do texto numa nova situação, a do leitor” (RICOEUR, 200, p. 92). É no primeiro contexto, valendo-se o intérprete de uma lógica estruturante das unidades complexas que compõem o texto como obra, atento às diversas conexões entre tais elementos, analisando-as por meio de figuras de gênero e de estilo, com absoluta imersão no mundo do texto, que poderemos alçar compreensões possíveis dele319. Ora, temos aí um caminho (descendente) da explicação à compreensão. Essa simplificação do processo não pode endereçar-nos a uma dispensa do processo compreensivo na explicação, tampouco um alijamento absoluto (e impossível) do mundo referencial, pois toda a estruturação pressupõe já sentidos que nos são dados por suportes existenciais320. De qualquer forma, fica então posta a interpretação como um movimento dialético entre compreensão e explicação, de forma tal que estes dois elementos estariam alocados dentro de um mesmo “arco hermenêutico”. Portanto, está justificada a assertiva de Ricoeur de que é preciso explicar mais para compreender melhor o texto, base do seu repúdio à alternativa romântica entre explicar e compreender, à qual intitulou aporia hermenêutica. Essa lógica explicativa nos auxiliaria, portanto, a apreender as possibilidades que o texto nos abre (RICOEUR, 2000, p. 99): 319 O sentido de um texto não está por detrás do texto, mas à sua frente. Não é algo de oculto, mas de descoberto. O que importa compreender não é a situação inicial do discurso, mas o que aponta para um mundo possível, graças à referência não ostensiva do texto [...] compreender um texto é seguir o seu movimento do sentido para a referência: do que ele diz para aquilo de que ele fala. Em sua análise desse movimento, Ricoeur partiu da teoria do mito de Lévy-Strauss e, deixou claro que essa obnubilação forçada do referente não o anula. Em suas palavras, “eliminar a referência às aporias da existência, em torno das quais gravita o pensamento mítico, seria reduzir a teoria do mito à necrologia dos discursos sem significado da humanidade” (2000, p. 98). 320 287 Fica também aqui melhor compreendida a sua proposta de integração da hermenêutica à argumentação jurídica, exposta no item 12.4.1, entendendo-se a sua criativa análise de duas correntes teóricas que partiriam de polos distintos, exatamente para advogar o encontro de ambas no ponto de interseção dos vetores ascendentes e descendentes de uma e outra. 12.4.1.3 Em busca de um fundamento mais originário É chegada a hora de retomarmos nosso próprio caminho. A proposta de Ricoeur é interessante, na medida em que visualiza um espaço de harmonização entre a linguística da língua e aquela do discurso, entre lógica e ontologia, entre explicar e compreender, e finalmente, entre argumentação e hermenêutica. Entretanto, em nenhum momento foi posta a necessidade de extrapolar essa cisão no sentido de um único solo, o ontológico. Fundamentar é ainda um existencial do Dasein imbricado na própria compreensão. Toda nossa compreensão de mundo se dá fundada entre os entes de maneira fundamentada, tal como já adiantamos. Embora em alguns momentos fique claro que compreensão e explicação se dão no âmbito de um único arco hermenêutico, que denominou interpretação, não é evidenciado o fundamento mais originário dessa afirmação. Na verdade, ao movimentarmo-nos da compreensão à argumentação, eu não estou indo de um polo a outro, mas estou no próprio caminho da compreensão, que, na nossa proposta, ocorre em fases. Não bastasse isso, na análise que fizemos da sua teoria da interpretação, o outro, conquanto vislumbrado, não é trabalhado adequadamente neste processo. Por tudo isso, reafirmamos não uma dialética entre hermenêutica e argumentação, mas uma hermenêutica argumentativa, onde a cisão entre polos é dissolvida por uma unidade conceitual, tal como veremos a seguir. 288 12.4.2 A hermenêutica argumentativa Até aqui praticamente lançamos as bases filosóficas e conceituais daquilo que denominamos hermenêutica argumentativa. Não se trata de buscar um sincretismo metodológico que una o inconciliável, tal como critica STRECK321. A questão fundamental é que não há essencialmente uma separação estanque entre hermenêutica e argumentação, posto que a última é ainda um seu momento. Não há, pois, qualquer rompimento com um determinado paradigma, porquanto ainda somos, mesmo no espaço argumentativo, conduzidos pelo viés ontológico-existencial e, portanto, pela filosofia hermenêutica de cunho heideggeriano. Essa primeira conclusão decorre da análise da essência do fundamento. No plano transcendental, deparamo-nos com uma ultrapassagem do ente em seu ser, no horizonte do mundo. O ente sempre então já comparece nessa abertura do Dasein, em que o sentido se instaura. Enquanto projeto lançado, o Dasein é sempre potencializado pela marca de um excesso, que vem contido exatamente nessa sua indigência que o obriga a ser o que é em meio aos entes. Assim, enquanto ser livre, todo fundar do Dasein é um instituir tomando chão. Essa articulação entre esses dois modos fundantes (Stiften e Boden-nehmen) se dá no âmbito da fundamentação, em que se origina exatamente o porquê em geral (por que ser o ente assim e não de outra forma etc.). Logo, toda compreensão, quando apropriada pela interpretação é fundamentada, sendo exatamente por isso que posso convocar enunciados que a traduzam em linguagem (como também podemos distorcer nossas razões ou até mesmo encobri-las). O fato é que, no plano ontológico, todo projeto é fundamentado. Refiro-me à patente rejeição do jurista em questão às mixagens metodológicas entre a teoria hermenêutica e a discursiva, tal como exposta por ele ao longo da sua obra “Verdade e consenso”, notadamente em sua p. 56 (STRECK, 2006). 