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COPYRIGHT © BY JEAN ROCHA TEIXEIRA DUARTE, 2008
O Jardim
dos
Insetos
Índice
Capítulo I ..................................................................................................05
Capítulo II ................................................................................................ 24
Capítulo III ...............................................................................................42
Capítulo IV ...............................................................................................54
Capítulo V .................................................................................................61
Capítulo VI ...............................................................................................83
2
Agradecimentos à tia Rail Rocha pela revisão e contínuo incentivo.
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“Quem sabe por você ainda ser jovem não saiba, mas toda revolta é uma
revolta contra a natureza... Nós todos e juntos sobrevivemos dessa forma por
muito tempo! Nunca vai haver espaço para todos mandarem. Nem todos
merecem estar entre os melhores, entre os que mandam”.
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Jean Rocha Teixeira Duarte
I
— Você não sai mais dessa casa? – disse o tatu-bola batendo na carapaça
do caracol.
Já fazia alguns dias que ele não o via com sua casa nas costas a passear
lentamente pelo Jardim.
Eles e mais uma porção de animaizinhos moravam no vergel de um prédio
de apartamentos. Ultimamente o caracol mais reclamava do que conversava e ria
com os outros bichos. Ele estava mesmo muito triste, mas desaparecer sem avisar
nada, preocupou a bicharada do Jardim. Tinha ganhado a fama de resmungão
justamente por esses últimos dias em que era a única coisa que fazia.
Toc, toc, toc. Continuou o tatu-bola batendo na casa do caracol e nada.
Será que ele havia abandonado sua casa, saído pelo vergel sem ela mesmo
e assim os bichos não o teriam reconhecido. Mas todos os bichos do Jardim eram
conhecidos um dos outros.
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O Jardim dos Insetos
Só se...
Só se, não!
Teria ele saído do Jardim? E ainda sem sua casa protetora?
O
seu corpo, como o de todo molusco, é mole, muito mole!
Então Encaracolado estava em perigo!
Seria loucura, puro desespero!
Ultimamente ele reclamava do peso de sua casa, que não podia correr
como os outros no vergel por causa dela. Que não gostava da função que
arrumara no Jardim, que não lhe agradava.
O tatu-bola iria com todas as suas pernas procurar por ele, por todo o
vergel. E ele não era pequeno. Ainda mais para um bicho não muito grande como
o tatu-bola. Bola que de gordo não tinha nada, só parecia uma bola quando
enrolado. Quando esticado e andando, era magro e compacto.
Eram muitas pedras, muitas plantas, irrigadores automáticos, muitas
coisas. Havia algumas plantas maiores onde ele poderia ter subido como, às
vezes, fazia quando estava enfezado.
Quando o tatu-bola viu toda aquela imensidão de cima da pedra mais alta
do Jardim, pensou: só com a ajuda de mais alguém.
Um jardim de bloco pode ser pequeno para um homem ou para uma
criança, mas para um tatu-bola ele é uma cidade. Com muitas coisas que também
existem na cidade dos homens. O vergel ocupava toda a lateral do prédio.
O tatu-bola foi, então, chamar alguém para ajudá-lo, pois, certamente
precisaria.
— O grilo desconfiado que trabalha como correio e mensageiro aqui do
Jardim! Os dois são muito amigos! – deixou escapar para uma mamangaba que
passava e que não entendeu nada.
O grilo morava numa pedra. Uma fenda permitiu que ele entrasse nela e
habitasse toda a sua parte oca.
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Jean Rocha Teixeira Duarte
E lá foi o tatu-bola atrás do grilo. Ele era bem mais rápido que o caracol,
mas mesmo assim demorou um pouco para chegar à Pedra do Grilo como era
chamada.
— Seu grilo! – gritou Bola em frente à pedra.
— O que você quer? Se for carta ou mensagem, hoje eu não trabalho.
Estou de folga. – respondeu Grilado que sempre andava desconfiado.
— É o nosso amigo, o Encaracolado! Eu já bati na casa dele e ninguém
responde. Temo que tenha saído pelo Jardim ou até para fora dele, desabrigado e
desprotegido de sua casa. – explicou Bola.
— Você está louco! Ele não seria tão burro! O corpo dele é a coisa mais
mole desse jardim. Vamos ver se ele realmente não está em casa. – especulou
Grilado desconfiado de que Bola não tenha chamado direito ou batido forte o
suficiente na carapaça de Encaracolado.
— Vamos voltar e ver se ele realmente não está lá dentro ou ali por perto.
– esclareceu o grilo.
— Mas isso levaria muito tempo. Para você é fácil! Você sai pulando e
chega rapidinho, mas para mim é bem mais demorado. – já foi logo avisando
Bola.
— É simples, você vai de carona em mim. Suba. – disse Grilado.
— Você pirou? Eu nunca pulei na minha vida. Eu sei é deslizar com meus
muitos pés por esse chão todo. Pular é coisa para grilo! – explicou o tatu-bola.
— Se você realmente está preocupado com nosso amigo Encaracolado, vai
fazer esse esforço. Depois pés não vão lhe faltar para se agarrar em mim. –
insistiu Grilado.
E assim foram por todo o vergel. Bola agarrado às costas de Grilado que
saltava altíssimo, até chegarem onde estava a casa de Encaracolado.
E os dois gritaram e bateram na casa do caracol até se cansarem.
Realmente Encaracolado não estava em casa. Engraçada aquela situação...
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O Jardim dos Insetos
Um caracol não estar em casa. Ele é a sua casa! Ele nasce com ela!
Mas Encaracolado não estava em sua própria casa!
Agora Grilado tirava os grilos da cabeça e com Bola ainda meio tonto com
a viagem incrível que tiveram, decidiram sair à procura do caracol fujão.
E o grilo confessou:
— Eu posso pular muito, rápido e alto, mas não consigo ver os detalhes no
chão com velocidade. Eu sou vagaroso quando tenho que andar pelo chão.
O tatu-bola também admitiu:
— Eu não sei pular e nem chegar aos lugares rapidamente, mas conheço
todo o chão desse jardim, porque estou sempre deslizando por ele todos os dias.
Nossas forças se completam, mas se arranjarmos mais ajuda conseguiremos
ainda em menos tempo e teremos mais certeza de onde Encaracolado está.
— Vamos pedir ajuda a quem mais pudermos! – exclamou Grilado.
E saíram em busca de quem mais pudesse ajudá-los. Outros bichinhos do
vergel que se sensibilizassem com a história de Encaracolado, o caracol que
abandonou a própria casa. Até que Bola sugeriu:
— A Cabeça, uma formiga saúva, pode nos ajudar. Ela é forte e conhece
bem a parte do Jardim onde fica a Cerca Viva, por onde deve ter passado
Encaracolado, se ele tiver saído daqui.
A formiga saúva e suas companheiras de colônia tinham feito um trato
com os outros bichos: não cortariam as plantas que são do Jardim. Ao invés
disso, podariam a Cerca Viva que protege o vergel e ficariam com as folhas e os
frutos dela como alimento. Além do que, serviriam de vigias para a entrada do
Jardim. Por isso sempre havia alguma pessoa sendo mordida por delas. Eram
pessoas que entravam no vergel para arrancar alguma planta ou que pisavam na
grama. Pássaros que invadiam o Jardim em busca de alimento, ou melhor, de
bichos, também eram ferroados pelas formigas vigias.
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E o grilo grilado foi ao encontro das formigas. De novo com Bola em suas
costas. O tatu-bola tinha os olhos arregalados e as antenas para trás quando o
grilo começava a dar seus saltos incrivelmente altos. Só não caía porque tinha
muitos pés para se agarrar firme.
E os dois chamaram em frente ao ninho das saúvas:
— Cabeça! Dona saúva!
— Cabeça foi chamada junto com mais algumas formigas para resolver
um problema numa das ruas. – disse uma formiga soldado que vigiava o
formigueiro e a Cerca Viva.
— Onde podemos encontrá-la, dona formiga? – perguntou Bola.
— Nunca se sabe onde ela realmente pode estar agora, mas esta estrada dá
no destino inicial delas. – sentenciou a formiga vigia apontando para um
caminho.
Assim os dois decidiram entrar na trilha indicada pela formiga e ver onde
daria o caminho. E lá se foi Grilado com Bola nas costas, pulando altíssimo
como o coração do tatu-bola. A cada pulo o coração de Bola parecia sair pela
boca.
Elas trabalhavam como construtoras de estradas. As trilhas das formigas
eram as estradas do vergel. Essa era a função delas ali, construir as estradas e
deixá-las limpas. Elas trabalhavam junto com um escaravelho, já velho, que
retirava os entulhos maiores das ruas do Jardim. Os bichos do vergel diziam
ultimamente que as ruas estavam um pouco abandonadas por causa do besouro
que já estava prestes a se aposentar e que, às vezes, atrasava o serviço. Era um
trabalho muito pesado para alguém de sua idade.
Mas eram muitas ruas que se ramificavam em mais ruas por todo o
Jardim. Um verdadeiro emaranhado de vias por onde os bichos do vergel iam e
viam em suas atividades.
No meio do caminho rumo onde estava a formiga Cabeça, Grilado teve
outra idéia e contou-a ao tatu.
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O Jardim dos Insetos
— Bola, eu tive uma idéia! Vamos à casa da dona Joana, que fica próxima
daqui e aí perguntamos a ela se viu o Encaracolado. O paradeiro de Cabeça é
imprevisível. O tempo que gastaremos tentando encontrá-la é o tempo que
gastaríamos tentando encontrar Encaracolado. E nós temos pouco tempo.
Joana era uma joaninha que costurava para fora. Era costureira de mãocheia e fazia roupas da cor de seu casco ou de outras joaninhas. Os bichos que as
encomendavam diziam que ficavam muito bonitas.
— Comenta-se que ela sabe de tudo o que acontece no Jardim. Estão
sempre conversando com ela, encomendando capas de chuva que ela tão bem faz.
Ela deve saber se alguém o viu nos últimos dias. – terminou de dizer Grilado.
Foram, então, à casa de Joana, a costureira, para ver se ela sabia do
paradeiro de encaracolado. Ela morava no oco do tronco de um velho bonsai,
numa casa muito simples, mas muito bonita.
— Vieram encomendar capa de chuva também? Estão todos
encomendando-as por causa da época chuvosa que se aproxima. – disse a
joaninha quando os viu.
— Não. Nós viemos te perguntar se você sabe do paradeiro de um amigo
nosso. Nós não o vemos faz alguns dias. – explicou Grilado depois de tanto salto.
— Qual o nome dele? – perguntou Joana.
— É Encaracolado! – respondeu o grilo.
— Ah! Eu o conheço e também sua mãe que me encomendava muitas
roupas quando ele ainda era pequeno. Os animais do Jardim andam comentando
que ele não é visto há dias. – esclareceu Joana.
Os dois agradeceram-na e retomaram a estrada rumo à Cerca Viva, divisa
do vergel com o mundo exterior.
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Para fora do Jardim só as formigas vigias tinham autorização e coragem
de ir. Até o escaravelho, depois de mais velho, dizia que tinha medo de sair.
Mas quem pegaria um grilo que salta tão bem como Grilado caso ele
resolvesse sair do vergel e ir ao gramado em busca de seu amigo de corpo mole e
sem casa? O grilo já era mesmo verde e se camuflaria perfeitamente na grama
bem cuidada do gramado. Bola não era muito grande, e nas costas do grilo nem
chamaria a atenção. Grilado era um grilo de tamanho médio, mas forte. Com o
que Bola tinha a contar, as coisas pareceram bem menos difíceis. Pelo menos
quanto à saída do Jardim.
— Nessas minhas andanças eu conheci um buraco, um túnel que cabe até
você. Ele não leva até de fora do Jardim, mas quase lá. Aí é só mais um pouco,
pois, estaremos bem pra lá da Cerca Viva. – revelou o tatu.
Após conversarem, o grilo e o tatu-bola ponderaram o perigo do gramado,
de onde alguns animais que resolveram sair do Jardim um dia nunca mais
voltaram. A preocupação com Encaracolado falou mais alto e os dois decidiram
encarar a imensidão verde do gramado. Seria uma arriscada aventura em busca
de um amigo que estava triste e agora também sem casa. Um caracol sem casa.
Assim, pensando apenas no amigo, atravessaram a Cerca Viva... A
fronteira do vergel que dava para um mundo desconhecido, o mundo do
gramado, que quase todos os bichos do Jardim temiam. Várias histórias
rondavam aquele lugar. Há muito que os bichos do vergel aprendiam com seus
pais que ali não se ia, que ali existiam monstros. Também plantas carnívoras
cheias de tentáculos prontos a devorar bichos intrusos e inocentes que saíssem do
Jardim. Fora outros monstros indescritíveis, gigantes e maus.
Entre a Cerca Viva do vergel e o gramado havia uma calçada de passeio
de pessoas. Homens, mulheres e crianças que passavam ali a toda hora e que nas
suas arrogâncias acabavam pisando nos bichos pequenos e indefesos. E esse era
mais um mito sobre o mundo fora do Jardim: a Calçada da Morte.
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O Jardim dos Insetos
Segundo os insetos mais velhos do vergel, era impossível atravessá-la sem, no
mínimo, ter a metade do corpo esmagada. E todo mundo reproduzia essa história.
Era muita gente passando a todo o momento, com pressa, correndo. Era como um
mar revolto e traiçoeiro. Pior do que quando entrava no Jardim o jardineiro ou até
gente estranha, sem cuidado algum, e acabava pisando em algum bicho. Ou
quando ligavam o irrigador automático bem forte. O que causava uma verdadeira
tempestade no vergel.
Teriam que escolher o momento certo para atravessar a calçada. Caso
contrário seriam esmagados por um pé humano. Aquilo não parecia uma lenda,
uma história inventada pelos bichos mais velhos do Jardim! Realmente os dois
viram muito perigo naquela calçada! Mas o grilo em dois ou três pulos
atravessou-a e bem rapidamente. Foi só olhar para os dois lados e esticar as
pernas compridas de grilo.
Pronto! Já tinham atravessado o mar revolto de pés humanos. A calçada da
qual ouviram falar quando filhotes: a calçada assassina. Tinham vencido um
medo imenso! E tudo para salvar Encaracolado.
Já no Grande Gramado, Grilado pulava entre a grama verde quando
sentiram como que um terremoto a tremer todo o chão. Tudo balançava. Eram
humanos que corriam pelo gramado! E não era pouca gente. Os humanos que
eles tanto aprenderam a odiar desde filhotes. Aqueles que fabricavam venenos
para matá-los e que colocavam a culpa de todos os males da Terra neles. De
repente estavam ali, quase pisando-os. O único pé humano que conheciam era o
do jardineiro do prédio onde ficava o vergel e o de um engraçadinho que de vez
em quando ia lá buscar uma bola que caia ou roubar alguma planta. Eles
realmente sabiam como odiar os humanos.
De repente, pés os cercavam por todos os lados. Passavam perto deles.
Tremia todo o chão feito um terremoto. Era preciso sair dali!
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— O que é isso? – perguntou Bola a Grilado.
— São pés humanos! Eu não sabia que tantos humanos corriam pelo
gramado. Os bichos do Jardim têm razão. Isso aqui é aterrorizante! Eles são
monstros ferozes. Se sairmos vivos já será bom. – respondeu o grilo enquanto
tudo balançava. Ele dava pulos verticais para ver o quê se aproximava deles.
— É melhor pararmos! Não salte mais, pelo menos por um tempo! Caso
contrário seremos vistos e até quem sabe, comidos. Só pule se algum deles vier
em nossa direção. – sugeriu Bola a Grilado.
— E você pare de pegar essas sementes. O que você quer com elas? –
perguntou Grilado a Bola.
— Vou levá-las comigo! Elas são medicinais e tratam várias doenças que
não se têm tratamento no Jardim! – explicou o tatu ao grilo saltador.
— Bola, você ficou louco? Não se pode entrar com planta alguma no
Jardim. A lei é clara! Se você fizer isso será exemplarmente punido! – explicou
Grilado ao novo amigo Bola.
— Mas essas plantas são diferentes! Elas tratam doenças cujo tratamento é
muito doloroso ou que não se tem no Jardim. – ponderou Bola.
— Eu estou te avisando porque já me sinto teu amigo e não quero te ver
em maus lençóis. Não quero que sejas expulso do Jardim e eu perca outro amigo!
– falou Grilado intrigado em saber se os humanos já haviam se afastado.
Bola era fã de botânica. Gostava e lia muito sobre plantas. A bolsa, que ele
trazia junto à cintura, já estava quase toda cheia de tantas sementes que ele
pegava pelo caminho.
O grilo então subiu na folha de um capim alto e ficou observando se
algum humano vinha na direção deles. Após algum tempo a correria acabou e
com ela o terremoto que sacudia tudo no gramado. Grilado não via mais
ninguém. Nem uma pessoa sequer. Deu pulos altos para ver ao redor e longe e
então disse:
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— Os selvagens se foram!
— Animais irracionais! – exclamou Bola.
— Pular aqui é fria! Teremos que seguir andando por mais que eu seja
lento quando não posso saltar. Se dermos um pulo seremos vistos e comidos por
esses monstros. – explicou Grilado a Bola.
Quando achavam que já era suficiente, por aquele dia, quase serem
pisados por muitos e imensos pés humanos, deram conta de que um barulho se
aproximava deles. Como uma pancada aumentando de força. Eram pancadas que
se sucediam uma atrás da outra sem parar.
— Ei, vocês! Venham para cá! Subam em mim! Rápido, rápido! – disse
um bicho avermelhado.
— Quem é você e por quê? – disse Bola ao bicho que os chamava.
— Eu sou a Milpés! Sou a lacraia taxista e conheço isso aqui melhor do
que vocês. Andem logo, venham! É uma ave que está ciscando aqui perto. Ela
vai acabar encontrando-os. Subam em mim! Comigo ela não mexe porque eu sou
venenosa. – enfatizou a lacraia.
E eles foram. Subiram na lacraia. Quando a ave viu aquele bicho vermelho
se mexendo rapidamente, fugiu com medo. Saíram, então, deslizando gramado
afora no bicho envenenado. Milpés se mexia toda ao andar. Os dois passageiros
já estavam enjoados e tontos. Até que Grilado perguntou à lacraia:
— E como saberemos se você não está nos levando para nos comer?
