voltar 1 V Encontro Internacional de Economia Solidária “O Discurso e a Prática da Economia Solidária” ECONOMIA SOLIDÁRIA E A REPRODUÇÃO SOCIAL Princípios da Economia Solidária Guilherme Nunes Silva – UNIBAVE - [email protected] Resumo Este artigo objetiva discutir a operacionalização de conceitos como os de: reprodução social, ethos barroco, capital social, desenvolvimento territorial; na discussão de temas como os da economia solidária e da moeda social como formas de enfrentamento à crise sistêmica capitalista na proposição de novas formas de relacionamento comercial e de pensar a vida. Palavras-chave: Reprodução Social, Ethos Barroco, Economia Solidária, Capital Social, Desenvolvimento Territorial Endógeno. 1. Introdução “A heterogeneidade histórico-cultural, a co-presença de tempos históricos e de fragmentos estruturais de formas de existência social, de várias procedências histórica e geocultural, são o principal modo de existência e de movimento de toda a sociedade, de toda a história.”(Quijano, A.,2005) Vivemos em um sistema capitalista que agoniza na medida em que se desenvolve. Então somos tomados por algumas dúvidas: Qual será o futuro do capitalismo? Este sistema nos levará ao colapso civilizatório ou conteria ele o germe de sua superação dialética? Fundado sob instituições como a propriedade privada, um sistema de mercado e a idéia de liberdade econômica, o sistema capitalista tem na instrumentalização técnico-científica o motor de seus avanços, mas também é um sistema instável devido a ser uma economia monetária. Ao incorporar terra, trabalho, capital e tecnologia como fatores de produção e lhes impor sua natureza reprodutiva, tem a lógica capitalista tratado os recursos naturais como ilimitados, o que produziu um passivo ambiental monumental, e ao tratar os agentes sociais como produtores e consumidores, nada lhes pode oferecer, a não ser migalhas, quando não podem os mesmos operarem em nenhuma destas condições – ao serem colocados fora dos circuitos econômicos. Alguns autores apontam certas possibilidades, como a nascente economia solidária e o uso de moeda social, e apresentam conceitos como o de reprodução 2 V Encontro Internacional de Economia Solidária “O Discurso e a Prática da Economia Solidária” social, ethos barroco, capital social e desenvolvimento territorial que nos ajudam a compreendê-las melhor. Será por meio destes conceitos que discutiremos a economia solidária como possibilidade teórica de substituir a lógica da reprodução do capital por uma lógica da reprodução social, que lhe é anterior, mas por ela foi subordinada. Como elemento complementar, trataremos da moeda social, mediadora das trocas solidárias e instrumento do comércio justo. 2. A Reprodução Social em Ladislau Dowbor Ladislau Dowbor em sua obra A Reprodução Social (1998) nos apresenta a crise engendrada pelo processo de reprodução do capital e as possibilidades abertas para a construção de uma nova sociedade tendo a reprodução social como centro. Segundo o autor de O Que é Capital, a evolução da técnica (verdadeiro motor da história capitalista) disparou num explosivo desenvolvimento incompatível com as institucionalidades correspondentes. A tecnificação em nome do capital tem produzido catastróficos efeitos sociais e ambientais. Somente com um aprofundamento dos processos democráticos poder-se-ia enfrentar o problema, respeitando a viabilidade econômica, mas considerando simultaneamente a sustentabilidade ambiental e a justiça e eqüidade social, na linha das propostas de Ignacy Sachs (2002). Enquanto a reprodução do capital está baseada no crescimento econômico e centrada nas atividades produtivas que consideram como fatores de produção (trabalho, recursos naturais como matéria-prima, capital e tecnologia), a reprodução social considera além da produção material os serviços sociais necessários à manutenção de uma vida digna, a gestão democrática do desenvolvimento (como planejamento, segurança, etc.) e a reprodução deste círculo virtuoso que tem a vida como centro. Para que este ciclo de reprodução social se desenvolva o autor apresenta alguns mecanismos básicos, como (citaremos alguns): • Fatores de Produção – como a própria teoria econômica tradicional já aponta, o mercado tem suas falhas e cada vez mais tem alocado mal os fatores, gerando desperdícios