321 289 Heidegger criticará a apropriação como “razão” da expressão “logos” presente em ζῷον λόγον ἔχον (“Zoion logon ékhon”), o que acabaria trazendo-nos à clássica definição do homem como animal racional. Não que isso seja incorreto, mas encobre o solo originário de onde extraído aquele fragmento, em que o “logos” teria o sentido de fala, de conversação e, portanto, o homem seria “um ente que tem o mundo na forma do falado” (HEIDEGGER, 2008b, p. 42, traduzimos)322. Isso nos põe em uma situação muito estreita entre o fundamentar e o falar. Estamos junto aos entes sempre dentro de uma abertura que permite que ele se desvele sob uma estrutura pré-compreensiva. Nenhum ente é tomado em uma essencialidade própria, como uma coisa em si, mas sempre serão entes para nós, com os quais sempre já nos havemos de alguma maneira e sempre sendo percebidos segundo uma visada prévia. Por isso mesmo, dizemos que nossa compreensão dele é assumida no âmbito de um projetar que é fundado e fundamentado. Quando o ente é assim compreendido, dizemos então que lhe advém um sentido. Por sua vez, é no discurso que o sentido se torna articulável. Ao estudá-lo, vimos que ele é tão originário como aqueles existenciais fundamentais da disposição afetiva e do compreender, entretanto, vimos também que o discurso, conquanto ontológico, tem uma vocação ôntica, convertendo-se em linguagem. É nela que o sentido estará articulado. É nesse sentido que somos humanos, porque temos uma linguagem, pela qual nos expressamos, e o expressado aqui é o próprio Dasein, que éno-mundo sempre em meio aos entes e com os outros e, portanto, sempre compreendendo e fundamentando. Portanto, somos humanos enquanto seres racionais não apenas no sentido de que somos dotados de razão, mas que existimos por meio de razões, e as expressamos enquanto fundamentos de nossos projetos. Bem, se tudo isso foi conquistado no âmbito da analítica existencial do Dasein, é porque esse plano das “El hombre es un ente que tiene su mundo en el modo del hablado.” Em alemão: “Mensch ein Seiendes , das seine Welt hat in der Weise der Angesprochenen.” (HEIDEGGER, 1988, p. 21). 322 290 razões que marca a argumentação é decorrente desta estrutura ontológica que lhe é própria. Entre os que assimilaram que há um âmbito privilegiado em toda existência, no sentido da sua originariedade (o plano ontológico), qualquer metodologia discursiva chega atrasada, pois a compreensão é algo que nos ocorre e, portanto, não pode ser afetada por aquilo que lhe sucede. Isso não é incorreto, mas aí não reside o verdadeiro. Em primeiro lugar, toda a analítica existencial é extraída do modo cotidiano de ser do próprio Dasein e, portanto, é sempre referida ao seu convívio entre os entes, ao plano ôntico. Essa imbricação entre o ôntico e o ontológico é insuperável e está exatamente aí a razão pela qual foi possível a Gadamer apropriar-se da estrutura prévia da compreensão em sua hermenêutica filosófica. Toda transcendência se dá junto à imanência do Dasein. Se tal é admitido, não temos como recusar à argumentação o mesmo destino dado à compreensão no plano da hermenêutica. Em segundo lugar, a compreensão não pode ser assumida como um evento estático e atemporal. Ela, como modo de ser do Dasein, dá-se no tempo, razão pela qual, estará sempre realimentada no processo discursivo, tal como adiante procuramos demonstrar em maiores detalhes. Assim, o discurso não é algo que lhe siga após estar instaurada, mas algo que lhe acompanha em sua instauração. Eis o porquê de uma hermenêutica argumentativa. Se, como vimos, até aqui buscamos fundamentar nossa assertiva de que a hermenêutica também é argumentação, nos itens que se seguem, o problema está em discorrer acerca do modo como ela opera e as vantagens proporcionadas ao Direito quando a deixamos acontecer. 291 12.4.3 Hermenêutica e facticidade Vimos que o Dasein é um ente privilegiado porque detém a possibilidade mais própria de pôr e responder à pergunta pelo sentido do ser em geral. Que ele não é um ente enclausurado em uma mônada da qual se lance oportunamente ao mundo dos entes para capturá-los em seu sentido, recolhendo-se em seguida com as impressões apreendidas para um processamento interior que lhe dê esse conhecimento do mundo externo323, já vimos isso ao asseverar que ele está sempre fora, em um mundo, junto aos entes. É desse modo de ser-no-mundo que temos por superada a cisão que se pretende fazer entre o subjetivo e o objetivo, entre o interno e o externo. Por isso mesmo, no Direito temos uma danosa fixação a esses vínculos dualistas que inauguram situações extremamente problemáticas. Fiquemos apenas com um exemplo, dentre os muitos possíveis de serem explorados. A dogmática jurídica sustenta a distinção dos impostos em duas classes, os reais e os pessoais. Os primeiros seriam aqueles cujo aspecto material da hipótese de incidência apenas descreve um fato, acontecimento ou coisa independentemente do elemento pessoal, mantendo-se indiferente ao eventual sujeito passivo e suas Essa curiosa problemática do mundo exterior é repudiada sarcasticamente por Heidegger. Em Kant, na primeira edição da sua Crítica da Razão Pura, mais precisamente no segundo paralogismo, ele a desconsiderava, não levando a sério este problema posto pelo cético, sob o argumento de que não faria sentido o que estava dizendo, o cético estaria usando a linguagem de forma equivocada. No prefácio à segunda edição da referida obra, Kant muda de postura e, ao que nos parece um retrocesso, já leva a sério o cético, procurando não mais desconsiderar a questão posta, mas convencê-lo de que está errado. Confira: “não deixa de ser um escândalo para a filosofia e para o senso comum em geral que se admita apenas a título de crença a existência das coisas exteriores a nós (das quais afinal provém toda a matéria para o conhecimento, mesmo para o sentido interno) e que se não possa contrapor uma demonstração suficiente a quem se lembrar de a pôr em dúvida” (p.32). Já Heidegger diz que “El escándalo de la filosofía no consiste en que esta demostración aún no haya sido hecha hasta ahora, sino, más bien, en que tales demonstraciones sigan siendo esperadas e intentadas” (19997, p. 204). 