— Eu não vou comê-los! Não farei isso de dó. Porque sei que vocês são
aqueles bobos de jardim que não sabem de nada do mundo aqui fora. Só pelo
jeito de vocês, eu sei que saíram de algum jardim e, provavelmente, daquele
prédio de humanos.
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O tatu-bola e o grilo não gostaram muito de terem sido chamados de
bobos. Fizeram uma cara de reprovação para a lacraia. Mas ainda sentiam medo
dela. Afinal quem não teria medo de uma lacraia; uma lacraia de verdade, como
as que se falavam no vergel? O bicho era mesmo um monstro. Com relação a
isso os mais velhos do Jardim não mentiram. Por mais que eles não lembrassem
mais como era uma lacraia. Eram as tantas descrições que confundia. Só sabiam
que era assustadora.
— O que vocês fazem fora do Jardim? Aqui é muito arriscado para bichos
inocentes como vocês! – perguntou Milpés.
— Estamos à procura de um amigo. Um amigo que saiu do Jardim e pior
sem levar sua casa. – disse Grilado à lacraia.
— Como é? Sem levar sua casa? – disse Milpés.
— Isso! É que ele é um caracol e não levou sua casa, sua carapaça
protetora. – respondeu Grilado.
— Eu nunca vi isso! Um caracol que abandona sua casa! Vocês bichos de
jardim são mesmos estranhos. – brincou a lacraia.
— E você come seus passageiros? – provocou o tatu a lacraia respondendo
a sua provocação.
— Se vocês quiserem, eu posso comê-los. Aqui fora também há regras e
as lacraias não podem comer seus passageiros. Até mesmo porque não teremos
mais a quem transportar. – respondeu a lacraia taxista de gramado.
— Mas eu darei a vocês uma carona. Só porque eu também tenho amigos
e também me preocupo com eles. – acalmou os dois Milpés.
— A senhora faria isso por nós? – perguntou, com todo o respeito do
mundo, Bola.
— Farei. Mas também não precisa me chamar de senhora que eu ainda
nem filhotes tive. Subam de novo e os levarei por todo o gramado. Se aparecer
algum passageiro, como sou grande, eu o carrego também. E de desvio em
desvio de caminho, um dia nós chegaremos lá. – observou Milpés.
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E lá se foram os três por toda a imensidão do gramado. Por toda mesmo!
Toda vez que um passageiro acenava para a lacraia era mais um desvio de rota.
Se o passageiro precisasse voltar, voltavam todos. Às vezes, estavam quase por
terminar uma das muitas ruas do gramado quando aparecia um passageiro. Aí era
fazer a vontade dele e desviar a rota de novo. Bola e Grilado aprenderam bem
como se trabalha uma lacraia taxista de gramado.
Rodaram o Grande Gramado o dia inteiro. Quando as lacraias taxistas
trabalham sem precisar procurar por um caracol sem casa e perdido é menos
cansativo. Param para descansar em seu ponto quando não há passageiros. Mas
eles tinham que procurar pelo caracol fujão. E quanto mais rodavam, mais
passageiros encontravam. E cada vez mais a lacraia gostava. Ela nunca havia
ganhado tanta docilla num dia só. Docilla era uma minúscula frutinha que, por
ser doce e suave, funcionava como a moeda local.
Só que já haviam procurado por todo o gramado e nada. Perguntaram a
todos passageiros e a todos pelo caminho e ninguém tinha visto Encaracolado.
Encaracolado não estava pelo chão do Grande Gramado. No chão e pela grama
definitivamente eles sabiam que o caracol não estava.
— Talvez o caracol nunca tenha passado por aqui. O gramado pode ser
grande, mas não é tão grande assim se o percorrem todo e se pergunta a todos
pelo caminho como fizemos. Eu acho que o amigo de vocês realmente não saiu
do jardim. Só há mais uma possibilidade. – pensou melhor Milpés.
— Qual? – perguntaram Bola e Grilado juntos.
— Ele estar no alto de algum arbusto ou árvore. – disse a lacraia.
— Como vocês devem saber, não é comum um caracol subir em arbustos
ou árvores. Em arbustos e árvores eu não subo, não sei subir. Vocês vão ter que
contratar os serviços de um outro profissional.
— Contratar? Mas nós não temos como. Saímos do Jardim só com a roupa
do corpo. – suspirou Bola.
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— Eu não sei se ele fará a mesma gentileza que eu fiz a vocês. Se bem que
foi bom para mim também. Nunca consegui tantos passageiros. Mas vocês
devem tentar, antes que anoiteça. Animais de jardim soltos, no Grande Gramado
e à noite, são presas mais do que fáceis.
— E quem é esse que nós devemos contratar? – indagou Grilado.
— O Dourado. Ele é um besouro que fica junto ao laguinho e que também
trabalha como taxista. Só que em táxi aéreo. – disse Milpés.
— Você sabe quanto ele cobra? – perguntou Bola.
— Não muito. Mas eu os levo até lá. É caminho para mim e sozinhos por
esse gramado não durariam muito tempo. Virariam, no mínimo, comida de
pardal. – falou mais uma vez a lacraia solidária.
Milpés os levou ao laguinho do gramado, que na verdade funcionava
como um parque para humanos. O laguinho foi construído para aliviar um pouco
o calor dos que ali iam. Ele propiciou a morada para uma série de animais que
dependem da água. Milpés explicou aos dois que o maior perigo do parque ficava
justamente ali. São os muitos sapos, rãs e pererecas que habitam o laguinho, que,
aliás, é muito bonito. Todos acham isso. Os humanos e os animais do Grande
Gramado. Pelo menos é o que se comenta.
Agora o besouro dourado, sapo nenhum pegava. Nem tentava. Por isso ele
se dava ao luxo de viver ali. Próximo de onde muitas coisas aconteciam.
— Esses dois estão precisando de um vôo com você. – disse Milpés ao
besouro dourado quando chegou ao lago.
— Para onde vocês vão? – perguntou Dourado a Bola e Grilado.
— Na verdade eles querem um vôo panorâmico de onde se dê para ver
bem a copa dos arbustos e das árvores. Eles estão à procura de um amigo que
saiu do jardim do prédio. – respondeu antes dos dois, Milpés.
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— Um amigo que saiu do jardim do prédio? Os bichos que saem de lá não
duram uma flor de hibisco ao vento aqui fora! Isso quando passam da calçada.
Quanto mais estarem na copa de algum arbusto ou árvore. Como é esse fujão? –
perguntou o piloto besouro dourado.
— É um caramujo, mas sem a casa nas costas. – disse Bola.
— Como é? Um caramujo sem a casa nas costas? Que história confusa!
Os bichos de jardim quando se metem por aqui só dá nisso. Aparecem com
histórias esquisitíssimas ou se perdem para sempre. – provocou Dourado.
— Primeiro o pagamento! E me digam logo todo o trajeto para que eu
possa calcular direito o valor. Outra coisa: eu não agüento vocês dois nas costas!
Eu só posso levar um de cada vez. E duas viagens são duas cobranças. –
continuou o besouro dourado.
— Mas como? Nós teremos que nos separar? Se nós nos separarmos num
lugar como esse, arriscamos a nunca mais nos vermos! – perguntou espantado
Grilado.
— Concordo! Mas não tem só eu trabalhando com táxi aéreo aqui no
gramado. Eu conheço uma libélula que também trabalha nisso. É a Lila. –
explicou Dourado.
— Mas nós não temos como pagar um vôo, quanto mais dois. – admitiu
atordoado Bola.
— Tem sim! Existe um jeito de vocês me pagarem. E não é do jeito
tradicional! – exclamou o besouro dourado deixando a todos intrigado.
— Como? Diga, então! – indagou Bola.
— Fala logo! – disse Milpés.
— Tem alguma coisa de errado nisso! – falou Grilado, baixinho, para
Bola.
— Olhem, trabalhando como piloto de táxi aéreo aqui fora, no gramado,
eu já vi coisas bonitas. Mas nada comparado com o que falam do jardim onde
vocês moram. As libélulas dizem que lá é muito bonito, lindo!
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Dizem que há uma fonte lindíssima onde bate sol o dia inteiro. Que existem
bromélias, violetas, orquídeas e todo tipo de planta rara. Os bichos vivem em
harmonia uns com os outros e todo mundo ganha bem pelo que faz. Eu gostaria
de conhecer a cidade de vocês. Esse jardim que todo mundo fala bem. É só isso,
não arranca pedaço de ninguém! Esse é o meu pagamento! Essa é a minha
condição! Aliás, é bem provável que o caracol esteja mesmo sobre algum arbusto
ou até mesmo em alguma das árvores maiores. Deve ter ficado com medo do
mundo aqui de baixo e subiu para se esconder. Se vocês aceitarem a minha
condição, eu os levo a cada galho de arbusto e árvore. E aí? O que vocês me
dizem? – perguntou o besouro dourado curioso.
— Ninguém de nós, que mora no Jardim pode levar para lá quem não
tenha nascido no próprio Jardim. O que vocês não sabem é que quem vem do
Jardim aqui para o gramado são criminosos e infratores. Bicho que fez coisa
errada lá. Nós não podemos sair do Jardim por nada. Salvo raríssimas exceções
onde o governo do Jardim já tem uma equipe especial para isso; para sair do
Jardim e voltar sem que nada lhes aconteça. – explicou Bola.
— Vocês são dessa equipe? – perguntou Milpés.
Foi então que Bola e Grilado caíram no riso e não conseguiam parar.
— Nós não tínhamos como ser nada. Nós não somos de equipe alguma. Só
estamos atrás do nosso amigo. – esclareceu Grilado.
— Então vocês aceitam?! – perguntou Dourado.
O tatu-bola e o grilo pediram um tempo a sós para pensarem melhor.
Conversavam, faziam caras e bocas e voltavam a discutir mais.
— E quanto tempo você quer passar no Jardim? – voltou e perguntou Bola
ao besouro.
— Só o tempo de eu conhecer tudo! – respondeu Dourado.
— Só o tempo de você conhecer tudo é tempo demais! Se nos pegarem
com estranhos no Jardim é capaz de também sermos expulsos! E a libélula vai
querer entrar também? – explicou e depois perguntou Bola.
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— Ela não precisa, já conhece tudo do alto. Ela pára no ar e fica
apreciando a paisagem. Aliás, só ela consegue isso. – disse Dourado.
— Você só quer conhecer o Jardim e depois vir embora? – perguntou
Bola.
— Isso. Existem muitos detalhes belos que eu desconheço. Eu, como não
tenho a capacidade de parar no ar como a libélula, só vi até hoje o que me
permitiu o meu vôo rápido e de pouca autonomia. Quando eu passo reto no ar,
não posso ver todos os detalhes de que tanto falam. – explicou Dourado.
— Então aceitamos. Se não fosse por nosso amigo não aceitaríamos isso.
Só por que ele pode estar correndo perigo. – falou em nome dos dois, Grilado.
E os dois se prepararam para mais uma viagem. Antes foi na lacraia
taxista que dava voltas o tempo todo parecendo um touro de rodeio humano.
Agora seria num besouro e numa libélula.
Os três foram até ali perto em busca de Lila, a libélula piloto. Milpés ainda
transportando os dois viajantes nas costas a fim de protegê-los, e Dourado
voando junto deles.
Quando encontraram Lila, Dourado explicou a ela o que acontecia e o que
queriam. Seria uma troca de favores entre Dourado e Lila. Ele realmente ficaria
devendo uma à libélula. Tudo para que ele pudesse conhecer o Jardim dos
Insetos. O vergel tinha esse nome mesmo que nem todos os bichos que viviam lá
fossem insetos, mas porque a maioria deles era de insetos. Inclusive os
governantes.
Após uma conversa entre Dourado e Lila, foi acertada a viagem. Uma
viagem e tanto! O tatu-bola que só deslizava pelo chão, agora voaria pela
primeira vez. E o grilo que só saltava, agora voaria de carona num besouro cor de
ouro.
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O besouro tinha umas protuberâncias na cabeça, próximas ao chifre, onde
ele pedia que Grilado segurasse durante o vôo. Grilado era um grilo que apesar
de desconfiado era absolutamente destemido. Sempre fora assim, desde pequeno.
Um grilinho invocado e que sempre saltava mais do que qualquer outro. Já Bola
se segurou mesmo no pescoço da libélula. Com tantos pés, a pegada foi das mais
firmes.
De repente Dourado e Lila começaram a bater asas. Era tão rápido e
barulhento que faria medo a um insetinho bobo. E o zum, zum, zum começou
num arranque impressionante. A libélula voava e fazia curvas muito rápidas. De
repente ela parava de uma vez.
Já o besouro dourado apesar de voar fazendo muito barulho, era mais
seguro. Fazia curvas previsíveis e seguras. Melhor para Grilado porque Bola
além das antenas para trás ficou de olhos fechados a metade do tempo para não
ver o perigo que corria.
Uma coisa eles haviam esquecido de perguntar aos pilotos antes daqueles
vôos: se algum bicho já tinha morrido do coração ou caído de cima do besouro
ou da libélula. Decolaram ainda se despedindo de Milpés, a lacraia de bom
coração. Um coração que certamente nunca se contagiará por seu veneno.
Foi muito rápido até chegarem ao primeiro arbusto, um hibisco amarelo
todo florido. O que um caracol faria num hibisco? Eles vistoriaram tudo e não
acharam nada. Foram para o próximo arbusto imediatamente. O maior medo
deles era não conseguirem chegar a tempo no vergel. Além dos perigos no
gramado ainda tinha o problema da Lei da Noite. Ela deveria ser rigorosamente
seguida por quem morava no Jardim dos Insetos. A lei dizia que após as
mariposas começarem a voar, quando a escuridão já se impunha, nenhum animal
poderia se aproximar da Cerca Viva. Isso para se evitar surpresas desagradáveis
enquanto os insetos dormiam. Qualquer animal que
O Jardim dos Insetos
21
O Jardim dos Insetos
fosse encontrado próximo à Cerca após o sol se pôr era encarado como intruso. E
eles não queriam ser encarados como intrusos por aquelas formigas de
mandíbulas imensas, as saúvas. Muito menos ficar a mercê dos perigos do
Grande Gramado. Era prudente serem o mais breve possível na vistoria de todas
as plantas.
De planta em planta os quatro não viram sinal algum do caramujo sem
casa. E quando perguntavam pelo caminho se alguém o tinha visto, riam deles ou
achavam que era uma piada de mau gosto. Casas sem caramujo existem. Quando
eles morrem sobram apenas a carcaça. Mas caramujo sem casa nunca ninguém
ali havia visto e se tivesse já teria virado notícia.
Para fora do vergel com a casa nas costas era pouco provável que
Encaracolado realmente tivesse saído. Se fosse assim ele ainda estaria agora, no
máximo, próximo à calçada. Devido ao peso de sua casa, ele costumava ser
muito lento. Foi por isso que ele se revoltou e fugiu. Tudo ainda estava muito
confuso na cabeça de Bola e Grilado. E provavelmente muito mais ainda na
cabeça de Encaracolado. E agora que todos os arbustos já tinham sido vistoriados
pelos quatro, só restava uma coisa: ir até as árvores.
— O quê você pega nessas plantas? O que você quer com isso? – indagou
o besouro a Bola.
— São sementes de plantas incríveis. Vocês não sabem o tesouro do qual
dispõem! – explicou o tatu-bola.
— Bola, não pegue mais sementes! Jogue isso fora! Você vai se encrencar
levando isso para o Jardim! – pediu de novo Grilado, agora quase implorando.
— O quê?! Vocês não podem ter desse mato no Jardim? Lógico... É só um
mato ordinário! – espantou-se Dourado com o fato.
Jean Rocha Teixeira Duarte
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Jean Rocha Teixeira Duarte
A inspeção das árvores menores, algumas ainda em crescimento, foi
rápida. Foram logo rumo às duas mais altas. No caminho rumo à mangueira,
Bola se deu conta de uma coisa que ainda ninguém havia pensado: Encaracolado
assim como eles, também podia ter pegado um táxi com algum daqueles animais
que trabalham com isso. Então ele poderia sim, estar no alto de alguma das
árvores.
— Aqui eu não vi! – respondeu a vespa à Lila quando ela lhe perguntou se
havia visto o caracol sem casa na mangueira onde ele habitava.
— Nem ouvi falar! – complementou o inseto que já estava construindo sua
casa há duas semanas naquela árvore.
Assim foram ao eucalipto já com quase certeza de que o caramujo não
estava no gramado. Ou ele nunca saíra do vergel ou já havia virado comida de
bicho de gramado. Os dois amigos já estavam já estavam desiludidos quanto
àquilo. Teriam arriscado suas vidas sem que Encaracolado houvesse saído do
Jardim? Ou perderam mesmo um amigo daquela forma trágica? Um inocente
bicho de jardim de prédio que se dera muito mal ao tentar viver naquele lugar
hostil que era o Grande Gramado.
Voaram então direto para o eucalipto, a outra das duas árvores maiores.
Inspecionaram toda a planta e estava constatado: ou Encaracolado realmente
nunca saíra do vergel ou já estava morto. O besouro agora queria o cumprimento
da promessa que lhes fizeram os dois viajantes. Queria conhecer o Jardim, o
Jardim dos Insetos.
O Jardim dos Insetos
23
O Jardim dos Insetos
II
— Palavra dada é promessa cumprida! – disse Bola ao besouro.
— Eu não tenho interesse em entrar no Jardim. Eu já conheço tudo do
alto! – disse Lila.
— Pois eu quero vê-lo e senti-lo. Só do alto não basta. – disse
exigentemente Dourado.
E lá se foram os quatro para a Cerca Viva, a muralha que protegia o vergel
dos bichos rasteiros do mundo externo.
A Cerca Viva não era uma Cerca Viva comum. Era muito mais densa,
agrupada. De forma que funcionava mesmo como uma muralha. Tudo planejado
e muito bem executado em mutirão pelos animais do Jardim, numa época em que
as invasões eram constantes. Os bichos do Jardim eram constantemente comidos
por bichos que vinham tanto do gramado quanto de outros lugares. Assim a
construção da Cerca Viva foi uma idéia que manteve os animais do vergel até
hoje como os mais protegidos e organizados que se
Jean Rocha Teixeira Duarte
24
Jean Rocha Teixeira Duarte
conhece. E qualquer invasão, depois dela pronta, seria inútil. Eles já estavam
mais do que prevenidos contra os males do mundo exterior”, como diziam os
governantes.