extra-capital, por ex. sobram alimentos estocados e a fome no mundo cresce. O que demonstra 3 V Encontro Internacional de Economia Solidária “O Discurso e a Prática da Economia Solidária” uma necessidade de se gerar instituições que permitam que as decisões adequadas sejam tomadas (poderíamos citar o empoderamento do capital social e as instâncias de governança). • Meios de Pagamento – com a complexificação das relações econômicas globais a distância entre as esferas de produção e de realização da produção e os meios simbólicos que o representam (como o dinheiro e o crédito, por ex.) abriu-se um espaço que Não é regulamentado nem pelo estado e nem pelo mercado (como as relações intra-empresariais por ex.) que tem produzido vazios econômicos e concentrações de riquezas jamais vistas. Para se recuperar o controle social sobre os meios de pagamentos o autor aponta a emergência da modernização, da democratização, da integração e da transparência nas relações entre os agentes nestes espaços. • Os Agentes da Reprodução Social – A remuneração dos agentes no capitalismo respeita estruturas articuladas de poder e não segundo a contribuição para as atividades econômicas desequilibrando a própria lógica do sistema, perdendo-se tanto a racionalidade econômica quanto a racionalidade social, como no caso dos professores do ensino fundamental e dos pequenos agricultores familiares. Precisamos de formas renovadas e mais democráticas de organização social. Assim o autor defende a idéia de “não podermos mais trabalhar com reprodução do capital, na visão econômica tradicional, para depois acrescentar os “remendos” sociais ou “complementos” ambientais. A sociedade tem de encontrar uma lógica integrada de reprodução”: a reprodução social. Diferentemente da divisão clássica da economia em três setores, primário, secundário e terciário, Dowbor apresenta uma proposta de análise em cinco grandes áreas e seus setores: I - Atividades produtivas 4 V Encontro Internacional de Economia Solidária “O Discurso e a Prática da Economia Solidária” • Agricultura e pecuária • Exploração florestal • Pesca • Mineração • Construção • Indústria de transformação II - Infra-estruturas econômicas • Transportes • Telecomunicações • Energia • Água e saneamento III - Intermediação comercial e financeira • Intermediação comercial • Intermediação financeira IV - Serviços sociais • Saúde • Educação • Cultura, informação e entretenimento • Urbanismo, habitação e redes de proteção social • Turismo e esportes V - Instrumentos de gestão econômica e social • Alocação de recursos • Justiça e segurança • Representação política • Os atores sociais • A regulação internacional 5 V Encontro Internacional de Economia Solidária “O Discurso e a Prática da Economia Solidária” É na intermediação comercial que vemos a centralidade da economia solidária como fator de transformação social na direção de uma sociedade mais justa e solidária frente aos desafios que a crise institucional de regulação, das relações entre as pessoas e destas com a natureza, apresenta. A intermediação comercial que antes canalizava escolhas e necessidades hoje estimula desejos e forma valores que estimulam comportamentos obsessivos de compra orientando uma civilização desvinculada do ‘ser’ e do ‘viver’, centrada no ‘ter’ e ‘demonstrar’. É com a economia solidária que poderemos re-fundar novos (esquecidos) valores. 3. O Ethos Barroco em Armando Lisboa Armando Lisboa (2003) nos apresenta em sua tese de doutorado a proposta do “Modo Barroco de Ser Moderno”. Ao contrário dos intérpretes do Brasil do século XIX que viam na miscigenação um entrave ao desenvolvimento, o autor catarinense amparado em vários pensadores do tema (como Quijano, Da Mata, Dussel e outros) aponta que justamente é esta nossa característica antropológica que “pode ser um ponto de apoio para sustentar a uma outra modernidade liberta do fetiche de uma falsa riqueza, capaz de reconciliar as imprescindíveis eficácia da ação econômica com a qualidade emancipatória da ação moral.” É justamente o nosso legado afro-latino-ameríndio uma das fontes que alimenta a economia solidária, especialmente no âmbito da economia popular (ou economia descalça – na expressão de Manfred Max-Neef ). Nossa cultura híbrida, mestiça é que é a nossa força e é dela que devemos tirar nossas respostas aos dilemas que