323 292 qualidades324; diferentemente do que ocorre com os últimos, em que haveria certa vinculação entre os elementos pessoal e material daquela hipótese. Entre os exemplos de um e outro citamos o Imposto sobre a Propriedade Territorial e Predial Urbana (IPTU) e o Imposto de Renda (IR), respectivamente como real e pessoal. É evidente a impropriedade da distinção, posto que toda obrigação tributária recai sobre determinado sujeito que deverá adimpli-la, quando envolvido na situação descrita na norma impositiva, a qual, por certo estará referida a determinados fatos. Assim, se bem que possível uma análise fragmentada da estrutura daquela norma, crer efetivamente que ela se manifesta de maneira fragmentária é um erro grave. Nos impostos mencionados, por que o IPTU seria real e o IR pessoal? Porque a renda é da pessoa? E a propriedade do imóvel não seria ela referida também ao proprietário? No viés inverso, por que o IR é pessoal? Não é também o aspecto material da sua hipótese de incidência algo relacionado a uma coisa, a renda? O pior é que essa classificação é incorporada à própria Constituição (CRFB/88, art. 145, §1.º), quando, afirmando o princípio da capacidade contributiva, estabelece que os impostos, sempre que possível, terão caráter pessoal. E perguntamos, há algum imposto que não tenha essa feição? Pois bem, nesse sentido é que o alcance do princípio veio a ser restringido pelo fatídico entendimento do Supremo Tribunal Federal, assentado no aresto adiante transcrito (RE n.º 153771-0, Min. Moreira Alves,DJ 05/09/1997, p. 41.892): IPTU. PROGRESSIVIDADE - No sistema tributário nacional é o IPTU inequivocamente um imposto real. - Sob o império da atual Constituição, não é admitida a progressividade fiscal do IPTU, quer com base exclusivamente no seu artigo 145, § 1º, porque esse imposto tem caráter real que é incompatível com a progressividade decorrente da capacidade econômica do contribuinte, quer com arrimo na conjugação desse dispositivo constitucional (genérico) com o artigo 156, § 1º (específico). - A interpretação sistemática da Constituição conduz inequivocamente à conclusão de que o IPTU com finalidade extrafiscal a que alude o inciso II do § 4º do artigo 182 324 Cf. ATALIBA, 1994, p. 125. 293 é a explicitação especificada, inclusive com limitação temporal, do IPTU com finalidade extrafiscal aludido no artigo 156, I, § 1º. - Portanto, é inconstitucional qualquer progressividade, em se tratando de IPTU, que não atenda exclusivamente ao disposto no artigo 156, § 1º, aplicado com as limitações expressamente constantes dos §§ 2º e 4º do artigo 182, ambos da Constituição Federal. Recurso extraordinário conhecido e provido, declarando-se inconstitucional o subitem 2.2.3 do setor II da Tabela III da Lei 5.641, de 22.12.89, no município de Belo Horizonte. Foi assim repudiada a possibilidade de os municípios instituírem, em suas legislações locais, alíquotas progressivas em relação ao IPTU, em razão do maior valor venal do imóvel, como reflexo de uma correspondente maior capacidade econômica dos seus proprietários. Veja-se então que o alcance de um princípio de estatura constitucional se vê restringido (e neste caso a recusa em considerá-lo é uma forma máxima de restrição), por conta de uma anacrônica classificação que, em suas bases, está focada na distinção de índole metafísica entre o sujeito e o mundo exterior, entre a pessoa e a coisa. A incorporação da ideia de que somos-no-mundo, com todos os consectários deste existencial, implica afastar imediatamente qualquer cisão desse tipo. É por ela que também alcançaremos o cerne da nossa maior crítica: o abandono do mundo da vida pelo Direito. Aqui menciono um clássico do Direito Tributário, a fim de que se tenha uma noção da gravidade do problema. Alfredo Augusto Becker aponta sob o sugestivo título “O fato em Rebelião no Direito Tributário” que (1998, p. 92): Em todos os ramos do direito e principalmente no Direito Tributário, o fato está em rebelião contra o jurídico e o linguajar jurídico atual multicoloriu-se de expressões que denunciam a homenagem que os juristas, hoje, rendem ao fato: fato gerador, contribuinte de fato, domicílio de fato, tutela de fato, separação de fato, sociedade de fato, filiação de fato, etc. A estrutura de fato parece absorver ou anestesiar a eficácia jurídica em prejuízo da estrutura jurídica. Grande parte da doutrina jurídica assiste impassível ou até coopera ativamente para esta inversão irracional da fenomenologia jurídica: o fato subjugando o jurídico, esquecendo-se que o jurídico existe justamente para dominar o fato. 294 Os juristas estão permitindo que o "dado" (o fato) dispa-se e lance fora o "construído" (o jurídico) como um luxo que se converteu num lixo da civilização burguesa ultrapassada. E conclui (1998, p. 94): Esta idolatria mística ao fato, por grande parte da doutrina do Direito Tributário, lhe tem causado larga, profunda e nefastíssima repercussão, agravando o ambiente de manicômio jurídico tributário e atrasando o desenvolvimento da ciência jurídica tributária (Teoria Geral do Direito Tributário). Será realmente que estamos diante de uma rebelião? De uma