E como o besouro Dourado faria para entrar no Jardim sem ser notado?
Ou melhor, como os três fariam para entrar sem serem pegos? Animais estranhos
que tentavam entrar no vergel eram imediatamente atacados pelas Formigas
Vigias. E animais do Jardim pegos entrando nele sem autorização de saída eram
presos imediatamente e depois processados. O resultado: eram sempre expulsos.
A manobra que tiveram que fazer para sair do vergel já tinha sido absurda.
Agora precisavam de outro plano, só que para passarem pela Cerca Viva, de
volta para casa. As formigas saúvas eram espertas e não brincavam em serviço.
Honravam bem a fama de trabalhadeiras que as formigas têm. Eram vivas! Tanto
de dia quanto à noite. Pareciam ainda mais ativas à noite. Por isso eram
consideradas essenciais para a vida em comunidade no Jardim. Eram sempre
elogiadas e homenageadas pelo governante em público.
Só que surgia mais um problema. Após muito pensarem, ficou decidido
que Lila seria indispensável para que o plano desse certo. E mais: ela teria que
participar ativamente. Dourado permanecia por perto mais ouvindo do que
contribuindo na elaboração do plano.
As saúvas só se afastavam da Cerca Viva por um motivo: para reparar as
estradas quando isso impedia o bom funcionamento do vergel. Mas mesmo
assim, obviamente, ainda ficavam algumas formigas na vigia da Cerca. Embora
em menor número. Assim o plano teria que ter duas partes. A primeira: fazer
com que parte das saúvas se afastasse do formigueiro rumo a alguma estrada. A
segunda: fazer com que as formigas restantes se ausentassem da entrada do ninho
que ficava junto à Cerca.
O Jardim dos Insetos
25
O Jardim dos Insetos
A dificuldade imposta para se entrar no Jardim fazia suas penas
aumentarem mais ainda, caso fossem capturados. Se fossem pegos certamente
iriam a julgamento. Seriam processados por uma série de delitos que tiveram que
cometer. No início para salvar um amigo, agora para voltarem ao vergel.
Precisavam salvar a si mesmos. Não saberiam viver naquele gramado. Não
durariam muito tempo. O que precisavam fazer para entrar de volta no Jardim os
comprometia mais ainda, mas era preciso. Sabiam que tudo acontecera por uma
boa intenção.
O plano era o seguinte: Lila chamaria a atenção de parte das formigas
bloqueando a passagem em algumas estradas. As saúvas restantes, que ficavam
junto ao formigueiro e à Cerca, também sobre a Cerca, seriam despistadas por ela
depois. Lila soltaria em pleno vôo alguns torrões de terra e caroços de frutas
sobre as estradas escolhidas. Depois, quando parte das formigas já tivesse saído
para reparar as estradas, ela despistaria a atenção das restantes fazendo-se de
interessada em morar no vergel. Perguntaria às Formigas Vigias o que se deve
fazer para morar naquele lugar bonito.
Após tudo planejado e ensaiado lá se foi Lila “bombardear” as estradas da
cidade que era o Jardim dos Insetos. Começado o despejamento dos torrões de
terra e dos caroços, muito bem escolhidos para que não machucassem ninguém e
não causassem danos maiores, logo as formigas foram avisadas. Lila teria que ser
rápida, pois, faltava pouco para escurecer e ela ainda teria que fingir para as
saúvas que ainda ficassem junto ao formigueiro e à Cerca que queria morar no
vergel.
As formigas saíram rumo às estradas interditadas pouco tempo após Lila
ter começado seu ataque calculado. Quando a libélula percebeu que a primeira
parte do plano dava certo, foi para a Cerca despistar as formigas que ainda lá
estavam com seu falso interesse em morar no Jardim.
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Jean Rocha Teixeira Duarte
— Ei, ei, como se faz para morar nesse Jardim? Eu estou à procura de um
lugar assim faz tempo! – disse Lila às saúvas que restaram junto à Cerca.
— Qual o seu nome libélula? – perguntou uma das formigas parecendo
mais importante do que as outras.
— É Lila! Eu tenho interesse em morar num lugar tão organizado e
civilizado. – respondeu a libélula.
— Agora se está aceitando animais que não sejam do Jardim, desde que
não sejam infratores. Aproxime-se e vamos conversar... – continuou a formiga.
A libélula sabia que não poderia ser presa de fora do Jardim, aquilo seria
ilegal. Assim se aproximou.
— A senhora está presa! – exclamou a formiga com jeito de importante
enquanto pulava formiga de todos os lados sobre Lila, segurando suas asas.
— Vocês não podem me prender fora do Jardim, eu não estou na
jurisdição de vocês. – observou Lila.
— Agora está! – disse a formiga puxando-a, junto com as outras, para
dentro do Jardim.
Pronto! O plano sofria uma baixa terrível! Lila estava presa! Naquela
confusão toda entraram sem serem vistos Bola, Grilado e Dourado.
— Você é uma transgressora, tentou danificar nossas estradas jogando
pedras lá de cima! Vocês bichos de mato, de gramado, têm inveja do nosso
jardim, de nós que moramos aqui. Vocês são mal educados. Bárbaros! Mas você
será devidamente julgada e penalizada. – prenunciou a formiga com jeito de
importante e que agora Lilá descobria ser a delegada.
— Eu sempre desconfiei do jeito de vocês libélulas. Ficam nos
observando lá de cima, paradas no ar, enquanto nós não podemos fazer nada. Eu
sabia que vocês bolavam um plano para nos atacar. – completou a saúva
delegada.
O Jardim dos Insetos
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O Jardim dos Insetos
— Vocês não entendem? Eu fiz por bem! Pelo bem de um conhecido de
vocês! – tentou defender-se Lila.
— O quê? Você nos ataca e diz que foi por bem? Você é uma infratora! O
resto você explica quando for interrogada. – falou mais uma vez a formiga
delegada.
As formigas conduziram Lila a um lugar que ela não tinha a menor idéia
de onde ficava. Ela era carregada por inúmeras saúvas. Suas asas eram seguras.
Assim ela foi conduzida por todo o vergel. Era de tardinha e todos os bichos
assistiam àquela cena. A libélula que havia bombardeado algumas ruas do Jardim
causando confusão na cidade já estava presa. As formigas saúvas gostavam de
manter a fama de competentes quanto à manutenção da ordem no vergel. Eram
mais do que eficientes. Chegavam a parecer perfeitas. Mas dessa vez deixaram
três intrusos entrarem no Jardim...
As saúvas prenderam Lila, mas o tatu-bola, o grilo, e o besouro dourado
passaram sem serem percebidos. Por mais que isso tenha custado a captura de
Lila ou até a sua vida. Talvez os três tenham sido os primeiros a conseguirem
furar o bloqueio das formigas. A Cerca Viva parecia uma muralha intransponível.
Muito densa e vigiada por saúvas espertas e competentes. Mas lá estavam os três
dentro do jardim, o Jardim dos Insetos.
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Jean Rocha Teixeira Duarte
— Vamos! Entre nessa carapaça ou você será preso. – disse Grilado
enquanto o besouro dourado se espremia todo para passar pela entrada da casa de
caracol.
Essa foi a maneira encontrada por Grilado e Bola para que Dourado não
fosse delatado por alguém: disfarçar-se de caracol.
— Eu não caibo aqui dentro direito! – resmungou Dourado.
— Cabe, sim! Você agora é um caracol. Pelo menos até chegarmos a minha casa.
Lá você volta a ser um besouro dourado como sempre foi. – observou
Grilado.
Foram pelo vergel, os três, Bola, Grilado e Dourado dentro de uma casa de
caracol.
— Credo! Isso é de um caracol morto! Morreu alguém aqui dentro! Eu
estou numa casa de defunto! – reclamou Dourado.
— É para você aprender a largar de querer ser o mais esperto de todos.
Todo mundo morre um dia e o dia desse caracol já chegou. Se você não se calar e
passar a andar como um caracol, é você quem vai morrer nas mãos das aranhas.
A casa não está com cheiro ruim porque esse caracol já morreu faz muito tempo
e a chuva já lavou essa casa várias vezes. – disse Grilado.
— Ponha meu chapéu na cabeça e trate de andar bem devagar. Caso você
tente se apressar nós seremos percebidos e presos. – disse o tatu-bola.
— E para que o chapéu? – perguntou Dourado.
— Para que não vejam que as suas antenas são de besouro e não de
caracol. – respondeu Bola.
E o besouro dourado foi cortando o Jardim imitando um caracol.
Reclamava e reclamava, mas não adiantava.
— Ai! Ai! Eu não agüento mais! Minhas costas doem muito, dói tudo o
que poderia doer. – dizia Dourado.
O Jardim dos Insetos
29
O Jardim dos Insetos
— É só um esforçinho para salvar nossas vidas. As nossas e a sua
também. – persuadiu de forma irônica Grilado.
— O seu problema foi achar que porque era bonito também era esperto. E
são coisas diferentes, Dourado. – explicou Bola.
— Nós, animais de jardim, somos bobos lá fora. Vocês, animais de mato
são bobos aqui dentro. Vocês nos combatem lá fora com suas selvagerias. Nós os
combatemos aqui dentro com nossa organização e disciplina. – falou Grilado.
Após andarem muito e pararem pouco, os três chegaram à Pedra do Grilo,
a casa de Grilado. Bola e Grilado cansados. Dourado precisando ser puxado de
dentro da casa do caracol e depois carregado até a cama de tanto cansaço.
Dormiu durante dois dias só bebendo um pouco de água e comendo muito pouco.
O besouro falava coisas sem sentido enquanto dormia. Ele claramente delirava de
tanto cansaço. Foi uma jornada e tanto pelo gramado e depois já dentro do
vergel.
“Onde eu estou? Que lugar é esse? Que dia é hoje?”. Assim acordou
Dourado. Perguntando muito, e todo confuso. Parecia que havia dormido um
século e não dois dias.
Grilado explicou-lhe o que havia acontecido, onde estava e que dia era
aquele. O besouro curioso realmente havia se dado muito mal. Teria virado um
caracol forçadamente. Dourado fez Grilado prometer que nunca contaria aquilo a
ninguém.
— E onde está o tatu-bola? – perguntou Dourado.
— Provavelmente trabalhando ou na casa dele. – respondeu Grilado.
— E você porque não foi trabalhar? – perguntou de novo o besouro que
reluzia feito ouro.
— Eu não pude. Se você acordasse sozinho aqui em casa poderia ter nos
causado problemas. Como ter saído por aí achando que é um de nós, um bicho de
jardim. – respondeu Grilado.
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Jean Rocha Teixeira Duarte
— E como eu me recuperei tão rápido? Eu estava absolutamente cansado
e de repente me sinto revigorado e forte de novo. – continuou perguntando
Dourado.
— Foram as sementes que Bola pegou no gramado. – respondeu o grilo.
— Nós fizemos um chá com algumas delas e lhe demos... Na última vez
que você acordou delirando. Sementes, aliás, que ele não deveria ter esquecido
aqui em casa, porque isso é crime. Portar plantas que não são daqui é proibido. –
continuou Grilado.
O grilo decidiu então sair à procura de Bola para que ele fosse a sua casa
retirar as sementes que teoricamente teria esquecido. Ir aonde o tatu morava e
onde provavelmente estaria. Bola trabalhava próximo a sua casa como mestrecuca especialista em doces. Com as madeiras que só ele sabia encontrar, fazia
doces deliciosíssimos. Não por acaso eram deveras procurados. Encontrava as
madeiras certas, com a fermentação exata. Detinha um segredo que pouquíssimos
conheciam. Assim como os melhores queijeiros, os melhores fabricantes de
vinho e os melhores caçadores de trufas humanos.
Grilado, desconfiado que era, preferiu não carregar as sementes, a prova
do crime, com ele.
— Bola quem trouxe isso, ele que as carregará. Eu lhe disse que não as
pegasse, que seria problema depois. – falou o grilo ao besouro enquanto se
arrumava para ir ao encontro do amigo tatu-bola.
— Você, por favor, não saia de casa. Nunca tivemos um besouro cor de
ouro aqui! – completou com uma recomendação Grilado.
No meio do caminho Grilado encontrou um amigo em comum dele e
Bola: Bourbon. Uma borboleta toda cheia “de não me toques” e metida a
francesa a quem Grilado perguntou pelo paradeiro de Bola. Bourbon só provava
os melhores néctares do Jardim. Só de flores extremamente cheirosas. Também
os conseguia para Bola, para seus doces.
O Jardim dos Insetos
31
O Jardim dos Insetos
— Bourbon, você viu o Bola? – perguntou Grilado.
— Sim, conversamos há pouco aqui mesmo. Ele passou apressado. –
respondeu Bourbon.
— E onde ele está agora? – perguntou o grilo também apressado.
— Ele me disse que iria à casa da costureira Joana encomendar uma capa
de frio. – completou a borboleta exigente.
Grilado foi imediatamente à casa da joaninha costureira falar com o amigo
tatu-bola. Chegando ao bonsai onde morava a costureira, encontrou o lugar
repleto de moradores. Todos perguntavam e falavam ao mesmo tempo. A casa de
Joana era sempre utilizada pelos insetos quando eles queriam saber alguma coisa
de importante que havia acontecido dentro ou fora do vergel. E Grilado já sabia
que algo havia acontecido de muito importante. Supôs que fosse a história das
estradas obstruídas por uma libélula que atirara coisas em pleno vôo.
— Ela já foi presa? – perguntou um dos insetos que ali estava.
— Já! As saúvas suspeitam de que havia comparsas. – respondeu outro em
meio à confusão.
Na mesma hora o coração de Grilado ameaçou sair pela boca. Ele que era
de um verde escuro ficou cor de palha de tanto medo. Se descobrissem que ele
era um dos comparsas o prenderiam ali mesmo. Depois o levariam sob pancadas
até o Buraco das Saúvas, como era chamado o lugar de reclusão temporária de
suspeitos.
De repente, Grilado viu no meio da confusão o amigo tatu-bola. Bola
perguntava e respondia a muitos. O grilo foi disposto a tirá-lo dali para conversar
em particular com ele. Os muitos insetos junto à porta da costureira faziam com
que Grilado se sentisse num discurso político que, às vezes, acontecia no Jardim.
O grilo tentava chegar perto de Bola que agora julgava ser o tatu-bola mais
fofoqueiro do mundo. Grilado sentiu raiva dele e teve a impressão de que sempre
soubera que o tatu fosse interessado na vida alheia. Parecia que todas as
perguntas que ele já fizera ao grilo foram mexericos. Mas Grilado após muito
esforço conseguiu alcançar Bola.
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Jean Rocha Teixeira Duarte
— Venha comigo agora! – disse Grilado a Bola.
E saíram os dois do meio da confusão para um lugar onde ninguém os
ouvisse.
— Eu todo preocupado com você, com suas sementes e você aqui
fuxicando. – falou o grilo a Bola.
— Preocupado comigo? Você estava era preocupado com você! Com
medo das sementes! Cadê elas? – perguntou Bola.
— Oras, lá em casa. Você acha que eu sairia com aquilo comigo? –
respondeu Grilado.
— Você realmente é muito corajoso! – provocou o tatu-bola.
— Sou mesmo! Por ter saído do Jardim, por ter sobrevivido àquilo! Nós
estamos numa enrascada e você preocupado com capa de chuva?! – perguntou
indignado o grilo.
— Oh grilo desconfiado! Eu vim aqui investigar até onde sabem do nosso
envolvimento com Lila. – explicou Bola.
— Envolvimento com Lila? E o que aconteceu com ela. – indagou Grilado
espantado.
— Grilado, Lila foi presa quando entramos no Jardim! Está presa e será
julgada por tentar destruir o Jardim! – enfatizou o tatu-bola.
— Você está brincando!? – espantou-se o grilo quase não acreditando.
— Brincando? Por que você acha que nós entramos tão fácil? Porque Lila
foi presa e gerou todo um tumulto que permitiu que ninguém nos visse. A capa
de chuva foi um pretexto para que eu pudesse conversar com a costureira sem
levantar suspeitas. Eu não sabia que isso aqui já estava repleto de bichos. –
continuou explicando Bola ao grilo que agora se sentia desesperado ao invés de
raivoso.
— E o que sabem sobre nós, sobre a nossa saída? – perguntou Grilado.
O Jardim dos Insetos
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O Jardim dos Insetos
— Nada, mas suspeitam que ela poderia não estar sozinha. Ou seja, que
havia nós três. – respondeu Bola impressionado com a situação que se
apresentava aos dois.
— E se alguém tiver nos visto e ainda não falou nada? – perguntou o grilo.
— É disso que eu tenho medo! – respondeu Bola.
— E o pior! E se Lila for condenada à morte? Ela estava só ajudando! Não
tinha nada a ver com a história. Entrou nisso pelo Dourado. Agora o porquê nós
não sabemos. Vamos para minha casa e lá decidiremos juntos, os três, o que
fazer. – analisou Grilado.
— Eu só deixei as sementes em sua casa porque a minha é muito pequena.
A sua dispõe de um quintal imenso. – esclareceu Bola enquanto iam.
O trajeto rumo à casa de Grilado, a Pedra do Grilo, como era conhecida
pelos insetos do vergel, foi rápido e aos pulos. Mais uma vez Bola nas costas de
Grilado numa viagem saltitante em que chegaram em pouco tempo.
— Eu não quero ter que passar de novo por caracol, não! – exclamou
Dourado enquanto discutiam já na casa de Grilado.
— Ninguém está dizendo que você vai ter que fazer isso! – disse Bola
meio com dó do besouro.
— E como eu vou fazer aqui no Jardim? Não posso sair na rua, não posso
conhecer nada? – indagou desesperançoso Dourado.
— Por enquanto não, de jeito algum! É você se arriscar e será preso. –
respondeu Bola.