se nos apresentam. Mesmo que autores como Piore & Sabel (1990) apontem que a existência de um ethos comunitário seja imprescindível para que a produção alternativa sobreviva às perturbações do mercado, Lisboa acentua que “o atual florescimento das atividades econômicas populares e solidárias não decorre simplesmente de uma extensão de um padrão comunitário original, mas responde, e aí reside sua novidade sociológica, tanto às condições atuais em que opera o capital, quanto a uma dinâmica civilizacional mais profunda. As identidades locais não são essências platônicas, mas são historicamente produzidas e tanto sustentam quanto se alimentam da máquina capitalista”. São as camadas periféricas que mais sofrem com as “externalidades” 6 V Encontro Internacional de Economia Solidária “O Discurso e a Prática da Economia Solidária” capitalistas e é dela mesma que estão saindo as principais respostas às crises. Haja vista a proliferação de clubes de trocas com e sem moeda social que surgiram nos bairros de Bueno Aires após a grande crise monetária a qual passou nosso país visinho. São produto da crise e resposta a ela dentro/fora de sua lógica. Vivemos numa situação híbrida, pois ainda estamos sob a hegemonia do modo de produção capitalista enquanto procuramos saídas às suas crises insolúveis dentro de seu quadro institucional vigente. Num artigo intitulado “Trocas Solidárias, Moeda e Espiritualidade”, Lisboa e Faustino (2006) afirmam que não podemos separar a economia da vida espiritual. A economia deveria ser apenas um instrumento a serviço da vida e não da busca de “vantagens” por meio do sistema de preços. Os autores apontam à necessidade de recuperar o sentido originário (aristotélico) da economia, “enquanto uma racionalidade moral e política a serviço do aprovisionamento material do oikos e da polis e do sustento da vida”. Uma economia solidária “tropical” está baseada nas relações entre amigos, famílias e parentes e não em indivíduos isolados como “cidadãos”. Como salienta Dowbor: sem emprego sem cidadania. Numa sociedade capitalista as relações se dão entre proprietários de capital, de terras, de dinheiro que auferem lucros, juros e renda, e entre os que não possuem propriedades restando-lhes ‘vender’ sua força de trabalho. O que exclui agentes da sociedade organizada com o desemprego. Na economia solidária as relações entre pessoas são um elemento central de unificação e não de exclusão, promovendo a continuidade (reprodução) social. O ethos barroco reforça este princípio na medida em que promove a “unidade na diversidade” (lembrando Etienne de La Boétie), já que respeita a heterogeneidade históricocultural. Citando Da Matta os autores reforçam a emergência do barroco devido a sua “capacidade de relacionar o alto com o baixo, o céu com a terra, o santo com o pecador, o interior com o exterior, o fraco com o poderoso, o humano com o divino, e o passado com o presente”. Será revisitando nossas origens que descobriremos de onde virá nossa força de propor o novo e saberemos de que propriedades ela é feita. 7 V Encontro Internacional de Economia Solidária “O Discurso e a Prática da Economia Solidária” 4. A Origem da Moeda e Seus Fins A moeda nasceu perto do ano 600 A.C., na Lídia (próximo a Grécia), substituindo as antigas commodities, mercadorias como dinheiro, que eram perecíveis e difíceis de contar, dividir, trocar e guardar (animais, sementes, escravos,etc.). Com esta inovação, como meio padronizado para as trocas, os comerciantes lídios ampliaram velozmente seus negócios, cuja variedade e abundância dos produtos comerciais levaram rapidamente a outra inovação: o mercado varejista – um mercado centralizado. Esta modalidade de mercado baseado no dinheiro-moeda, espalhou-se pelo Mediterrâneo opondo-se à autoridade dos tradicionais estados tributários. “A cunhagem concedeu grande impulso ao comércio, garantindolhe grande estabilidade com a qual não contava antes. As moedas tornaram-se, no sentido literal, um parâmetro frente ao qual outros produtos e serviços podiam ser mensurados e trocados com maior facilidade. As moedas concediam aos antigos comerciantes, fazendeiros e consumidores, um meio permanente de troca que era facilmente armazenado e facilmente transportado. Essa facilidade de uso, padronização de valor e durabilidade como provisão de riqueza