idolatria do fato? Quiséramos fosse assim! Ao contrário, o que observamos é um rotineiro desgarramento do Direito em relação ao mundo fático, tal como reputamos ficou muito claro na análise dos três primeiros casos referenciais estudados no item 3.2.2. O problema de Becker é que ele ainda se mantém preso a esta dicotomia entre o fato e o jurídico, não se dando conta de que qualquer norma somente pode ser evidenciada em “seu” sentido na necessária interseção com o mundo da vida. O que ele sustenta é uma hermenêutica aos moldes tradicionais, em que eu tenho um ”dado normativo” (o construído) e um “fato” dele destacado (o dado naturalmente). O problema que o construído é aqui visto também como um dado, tomando ao largo toda a estrutura compreensiva, lançada na base de um projeto que sempre é instituído junto aos entes. Falar em “subjugação do jurídico pelo fato” e que “o jurídico existe para dominar o fato” é uma impropriedade tamanha, pois pretende que o mundo da vida seja substituído por conceitos do Direito, fazendo (por exemplo) com que o miserável que como tal se apresenta, não o seja, porque o conceito jurídico de miserabilidade não permite classificá-lo como tal (primeiro caso referencial, item 3.2.2.1). É também pela pretendida dominação que o conceito de família e dependente não abarca o neto 295 que esteja sob a sua dependência econômica (segundo caso referencial, item 3.2.2.2)325. Essa abstração platônica de uma dualidade de mundos, o jurídico e o fático, com preponderância do primeiro, é o cerne da nossa crítica ao modo metafísico clássico de enxergar o Direito. Assim, não nos poremos aqui a repetir as estruturas compreensivas que notoriamente superam essa visada tradicional, limitar-nos-emos a destacar, mais uma vez, que o grande passo a que podemos aspirar pela hermenêutica seria o resgate da facticidade pelo Direito. 12.4.4 O círculo argumentativo Assinalamos que todo projeto do Dasein se dá fundado em sua originária abertura em que ele se encontra junto aos entes em geral e, por isso mesmo, na própria estrutura da transcendência ele será fundado e fundamentado. Se de um lado a fundamentação a que aqui fazemos alusão não se identifica com os arrazoados em geral que pronunciamos em nossos enunciados linguísticos, já que estamos descrevendo uma estrutura no plano ontológico; por outro, não se poderia apressadamente desconectá-la daqueles. E tal separação não seria possível exatamente em razão da coimplicação entre aquele plano e o ôntico. De lembrar que o próprio Dasein já sempre é originariamente fora no mundo, junto aos entes (e com os outros), revelando-se como é exatamente por esse índice de indigência que o faz dependente daqueles. Em outra seara, mas com repercussões no Direito, em razão da evidente violação de direitos fundamentais, encontramos a contenção inflacionária pela manipulação numérica dos índices, a ponto de apontamos como zero o que o vivido mostrava ser da ordem de 80% (oitenta por cento) ao mês. 325 296 A apropriação dessas estruturas ontológicas no plano do Direito é não somente possível, mas determinante, eis que não há Direito sem pessoas que interagem socialmente, e se as referidas estruturas revelam-se no próprio modo de ser do Dasein, então, há que também no Direito fazer-se transparecer. Esse o argumento fundamental para que Gadamer tenha proposto à hermenêutica filosófica o seu caráter universal. Já não se pode falar em uma hermenêutica setorial, posto que ela é a própria compreensão, e sendo essa um modo de ser-no-mundo do homem, então já desde sempre compreendemos, seja um texto bíblico, uma poesia, uma regra jurídica etc. A compreensão é algo que nos ocorre, independentemente de qualquer método que procure determiná-la. Essa coimplicação dos planos ôntico e ontológico é bem clara, por exemplo, na tendência do discurso em transformar-se em linguagem, tal como discorremos acima (item 12.3.2). E foi exatamente por esse caminho que advogamos um lugar ao plano argumentativo no próprio espaço hermenêutico. A proximidade desta defesa nos dispensa de retomá-la. Assim, partindo da premissa de que o espaço da argumentação em que as razões se movimentam é um momento da própria compreensão; e não algo que lhe sucede, de que forma ela opera e quais os consectários desse processo. Pois bem, o que ocorre aqui é um ganho de compreensão ao modo similar do que ocorre no círculo hermenêutico. Ali restou evidenciado que toda compreensão já parte de uma pré-estrutura que me põe sob certa visada com o ente, em um modo prévio de entendê-lo e, à medida que avanço interpretando, ganho compreensão, mas simultaneamente, a interpretação já se desenvolve dentro de certa compreensão do ente interpretado. Ocorre que se toda compreensão é fundamentada e, por isso mesmo é que posso cobrar e desembaraçar-me das razões para que algo seja assim e não de outra maneira, então o sentido restará articulado na linguagem, de forma fundamentada também. Ao fazê-lo em meio a enunciados, ponho à mostra o ente no 297 modo da comunicação, lembrando que o enunciado é uma mostração que determina e comunica (ver item 12.3.2 supra). Esse mostrar que se comunica no enunciado somente pode instalar-se para o outro, sendo, portanto, um modo de ser com ele. Mas vimos que ser-com os outros não revela um mero estar-aí conjuntamente, mas um modo originário de ser do próprio Dasein, que se põe como um seu enunciado de essência. O que o caracteriza é o compartilhamento da verdade que se manifesta em um mesmo para nós. Assim, por mais que tenhamos singularidades no nosso projeto, a exigência de fundamentação o põe sob o crivo da crítica. É aí que a compreensão é incrementada. Um dos grandes desafios do Direito