Todos já estavam bem cansados de toda aquela situação em que haviam se
metido. Cansados física e mentalmente. Conversaram a tarde toda. Discutiram
sobre o que valia a pena ser feito naquela situação. Os dois amigos também
perguntaram a Dourado porque Lila se metera naquela emboscada. Porque se
arriscara pelo besouro. O que ela ganharia com aquilo. E Dourado explicou o
porquê:
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Jean Rocha Teixeira Duarte
— Por quê? Simples, porque ela não correria risco algum! Ela tinha
poucas chances de ser pega e presa. Uma libélula é a coisa mais difícil de se
capturar. Para ela foi docilla fácil. Ela foi muito confiante para ter deixado ser
apanhada.
Para Bola e Grilado estava claro: Lila se envolvera no plano apenas por
docillas. Também fora interesseira como o besouro dourado. A não ser que... A
não ser que Dourado estivesse mentindo. De qualquer forma teriam que dar
crédito ao besouro cor de ouro. Mas de uma coisa não se esqueceriam: eles só
estavam naquela situação porque Dourado os chantagiara para entrar no vergel.
Poderia muito bem ter dado uma carona aos dois, rumo à Cerca Viva, como fez a
Milpés por todo o gramado. Mas não! Praticamente os forçou a levá-lo junto com
eles para o jardim, o Jardim dos Insetos. Poderia também ter cobrado deles de um
outro jeito. Pelo menos confiado neles para que pudessem pagar depois.
— E quando é o julgamento dela, Bola? – perguntou Grilado.
— Daqui a cento e oitenta flores do Caramanchão. O tribunal, como você
sabe, não atrasa nenhum julgamento para que não se esqueçam do feito. Para que
haja o máximo de justiça. – respondeu o tatu-bola.
— Temos que ir a esse julgamento. Conseguir pelo menos uma entrada. –
avaliou o grilo olhando para baixo como que buscando uma solução da memória.
— As entradas para os julgamentos são muito concorridas. Será que
conseguiremos? – especulou Bola.
— É provável que não, mas não custa tentar. – respondeu Grilado
enquanto se preparava para sair.
— E enquanto isso o que eu faço? – perguntou Dourado.
— Você quer passear de caracol? – perguntou também Grilado.
— O quê? Aquilo foi a coisa mais horrível que já me aconteceu!
O Jardim dos Insetos
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O Jardim dos Insetos
Eu quero saber o que vai ser de mim. Não quero mais saber de jardim bonito
nenhum. Quero voltar para onde eu fui criado e sei como funcionam as coisas.
Onde eu posso ser quem eu sou, ir e vir em paz! – lamuriou o besouro dourado e
vaidoso em tom de tristeza.
— Enquanto as coisas não se definirem, enquanto não houver o
julgamento, ninguém de nós faz nada. – disse Grilado recebendo a aprovação de
Bola que concordava, acenando com a cabeça.
— Mas e eu? O que faço nesse tempo todo? Não posso sair pelo Jardim!
Não posso voltar para casa! Não posso nada! – reclamou outra vez Dourado.
— Eu tenho uma idéia! Primeiro: nós estaremos sempre aqui com você.
Você não estará morando sozinho. Está na casa de Grilado. Enquanto o
julgamento não chega você pode cuidar da horta que quero montar com as
sementes que peguei no mato do gramado. É uma ocupação e tanto para a
cabeça. O quê você acha, Dourado? – explicou e depois perguntou Bola.
— É melhor que nada. – disse sem muita empolgação o besouro que
impressionava pela cor e pelo tamanho.
E assim foram os dias de Dourado enquanto o julgamento de Lila não
chegava. Cuidava do canteiro e até impressionou aos outros dois, já que o
canteiro não ia tão mal. Grilado e Bola estavam sempre se informando sobre o
andamento das investigações do “caso da libélula que atacou o Jardim”, como
ficou conhecido. As plantas cresciam com uma vivacidade nas cores e já davam
flores, frutos e novas sementes. O canteiro secreto, que ficava nos fundos da casa
de Grilado, atrás da Pedra do Grilo, estava bem cuidado e relativamente grande.
Também completamente escondido.
O mês passou dia após dia quando, de repente, Grilado, Bola e Dourado
deram-se conta de que faltava apenas um dia para o julgamento de Lila. Grilado
com muito esforço e com toda a pouca influência que tinha no
Jean Rocha Teixeira Duarte
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Jean Rocha Teixeira Duarte
vergel finalmente conseguira uma entrada para o julgamento da libélula. Só ele
sabia como fora difícil obter um ingresso sem que chamasse a atenção. Afinal ele
nunca fora interessado por julgamentos, nunca tinha ido a unzinho sequer.
Os julgamentos eram marcados para o dia em que não se trabalhava no
Jardim. Era um verdadeiro espetáculo de exaltação aos bons costumes. Havia
poucos no ambiente do julgamento, mas lá fora ficava praticamente o resto dos
moradores do vergel. Só não ia quem realmente não podia. Era uma festa onde se
vendia e comprava coisas sem, no entanto, que se faltasse “com os costumes”,
como diziam as autoridades.
Porém naquele dia, anterior ao julgamento de Lila, um novo alarde
percorreu todo o Jardim, como é com toda notícia ruim. Comentava-se de lado a
lado, em todos os cantos da cidade que uma catástrofe tomara conta dele. Uns
diziam que também era coisa da libélula “criminosa e louca”. Plantas infestaram
boa parte do vergel e já competiam seriamente com as plantas que serviam de
alimento aos insetos. Já se dizia que Lila também seria julgada no dia seguinte
também por aquilo. Dizia-se que também fora Lila que trouxera as sementes para
o Jardim, largando-as em vôo por sobre a cidade. Quando aquilo chegou aos
ouvidos de Grilado, que estava entregando correspondências, ele já sabia de
quem era a culpa. De Bola!
O tatu invocado trouxera as sementes e insistira em ficar com elas durante
o trajeto pelo gramado. Cultivara as plantas atrás da casa do grilo e aquelas
pragas se alastraram por todo o vergel. Alguns insetos mais antigos já
comentavam que aquilo era o fim, que seria muito difícil agora o controle das
plantas invasoras. Grilado tratou de ir direto para a casa do tatu-bola quando
soube da catástrofe que se impunha e que já assustava a todos. Queria algumas
explicações de Bola. Era óbvio que a culpa era mesmo dele. Seria muita
coincidência. Tudo se encaixava. Ele sentiu vontade de dar-lhe
O Jardim dos Insetos
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O Jardim dos Insetos
uma pernada e mandá-lo para bem longe. Ele que era botânico, teria que ter uma
resposta para aquilo e quem sabe uma solução.
— Você viu o que você fez?! – já chegou perguntando, gritando e
acusando Grilado.
— O quê agora também é culpa minha? – também perguntou Bola.
— Você não viu como está o Jardim? Tomado de plantas daninhas por
todo lado. Aquelas mesmas plantas que você pegou sementes no gramado e está
cultivando no canteiro lá de casa, contra meu gosto. Agora quem vai dançar
somos nós. E provavelmente você não vai gostar da música. – respondeu o grilo.
— Mas como essas plantas saíram do canteiro? Ninguém entrou ou saiu
de lá com sementes delas. Não foram dadas semente daquelas plantas a ninguém.
Eu tratei para que não houvesse, de forma alguma, como as sementes serem
transportadas pelo vento, por exemplo. – defendeu-se Bola.
— Agora o importante é pensarmos em como nos livraremos delas de
forma segura e sem que ninguém mais saiba. – analisou Grilado.
— Vamos para sua casa dar um jeito nisso agora. O quê você me diz? –
propôs Bola ao grilo.
— É o melhor a ser feito. Antes que nos descubram. Se é que já não nos
descobriram. – concordou Grilado.
Os dois chegaram mais uma vez em pouco tempo à casa de Grilado.
O grilo nunca saltara tão rápido e alto antes. Ao chegar a casa, Grilado chamou
pelo besouro, explicou-lhe o que havia acontecido e foram os três para o canteiro.
Para queimar tudo! Todas as plantas sem deixar vestígios e principalmente
sementes. Primeiro para não deixar provas de que era ali que se cultivavam as
tais plantas que causavam a catástrofe no vergel. E segundo, para não aumentar
ainda mais o estrago feito, deixando-se mais sementes no chão.
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Jean Rocha Teixeira Duarte
Os três queimaram e enterraram todas as partes das plantas. Menos as
sementes, as quais trituraram com a ajuda de pedras. Agora sim pareciam livres
de receberem a culpa por aquilo e de aumentarem ainda mais a catástrofe
causada. Os três concordavam com o seguinte: já que o estrago já estava feito e
que a catástrofe se apoderava do Jardim inevitavelmente era melhor que fosse
daquele jeito. Que ninguém recebesse a culpa por uma coisa que já acontecia
mesmo. O que eles deveriam era se dedicar a ajudar no combate às ervas
invasoras como outros tantos no vergel estavam fazendo. Eles mais do que todos.
O dia do julgamento no Jardim correu bem atípico de um dia em que se
acontecia um julgamento. Não havia tantos animais do lado de fora da Pedra das
Pendências. Parte dos moradores esperava em frente à Pedra por notícias,
enquanto a outra parte tratava de salvar a cidade contra as plantas daninhas.
Como o julgamento não costumava demorar muito, em pouco tempo já se saberia
o destino de Lila. Lila se encontrava isolada todo esse tempo em uma jaula feita
com teias de aranha muito resistentes. Também quem a visitaria? Ela era uma
estrangeira que só recebia visitas de vez em quando para comer, beber e depor.
Grilado era um dos convidados da grande demonstração de que não se
desobedece às leis do vergel. As leis que sempre prezavam pelo bom
funcionamento daquilo que era uma verdadeira cidade. Uma coisa sensibilizou
Grilado: Lila respondeu ao interrogatório dizendo não ter tido comparsas com
ela. Será que ela não sabia que os três acabaram conseguindo entrar no Jardim?
De qualquer forma só de dizer que estava com dois moradores do vergel já
abrandaria a sua pena. Coisa que ela não fez. Disse que estava sozinha e que
sempre sonhara em morar no Jardim. Disse que fez aquilo para distrair as saúvas
da Cerca e tentar entrar por ali já que as aranhas que vigiavam a parte aérea lhe
pareciam mais perigosas, além de carnívoras.
O Jardim dos Insetos
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O Jardim dos Insetos
Aliás, essa era a função das Aranhas do Teto, como eram qualificadas. Os
intrusos e criminosos, seu pagamento. Alimentavam-se deles. Elas os comiam
com gosto e desprezo. Eram só infratores tentando destruir e denegrir a imagem
do vergel. Não mereciam consideração daquelas que eram sem dúvida as mais
temidas do Jardim.
— A senhora é culpada pelo aparecimento dessas ervas daninhas que estão
assolando nosso jardim? – interrogou o juiz.
— Não! Eu não tenho culpa alguma disso. Não sei nada a respeito. –
respondeu a quase condenada, Lila.
Depois de pouco tempo decorrido de julgamento o juiz sentenciou:
— Com todos os indícios como, por exemplo, o fato de há muito tempo
não entrar um invasor em nosso jardim, eu a considero culpada. Tanto pela
tentativa de destruir nossas estradas quanto pelo alastramento das plantas
daninhas pela cidade, o que já é do conhecimento de todos. Assim a pena será de
morte. Que seja a ré entregue às aranhas ainda hoje sob a vista e na presença de
todos do Jardim.
Na mesma hora, Grilado que assistia ao julgamento, sentiu-se paralisado.
Paralisado e culpado pelo o que acontecia a Lila. Ela fora condenada à morte e
por uma coisa da qual não tinha culpa ou intenção. Teria sido no máximo
sentenciada à prisão perpétua. Mas não condenada à morte se tirassem dela a
acusação de ter levado para o vergel aquelas plantas que invadiam e destruíam
toda a cidade dos insetos. Agora Grilado ficara com a consciência pesada. Ele
saiu rápido do fórum e voltou rápido para casa. Lá estavam Bola e Dourado
esperando apenas pela notícia sobre o que acontecera a Lila.
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Jean Rocha Teixeira Duarte
Naquele dia os dois não conseguiram trabalhar na retirada e queima das
plantas daninhas do Jardim. No caminho Grilado foi pensando em qual seria a
sua real culpa naquilo tudo. Tanto na condenação de Lila quanto na catástrofe
ecológica com as plantas invasoras. E ele já sabia que a discussão entre os três,
ele, Bola e Dourado não seria simples. Deveria ficar bem claro qual era a culpa
de cada um. Até onde cada um se comprometera e principalmente: o que deveria
ser feito para se salvar a vida de Lila. Ela não tinha mais muito tempo de vida. As
execuções costumavam ser nos finais de tarde para que todos os insetos
pudessem assisti-las. Dessa forma Lila tinha menos de meio dia de vida. Depois
seria entregue às aranhas como acontecia com os infratores que cometiam faltas
graves.
Em casa, Grilado fez questão de reunir o grupo que já há mais de um mês
se mantivera extremamente apreensivo quanto ao futuro de todos ali e de Lila.
Discutiriam o que fazer, quem faria e como seria feito. Necessitavam de uma
resposta e rápido. Muito provavelmente ela nem sabia que os três conseguiram
entrar no vergel. Se eles se omitissem, seria um segredo que ninguém jamais
descobriria. Mas Lila precisava deles.
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O Jardim dos Insetos
III
— Eu só quis conhecer o Jardim! Que mal há nisso? Ser curioso agora é
crime? Eu não peguei semente nenhuma em gramado algum. Eu as plantei e
cultivei as plantas porque praticamente vocês me forçaram. Eu nunca teria posto
em risco o lugar onde eu moro, a minha cidade. Ainda mais um lugar como esse,
quase perfeito. – discursou Dourado.
Grilado e Bola em meio à discussão concordaram com Dourado. Ele não
tinha culpa pelo que ali agora acontecia. Apesar de que percebiam claramente
que Dourado tirava o corpo fora de tanto medo que sentia de um possível
julgamento.
Seria realmente entre os dois, Bola e Grilado. Deveriam decidir o que
fazer, quem e como fazer. Só sabiam que deveria ser o mais rápido possível. Eles
esperavam o início daquela discussão se entreolhando, enquanto Dourado só
assistia. Após um silêncio avassalador, Grilado decidiu então falar.
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— É Bola... Você pegou as sementes. Você decidiu plantá-las e cultiválas. Eu lhe avisei duas vezes quando ainda estávamos no gramado. E você
teimava que não haveria problemas. Depois contra o meu gosto e eu lhe
lembrando que era errado, você as plantou e nos envolveu nisso tudo. Mas eu
confesso: a culpa é também minha... Nós estávamos juntos e no fundo eu sentia
prazer por aquilo. Por você ter pegado as sementes. Depois quando as cultivou
aqui em casa, eu poderia tê-lo impedido e não o fiz. Nós temos muita coisa a
explicar à justiça antes que Lila seja entregue às aranhas. – disse Grilado. Depois
se abraçaram.
Os dois prometeram não falar de Dourado a ninguém do vergel ou do
tribunal. Seria prudente que ele tentasse retornar ao gramado antes que algum
imprevisto lhe acontecesse.
Foram para a Pedra das Pendências, os dois, como faziam os que deviam
algo à Justiça. Mas não dominados por saúvas e sim por livre e espontânea
vontade. A peleja contra Lila já havia acabado há tempo e lá estavam os dois
com algo a dizer sobre as plantas que invadiram a cidade.
— Precisamos falar com o juiz. – disse Bola.
— O que o tatu-bola e o grilo querem com alguém tão importante como
ele? – perguntou o vigia que tomava conta do lugar na hora. Também havia
muitos outros bichos com ele.
— É que foi feita uma injustiça à libélula que invadiu o Jardim. E nós
temos muito a falar sobre o caso. – explicou Grilado.
— Vocês têm certeza do que estão fazendo? Isso aqui é coisa séria!
Primeiro vocês serão ouvidos por outro funcionário, não com pelo juiz. – disse o
vigia esclarecendo que o juiz não estava acessível a eles.
Bola e Grilado contaram tudo o que sabiam e fizeram. Tudo o que
acontecera desde o gramado. Ou melhor, desde antes de saírem do Jardim,
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O Jardim dos Insetos
quando o caracol sumiu do mapa deixando a todos preocupados. Como de
esperado foram imediatamente presos e a saúva delegada chamada. Antes que
Lila virasse comida de aranha foi marcado um novo julgamento. Como sempre
para 180 flores do Caramanchão, depois do novo esclarecimento sobre o caso.
Dessa vez seriam julgados no mesmo caso Bola, Grilado e, de novo, Lila.
Todos os habitantes do vergel já sabiam das últimas novidades do caso da
“libélula que atacou o Jardim”. Os insetos diziam que Grilado e Bola estavam
envolvidos com a libélula criminosa que tentara por inveja, “como todo animal
de mato e gramado”, destruir o vergel e sua cidade feliz e harmoniosa.
Os três envolvidos ficaram esperando pelo julgamento em celas diferentes.
Para que não houvesse comunicação entre eles após a prisão, evitando-se dessa
forma alguma combinação por parte deles sobre o que dizer a respeito do que
acontecera.
Dias de solidão e reflexão. Assim foi o tempo decorrido até o dia do
julgamento dos dois criminosos que sabotaram o Jardim com a ajuda de uma
libélula. O que um achava e sentia os outros dois não conheciam. Até nos
depoimentos eles não se viam. Também foram proibidos de receberem visitas. Os
três não sabiam a opinião dos outros bichos, o que pensavam deles.
Um outro boato percorria o Jardim dos Insetos!
Um governante que não assumia a identidade por nada, adoecera e havia
sido desenganado pelos Médicos Oficiais do Jardim. Sem pensar duas vezes, ele
se utilizou dos conhecimentos já quase esquecidos de uma mariposa da cidade.
Pegou uma das plantas que causava problemas ao vergel, as plantas há pouco
trazidas do gramado, fez um chá e ficou curado em um dia.
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A população toda ficara sabendo. No desespero por já quase não estar
encontrando as plantas tão combatidas por todos no Jardim, ele saiu pelas ruas
perguntando quem não havia visto pelo menos uma delas. A bicharada que já
sabia de seu estado de saúde, até mesmo porque sua cara o denunciava, só ligou
uma coisa a outra.