familiar, atraíam mais pessoas para o novo produto” (Weatherford, J., 1999, p.37). A herança lídia (o sistema monetário e o mercado público) passou pelos persas e chegou aos gregos, onde operou um papel libertador e democrático, quando o grande legislador Sólon, em 594-595 A.C., aboliu o limite de exigência para o exercício de cargo público a homens nascidos nobres, trocando-as para uma nova base: a riqueza em terras. “O dinheiro passou a ser o ponto social que ligara os seres humanos em muitas outras relações sociais, não importando o fator distância ou transitoriedade, do que anteriormente era possível. O dinheiro ligara os seres humanos de uma forma mais extensiva e eficiente do que qualquer outro meio. Criava mais laços sociais, mas ao formá-lo com maior rapidez e por serem mais transitórios, enfraquecia os laços tradicionais baseados no parentesco e no poder político” (idem, 8 V Encontro Internacional de Economia Solidária “O Discurso e a Prática da Economia Solidária” p.38,39). Além desta debilidade dos laços sociais o dinheiro em sua forma monetária foi também promovendo um distanciamento entre o seu circuito de circulaçãoreprodução e seu correspondente material nas atividades produtivas e de realização do valor. Este processo ganhou intensidade num primeiro momento com o fim do padrão ouro que fora criado no séc. XIX quando na City londrina banqueiros desenvolveram o sistema monetário de papel-moeda com base no ouro. E num momento posterior quando da ascensão do neoconservadorismo macroeconômico promovendo a desregulamentação dos mercados e precipitando a crise do sistema Breton Woods. As funções fundamentais da moeda como dinheiro são além de facilitar as trocas, como meio de troca, criar uma referência de valor entre mercadorias e propiciar seu entesouramento, como reserva de valor. Como alertara J. M. Keynes os agentes econômicos têm preferência pela liquidez sendo os juros o que é cobrado (ou se paga) por não dispor de dinheiro na hora. Assim por precaução os agentes podem não gastar mesmo com queda na taxa de juros não canalizando recursos para investimento, levando à queda da produção e do emprego, mesmo assim atingindo o equilíbrio, como aconteceu nos anos 30. O que revelara o desemprego como uma condição natural da economia, exigindo políticas expansionistas para compensá-la. Após a crise do petróleo as restrições da oferta provocaram um movimento inflacionário global associado muitas vezes à estagnação difícil de contornar, pois as políticas keynesianas mostraram-se não reversas, ou seja, não se poderia usá-las para controlar a inflação, o que “reanimou” os liberais adormecidos, renascidos como neoliberais e suas propostas de desregulamentação dos mercados nacionais, privatizações e redução do poder dos estados-nacionais para intervir nos mercados. O paradoxo que se apresenta hoje é que para garantir o capitalismo e a livre concorrência cada vez mais se faz necessárias intervenções na economia com políticas ativas por parte dos estados, em contrapartida, devido à complexidade dos mercados interligados e das inovações tecnológicas ligadas à telemática, os efeitos colaterais (e trade offs) são cada vez mais imprevisíveis, exigindo “doses” de intervenção cada vez maiores e com menor efeito. Sendo que, a imprevisibilidade 9 V Encontro Internacional de Economia Solidária “O Discurso e a Prática da Economia Solidária” dos fluxos, que podem quebrar países a qualquer momento, depende 75% de fatores intangíveis, como confiança, e só 25% de indicadores quantificáveis. Trata-se de uma bomba-relógio. A moeda que nasceu para facilitar as trocas acabou se transformando, além de fator de desarticulação de laços tradicionais, na própria razão de ser dos mercados que contemporaneamente giram em torno de si mesmos, fazendo as moedas se reproduzirem descontroladamente na mesma medida em que esterilizam o capital produtivo. Como poderemos permitir que a regulação pelo mercado, em nome dos capitais, desagregue e exclua agentes sociais (além de seus efeitos na depleção do meio ambiente) e que os fluxos monetários impeçam a produção de bens e serviços necessários para uma vida digna e seu consumo? 