contemporâneo é fazer valer os direitos fundamentais e, no plano judicial, que essa meta não sirva de substrato a decisionismos “assujeitadores”326, pelos quais esteja o juiz autorizado a torcer o texto legal ou constitucional para afirmar aí qualquer sentido que lhe pareça razoável. Não lhe autoriza a tanto a hermenêutica filosófica, e isso já mesmo por uma visada superficial, em que vem à luz a noção de fusão de horizontes. Decerto que aqui não queremos fazer do texto o centro único de nossa atenção, posto que “a interpretação pode definir-se, de certo modo, como aquela forma de conhecimento na qual o ‘objeto’ se revela na medida em que o ‘sujeito’ se exprime e vice-versa” (PAREYSON, 2005, p. 52). Entretanto, se esse caráter “pessoal” da interpretação se impõe, então “a personalidade, tornada objeto de expressão mais do que órgão de penetração, sobrepõe-se à verdade, contribuindo para encobri-la e ocultá-la ao invés de captá-la e revelá-la” (PAREYSON, 2005, p. 55), e aí onde o fenômeno se verifica, não se pode dizer haver ocorrido interpretação efetiva. Assim, não se trata de uma advertência emblemática da operação hermenêutica, mas de um Aqui estamos plenamente de acordo com STRECK, quando afirma que “se o direito é um saber prático, a tarefa de qualquer teoria jurídica é buscar as condições para a) a concretização de direitos [...] b) ao mesmo tempo evitar decisionismos e arbitrariedades interpretativas” (2006, p. 9). 326 298 vício que a desnatura, tal como advertimos mais acima (item 3.3). É diante deste grande desafio que acreditamos possa a hermenêutica argumentativa colaborar. Pois bem, se ao ser-com os outros compartilhamos a verdade de um mesmo que se apresenta a nós, então, se aquilo que por ele comunicamos o que se mostra em certa determinação não é o fenômeno, mas uma mera aparência sua, ou ainda, algo que não se mostra, mas apenas uma sua manifestação, aí não será o ente desvelado, estaremos na não-verdade. Mas se é a verdade algo que compartilhamos em torno de um mesmo, por distintas que sejam as visadas prévias, é o próprio ente que permitirá o realinhamento do nosso discurso. De fato, o mesmo, já o dissemos, não significa o igual, a ausência de diferenças, fosse assim, jamais até poderíamos falar em mesmidade. A mesmidade pressupõe exatamente a diferença, para que ali se dê algo que permaneça como um mesmo. O mesmo não é uma identidade vazia do ente em si, mas um mesmo para nós. Essa a pedra de toque que permite afastar os decisionismos arbitrários no Direito. O exemplo que demos mais acima, envolvendo a retratação de um modelo por diversos desenhistas deixa claro que, a despeito da diferentes visadas e, portanto, dos diferentes quadros, há ali um mesmo que permite adotarmos um critério de verdade que não se esvai em relativismos. Ora, essa “aferição” da compreensão somente é possível no âmbito da mostração compartilhada no enunciado fundamentado. A isso denominamos função realinhadora e corretiva da argumentação. Trazemos aqui um exemplo de como esse realinhamento pode operar no plano argumentativo da hermenêutica327. Certa vez foi submetido a nossa apreciação um caso em que um advogado havia adquirido em um leilão de arte em Nova Iorque um quadro intitulado “a virgem dos lábios de mel”, de um artista brasileiro que residia naquele país. Quando do retorno ao Brasil, a Aduana subordinou a liberação da peça ao recolhimento do imposto de importação, ao que se recusou o viajante, sob 327 Aqui insistimos nessa afirmação da pertença porque daí ganhamos compreensão. 299 o argumento de tratar-se de uma obra nacional, e o imposto é devido sobre a importação de mercadorias estrangeiras, o que não era o caso. Denegamos a ordem no mandado de segurança impetrado, sob o fundamento de que não restou comprovado o local de elaboração do quadro, se no Brasil ou nos EUA. Fosse ele pintado aqui, em seguida encaminhado ao exterior e posteriormente reintroduzido, estaríamos diante de hipótese de reimportação, a receber um tratamento específico da legislação tributária. A decisão desafiou recurso de apelação e, após alguns outros incidentes recursais, acabou sendo provida à luz de um realinhamento de nossa fundamentação. Para o relator e a turma julgadora, já assimilando nesta descrição uma rede conceitual apropriada, houve um desvio de nossa parte quando o fenômeno foi encoberto. Qual a essência do objeto importado? A tela? Efetivamente não, ela não valeria tanto! O que foi efetivamente importado e que justificou o altíssimo valor econômico da operação não foi uma moldura em que sob uma base em canvas se lançou tintas em múltiplas cores, mas sobretudo a obra cultural produzida. Aí exatamente é que está o ente tributado. As impressões que se anunciam no suporte material da obra de arte não é o fenômeno mesmo, mas a sua manifestação. Logo, pouco importa onde esse suporte teria sido trabalhado, posto que a obra de arte estará eternamente conectada àquele que a produziu. Eis o acórdão (TRF-2.ª Região, proc. n.º 2002.02.01.000553-9, rel. Des. Fed. Ney Fonseca, julg. 26/08/2003): PROCESSUAL CIVIL – TRIBUTÁRIO – EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA – IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO – MERCADORIA NACIONAL. EQUIPARAÇÃO COM MERCADORIA ESTRANGEIRA – NACIONALIDADE DO QUADRO “VIRGEM DOS LÁBIOS DE MEL” – DESNECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DO LOCAL EM QUE FOR EXECUTADA A OBRA. 1. Como obras do espírito, segundo a Lei dos Direitos autorais, que geram direitos da personalidade, as obras artística não podem ser confundidas e tratadas como simples mercadoria ou um produto manufaturado qualquer. O artista transfere para sua obra aquilo que lhe é próprio e, sendo assim, as suas próprias qualificações. 