Pronto: um governante fizera uso de uma das plantas proibidas por lei e
todos sabiam. Com isso alguns insetos, principalmente mais velhos, com medo
de uma doença que não tivesse cura com a ciência oficial do vergel, já pensavam
em guardar algumas plantas para si. O sentimento era controverso: o medo de
uma invasão ainda mais forte das plantas e o medo de adoecer e por falta das
plantas morrer.
Aquela situação exigia uma tomada de decisão rápida das autoridades. A
população confusa não sabia o que fazer e o que pensar a respeito daquilo. Uns
diziam já ter das plantas, outros abominavam a idéia. Mas uma coisa era certa, a
comunidade perdia aos poucos a resistência contra as plantas tão odiadas há
pouquíssimo tempo.
Ao mesmo tempo que aquele seria o maior julgamento de todos os tempos
no Jardim, aquela era a maior confusão social desde que ele fora construído. De
alguma forma as coisas tinham a ver. Poderiam tanto ajudar quanto piorar a
situação de Bola, Grilado e de Lila que em alguns dias receberiam o referendo de
suas vidas. Seriam entregues às aranhas? Expulsos do vergel? Virariam escravos
dali? Alguns não recebiam a pena capital, não eram expulsos do Jardim e nem
viravam escravos. Eles tinham um fim ainda mais sinistro. Fim em seu sentido
literal. Eles eram obrigados a exercer profissões perigosas. Trabalhar com coisas
que tinha lá seu risco de morte. Quando ficavam mutilados, perdiam uma pata ou
uma antena e assim toda a capacidade de trabalho e de julgamento da realidade,
eram expulsos da cidade. “Isso para não virarem um fardo para a cidade e atrasar
o progresso”, diziam os mandantes locais.
O Jardim dos Insetos
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O Jardim dos Insetos
Em meio a tudo isso, onde estaria Encaracolado? Grilado e Bola desde que
retornaram ao vergel e ainda estavam em liberdade procuraram, quando tinham
tempo, pelo molusco fujão. Mas nada. Nada de Encaracolado. No atual
momento, presos, é que não poderiam mesmo procurar pelo amigo que ficara
triste com sua condição e resolvera sumir. E até aquele momento seu paradeiro se
encontrava completamente desconhecido. O dia do julgamento havia chegado e
se Encaracolado ao menos aparecesse, isso poderia amenizar as coisas para os
três. Principalmente para Bola e Grilado, mas também para Lila. Ele poderia
depor confirmando seu desaparecimento e o grau de amizade entre eles. Mas
nada... Até nisso o pobre do Encaracolado prejudicava sem querer os dois.
A pergunta que rondava a cabeça de Grilado era: Dourado havia sido
mesmo justo e leal? Justo, quando disse que não cometeu crime algum ao querer
conhecer o Jardim e que não carregou com ele semente alguma de planta. Mas a
idéia de entrar no vergel havia sido dele! Assim teria sido ele leal? Será?
Perguntava-se Grilado no fundo de sua cabeça. Porém no ponto em que tudo já
estava não seria ele quem o entregaria. Grilado não queria agora correr o risco de
ser ele o desleal.
O Jardim todo se juntou em frente à Pedra das Pendências. Era o maior
julgamento do Jardim Moderno. Nesse período jamais houvera uma insurreição
sequer contra as leis tão fortes do vergel. Era os três contra os senhores da lei e
da verdade. A população recebia informações confusas sobre o que realmente
havia acontecido e até da vida moral de Bola e Grilado. Coisas que antes
pareciam tão normais agora se tornavam ofensivas aos bons costumes daquele
que era talvez o melhor dos jardins para se viver. Onde todos sonhavam em
morar e ter uma vida próspera. Grilado e Bola puseram tudo isso em risco por um
amigo.
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Chegara o dia do julgamento e os três já agradeciam ao tempo por isso.
Não suportavam mais um dia sequer. Era melhor que se decidisse e logo sobre a
vida dos três. Insetos ou não, mas que se decidisse.
Enfim o julgamento dos três! Com suas perguntas e resposta quase
infindáveis!
— Por que os senhores saíram do Jardim? – perguntou o juiz primeiro a
Bola.
E Bola então respondeu:
— Nosso amigo Encaracolado sumiu. Havia indícios de que ele havia
fugido para fora do Jardim. Nós preocupados fomos atrás dele. Eu e Grilado.
— E por que não contataram as saúvas? – indagou de novo o juiz.
— As saúvas não se preocupam quando o problema é com os caracóis. –
explicou o tatu.
— E por que elas não se preocupam? – perguntou irônico e já enfezado o
juiz.
— Porque caracóis não são insetos. Assim como eu. Também porque não
moram em lugar fixo. O que aqui é visto com maus olhos. – todos no tribunal
soltaram gritos de espanto. Bola havia tocado em feridas graves da vida em
jardim.
— E como vocês tiveram tanta certeza de que o caracol havia realmente
fugido daqui? – inquiriu de novo o meritíssimo.
— Apesar da lentidão ao se locomover, os caracóis levam vantagem para
fugir do Jardim! Como suas carapaças são jogadas fora, depois que morrem, pela
Cerca Viva, eles passam desapercebidos quando se aproximam dela. Uma
carcaça próxima à Cerca não gera suspeita nas saúvas. Basta que o caracol suje
sua casa com barro para que pareça uma carcaça desabitada de caracol. Assim
aos poucos eles se aproximam da saída do Jardim sem gerar suspeita. Se alguma
saúva se aproxima eles simplesmente se encolhem, encolhendo-se lá dentro. –
explicou Bola.
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O Jardim dos Insetos
— Mas o senhor não disse que ele não havia saído do Jardim sem sua casa
nas costas?! – interpelou o juiz.
— E ele saiu! Só que pode ter pegado uma casa abandonada próxima à
Cerca Viva! – continuou Bola.
— Por que os senhores se associaram a alguns animais no Grande
Gramado? Os senhores sabem que não devem se juntar a bichos de mato e
gramado. – afirmou o magistrado esperando uma colocação de Bola.
— Quando se está no gramado se vive como no gramado. Nós
precisávamos da ajuda de alguns deles e até fomos salvos por uma lacraia. –
disse Bola, o que provocou nova onda de exclamações de assombro.
Bola tocara em mais uma ferida, ou melhor, um trauma do vergel. A
lacraia fora um bicho que dera muitos problemas quando o Jardim ainda não
estava na era moderna. Quando o jardim ainda não era o Jardim, o Jardim dos
Insetos. Quando era apenas um pedaço de terra com plantas num prédio de
humanos. A lacraia havia sido um dos bichos que se recusaram a viver em
jardim. E assim com muito esforço fora colocada para fora para nunca mais
retornar. Bola e Grilado além de saírem do vergel o que era proibido, também se
envolveram com velhos inimigos do Jardim dos Insetos.
— O senhor sabe o perigo que representa uma lacraia? De quão rebelde
ela é? O senhor não aprendeu isso na escola? Todos os filhotes aprendem sobre
os bichos em que se deve confiar e os que não se deve confiar para a boa
vivência e harmonia do Jardim! – o juiz então fez uma série de perguntas que já
demonstravam estrema impaciência com o tatu-bola.
— O senhor sabe o perigo que representa uma aranha? De quão cruéis elas
são? Principalmente se perderem os seus empregos! Eu aprendi na escola várias
coisas, sim. Também deduzi que quem expulsou as lacraias do Jardim foram as
aranhas. Isso por falta de comida. Como a comida era pouca e não poderia haver
mais inseto comendo inseto, elas trataram para que os insetos invasores ficassem
só para elas. – disse Bola ao juiz.
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Bola estava enfurecido. Dizia o que vinha à cabeça, embora fosse a mais
pura verdade. A cada nova resposta, ouvia-se novos bramidos de indignação,
tanto de dentro quanto de fora da Pedra das Pendências.
O juiz então mandou chamar Grilado, queria a sua versão sobre o
ocorrido. A versão do grilo fora idêntica à de Bola em tudo. Em certo momento
do julgamento Grilado fora interrogado pelo juiz sobre a selvageria dos animais
do Grande Gramado.
— Os animais que existem no Jardim são quase os mesmos que se tem no
gramado, mas com medos e necessidades diferentes. – disse Grilado.
Quando foi interrogado sobre se haviam se comportado como animais de
mato, Grilado respondeu:
— Sim, às vezes. Quando se está no gramado se vive como no gramado.
Naquele momento o advogado de Grilado e Bola pediu a palavra ao juiz.
Foi lhe dito que fosse breve e então ele começou a defesa:
— Meritíssimo, não há provas de que as plantas que causaram mal ao
Jardim foram trazidas pelos meus clientes. Podem ter vindo sob forma de
sementes na roupa de outro inseto que também tenha saído dele. Assim como
meus clientes saíram do Jardim e ninguém os viu, outros também podem ter
saído. Meus clientes garantem que as plantas por eles trazidas do Grande
Gramado e cultivadas, não saíram do canteiro onde elas foram plantadas. Sob
essa dúvida deve pesar qualquer tipo de pena que eles venham a receber.
O júri, só de insetos, já reunido para a decisão parecia pelas expressões
dos rostos indeciso quanto à culpa de cada um. Nada também que se pudesse
confirmar. Naquele momento, as Autoridades Jardinais não conseguiam provar a
culpa nem de Bola, nem de Grilado. Isso devido à manobra do advogado dos
réus. Por mais que fosse provável a participação de Bola e Grilado no “caso das
plantas proibidas”, como estava sendo chamado, não havia prova material. Havia
apenas a certeza de que ambos saíram do vergel e se associaram a um inseto de
gramado, pondo em risco a vida no Jardim.
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O Jardim dos Insetos
A opinião geral no Jardim era de que havia até sido um ato nobre a saída
dos dois à procura de um amigo que corria risco de morte. Mas pôr em risco a
vida dos moradores com as plantas proibidas tão ensinadas na escola era demais.
Motivo de condenação à expulsão ou de entregar às aranhas.
Foi então que uma Autoridade Jardinal pediu a palavra ao juiz dizendo:
— Nós temos uma prova, meritíssimo, de que o acusado Bola, coletou as
sementes no gramado de forma criteriosa, sabendo o que fazia, e que foram essas
sementes que causaram a catástrofe no Jardim. Mas precisamos de algum tempo
para trazer essa prova contundente.
O julgamento foi suspenso por um instante. Para que a Autoridade
Jardinal tivesse tempo de apresentar a prova de que foram as sementes trazidas
por Bola que causaram o transtorno ao vergel. Porém a autoridade não conseguiu
o que queria, a prova cabal. Assim foi decidida a sentença dos três acusados. Fezse silêncio até que o juiz a proferisse. Foi um silêncio doloroso para os três
futuros sentenciados. Parecia que aquilo era proposital. Todos esperavam lá fora
e de dentro da Pedra para saber o que aconteceria aos “dois traidores do Jardim”.
Então sentenciou o juiz:
— Como a idéia de sair do Jardim foi do tatu-bola e foi ele quem trouxe as
sementes para cá, eu o sentencio à expulsão. Ao grilo seja imposta a pena de
retratação pública. A libélula seja entregue às aranhas.
A diferença nas condenações impressionou os que souberam da decisão.
Bola recebera a sentença de expulsão do vergel enquanto Grilado fora condenado
a uma simples retratação pública. Os bichos se perguntavam se a pena aplicada a
Bola não havia sido rigorosa demais. Se ele havia sido penalizado à expulsão por
não ser um inseto. Se Grilado também participou, porque fora praticamente
absolvido. Mas também diziam: “a Justiça sabe o que faz, a Justiça não falha”.
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Outra coisa que intrigava tanto a população quanto às autoridades era o
fato de que os insetos já praticamente adotavam as plantas como remédio. Ao
mesmo tempo em que se aumentava o seu consumo, corria-se o perigo de uma
nova expansão agressiva das plantas. E vice-versa... Momentaneamente era um
controle eficaz. O alto consumo bloqueava o crescimento desordenado das ervas.
Doenças que antes destruíam e matavam famílias inteiras, agora eram combatidas
de forma simples e direta. Das plantas trazidas por Bola, todas tinham uma
importância fundamental. Praticamente todas as doenças encontravam sua cura
naquelas plantas. O tatu-bola que era um aficionado por botânica soubera
realmente escolher as sementes certas tanto nas plantas, quanto no chão. O
espaço em sua bolsa fora preenchido da forma mais racional e proveitosa
possível. Só uma das plantas não tinha poder medicinal, mas era lindíssima. Bola
havia dito a Grilado: “essa por mais que não seja medicinal, eu não posso deixar
de levá-la”.
As Autoridades Jardinais haviam decidido que uma medida drástica
deveria ser tomada e imediatamente. As plantas que eram invasivas e agressivas
ao extremo, encontravam um eficaz método de controle: os próprios adoentados
que delas se utilizavam. As autoridades sabiam que o crescimento populacional
seria rápido com os insetos agora não mais morrendo tão fácil. Aquilo
transformaria o Jardim em pouco tempo num lugar super-povoado e de miséria
total. Aquilo que antes fora um lugar de harmonia e de boas condições de
sobrevivência para todos, agora preocupava.
Então uma reunião com todos os habitantes do vergel foi marcada.
Todos reunidos em frente ao Caramanchão do Governo ouviram a
seguinte proclamação do governador do Jardim:
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O Jardim dos Insetos
— Queridos moradores do Jardim dos Insetos, devido à atual circunstância
e com o aval de nossos técnicos de que corremos sérios riscos de extinção e do
fim da nossa cidade, está proibido o uso de plantas para o tratamento de doenças
de agora em diante. Essas plantas são proibidas há muitas gerações e sempre
fizeram mal a nossos ancestrais. Não se tem certeza de quais as verdadeiras
implicações de seus usos. Procurem sempre os Médicos Oficiais quando
estiverem doentes ou com problemas. Colaborem para o bem e harmonia de
nossa cidade. Quem for pego usando ou portando esse tipo de planta receberá a
pena de morte. De hoje em diante qualquer de nossas autoridades tem a
permissão de entrar em qualquer lugar para inspeção se há dessas plantas. Isso
até que se elimine de vez essa praga de nossos dias atuais.
Estava claro que o bem e a harmonia do vergel dependeriam de uma vida
curta para todos. E da própria vida ninguém abre mão.
Uma notícia, porém, agradou a Bola e Grilado, soando como música de
bons pássaros canoros aos seus ouvidos. Lila quando foi ser entregue às aranhas,
para ser comida, mostrou a elas que seu instinto valia a fama de espertas das
libélulas. Ela ficou parada, fazendo-se de estátua e de boba, como sempre fazem
as libélulas, e provou uma coisa: as libélulas são mais ágeis e espertas do que as
saúvas e as aranhas. Lila conseguiu fugir, e dando uma aula de habilidade,
praticamente zombando de todos.
Bola ao ser expulso do Jardim, ouviu ainda uma autoridade do governo.
Em seu discurso a Autoridade Jardinal disse que se fosse por ela, o governo
usaria o tatu-bola para repor a libélula que serviria de alimento às aranhas. Mais
uma vez Bola teria que enfrentar o Grande Gramado. Muitos foram assistir à
expulsão de Bola com gritos de ódio. Outros, conhecidos, apenas assistiam
tristemente. Mas lá se foi o tatu-bola, e na opinião da maioria para a morte. O que
se sucedeu nos dias seguintes foi catastrófico para o vergel...
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Jean Rocha Teixeira Duarte
Com o equilíbrio das plantas e dos bichos desfeito no Jardim, a população
dos bichos cresceu, cresceu até quase não se comportar. As famílias agora tinham
muitos filhotes. O alimento era quase insuficiente. Não se morria mais por
qualquer coisa, qualquer doença. Bastava pegar no canteiro, que toda família
agora tinha em casa, uma das plantas que Bola levara para o vergel e fazer um
chá ou algo um pouquinho mais elaborado e pronto. As doenças sumiam, eram
curadas sem muitos problemas. Mas de quem era a culpa por aquilo tudo? De
Bola ou da população que se recusava a abrir mão das ervas e da própria vida.
Para as Autoridades Jardinais era dos dois.
Eram muitos insetos para um só Jardim. Os governantes anunciaram uma
medida que resolveria aquela problemática toda. Bola era lembrado o tempo todo
como o inconseqüente que causara aquilo tudo. Por muitos anos as plantas
proibidas foram consideradas um mal e sequer falava-se nelas. Era um dos tabus
no vergel. Na verdade Bola era um dos únicos de que se tinha notícia que ainda
sabia alguma coisa delas. Seu avô, que já falecera, ensinara a ele o que sabia. O
povo do Jardim, agora numeroso, dizia que Bola tinha um livro secreto que
falava tudo de plantas proibidas. E que fora através dele que Bola aprendera a
diferenciar as plantas a serem pegas quando estava no gramado. Desconfiou-se
também que as Autoridades Jardinais guardavam alguns exemplares desses
livros, que como as plantas foram proibidos. Como? Elas vinham sempre com
explicações que só poderiam ter sido retiradas de algum compêndio ou algo
parecido. E aquelas figuras mais espertas que sempre existe em qualquer lugar
deduziram rapidinho.
O Jardim dos Insetos
53
O Jardim dos Insetos
IV
— O que você faz aqui? Voltaram atrás na sentença e te expulsaram ao em
vez de te darem às aranhas? – perguntou Bola a Lila quando a viu.
Lila já o esperava quando mal ele saíra do vergel expulso pelas saúvas sob
o discurso de uma autoridade jardinal.
— Não! Se dependesse deles uma hora dessas eu estava todo enrolada
numa teia e sendo sugada por uma aranha assassina! Eu fugi, Bola! – respondeu
Lila.
— Suba e vamos para casa que eu lhe conto tudo. – continuou a libélula
que se sentia como que nascida de novo.
Ao chegarem à casa de Lila, que morava próximo ao laguinho, onde dava
seus rasantes na água toda tarde, foram dormir. Descansar e tentar esquecer o
passado recente e tenebroso onde foram presos, ameaçados e quase mortos.
Quando acordou na casa de Lila e não a encontrou, Bola teve medo de sair
sozinho naquele lugar tão cruel e assim a esperou.