5. A Moeda Social e a Economia Solidária como Respostas Moeda social é geralmente o instrumento de mediação próprio dos clubes de trocas. Como forma de enfrentamento à exclusão dos agentes no momento por que passa o capitalismo e sua economia de mercado, grupos têm se formado em encontros regulares para trocarem entre si mercadorias, serviços, saberes, experiências, etc. Naturalmente por não possuírem moeda oficial corrente estes agentes, evitando o desconforto do escambo, têm produzido moedas próprias para facilitarem suas trocas. A diferença básica desta moeda em relação à oficial emitida pelos governos é que ela não serve como reserva de valor e, portanto não gera juros. Como não pode gerar mais dinheiro, servindo somente como meio de troca e termo de referência, esta moeda servirá sempre como um “meio” e nunca como um “fim em si mesmo”. Alguns clubes por ex. carimbam suas moedas que se extinguem ao final das feiras. Assim também nunca serão inflacionárias, pois não serão usadas para especulação. Tanto os clubes de trocas como suas moedas sociais aparecem como respostas ao movimento excludente do capital constituindo redes de (sócio) economia solidária. Os clubes são uns contrapontos (pois atuam de forma complementar ao mercado formal) ao processo de exclusão e desemprego, enquanto que a moeda social da mesma forma em relação a restrição ao crédito e às políticas anti-inflacionárias contracionistas. Por formar uma rede de solidariedade e promover o comércio justo e, portanto reinventar uma forma de transação comercial e de convivência entre as pessoas, a economia solidária e a sua proposta V Encontro Internacional de Economia Solidária 1 0 “O Discurso e a Prática da Economia Solidária” de formação de uma rede global de trocas, é um movimento econômico, mas também, social, ambiental e político. Seu exercício traz à luz a desmistificação da moeda oficial e a das relações de poder encobertas pelas relações econômicas tradicionais. Fábio L. Búrigo (2006) em sua tese de doutorado ao estudar o cooperativismo de crédito e seus desdobramentos aponta perspectivas à economia solidária e afirma em suas conclusões que: “...uma das maiores novidades políticas do movimento da economia solidária está justamente na possibilidade de (re)incorporação da dimensão econômica como elemento essencial nas lutas políticas e sociais em prol da emancipação humana. O curioso é que o debate teórico sobre a pobreza e a desigualdade caminha no sentido de englobar outras dimensões além da econômica, e o movimento da economia solidária ratifica a importância dessa dimensão. Mais do que aparentemente antagônicas, as duas tendências aparecem como reações à projetos de transformação social que aparentemente não davam conta da complexidade das demandas e das necessidades humanas. Geralmente, no caso das iniciativas sociais de geração de renda, eram as necessidades políticas e organizativas que ficavam em segundo plano. Já no caso das mobilizações sindicais e de outras que se dedicavam à organização política dos trabalhadores a falta de prioridade recaía sobre o campo econômico” (Búrigo, F. L., 2006, P. 335). Ao que parece o elemento galvanizador dos movimentos sociais que eclodiram a partir dos anos 70 como diáspora do marxismo não terá sido o ambientalismo como propunham muitos teóricos ligados ao tema, mas a economia solidária. É através de seus princípios que podemos incorporar tanto questões de ordem econômica, como políticas, sociais e ambientais. Sobre o futuro da economia solidária como movimento de emancipação e do papel da moeda social nos diz Claudia L. B. Soares (2006) na conclusão de sua tese de doutorado: “Acredita-se que ao longo de seu processo de construção e articulação com outros movimentos sociais, como a economia solidária, poderão V Encontro Internacional de Economia Solidária 1 1 “O Discurso e a Prática da Economia Solidária” sair elementos que indiquem um caminho para a moeda social que vá além dos “guetos alternativos” e da minimização das angústias dos excluídos ou da complementaridade à moeda nacional, capaz de contemplar as aspirações mais ambiciosas ”( Soares, 2006). É claro que pode parecer ingênuo vislumbrar num movimento periférico ao sistema capitalista algum germe da algo que o possa superar e substituir, mas não esqueçamos que a própria moeda governamental em sua história surge nas feiras lídias e avança sobre o continente ganhando o mundo como uma necessidade que vai se satisfazendo à medida que se metamorfoseia até chegar a sua forma eletrônica. Além do mais são poucas as experiências relevantes que se apontam como alternativa à crise que se agrava na medida em que a enfrentam com mais do mesmo (políticas econômicas). 