2. Sendo brasileiro o pintor a circunstância-geográfica – onde o quadro foi pintado – é totalmente inócua para aferir-se a nacionalidade da obra 3. Sendo notória a 300 nacionalidade brasileira do pintor não havia necessidade produção de prova sobre o local em que o quadro efetivamente foi pintado. Inocorrência de vulneração ao artigo 333, IV do CPC. Ora, restamos imediatamente convencidos do acerto da decisão do colegiado, exatamente porque toda a fundamentação da nossa decisão estava alicerçada sobre algo que, em verdade, não era o fenômeno. Assim, foi preciso que na mostração equivocada que o enunciado proporcionou, e sob o fundamento de que compartilhamos um mesmo, aflorasse o erro e pudéssemos ganhar compreensão. Há ainda um outro aspecto saliente nesta função argumentativa. Há pouco citamos Pareyson afirmando que a interpretação seria uma forma de conhecimento em que "o ‘objeto’ se revela na medida em que o ‘sujeito’ se exprime e vice-versa”. Aí podemos destacar algo essencial que pode ser assim anunciado: o Dasein se exprime enquanto existente na medida em que desvela os entes328. Isso fica bem claro no exemplo dado no item 12.1.1, em que no uso da maçaneta por alguém foi determinante para que se afastasse a compreensão daquela pessoa como um mourão ou um animal qualquer, ou seja, ao compreender e interpretar aquele objeto enquanto um útil que está ali para algo (abrir a porta e permitir o meu ingresso na casa), sou eu mesmo que assim atuando naquele uso que me desvelo. Assim, enquanto compreendo os entes, nessa compreensão me desvelo enquanto Dasein. Por isso é que estamos autorizados a afirmar que o “sujeito” se exprime enquanto interpreta. Não é por outro motivo que a compreensão, a interpretação etc. são estruturas existenciais do Dasein, no sentido de que ele existe sendo o que é compreendendo, interpretando etc. Prosseguiremos por outro ângulo. O enunciado, já o dissemos, tem a sua base na linguagem, e mais originariamente no discurso. Se é o discurso, por sua vez, o meio onde o sentido se torna articulável, então, muito mais que materialidades ou símbolos, o enunciado tem a sua essência na expressão do outro. Nesse viés, pode ser 328 E se esse desvelamento é compartilhado, também essa expressão se dá ao ser-com os outros. 301 que aquele enunciado, quem se põe a descoberto não seja o anunciante mesmo, mas um outro que não me é dado precisar. Pode ser que ali se descerre o impessoal que nos subtrai. Eis aí outro problema que pode ser enfrentado pela hermenêutica argumentativa. Muitas vezes somos arrancados de nossas possibilidades mais próprias pelo impessoal (sobre o tema já discorremos amplamente no item 8.1). Nesta situação, quem fala e se expressa não somos nós mesmos, mas o outro, um outro que na verdade é ninguém. Só aparentemente sou eu que me manifesto, a exemplo de um boneco em um show de ventriloquia. Essa usurpação se dá de modo sutil, e nos leva a acreditar que verdadeiramente somos nós que autenticamente compreendemos e interpretamos, porque, em verdade, o silêncio que nos permeia é eloquente, vem travestido de linguagem. Isso nos suprime nosso ser mais próprio e nos objetifica, perdemos a possibilidade de experimentar sentidos para o mundo, lançando-nos em um estado decadente em que, já também coisificados, sentimo-nos como o boneco do filme Inteligência Artificial de Spielberg que, conquanto objeto aprimoradíssimo, “pensa” ser humano. É aí que não se pode mesmo ver fundado um Direito pautado nas bases de direitos fundamentais se é a própria humanidade quem se perde. Mais originariamente que qualquer direito que se possa reconhecer ao homem, é a sua humanidade que deve ser buscada. E em que sentido a hermenêutica argumentativa poderia prestar-se a esse resgate? Se com direito afirmamos que no enunciado também por ele se mostra o próprio anunciante, então é ali na linguagem que também o impessoal se revelará. É também no compartilhamento da verdade do meu próprio desvelar que “o mesmo” pode servir de guia a um realinhamento corretivo. Não raro deparamo-nos com arrazoados judiciais que fundamentam decisões e pretensões na “melhor doutrina” ou na “jurisprudência dominante”, mas muitas vezes não são assinalados que 302 doutrina ou que tribunal são esses. Assim, quem decide ou fundamenta não é quem anuncia, mas outro. Que outro? Ninguém! Eis a essência do impessoal se revelando. Essa notória situação pode decorrer de um “domínio” sutil do ou por uma acomodação funcional que nos facilita a atividade fundamentadora, também revelada na disponibilização de catálogos de soluções prévias, não raro manejados de forma acrítica e desconsiderando, sobretudo, a facticidade que necessariamente deve permear todo o Direito. No primeiro caso, a função realinhadora ser-nos-á útil a um ganho de compreensão (autocompreensão); na segunda, somente uma postura ética no uso da linguagem no espaço argumentativo nos salvará. De fato, de nada adiantaria postular ao discurso jurídico a função realinhadora e corretiva do pensamento, se nele ingressamos na contramão da verdade. Embora mesmo assim possamos obter certo grau de aprimoramento do compreendido, há traços éticos que nos obrigam a colocarmo-nos na “situação discursiva” com uma certa disposição afetiva voltada a permitir a liberdade do outro. Se no plano da hermenêutica (isolando apenas para fins analíticos) o que é determinante é a supressão de decisionismos assujeitadores e objetivismos que suprimem o chão da vida; no âmbito da argumentação, o que importa é que nela ingressemos de forma ética. De um lado contrapomos a questão fulcral da decisão não arbitrária e, de outro, a