Jean Rocha Teixeira Duarte
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Jean Rocha Teixeira Duarte
— O que você come, Bola? – perguntou Lila quando voltou da rua.
— Algumas madeiras que amolecem com a umidade e ficam deliciosas.
Eu já consegui algumas aqui na própria árvore, sem prejudicá-la. – respondeu
Bola.
— Olhe, nós temos muito o que conversar! Você precisa saber de algumas
coisas que não lhe foram ditas em tempo correto. Eu só aceitei participar do
plano de vocês, de entrar no Jardim, porque eu estava sendo chantagiada. Aquele
besouro dourado além de curioso é um traidor. – começou a explicação a libélula.
— O que? Traidor? – interrompeu Bola.
— Ele nos entregou, ele nos entregou! Ele nos sabotou! Disso eu tenho
certeza! – terminou o chocante esclarecimento Lila.
Bola estava impressionado com o que ouvira. O besouro vaidoso além de
exigente era um traidor.
— Ele já havia tentado morar no Jardim uma vez. Só que não o aceitaram.
Ele nunca assumiu isso, mas alguns animais falavam. Ele sempre foi muito
determinado, ambicioso e corajoso. Pode muito bem ter nos entregue em troca de
alguma coisa. – explicou Lila.
— Quanto ao seu amigo caracol, deve mesmo estar morto. – disse Lila.
— Disso eu também tenho certeza. – falou Bola.
— E como você tem certeza? – perguntou Lila.
— Meu amigo nunca saiu do Jardim. Eu vi o vi morrer. – respondeu Bola.
Agora Lila se sentia mais do que confusa. Eles participaram de uma
mentira. Foi Bola quem os envolveu naquilo tudo.
O Jardim dos Insetos
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O Jardim dos Insetos
— Encaracolado morreu lentamente em meus braços. Por falta de um
remédio. De um remédio só encontrado em algumas plantas. Aquelas proibidas
no Jardim e que eu peguei aqui no gramado. Eu prometi a ele que faria com que
os insetos não mais morressem por falta de plantas medicinais. A relação dos
insetos com as plantas sempre foi muito grande. Só no Jardim não podemos nos
utilizar delas. Para que vivamos pouco e para que o Jardim comporte toda nossa
população. Não como nós realmente somos, mas para que nos comporte.
Vivendo pouco, mas todos pelo menos sobrevivendo. – disse Bola.
— Você sabia que eu quase morri por isso! Sabia que colocou em risco
também a vida do seu amigo, Grilado, com essa mentira? Ele tinha o direito de
saber por que estava naquela viagem com você. Ele se arriscou por um motivo
que não existia! – exclamou Lila.
— Eu não lhe contei porque tinha certeza de que tudo daria certo. –
explicou Bola.
— Ninguém tem certeza de nada! Você tinha certeza de que daria certo?
Não deu certo! Tanto é que estamos aqui! Eu viva por pura sorte e você
condenado a viver nesse lugar hostil no qual nunca se acostumará. – continuou
Lila.
— Quando eu disse que daria certo, foi em relação a Grilado. Desde o
início ele estava livre de qualquer condenação naquele julgamento. Ele, enquanto
inseto, jamais seria condenado às aranhas. – explicou-se Bola.
— Mesmo assim! Essa sua mentira poderia ter feito, no mínimo, com que
ele fosse expulso do Jardim. Até a mim você prejudicou e comprometeu. Se não
fosse toda essa história, essa mentira, não haveria plano e eu não teria entrado
nessa. Não teria sido condenada à morte. – discursou mais uma vez a libélula em
tom de lição de moral.
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Jean Rocha Teixeira Duarte
— Lila, se você tivesse nos alertado que o besouro era um egoísta
frustrado, nada disso teria acontecido. – disse Bola enquanto olhava o gramado
da janela da casa da libélula..
— Eu sei que eu também errei, mas foi você quem primeiro nos envolveu
nisso tudo! E a família do caracol, do Encaracolado? O que diz disso tudo? Você
alegando que ele estava desaparecido, quando na verdade ele já havia morrido. –
indagou Lila.
— Encaracolado não tinha família. Era um caracol que só contava com os
amigos. Caracóis no Jardim dos Insetos são considerados lentos demais para que
se perca tempo com eles... Pelo menos por parte das autoridades. – esclareceu
penoso Bola.
— E eu que pensava que aquilo tudo fosse um paraíso. Pelo menos lá de
cima parece. – disse Lila.
— E é um paraíso! Depende de como você vê as coisas, de como encara a
realidade. O problema é que eu sempre fui meio rebelde mesmo. Mas alguns
vivem bem nele. Mesmo não sendo uma Autoridade Jardinal ou outra coisa tão
respeitada. Mesmo vivendo pouco. – falou o tatu-bola um tanto nostálgico com o
que via pela janela.
Bola assistia da árvore, onde morava Lila, à batalha que era para cada um
ali sobreviver. Pensava em como seria para ele viver num lugar no qual não tinha
a menor experiência. Faria o quê para não ser engolido pelo o mundo cruel do
gramado? Bicho de mato. Era isso o que ele viraria. Viveria ou ao menos tentaria
sob esse exílio perturbador.
Na manhã do primeiro dia, após a volta ao gramado, Lila acordou disposta
a sair cedo para trabalhar. Faria o maior número de vôos possível para compensar
o tempo que ficara presa no vergel. Saiu e disse a Bola que veria algo, “se é que
havia”, para ele trabalhar que não fosse perigoso demais.
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O Jardim dos Insetos
Um ex-morador de jardim no gramado geralmente é presa fácil, mas Bola estava
predestinado a mudar aquilo. Tatus-bolas são animais “casca grossa”, e têm a
vantagem de passarem despercebidos a maior parte do tempo. Assim o recém
expulso do vergel passou seu primeiro dia no gramado: sozinho na casa de Lila.
Quando Lila regressou já noite da jornada dos vôos, chegou com a boa
nova para Bola. Havia sim uma coisa que ele podia fazer. Ser marceneiro, já que
gostava tanto de madeira. Bola saiu com Lila na manhã seguinte para iniciar-se
no trabalho de marcenaria. Seria tranqüilo! Bola não se assustou com aquilo. Não
trabalharia com madeiras que só ele sabia encontrar e transformar nos mais
deliciosos doces. Sim com madeiras duras que suportassem o peso dos animais
dali. Mais uma vez uma outra realidade. Viu-se há pouco condenado à morte,
àquele lugar. Aquilo seria um prêmio frente ao que esperara do gramado.
Após muitíssimas flores trabalhando como marceneiro, eis que um dia
chega à árvore onde trabalhava, fazendo um pedido, uma encomenda, nada mais
nada menos que Dourado. Pelo susto que esboçou, Bola achou que até ficara
insensível, pois, pensava que seria pior quando o encontrasse.
— Você voltou para cá, seu traidor! – disse Bola quando viu Dourado.
— Você queria que eu fosse para onde? Aqui é o meu lugar! E te digo
uma coisa: esqueça o que aconteceu, que é melhor para você! Eu não sou traidor
nada! – disse o besouro.
— Se você quer um móvel não me importa. Eu não lhe atenderia nunca.
Não sei como você se atreve! – explicou Bola.
— Se você não me atendesse eu iria para outro marceneiro que faz o
mesmo serviço. Eu não estou aqui para encomendar nada... Foi você quem cedeu
às vaidades de um besouro cor de ouro. E te digo mais: você foi expulso, eu
também. O mais errado nisso tudo foi você. Você causou sua
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própria desgraça e a dos seus dois amigos também. Assim sendo atenda-me logo
como você faz com os outros que aqui vêm. – concluiu Dourado explicando
como deveria agir tanto ele como Bola dali para frente no gramado.
— Você é um interesseiro! Por que está aqui? Não nos traiu? Pode dizer
logo! Por que você foi expulso do Jardim? O que você fez para isso? – disse
Bola.
— Eu? Nada. Mas eles forçaram a barra e acabaram arrumando uma
desculpa para não ter que suportar a minha presença lá. – respondeu o besouro.
Lila quase não acreditou quando Bola lhe contou à noite quando chegaram
do trabalho sobre o seu encontro com Dourado.
— Será que ele quer alguma coisa com você? Que participe de mais algum
plano maluco? – indagou Lila.
— Eu acho que não. – respondeu Bola.
— Ainda bem. Senão seria ainda pior a sua vida aqui fora. – disse Lila.
— Você precisa saber de uma coisa que talvez não tenha tomado
conhecimento no Jardim. – disse Lila.
— O que é? – perguntou Bola.
— É sobre as aranhas de lá. – continuou a libélula.
— O que tem as aranhas do Jardim? – indagou Bola intrigado e já quase
assustado.
— Elas atacam os bichos aqui fora. Ultimamente os habitantes do Jardim
andam tão amedontrados com o rigor dos julgamentos, que praticamente não está
mais havendo crimes, e conseqüentemente alimento para elas. Não havendo
condenações, elas saem e nós somos os condenados. – explicou Lila.
— E as aranhas aqui do gramado o que fazem? – perguntou Bola.
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O Jardim dos Insetos
— Quando as aranhas do Jardim saem atrás de alimento, quem fica com
fome são as aranhas aqui do gramado. E aí de novo quem sofre as conseqüências
somos nós. Nós que não temos nada a ver com isso e que não fizemos nada. É só
tomar cuidado à noite, que é quando elas saem para que ninguém as veja no
escuro. – enfatizou Lila.
Certamente que Bola tomaria todo cuidado. Ele, praticamente, só ia ao
emprego e voltava direto para casa. E isso, de carona na libélula. O tatu-bola de
jardim ainda sentia muito medo daquilo que os moradores do vergel chamavam
de mato. Um gramado que sem dúvida à noite, com suas muitas sombras, era
ainda mais perigoso.
Os dias passavam, mas a resistência de Bola ao gramado diminuía pouco.
Ele não sabia quantos igual a ele estavam naquela situação: de exilados do
Jardim. Teria só mais ele do vergel vivendo ali? Não havia números exatos e
provavelmente os expulsos não queriam ser identificados. Por quê? No
anonimato a vida era mais segura e rentável. O que se podia pensar de um exmorador de jardim que fora expulso por uma infração à lei. Por mais que aquilo
ali fosse o Grande Gramado, não seria vantagem se identificar como tal.
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V
— Você sabe em que época estamos? – perguntou Lila.
— Como assim em que época estamos? – também perguntou Bola.
— Isso só acontece uma vez por ano! Depois só no ano seguinte. Você
nunca deve ter assistido ao espetáculo delas... No Jardim não existem cigarras,
não é mesmo? – explicou Lila.
— Não! Meu avô me disse que é porque as autoridades julgavam-nas
parasitas. Comiam as raízes das plantas e só cantavam uma vez por ano. Um
verdadeiro descaso com os trabalhadores. Mas na realidade as cigarras foram
expulsas há muito, muito tempo do Jardim porque não podiam seguir a cartilha
dos governantes. – esclareceu Bola.
— Não entendi! Cartilha? – perguntou Lila.
— A natureza delas é essa: de ficar sob o solo um ano e cantar por um
mês. Não foram respeitadas e acabaram mesmo expulsas. – explicou o botânico à
anfitriã libélula.
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O Jardim dos Insetos
Alguns dias depois, Bola em sua nova ocupação, encontrou mais uma vez
quem menos gostava no gramado e talvez na vida: Dourado, o besouro traidor,
como pensava Bola. Um besouro vaidoso e ganancioso que traíra até sua amiga
Lila. O tatu-bola pensou: “ele só vem de novo falar sei lá o quê e pronto”. Era
uma relação interessante... A de um exilado de jardim e do delator que o
entregara às autoridades do vergel. Mas Dourado negava que tivesse feito tal
coisa. Provavelmente um não falaria do outro para ninguém no gramado, pois, os
dois necessitavam de descrição sobre quem eram. Quando o besouro viu que
Bola estava totalmente sozinho, chegou perto dele e disse bem baixo:
— Eu tenho uma coisa para lhe contar. Chamaram-me ao Jardim ontem.
Não sei como me localizaram aqui no gramado. Eu fui lá e tivemos uma reunião
que durou quase a tarde toda. Participaram autoridades e algumas partes
interessadas. Cogitou-se e depois acabaram decidindo por uma coisa muito útil e
inteligente. Eu estou lhe dizendo isso porque sei que você também quer
descrição. Segundo porque daqui a alguns dias todos saberão. Eles, do Jardim,
vão exportar remédios para várias partes aqui da região. Para longe e para perto.
Para outros jardins e para moradores de mato. Provavelmente também para o
Grande Gramado. Aquelas plantas com as quais você infestou a cidade deles,
enfim vão servir para alguma coisa.
— O quê? É com aquelas plantas que eles vão fabricar esses remédios? –
perguntou espantado Bola.
— É! Claro! Com as plantas curativas! Não é isso que elas são? –
completou Dourado.
— Mas elas não são perigosas? Dizia-se no Jardim que não havia ainda
certeza dos danos que elas poderiam causar alongo prazo. – insistiu Bola.
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— Pois tudo já foi comprovado, segundo eles. Agora eles estão dizendo
que só precisam de insetos corajosos e jovens para levar a descoberta aos lugares
mais distantes desse mundo. A outros matos e gramados. A jardins longínquos. –
explicou Dourado.
— E o que eu tenho a ver com isso? Eu nem forte sou! – ressaltou Bola.
— São três os motivos porque querem você, e a mim também. Eles me
pediram para te explicar... Quanto a você, primeiro: você é inteligente. Segundo:
é de família de poucos filhos. Sua morte não teria impacto para o sustento da sua
família. Terceiro: uma semente... Há uma planta que eles acabaram perdendo.
Eles sabem que só você pode ajudar nisso. Falou-se que você ainda teria
escondidas sementes dessa planta. Ela é rara, mas não é tão difícil de
domesticação. E a proposta é a seguinte: você terá seus direitos de morador do
Jardim dos Insetos restituídos. Seu crime será esquecido, mas só se você nos
ajudar nessa missão que será boa para toda a população do Jardim. E eu poderei
morar definitivamente no Jardim, como sempre quis e sonhei! O que você me
diz? – perguntou o besouro.
— E de quem vem essa ordem? – também perguntou Bola.
— Do governador! Diretamente dele. – respondeu Dourado.
— Para que não ajam dúvidas, eles disseram que você poderá falar com
ele para se certificar. Uma ordem também dele. – completou o besouro.
— Impressionante como as coisas mudaram rápido. – provocou Bola.
— Na natureza é assim mesmo! As coisas são rápidas! – respondeu
Dourado.
— Engraçado, não é o que eu lia a respeito. Na natureza... – falou Bola,
desistindo no final de explicar ao besouro que as coisas na natureza acontecem
gradualmente.
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O Jardim dos Insetos
As coisas, como foram propostas por Dourado, pareceram a Bola até
tentadoras. Voltar ao vergel e continuar a vida lá como antes. Sem restrições e
impedimentos. Mas Bola pensava e muito sobre toda aquela reviravolta que
acontecia em menos de ma estação. Já não tinha notícias do Jardim dos Insetos.
Como estavam as coisas por lá. Era óbvio que essa mudança de mentalidade dos
governantes tinha um motivo ainda obscuro para ele.
— Amanhã eu passo aqui para pegá-lo e irmos para o Jardim. Você
recomeçará sua vida. Eu iniciarei a minha. Isso aqui nunca foi vida. Você e eu
teremos uma nova chance. – explicou o besouro dourado.
No dia seguinte foi o que aconteceu. Bola fora acordado pelo besouro que
parecia ter pressa. O tatu-bola e Lila se despediram. Ele já havia lhe explicado
tudo. Contara tudo o que havia conversado com Dourado. Lila não quis ir com
eles também. E nem o besouro sabia se ela poderia. Lila dissera que sua vida
estava ali. Lila o alertara bastante sobre a vaidade e a ganância do besouro.
Também sobre o que seriam capazes certos membros do governo do Jardim.
Bola foi sobre o besouro voando até o vergel. Passou pela Cerca Viva e já
o esperavam para saber dele como recuperar a planta perdida. Era de extrema
importância para os interesses do Jardim, segundo disseram os governantes.
Era impressionante para Bola a passagem de criminoso exemplarmente
punido, para um ajudante do governo, naquilo que as próprias autoridades
classificavam como primordial para o vergel. Ele se interessara não só por voltar
a viver no Jardim, mas também para retificar sua imagem junto a todos os
habitantes.
Mal chegaram ao vergel e já foram diretamente para a reunião tão
esperada e importante. Bola achou estranha tanta pressa. Queriam dele logo a
ajuda. Parecia que as coisas seriam tratadas de um jeito bastante informal. Logo
que começou a reunião, ficou claro quando o governador disse: “sem
sentimentalismos, pois, já estamos perdendo tempo”.
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— Bem, você é aquele rapaz expulso há pouco tempo do Jardim por
rebelião. Loucura da sua parte, mas estamos dispostos a perdoar tudo desde que
você colabore conosco. Você nos causou muitos problemas, mas agora pode se
desculpar com todos nessa missão que vai mudar os rumos da nossa cidade;
trazer novas perspectivas ao nosso jardim e melhorar muito a vida de toda a
população. Disseram-me que você é inteligente, o que conta muito a seu favor
nesse momento, e que nunca antes também tinha feito nada que desabonasse a
sua conduta. Há alguns poréns que devem ser tratados o quanto antes. Primeiro: a
planta que precisamos para a fabricação de alguns remédios... Preciso saber o que
você sabe sobre ela. Se já lhe disseram qual planta é e como estamos a respeito
dela. – iniciou a discussão o governador.
— Não. Eu ainda não sei qual é. – respondeu Bola.
— É a betumeira. Nós a perdemos e dependemos dela agora para que os
negócios dêem certo. Você dispõe de sementes dela ou sabe onde encontrá-la? –
perguntou a Autoridade Jardinal.
— Sementes eu não tenho, mas sei onde encontrá-las. – explicou Bola.
— Você iria ainda hoje lá para que não aja perda de tempo?! – perguntou
mais uma vez o governador.
— Se for imprescindível e para o bem do Jardim, sim! – respondeu Bola.
— É imprescindível! Tenha certeza disso! Você terá tudo o que precisar
nessa busca! – enfatizou o governante.