6. Capital Social e Desenvolvimento Territorial O espaço no qual ocorrem às experiências de economia solidária e onde a moeda social circula é o território, aqui entendido como espaço socialmente organizado onde haja fluxos e pessoas interagindo. O desenvolvimento territorial dependerá da mobilização dos recursos locais (chamados ativos endógenos) como os talentos e a criatividade das pessoas (capital humano), as potencialidades e as vocações econômicas locais, o patrimônio cultural e natural, etc. Quando os atores de uma localidade constroem estratégias na direção de uma mudança social com maior participação e equidade (cooperação), privilegiando a qualidade de vida em detrimento do enriquecimento monetário, estamos promovendo o que se chama de desenvolvimento territorial endógeno. Estamos nos capacitando para intervenções ativas no espaço público ampliando e intensificando assim a democracia. Partindo da tese de Putnam (2006) podemos afirmar que existe uma forte correlação entre associações cívicas e instituições públicas eficazes. Segundo o autor: o capital social, corporificado em sistemas horizontais de participação cívica, favorece o desempenho do governo e da economia. Citando Hume, o autor apresenta uma situação que esclarece um dos dilemas da ação coletiva: dois agricultores que terão colheitas subseqüentes sabem que se cooperarem terão ganhos econômicos, mas o que garante ao primeiro que coopera que o segundo fará o mesmo quando já tiver sua colheita garantida? Aqui, a eficiência da sociedade dependerá das características de sua organização social. Os V Encontro Internacional de Economia Solidária 1 2 “O Discurso e a Prática da Economia Solidária” agentes poderão não cooperar (permanecendo num “estado natural”, anárquico); poderão estar sujeitos a uma solução hierárquica (Hobesiana) baseada na coerção, exploração e na dependência; ou buscar uma solução cooperativa (capital social) lastreada em laços de confiança, normas socialmente aceitas e sistemas de participação (cadeias de relações sociais). Apesar de se multiplicar com o uso, o capital social costuma ser tratado como os bens públicos, insuficientemente valorizado e suprido pelos agentes privados. Não é propriedade particular de nenhuma das pessoas que dele se beneficiam. Portanto capital social geralmente tem que ser gerado como subproduto de outras atividades sociais. Práticas de mútua assistência como às associações de crédito rotativo, por exemplo, representam investimentos também em capital social além do financeiro. Os clubes de trocas, de outra forma, também, por meio da intermediação comercial, mobilizam o capital social. A tendência é se ampliar, pois como acontece com o capital na forma monetária, quem dispõe de capital social tende a querer acumular mais. É a “reprodução ampliada” do capital social. Sendo que sua oferta aumenta com o uso. Os estoques de capital social, nas formas de confiança, normas e sistemas de participação tendem a ser cumulativos e a reforçarem-se mutuamente. As regras de reciprocidade generalizada e os sistemas de participação cívica estimulam a cooperação e a confiança social porque reduzem os incentivos a transgredir, diminuem a incerteza e fornecem modelos para a cooperação futura. Toda sociedade se caracteriza por sistemas de intercâmbio e comunicação interpessoais formais e informais. Alguns desses sistemas são horizontais, congregando agentes que têm o mesmo status e o mesmo poder. Outros são verticais, juntando agentes desiguais em relações assimétricas de hierarquia e dependência. A afiliação a grupos horizontalmente organizados, como clubes esportivos, cooperativas, sociedades de mútua assistência, associações culturais e sindicatos, deve estar positivamente relacionada com o bom desempenho governamental. O índice de afiliação a organizações hierarquicamente organizadas, como máfia ou a igreja católica institucional (Putnam refere-se ao caso italiano), deve estar associada negativamente ao bom desempenho do governo. A importância do capital social como inibidor do oportunismo, da trapaça e da transgressão aumenta à medida que as sociedades ficam