convivência em liberdade. Se nossos enunciados não traduzem uma verdadeira reflexão compreensiva dos fenômenos, se já não nos interessa o fato de estar diante do fenômeno ou da aparência ou manifestação, se não somos nós mesmos quem se desvela, mas outro que nos tomou o ser, e se ainda que conscientes dessa usurpação a acatamos irresponsavelmente para aliviar a carga de nossa existência, então não se pode falar que daí advenha uma relação autêntica com o outro. Tratando-se do juiz, o caso sob sua apreciação é deslocado de sua facticidade e, sobretudo, desumanizado, porquanto não se atém que sob sua jurisdição é a dimensão de um conflito humano 303 que se instala. Esse passar ao largo do outro, não nos interessando por ele, é uma forma negativa de ser-com ele (indiferença e deficiência). Mas também nas formas positivas de solicitude, podemos ter um comprometimento da “ética do discurso”. Tal se dá quando pretendemos pela argumentação encobrir o fenômeno, quando nos lançamos em substituição ao outro, suprimindo a sua liberdade de ser, quitando-lhe o seu cuidado (forma substitutivodominadora). O âmbito da argumentação há que ser o espaço para o encontro das razões, nela devendo os sujeitos se posicionarem responsavelmente, atentos à dimensão humana desse ambiente aberto, e também como abertura, reconhecer a dimensão insistente em que a errância se manifesta em nossa existência, a fim de que a função corretivo ou eficientemente. realinhadora da hermenêutica argumentativa possa operar 304 13 CONCLUSÃO 1. A modernidade é marcada pelo rompimento com a tradição antiga e, por isso mesmo, reclama uma autofundação nova. Nesse espaço aberto, ocupa-o a razão, instrumento pelo qual o homem pretendia assenhorar-se do mundo, constituindo um sentido para ele. 2. As ciências da natureza dão mostra da perfeição do modelo, ocupando uma posição de destaque que as coloca como referencial para as ciências sociais. O Direito não escapa à regra e as segue em um perfeito mimetismo epistemológico. A ideia de progresso é imediata, e na racionalidade é depositada toda a esperança por dias melhores. Infelizmente eles não chegaram e o paradigma entrou em declínio. Dentre os inúmeros críticos desse quadro, evidenciam-se Heidegger e Nietzsche, que marcam a transição para o que se costuma chamar de pós-modernidade. Nesse contexto, os alicerces daqueles modelos vão ostentando fadiga e o Direito, que neles também buscava apoio, mostra não dar conta do mundo da vida. 3. Aqui delineamos este quadro de ascensão e declínio, bem como destacamos a permanência de práticas judiciais que refletem ainda um insistente vínculo com aqueles arquétipos científicos da modernidade, onde, pela busca de certeza e objetividade, o Direito é entificado e a verdade é tomada como um ideal absoluto, alcançável objetivamente e sem qualquer interferência do sujeito. A lei é elevada à categoria de fetiche e o mundo que se apresenta como fenômeno é esquecido, ou quiçá negado. 4. Os inúmeros exemplos colacionados ao longo do texto dão mostra desse descompasso entre o mundo do Direito e a facticidade. Lá encontramos conceitos jurídicos que se contrapõem ao que se mostra, manipulados à serviço de uma técnica que pretende instrumentalizar o Direito na forma da disponibilidade, negando o 305 humano em que deveria enraizar-se, encontramos presunções absolutas329 que permeiam os textos legais etc. 5. Na base desse problema está a relação sujeito-objeto, de índole metafísica, e que demanda uma nova abordagem, a fim de que seus corolários sejam superados. Nessa conjuntura, é valiosa a contribuição da analítica existencial do Dasein, através da qual, cedo se percebe que antes que qualquer asserção verdadeira seja efetuada é preciso que o objeto já esteja desvelado para o sujeito, que já o compreende por estarjunto dele, na abertura que lhe é própria. E o único modo possível de dar-se essa mostração originária é pela associação a um contexto referencial que desde sempre já temos. Daí dizer-se que somente o Dasein tem mundo. Assim, pretender separar de forma estanque o sujeito do objeto na relação do conhecimento é tarefa impossível, dada a correlação entre eles. Se tal conclusão for assimilada, então novas possibilidades serão reconhecidas ao mundo do Direito. 6. Gadamer partiu exatamente deste modo originário da existência para, incorporando a análise que dela fez Heidegger, descortinar as bases da sua hermenêutica filosófica. Exatamente por isso é que não seriam legítimas as pretensões de fundar hermenêuticas setoriais matizadas por métodos próprios que lhe assegurassem “eficiência” e correção em seus enunciados. Porque hermenêutica é compreensão e porque essa é universal, também a universalidade a alcança. 7. Ademais, da constatação de que o nosso encontro com os entes se dá sempre na base de um haver prévio com eles, nossa compreensão também sempre já parte de um modo prévio de vê-los, o que faz com que nossa interpretação do mundo se instale em uma forma circular, a qual, longe de ser viciosa; é virtuosa. Somos entes históricos e, como tais, já somos perpassados por uma tradição que nos determina em Por presunção jurídica entendemos o que o Direito afirma que é, mas que pode não ser. Tratando-se de presunção relativa, não sendo o caso, cairá por terra a presunção; sendo absoluta, estaremos diante de um paradoxo incontornável e que dificilmente encontraremos alguma justificativa para a sua sustentação, posto que nos deparamos com algo que o Direito diz que é, entretanto, embora comprovadamente não sendo, continuará a sê-lo (para o Direito). É de uma evidência cristalina o fato de que o Direito, nesta situação, contraria o próprio fenômeno, negando-o. 329 306 toda interpretação. Entretanto, não somos por ela dominados, já que o resgate da sua autoridade não quer prestigiar um elemento mítico ao qual estejamos amarrados. Nossa compreensão de um texto, por exemplo, sempre será o resultado dessa fusão de horizontes, marcada pelo que trazemos e o que nos vem ao encontro. 