— Tratemos agora dos outros detalhes dessa nova empreitada do nosso
Jardim. Quem trabalhará nas várias frentes do projeto... Temos que definir quem
continuará na fabricação dos remédios, quem trabalhará na distribuição e quem
ficará com a produção das plantas. – disse o governador.
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O Jardim dos Insetos
— Na verdade, governador, nós já temos quase tudo definido a não ser a
parte de distribuição, de entrega dos remédios já prontos. Quase ninguém quer se
arriscar a participar. Ainda mais com os salários que oferecemos. – disse um dos
presentes, uma Autoridade Jardinal.
— Eu tenho uma idéia. – inseriu-se de novo na discussão Bola.
— Então diga, meu jovem! – exclamou o governador.
— Nós podemos utilizar as cigarras do gramado. Seria uma grande rede de
entrega pelos mais variados lugares. Aproveitamos enquanto elas estão em suas
épocas de reprodução, saindo do chão para cantar. – explicou Bola.
— Mas e depois, governador? Quando já estiver passado a época das
cigarras e elas voltarem para o solo? Como será? – inquiriu uma das autoridades
num tom de desconfiança quanto à validade da idéia.
— Depois nós arranjamos outros para substituí-las. De início as cigarras
são ótimas e nos servem muito bem. A idéia é ótima e está aceita. – sentenciou o
governador.
— Assim podemos ajudá-las. Melhorar sua situação de não poderem
trabalhar por terem uma vida tão curta. – explicou Bola.
— Então que seja assim! – foi tudo o que disse a Autoridade Jardinal
máxima.
Bola, assim que acabou aquela que fora a primeira reunião, o primeiro
contato com aqueles que tão bem o puniram, foi direto dormir. Tinha sido um dia
e tanto! Tudo por uma tentativa de consertar o passado. Por mais que soubesse
como tinham sido as coisas, Bola sentia uma ponta de arrependimento e remorso.
Na casa que muito bem disponibilizaram para ele, para aquela primeira noite,
pensou sobre como tudo estava correndo. À noite, entrando um pouco pela
madrugada, refletiu muito. Tinha tido uma excelente idéia: ajudar as cigarras
oferecendo-lhes aquele trabalho de distribuidoras dos remédios. Elas precisavam,
pois, há muito não juntavam
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recursos. Elas eram perfeitas para a ocasião. Cantariam o quanto quisessem e
aproveitariam para fazer as entregas. Firmariam novos negócios por onde
passassem. Porém Bola... Seu sonho de voltar ao Jardim para retomar sua
atividade mais do que elogiada de mestre-cuca de doces estava adiada agora que
trabalharia para o governo. As caçadas de madeiras nobres em ponto de
fermentação que só ele sabia e as receitas de pratos das mais finas iguarias doces
estavam proteladas.
A nova empreitada do Jardim “rumo ao progresso”, como disse o
governador, se bem conduzida, daria bons frutos. Mas Bola pensava mais nas
cigarras do que no progresso. E foi ter com elas. Acompanhado de uma pequena
comissão jardinal seguiu rumo ao gramado, para falar-lhes.
Algumas já haviam saído do chão e já cantavam por todo o gramado. A
quantidade ainda era pouca, só algumas cigarras a cantar sem parar. Essas
segundo um dos membros da comissão que estava com Bola, é que deveriam ser
aliciadas. Bola achou estranho o termo “aliciadas”. Quando questionado, o
membro da comissão e representante do governador tratou logo de trocar o que
dissera para “convidadas”. Dessa forma eram essas cigarras que deveriam ser
treinadas para entregar os remédios. Assim as demais quando nascessem já
saberiam como agir com as já entregadoras de remédio.
Bola organizou uma reunião com as cigarras e lhes explicou qual era sua
proposta e como seriam os seus trabalhos. E óbvio queria saber delas se
aceitavam a tarefa. As cigarras recém saídas do chão, ainda meio perdidas no
mundo à tona, não sabiam bem se teriam alguma vantagem naquilo. Até que uma
cigarra que falava cantado mais alto que todas, cantou pedindo silêncio e disse o
que pensava.
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O Jardim dos Insetos
— Nós não confiamos nesses governantes do Jardim dos Insetos. Ficamos
sabendo aqui agora que nossos ancestrais foram expulsos de lá há anos.
Definitivamente não temos confiança neles. Mas nós sabemos quem é você, que
foi capaz de sair do Jardim e se arriscar aqui fora. Tudo por um amigo. Em você
nós confiamos! Agora vamos logo dizendo: nós não aceitaremos uma trapaça
sequer. Principalmente daqueles que nem sabem como são as coisas aqui. Pode
não parecer, mas nós temos como deixar nossos conhecimentos e o modo como
sempre vivemos para nossos descendentes. Eu acho que é nisso que esses
manipuladores de jardim tanto confiam. No fato de que nós não temos como
transmitir aquilo que aprendemos com o tempo. Pensam que só porque vivemos
pouco, só cantamos por duas semanas e depois voltamos para debaixo do chão
somos estúpidas. Isso é um segredo nosso. Algumas coisas subvertem a ordem
normal. Essa é uma delas. Nós sempre resistiremos! – assim discursou a cigarra
que parecia uma líder nata daquelas que sempre se viram de alguma forma
injustiçadas.
E começou aquilo que foi um serviço de entregas com direito a música.
Eram cigarras cantando e entregando os remédios fabricados no vergel para todo
canto possível. Elas tinham direito a entrar no Jardim quando entendessem e
saíam carregadas com os frascos de remédio. A receita com as vendas deveria
estar andando às mil maravilhas, pois, as vendas eram muitas e a todo momento.
Mas a alegação do governador às cigarras era outra. Segundo o combinado, o
pagamento a cada três dias, já que as cigarras têm uma vida curta e queriam
aproveitar logo o fruto de seus trabalhos. O governador por outro lado, dizia que
não era bem assim. Dizia que o início seria conturbado quanto ao equilíbrio das
contas. Depois sim, viriam os lucros. Mas para Bola estava claro: o governador
se recusava a pagar as cigarras. E o pior: Bola suspeitava que ele estivesse
esperando só a morte delas para não ter que pagar a ninguém. Já estavam na
quarta semana e nada de pagamento. Era nítida a má intenção do mandatário e
seus asseclas.
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Quando já estavam prestes a “voltar para o chão”, expressão utilizada
pelos bichos como eufemismo do real fim das cigarras, que era a morte, elas
reclamaram os seus respectivos pagamentos.
— Ao menos para deixar aos nossos filhos! – disse uma das cigarras,
extremamente magoada com aquela situação.
Mas acabaram morrendo sem que houvesse pagamento. A reivindicação
dos herdeiros seria no mínimo tardia. Só dali a um ano. Entre as cigarras todas
são irmãs, pois, convivem sob o chão por muitos anos. Até lá a certeza era de
descaso e impunidade. Quem reclamaria por elas?
E quem aceitaria, depois de tudo o que aconteceu às cigarras, o emprego
de entregador de remédios? Por livre e espontânea vontade, só um idiota. Fora
uma lição e tanto para os moradores do gramado. Na primeira tentativa de
aproximação entre aqueles dois mundos, o que acontecera fora muito
depreciativo para a reputação do vergel. Eles que tanto pregavam que os
moradores do gramado eram verdadeiros selvagens, agiram de forma pior.
Com o término da época das cigarras a revoada não passou a ser menor.
Alguma coisa acontecera para que parecesse que ainda havia cigarras voando por
todo lado. Era uma revoada de insetos sem fim. O céu estava todo poluído de
tanto bicho que ia e vinha. Só que não eram insetos de um tipo só. Era todo tipo
de inseto voando. Também pelo chão havia vários tipos deles rastejando e
pulando. E de todos os lugares. Uns vinham de um lago próximo, outros de
matos distantes e de um parque público mais adiante. Era uma mistura de insetos
de vários tipos e de vários lugares. Havia também aranhas, escorpiões e outros
tipos de bichos. Mas por que aquilo? Seria uma revolta contra o que fizeram às
cigarras. Teriam assim, os bichos daquele gramado se organizado após o ocorrido
com as cigarras.
— Bola, porque estão todos voando e por todo lado? Você os contratou? –
perguntou Lila.
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O Jardim dos Insetos
— Não! Sinceramente, eu não sei quem são! – respondeu o tatu.
— Credo, parece que ficou todo mundo louco! Parece que está tudo sem
lógica. – disse a libélula.
— O pior é que estão comendo tudo! É uma nuvem faminta! São bichos
aqui do gramado e de outros lugares destruindo pela fome tudo o que vêem pela
frente. Eles se chocam no céu, caem e se levantam para mais selvageria! –
respondeu mesmo que não perguntado Bola, de tão confuso com aquilo tudo que
acontecia a sua frente.
— Temos que descobrir o que está acontecendo! O porquê disso tudo. Ou
tudo será destruído! – exclamou Bola.
Assim saíram Lila e Bola, o tatu de novo de carona na libélula, para saber
o que ocorria. O porquê daquela selvageria e espécie de rebelião, mesmo que
descontrolada. Lila e Bola voaram por todos os lados e viram muitas coisas:
bichos voando, pulando, rastejando-se, uns passando por cima de outros. Uma
outra coisa também muito os preocupou. Era o que poderia ser a perpetuação de
tudo aquilo, daquela rebelião não combinada. Ovos! Ovos postos em todos os
lugares! Nas árvores, nos arbustos, na grama, no barro e em construções
humanas. Seria uma nova catástrofe que não acabaria simplesmente ali. E quando
aqueles ovos rompessem? Uma nova superpopulação nasceria. Depois outra, e
mais outra... Somava-se dessa forma, três catástrofes em pouquíssimo tempo. A
catástrofe das plantas, a das cigarras e por último a da superpopulação de bichos
do gramado e de outras partes.
A causa, uma barata lhes explicou e então entenderam definitivamente.
— Com aqueles remédios, nós insetos agora vivemos mais e assim
reproduzimos mais. Todos querem tudo. Viver muito, comer muito, procriar
muito. – disse a barata.
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A situação exigia uma medida e imediatamente. “Como estaria o Jardim a
uma hora dessas?”, pensou Bola. Foram o mais rápido para lá, Bola e Lila. Lila
voava o mais rápido que podia. No meio daquela confusão celeste foi deveras
difícil. Desviava-se o tempo todo dos bichos cheios de fome que pareciam
desorientados, sem a menor noção e medo.
Lila e Bola chegaram e logo se impressionaram com o que viam sobre a
Cerca Viva. Havia bichos de todo tipo: insetos e parecidos com insetos. As
saúvas e as aranhas se desdobravam para conter aquela invasão esfomeada. As
saúvas atacavam os animais rastejantes e as aranhas os animais voadores. Era
evidente que os insetos do gramado queriam comer também o que tinha no
vergel. Bola mais uma vez pôde entrar nele sem restrições das saúvas. Ele tinha
medo que até isso já tivesse mudado. Foi direto falar com as autoridades.
Acabaram deixando que Lila também entrasse com ele. Queria saber o que eles
tinham em mente numa hora como aquela. A cidade ameaçada de destruição
total, eles, que eram os governantes, deveriam ter no mínimo uma solução.
— Nós não temos poder de fogo contra tantos bichos. Todas as nossas
defesas já estão em combate junto à Cerca Viva e nas teias de proteção aérea. –
explicou o governador.
— O jeito é tentar uma negociação! Tentar fazer com que desistam e
procurem outro lugar para suas selvagerias! – disse uma das autoridades.
— Seu tolo! Não se negocia com um esfomeado, muito menos com
milhares! Temos que resistir até enquanto pudermos! – exclamou o governador.
— Eu sei como detê-los, e sem que se machuquem ou morram. – disse
Bola.
— Como, jovem?! – perguntou vários presentes ao mesmo tempo.
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O Jardim dos Insetos
— Se conseguirmos ligar um daqueles irrigadores, nós os expulsamos com
água. É só fazer peso junto ao botão que aciona o irrigador. Depois tampamos
alguns buracos e apontamos alguns jatos d’água na direção deles. – explicou
Bola.
— É isso! Vão e juntem o máximo de insetos que conseguirem.
Expliquem que é uma questão de sobrevivência. – disse o governador. Logo em
seguida chamou uma das autoridades e falou-lhe bem baixo para que só ela
ouvisse.
— Quando os irrigadores estiverem ligados... – ia dizendo o governador
quando saiu da sala com a autoridade.
— Os irrigadores? Não iria ser só um? – perguntou a autoridade.
— Para matarmos todos eles de uma vez por todas, só ligando vários
irrigadores. E quando eles já estiverem ligados, faça com que alguns que
estiverem trabalhando nessa investida, reúnam pedras e as joguem em frente à
água. Assim funcionará como um canhão de guerra humano. Dessa forma
destruiremos esses selvagens que não sabem viver em paz! – sentenciou mais
uma vez o governador.
E correu um decreto que foi passado de boca em boca pelo por todo o
Jardim através das autoridades. Todos, com exceção das saúvas e das aranhas,
deveriam se dirigir aos irrigadores imediatamente. Cada inseto avisado deveria
informar o mesmo aos insetos que encontrasse pelo caminho, não importando o
que estivesse fazendo. Quem descumprisse a ordem governamental estaria
sujeito à pena capital, ser entregue às aranhas.
Os insetos se amontoaram em cima dos botões de acionamento dos
irrigadores para fazer o peso mínimo suficiente para ligá-los. A água saía e
alguns dos bichos buscavam e jogavam pedras em frente à água. Foram
verdadeiros tiros que derrubavam primeiro os insetos que voavam tentando furar
o bloqueio das aranhas. Depois foi a vez dos bichos que tentavam entrar pela
Cerca Viva. Melhor de novo para os insetos do vergel.
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As aranhas e as saúvas, já avisadas, abrigaram-se saindo da Cerca Viva e da teia
de proteção aérea. Foi um ataque d’água intercalado com pedras. A perda entre
os bichos do gramado foi total. A baixa entre os insetos do Jardim foi pequena.
Muitos do gramado morreram quando as pedras foram atiradas junto à água.
Outros também morreram afogados no mar de lama que virou o vergel. As
plantas ficaram bem danificadas e também a casa de muitos. Praticamente todo o
Jardim. A reconstrução daquilo tudo não seria fácil e nem barata.
Os bichos do vergel contavam com uma grande ajuda: sempre que
acontecia alguma coisa mais grave o Jardim era novamente reparado pelo
jardineiro do prédio. O jardineiro naquelas horas era sempre bem-vindo. Uma
mão na roda. Para replantar as plantas ornamentais que tanto interessavam aos
insetos e para secar aquele mar de lama que virara o vergel. Mas as perdas de
vida seriam realmente dolorosas e difíceis de se esquecer...
Mas ainda havia um problema que importunava as autoridades e agora
também a população: os ovos deixados pela superpopulação faminta que fora
toda morta. O que aconteceria quando aqueles ovos eclodissem? Certamente uma
nova onda de fome e uma nuvem sem fim de animais esfomeados. A vida de
todos estaria mais uma vez em perigo! A depender das autoridades, não...
Destruir os ovos! Essa foi a solução sem meias palavras dos mandatários.
— Somos nós ou eles! São os nossos filhotes ou os deles! Vocês ficam
com quem? – disse no discurso em praça pública o governador.
Não tinha nada mais a ser feito a não ser destruir os ovos antes que
eclodissem. Assim pensava o governador e todo o seu grupo de asseclas. De
novo todos foram intimados a participar daquela nova missão: matar os insetos
do gramado ainda em ovos. Reuniram-se logo e saíram todos juntos,
O Jardim dos Insetos
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O Jardim dos Insetos
rumo ao gramado. Era só fazer o que com muita simplicidade fora combinado:
comer os ovos. A comida naquele momento estava sendo distribuída pelo
governo, as muitas plantas que serviam de comida estavam completamente
destruídas. O Armazém Governamental era o único lugar que ainda tinha
alimento. O racionamento foi logo uma solução adotada. Todos comiam o
mínimo possível. O governo não dava mais comida para a população alegando
que não havia mais. A fome era absurda e assim todos se dirigiram ao gramado.
Com a fome que estavam, comeram praticamente todos os ovos, quando não, até
as plantas.
Bola ficou impressionado quando soube o que acontecera. Recusara-se a
participar daquela selvageria. Alguns disseram que provavelmente ele estaria
“bolando mais um plano louco”. Pensavam que principalmente ele, que planejara
muito da reação do Jardim rumo ao progresso, deveria ter participado da guerra.
A Guerra do Gramado, como foi batizada pelas autoridades já no dia seguinte.
Segundo Bola, um verdadeiro canibalismo. Assim descrevia, com essas
palavras, o que pensava sobre o ocorrido: “uma demonstração bizarra de
selvageria”. Muitos comeram ovos de bichos da própria espécie. Não tentaram
nem contornar o problema com um plano que não fosse tão cruel. Resolveram da
forma mais fácil e absurda. Um plano do qual ele não participara e que destruiu
toda a população do gramado.
Bola já morava de novo em sua antiga casa no vergel. Queria após a
Guerra do Gramado, encontrar-se com Grilado. Conversar com aquele que era
agora seu melhor amigo. A cidade só pensava numa coisa: reconstruir tudo outra
vez. Esperavam só que o jardineiro começasse a replantar, a pintar as pedras de
novo de branco, tirar o barro, ajeitar a grama e aí sim refariam as estradas e o
restante que dependia só deles. A guerra fora uma reviravolta no futuro de todos.
Mudara para sempre a vida ali. E a culpa daquilo ficou na boca dos insetos, tanto
literalmente, quanto numa discussão sem tamanho.
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Jean Rocha Teixeira Duarte
A maioria dos insetos não tinha assim tanto julgamento crítico para saber a fundo
de quem era a culpa. Mas ela ia de Bola a Bola e Grilado. A população mais uma
vez tendia fortemente a achar que a culpa não era dos governantes.
— Só uns jovens sem experiência para achar que podiam ter trazido
aquelas plantas aqui para o Jardim. – disse um inseto já idoso.
Mas antes que Bola procurasse Grilado, ele o recebeu em sua casa. O grilo
fora levar-lhe uma mensagem, uma mensagem do governo.
— Eu tenho para você um recado. É do governo. – disse Grilado depois de
cumprimentar o amigo com um forte abraço.