mais complexas e o V Encontro Internacional de Economia Solidária 1 3 “O Discurso e a Prática da Economia Solidária” desenvolvimento econômico mais difuso. E seu nível de efetividade dependerá da trajetória histórica de cada sociedade bem como do contexto social na qual se insere. Já Coleman (in Rosa, 2004) chama a atenção para a possibilidade de o capital social apresentar-se tanto no plano individual como no coletivo. No individual refere-se ao grau de integração social de um indivíduo, sua rede de contatos sociais, suas relações, expectativas de reciprocidade, comportamentos confiáveis etc. No coletivo são as normas tácitas de segurança, de cooperação e solidariedade, as formas de compor a ordem das instituições associativas e públicas. Sueli Couto Rosa (2004) acrescenta que o capital social pode ser entendido como fenômeno subjetivo composto de valores e atitudes que influenciam as pessoas que se relacionam entre si. Portanto, tem capacidade para resgatar a cultura local e reproduzi-la de forma dinâmica e em benefício de todos. A cultura cruza todas as dimensões do capital social de uma sociedade, pois contém os componentes básicos do capital social (cooperação, confiança, identidade, comunidade, amizade, solidariedade etc.). A cultura tem a ver com a identidade de um território ou um local. Assim, podem-se recriar condições de desenvolvimento ao incluírem-se os fatores: capital humano, social e cultural; em um território, ao lado do produtivo, de forma a identificar suas necessidades e potencialidades. Assim no processo de desenvolvimento territorial o aproveitamento da cultura e dos valores locais na geração de capital social e humano produz novas capacidades geradoras de novas oportunidades. Instituições e pessoas transformam-se em multiplicadoras como no caso dos clubes de trocas e no do uso de moeda social. Segundo T. Zapata (2007), território é um espaço inteligente, onde as pessoas se articulam, logo a estratégias de desenvolvimento territorial procura além de dinamizar os aspectos produtivo-econômicos, potencializar as dimensões sociais, culturais, ambientais e político-institucionais que constroem o bem-estar da sociedade – seu capital social, entendido como pessoas organizadas e articuladas. Assim sendo, a articulação de parcerias – tanto de pessoas, como de instituições e de empresas entre si (como visam os princípios da economia solidária vistos em Lisboa e Faustino) - constitui um dos elementos principais do capital social V Encontro Internacional de Economia Solidária 1 4 “O Discurso e a Prática da Economia Solidária” que por sua vez juntamente com os demais fatores como os produtivos e culturais, entre outros, promovem o desenvolvimento de um determinado território onde este fenômeno ocorre - um território que aprende! 7. Considerações Finais “Porque também nós erramos outrora insensatos, desobedientes, extraviados, servindo a várias paixões e deleites, vivendo em malícia e inveja odiosos e odiando-nos uns aos outros” (Tito, 3,14- 3). “Que os nossos também aprendam a aplicar-se às boas obras, para suprir as coisas necessárias, a fim de que não sejam infrutuosos” (Tito, 3,14-14). Partindo da constatação da crise institucional das ferramentas de regulação por que passa o sistema capitalista em sua atual fase, mostramos como L. Dowbor apresenta-nos as áreas/setores em que ocorre o ciclo da reprodução social. Percebemos o setor de intermediação comercial como o lócus da economia solidária e da moeda social e comentamos os seus papéis como lógica integrada de reprodução social em substituição a reprodução do capital como parâmetro civilizatório, que tem se apresentado insuficiente ao tentar compensar as conseqüências sociais e ambientais advindas do modo de produção capitalista. A intermediação comercial teria o poder de levar sua lógica aos demais setores/áreas das atividades sociais assim como o fez a lógica do capital que do econômico foi subordinando as demais esferas da vida, como a social, a cultural, a política e a ambiental a sua lógica cega. Da intermediação via clube de trocas e moeda social, em complementaridade com as formas tradicionais, poderia a lógica da reprodução social (que considera todos os critérios de sustentabilidade – como propôs I. Sachs: social, cultural, ecológica, ambiental, territorial, econômico e política