8. Não faltam críticas a Gadamer, sobretudo determinadas pela carência de algum critério de validação dessas pré-compreensões determinantes. Nelas poderíamos encontrar ideologias dissimuladas que permeiam a sociedade, introjetadas por processos de dominação. Poderíamos, para além mesmo dessa crítica social, exigir o critério de validação como um imperativo de qualquer empreitada filosófica e científica sérias. De qualquer forma, aos críticos o próprio Gadamer responde com a distância temporal que marca a história efeitual, mas isso não lhes parece suficiente. 9. Nossa abordagem da hermenêutica filosófica expôs uma sua carência, centrada na ausência de uma efetiva disposição da “inserção do outro” no processo compreensivo. É que, da mesma forma que os existenciais heideggerianos, postos no plano ontológico (compreensão, discurso etc.), foram resgatados em seu projeto filosófico (de Gadamer), partimos da análise da essência do fundamento para reivindicar um lugar de destaque também à argumentação na hermenêutica. 10. Salientamos que o homem é constrangido por uma necessidade primordial de encontrar-se no mundo, dando à sua própria vida um fundamento, o que deixaria a marca dessa busca em todo momento do seu pensar e agir, daí porque, como ente lançado no mundo, ele é sempre em meio a um projeto fundado. Por sua vez, a tríplice estrutura do fundar indicaria que todo projeto tem um excesso que é contido enquanto o Dasein toma-chão, aí se revelando a marca da sua finitude. 11. Conectando o fundamento à transcendência, entendida como ultrapassagem, asseveramos que ganhamos compreensão quando, na abertura em que os entes comparecem, nós os ultrapassamos em seu ser, no horizonte do mundo. Ora, nesse excesso que marca o projetar livre, somos contidos exatamente porque 307 tomamos chão junto aos entes e, por isso, somos levados a fundamentar o porquê de o ente ser assim e não de outra forma. Assim, toda compreensão já se dá sob a égide do princípio do fundamento. Portanto, se a fundamentação está na base da própria existência e, consequentemente de toda compreensão, a hermenêutica, que se estrutura basicamente em torno deste último existencial, não pode desconsiderá-la. Compreensão e fundamentação são ontologicamente cooriginárias! 12. Quando compreendemos os entes dissemos que algo lhes acontece, eles entram em uma história, e a isso nos referimos como sentido. A articulação do sentido se dá no âmbito do discurso, o qual tem vocação linguística. Na linguagem o articulado se mostra, anunciando ao outro o ente nele mesmo (funções mostrativa e comunicadora do enunciado). 13. No âmbito do projeto fenomenológico, deixamos marcado que toda nossa compreensão deve orientar-se pelo próprio ente que se mostra. Dado o caráter mostrativo do enunciado, é possível recuperar esse momento compreensivo, partilhando-o com o outro, de tal forma que se permita, no espaço da argumentação, realinhar nosso discurso, já que o fenômeno pode estar encoberto por uma manifestação ou aparência. E esse realinhamento somente é possível porque ser-com os outros é compartilhar a verdade de um mesmo. Aqui temos então a possibilidade de um ganho compreensivo pela argumentação. 14. Por outro lado, se somos quem somos em meio aos entes, comprendendoos, ao enunciá-los também nos desencobrimos, o que nos autoriza a dizer que naquilo que anunciamos também nos mostramos. É então ali na linguagem que também o impessoal se revelará. É também no compartilhamento da verdade do meu próprio desvelar que “o mesmo” pode servir de guia a um realinhamento corretivo. 15. De qualquer modo, se nossos enunciados não traduzem uma verdadeira reflexão compreensiva dos fenômenos, se já não nos interessa o fato de estar diante do fenômeno ou da aparência ou manifestação, se não somos nós mesmos quem nos desvelamos, mas outro que nos tomou o ser, e se ainda que conscientes dessa 308 usurpação a acatamos irresponsavelmente para aliviar a carga de nossa existência, então não se pode falar que daí advenha uma relação autêntica com o outro. Esse problema nos remete para uma ética argumentativa. 16. De nada adiantaria postular ao discurso jurídico a função realinhadora e corretiva do pensamento, se nele ingressamos na contramão da verdade. Há traços éticos que nos obrigam a colocarmo-nos na “situação discursiva” com uma certa disposição afetiva voltada a permitir a liberdade do outro. Se no plano da hermenêutica (isolando apenas para fins analíticos) o que é determinante é a supressão de decisionismos assujeitadores e objetivismos que suprimem o chão da vida; no âmbito da argumentação, o que importa é que nela ingressemos de forma ética. De um lado contrapomos a questão fulcral da decisão não arbitrária e, de outro, a convivência em liberdade. 309 REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. APEL, Karl-Otto. Transformações da filosofia. V. 1. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2005. AQUINO, Tomás de. Suma teológica. V. 1. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2009. ARISTÓTELES. Metafísica: ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário de Giovanni Reale. V. II. São Paulo: Loyola, 2005. ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 1994. BACON, Francis. Novum Organum. São Paulo: Nova Cultural, 1997. (Coleção Os Pensadores). BARROSO, Luís Roberto. 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