tanto nacional como internacional) ir subordinando todas as atividades produtivas, as de infra-estruturas econômicas, de intermediação financeira e dos serviços sociais além dos instrumentos de gestão econômica e social. Tal ruptura com a lógica atual que nos governa não é de fácil transição. Como mostra a passagem bíblica do profeta Isaías 26-10: “ainda que se mostre favor ao ímpio, ele não aprende a justiça; até na terra da retidão ele pratica a iniqüidade..”, não aprendemos por demonstração mas por experiência concreta. Mesmo V Encontro Internacional de Economia Solidária 1 5 “O Discurso e a Prática da Economia Solidária” biblicamente ou aprendemos pela dor, castigo, ou pelo amor, no sentido espiritual do termo. A crise ambiental é um exemplo de catástrofe anunciada, desde o Clube de Roma nos anos 70, ao que se seguiram desculpas e adequações como no Relatório Brundtland, já nos anos 80. Mesmo a Eco 92’, e seus desdobramentos, eco + 5, eco +10, registrava indicadores alarmantes, mas de concreto muito pouco se fazia, haja vista a falta de signatários importantes ao Protocolo de Quioto. Será que o temor à extinção da espécie não nos deterá neste processo desenfreado de consumo desnecessário? Todas as demonstrações que apontavam na direção da catástrofe ambiental pouco fizeram para mudar a lógica que impera. A transição para uma outra lógica necessariamente passará por uma dimensão da vida que propositalmente não citei acima. Além da econômica, social, política e ambiental, a dimensão espiritual tem que ser contemplada, pois é dela (ou de sua falta) que tiramos nossos valores e crenças que norteiam nossos comportamentos e atitudes. A lógica da reprodução do capital rechaçou esta dimensão fundamental atrelando-a as práticas religiosas. O ser humano é um animal “simbólico” e a civilização nasceu de ritos e atividades de ordem subjetivas. Foi o mundo espiritual que primeiro nos habitou, conformando as sociedades, a ordem política, as relações com o meio e a produção material da existência. A economia solidária e o uso da moeda social terão um papel pedagógico crucial, pois poderão promover experiências de aprendizado de ordem espiritual na medida em que propõe novas formas, e uma nova lógica, de produzir, consumir e se relacionar ao tempo em que opera a reprodução social em todas as instâncias de nossas vidas. Ao desenvolver-se o território a partir das potencialidades e possibilidades locais estaremos recuperando uma forma de produzir materialmente respeitando a vida em todas as suas dimensões. Promoveremos nossa existência a partir de um “território que aprende” e aprendendo através de experiências de articulação e interação poderemos produzir uma inteligência coletivo-cooperativa, que agregue e acolha as diferenças, pois é disto que se alimenta, ao invés de excluir e destruir tudo que não lhe é igual, pois é esta a natureza e a lógica do capitalismo. Referências bilbiográficas Burigo, Fabio Luiz (2006). Finanças e solidariedade uma análise do cooperativismo de crédito rural solidário no Brasil. Florianópolis: UFSC Tese (Doutorado). V Encontro Internacional de Economia Solidária 1 6 “O Discurso e a Prática da Economia Solidária” Burigo, Fabio Luiz (2000). Moeda social e a circulação das riquezas na economia solidária. Florianópolis: Texto apresentado para a conclusão da disciplina Análise Sócio-Política da Sistema Financeiro no Capitalismo Contemporâneo – Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política (CFH – UFSC). Dowbor, Ladislau (1998). A Reprodução Social - propostas para uma gestão descentralizada. Petrópolis: Vozes. Heilbroner, R. e Thurow, L. (2001). Entenda a economia – tudo que você precisa saber sobre como funciona e para onde vai a economia. Rio de Janeiro: Campus. Lisboa, Armando de Melo (2003). Economia solidária, economia barroca: a emergencia da socioeconomia solidária na América Ibérica. Lisboa, 2003. Tese (Doutorado) - Universidade Técnica de Lisboa. Lisboa, Armando de Melo e Faustino, Andrea Viana (2006). Trocas Solidárias, Moeda e Espiritualidade. São Paulo: IV Encontro Internacional de Economia Solidária – NESOL – USP. Llorens, Francisco A. (2001). Desenvolvimento econômico local – caminhos e desafios para a construção de uma nova agenda política. Rio de Janeiro: BNDES. 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