— Vamos ver o que é. O que eles têm para mim dessa vez. – provocou
Bola já abrindo a carta.
— Estão pedindo a minha presença no Caramanchão do Governo. O que
será dessa vez?! – continuou o tatu.
— Você soube de algum acontecimento novo. – perguntou Bola a Grilado.
— Não! Nem teria como. Aqui ninguém anda falando nada além da
reconstrução. A única coisa que esperam é pela reconstrução. – respondeu
Grilado.
— Você andou fazendo mais alguma coisa errada? – perguntou brincando
Grilado.
— Com certeza não! Mas o errado aqui é bem relativo dependendo das
circunstâncias. – observou Bola.
— Com menos insetos no Jardim agora, eu gostaria de saber como tudo
vai ficar. Quem agora vai fazer o quê para compensar essa falta. – refletiu sobre o
que se passava o grilo.
— Apesar de toda desgraça, depois de tudo o que aconteceu, as coisas
mudarão um pouco mais por aqui. Quem sabe... Eu tenho que estar ainda hoje à
tarde no Caramanchão do Governo para fazer não sem bem o que. Não deve ser
coisa boa... – completou Bola terminando a conversa sobre aquele assunto.
O Jardim dos Insetos
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O Jardim dos Insetos
— Eu também tenho uma coisa para lhe contar? – confessou Bola.
— O que tatu-bola inconformado? – indagou Grilado.
— É uma coisa bem séria e que eu já deveria ter-lhe dito! – completou
Bola.
— Eu acho que já sei do que se trata... – surpreendeu o grilo bom de
saltos.
— Como você saberia? Impossível! – analisou o tatu.
— Depois desse tempo todo, de todo o ocorrido eu acabei descobrindo que
Encaracolado não morreu. Eu preferi não te agora aborrecer porque não era
necessário. Eu fiquei assustado quando descobri, mas acabei entendendo com
muito esforço que o que você fez foi pela memória dele. Você estava exilado no
gramado, com a vida mais do que arruinada. Não precisa de mais isso sobre você
agora que está de volta. Embora confesse que fiquei com muito remorso, sentime traído. Mas agora tudo já passou. – explicou Grilado dando seu melhor
abraço, jamais antes dado a um inseto, ao amigo tatu-bola.
Os dois ainda se sentiam muito amigos. Sobreviveram a toda loucura que
fora a guerra contra os bichos invasores do gramado. Ambos tiveram perdas entre
amigos, assim como quase todos no vergel. Mas de quem fora a culpa de toda
aquela desgraça?
Bola cumpriu algumas coisas que tinha para fazer ainda pela manhã e foi à
tarde encontrar-se com as Autoridades Jardinais. Estava decidido a não se
envolver mais com eles. Já havia recuperado seus direitos como cidadão e não
devia mais nada. Assim pensava o tatu-bola.
— Sente-se para conversarmos. Nós já nos conhecemos bem. Soubemos
que você se recusou a participar da Guerra do Gramado. Por quê? – perguntou
uma autoridade.
— Eu achei covardia! Havia outra maneira menos cruel de resolver o
problema. Não se precisava fazer o que foi feito. – respondeu Bola.
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Jean Rocha Teixeira Duarte
— E como você resolveria? – perguntou de novo, agora outro na Mesa das
Autoridades.
— Primeiro não matando, só expulsando. Usando só água, não pedras na
água. – explicou Bola.
— E os ovos que estavam no gramado, prontos para eclodirem e nos
devorar por completo? – perguntou a autoridade mais uma vez.
— Ninguém pensou sequer por um minuto... Em como não fazer aquilo.
Poderíamos ter recolhido os ovos e levado-os para longe. Assim eu preferi
manter-me imparcial naquilo tudo. – respondeu o tatu-bola.
— Imparcial! Afinal você mora aqui ou lá! Onde você cresceu e sempre
viveu? – desabafou gritando outra autoridade.
— Eu não faria diferença no massacre. Eu não sou bom nessa coisa de
matar. – disse Bola.
— Muito bem... O problema é que decidimos juntar os bichos que sempre
têm idéias boas assim como você para nos auxiliar nesse nosso novo projeto.
Você sabe que cometeu uma falta grave não tendo participado da guerra. Sabe
que pôs todos em perigo não assumindo sua responsabilidade na guerra. Sabe
também que não estamos lhe chantageando, que estamos lhe orientando. As leis e
as regras devem ser cumpridas por todos no Jardim. É assim e assim sempre foi.
– explicou uma das autoridades.
Bola se viu encurralado. Fosse o que fosse o tal do projeto, ele teria que
participar, para se livrar provavelmente de mais uma expulsão. A nova
empreitada, depois de explicada por uma das autoridades, pareceu bem simples.
Com a intenção de dar ao Jardim uma revigorada econômica, aceitava-se
pela primeira vez, depois que ele tornara-se um lugar fechado para bichos de
fora, novos moradores. Porém não eram quaisquer moradores.
— Como em tudo, precisa-se de critério. O nosso critério será
declaradamente econômico. – foi sincero a todos o governador.
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O Jardim dos Insetos
— E qual o problema nisso? – já emendou o governante máximo antes que
alguém contestasse.
A notícia correu para além do Grande Gramado. No Jardim dos Insetos
todos já sabiam também.
Em parte a população encontrava-se feliz com os benefícios que a nova
leva de moradores traria. Por outro lado, encontrava-se temerosa e desconfiada.
Quem tivesse de ir para o Jardim, iria de longe. Não havia mais ninguém no
gramado, muito menos com as credenciais exigidas. Se bem que todos sabiam
que o gramado logo, logo estaria de novo tomado por bichos vindos de longe.
Rapidinho toda aquela imensidão onde cabia muito bicho, seria alvo do desejo de
muitos. O gramado se tornara um lugar triste. Com a eliminação de toda a
população de insetos dali, também os outros animais que dependiam deles foram
embora. Tanto bichos parecidos com os insetos, como as aranhas, quanto animais
maiores como as aves e os sapos. Parecia mais um deserto. A continuar daquele
jeito nem as flores vingariam.
O comentário se espalhou muito mais rápido do que previram as
autoridades. Vários animais se dirigiram para o vergel para saber como passar a
viver ali. O Jardim dos Insetos ainda possuía a Cerca Viva e as teias das aranhas,
que eram o mínimo para que se mantivesse como sempre fora.
Mas maioria dos que pleiteava morada era recusada. Aí era voltar para
onde vieram. Às vezes para muito longe. Já outros poucos, eram aceitos. Todavia
alguns animais causavam tanto controvérsia quanto medo. Estava difícil
encontrar com facilidade insetos e outros bichos que cumprissem os prérequisitos para morar no vergel. Dessa forma o governo passou a aceitar mesmo
bichos que não eram assim tão confiáveis da população. Bichos que antes eram
repugnados por ela. Como, por exemplo: a lacraia, o escorpião e a vespa.
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— Eles têm o que os outros não têm. Recursos para nos auxiliar nesse
momento. Não precisamos de moradores que piore nossa situação. Mas de novos
residentes que nos ajudem. Não podemos aumentar a massa de pobres e
esfomeados! – disse o governador.
— Se quiséssemos morrer, não teríamos lutado! – concordou uma das
autoridades.
A triagem deveria ser minuciosa, porém não demorada, disse o
governador. Precisava-se outra vez dar dinamismo ao Jardim. Todavia ainda
esperavam uma coisa: que o jardineiro começasse o conserto no jardim. Sem uma
força absurdamente superior a deles, não adiantaria. Assim como os humanos
dependem dos insetos para uma série de coisas, eles dependiam daquele humano.
O prometido para os novos moradores era de que o jardineiro começaria a
consertar o vergel muito breve. Mas como garantir aquilo. Eles dependiam do
jardineiro assim como dependiam da chuva. E não podiam fazer nada tanto num
quanto noutro caso.
O povoamento já começava. Os novos moradores foram recebidos com
saudações e muita festa. Dentro das possibilidades para a época. Ainda sobre
muito barro, todos fizeram questão de deixar claro em juramento que a partir
daquela data todos seriam um só. A nova população esperava por dias em que
fosse bom lembrar-se que ali estava o melhor lugar em que um inseto poderia
viver.
Um certo dia um homem de botas conhecidas entrou no Jardim e começou
suas benfeitorias. Era o jardineiro! Havia agora um ar de renovação com o início
das obras. As autoridades decidiram começar a reconstruir alguns itens de infraestrutura com o início dos reparos do homem. “Oportunidades surgirão”, diziam
os governantes. Muitas atividades necessitariam de novos empreendedores. Bola
e Grilado estavam dispostos a começarem uma vida nova a partir dali. Serem
donos de algo que fosse realmente deles e de que pudessem se orgulhar.
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O Jardim dos Insetos
Bola tivera uma idéia genial. Os insetos do vergel já viviam mais tempo e
melhor com as plantas e não abriam mão delas. Cultivava-se por toda parte, mas
ainda escondido. Plantava-se nas ruas de forma que não virassem praga e quando
delas precisavam iam à noite e as colhiam. Viver muito era algo que ninguém ali
abria mão. O que lhes faltava era lazer. Prazer em viver mais. Não viver por
viver. Faltava diversão, diversão pura. Uma mudança de hábitos para que os
insetos aprendessem a se divertir, a aproveitar a vida. Só trabalho e conversas
isoladas eram muito pouco.
Quem desejasse começar algo, apenas deveria se cadastrar e pronto.
O Jardim tinha a fama de ordeiro e de ter tudo sob controle há tempos. Bola
pensou unicamente em Grilado para começarem o negócio. Mais uma aventura
dos dois.
— Novos tempos exigem uma nova mentalidade. – disse Bola a Grilado.
— É uma oportunidade e tanto. – respondeu Grilado.
— Com a chegada desses novos moradores, podemos ganhar divertindo a
eles e a todos. – continuou Grilado.
A idéia de Bola para o negócio que começariam era simples: com os
irrigadores fariam um brinquedo que divertiria a todos. Tanto lançando-os com
segurança nos jatos d’água, quanto fazendo-os rodar no aparelho. Tudo com
muita segurança. Ainda bolavam novos brinquedos em reuniões que duravam
noites inteiras. Queriam montar um verdadeiro parque de diversões ali. Coisa que
só se havia ouvido falar entre humanos. O próprio gramado, diziam os insetos,
era um lugar de divertimento para os humanos. Mas ninguém nunca soube
precisar ao certo. Os bichos do Jardim achavam aquilo estúpido. Pensavam que
havia coisas mais importantes a serem feitas.
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Grilado e Bola saíram anunciando e explicando o que aconteceria de
novidade na cidade naquele próximo final de semana. Começaram primeiro pelos
imigrantes recém chegados ao vergel. Eles eram mais acostumados a coisas
daquele tipo, que envolvia pura e simplesmente diversão. Porque tinham mais
experiência, conheciam vários lugares, e também porque tinham mais condições
financeiras. E realmente foram eles que melhor os receberam para ouvir sobre o
entretenimento que teria o Jardim dali para frente. Quase todos aceitaram o
convite para o primeiro fim-de-semana de demonstrações grátis. Se dependesse
de Grilado e Bola, o vergel também seria um lugar de diversão.
De manhã cedinho já havia vários dos convidados para aquele que
prometia ser o primeiro de muitos finais de semana de muita alegria. Havia filas
em frente aos brinquedos e muito bicho disposto a experimentar de tudo um
pouco. A maioria era formada por novos moradores do Jardim. Alguns ainda
desconfiados diziam que já haviam visto coisa melhor. Outros diziam que parecia
ótimo. Tudo muito bom, mas faltava uma coisa que acabou dispersando
rapidinho os pretendentes a clientes do parque: comida. Não tinha ninguém ali
vendendo algo para comer. Com o vergel ainda em recuperação, sem comida nas
ruas, os insetos se viram obrigados a irem para casa saciar a fome. Corria um
boato de que os recém chegados não comiam do que se tinha na rua. Frutos ou
sementes. Só comiam alimentos preparados e elaborados. Grilado e Bola agora
precisavam de quem quisesse ganhar ardidas com isso, vendendo alimentos em
frente aos brinquedos, no parque. As ardidas equivaliam ao seu mesmo valor
num tempero que, por ser muito apreciado e raro no Jardim, funcionava como
parâmetro para a moeda. Tiveram que recrutar os interessados rapidamente.
Depois passaram novamente por toda a cidade dizendo que agora teriam comida
já pronta no parque. Toda a propaganda fora feita mais uma vez. Embora antes,
os visitantes tivessem gostado muito dos brinquedos. Pelo menos até sentirem
fome.
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O Jardim dos Insetos
Bola e Grilado saíram para fazer toda a propaganda sobre o novo parque,
que agora contaria com comida para facilitar a vida de quem lá fosse. Também
mais outro final-de-semana gratuito onde se poderia brincar sem preocupações.
Dessa vez contaram também com a propaganda dos próprios bichos que já
haviam ido ao parque. Eles, quando perguntados, diziam que havia sido bom o
passeio, mas que só não havia alimento apropriado: a nova promessa de Grilado
e Bola para o parque.
Mais um final-de-semana chegara e com ele mais outra jornada para Bola
e Grilado. Fariam de tudo para que dessa vez tudo desse certo. Havia de novo
uma multidão de insetos esperando para se divertir. Além dos brinquedos, o
parque dispunha também de algumas piscinas para o divertimento de todos. Os
jatos lançavam os que brincavam longe com segurança. Eles caíam na água sem
se afogarem. Rodavam no irrigador e terminavam também por cair na água. De
novo com toda a segurança. Tudo corria como no previsto por Bola e Grilado.
Tudo correra perfeitamente, sem surpresas desagradáveis. Comida para todos os
gostos era vendida no parque. O sucesso foi total, com elogios de todos os
freqüentadores e promessas de retorno. De tão bom, parecia um sonho para o
tatu-bola e o grilo. Após tanto sufoco, com prisões e expulsões, eles se viam
muitissimamente bem. E as notícias corriam por todo o Jardim. No início eram
boas, depois...
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VI
Depois: más! As boas pareciam sinceras. As más, assim como as plantas
invasoras pareciam plantadas. Elogiava-se muito o parque de Grilado e Bola, mas
alguns boatos pairavam no esforço dos dois. Falava-se por toda a cidade, após o
sucesso do parque, que os brinquedos poderiam ser perigosos. Mas como se os
insetos quanto àqueles brinquedos estavam protegidos? Isso devido às suas
resistências naturais de insetos. Todo inseto possui uma carapaça bem resistente.
Os bichos que realmente não eram insetos, também não encontravam muito
problema. Além do que os brinquedos pareciam realmente muito seguros e
controláveis. Quando se cai na água tudo fica mais seguro. Em velocidade
controlada nenhum dos bichos corria risco de morte. Bola e Grilado pediram
auxílio a alguns especialistas do vergel que já haviam trabalhado inclusive para o
governo. O controle da força da água e a resistência natural dos bichos
assegurava tudo. Mas os boatos continuaram como um golpe baixo por parte não
se sabia de quem. Quando os insetos
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O Jardim dos Insetos
viram que realmente os brinquedos não ofereciam risco de acidente algum,
surgiu um novo e mais perigoso rumor. O governo avisava que caso alguém
fosse arremessado para fora do Jardim num dos brinquedos, ele não poderia
regressar. Ficaria caracterizada fuga da cidade. Rapidamente todos já sabiam
daquilo que mais parecia um decreto. Os visitantes, então, foram reduzindo a
freqüência ao parque até ele acabar abandonado, deserto. De qualquer forma
estava tudo pago e os dois ficaram até com algum lucro de todo o investimento.
Que todos se divertiram para valer com o parque, isso foi. Os brinquedos
faziam os bichos se esquecerem da recente guerra, da perda de parentes. Fora o
parque de Grilado e Bola, não havia muito com o que se divertir. Os momentos
de folga eram preenchidos mais com conversa. Nos finais de semana os insetos
iam visitar uns aos outros, e só. No mais, de vez em nunca as autoridades
organizavam alguma coisa em alguma data comemorativa. Geralmente bem
monótona.
Bola e Grilado voltaram mesmo para seus antigos trabalhos. Bola voltou a
ser mestre-cuca e Grilado carteiro. Decidiram esquecer tudo o que fosse relativo
ao parque. Tudo o que os fez crer que poderiam ser um dia o que viam em alguns
insetos do vergel: alguém importante e respeitado. Durante um mês, aquilo foi o
que de melhor já havia lhes acontecido. Mas agora era como se nunca tivesse
existido.
— Alguns bichos e coisas estão fadadas a nunca darem certo. – disse Bola
a Grilado, que preferiu não responder.
Uma atividade arriscada para a população. Isso foi o divulgado pelas
Autoridades Jardinais. Uma insegurança que punha em risco a população da
cidade dos insetos. A oportunidade se abriu, mas se mostrou bem traiçoeira.
Jean Rocha Teixeira Duarte
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Jean Rocha Teixeira Duarte
Acostumando-se de novo ao Jardim como ele era antes da Guerra do
Gramado, Grilado e Bola se surpreenderam certa tarde com um papel entregue
por um amigo em comum. Era a propaganda de um parque, um parque aquático
como o deles. E o mais sórdido: no mesmo lugar onde ficava o Parque das
Águas. Ele procurou os dois para lhes mostrar o panfleto que tinha nas mãos.
— Vocês ficaram sabendo do parque aquático que montaram no Jardim? –
perguntou inseto aos dois.
— Não. Que parque? Onde fica? – perguntou Bola.
— Adivinha?! No mesmo lugar onde ficava o parque de vocês! –
respondeu o amigo em comum.
— Eu não me surpreenderia com mais nada. – respondeu Bola.
— Agora, no parque deles, Se o bicho for lançado para fora do Jardim, ele
pode voltar e ainda ganha uma indenização! E por que com a gente não podia,
seria considerado um fugitivo do Jardim? Eu quero saber por quê! Vamos
descobrir agora! – disse de novo o amigo chamando Bola para ir perguntar às
autoridades.
O inseto amigo tinha ficado bem mais perturbado do que o grilo e o tatu
com a notícia do novo parque que ficava no mesmo lugar e usava as mesmas
ferramentas de jardim. Só que com a diferença de que os visitantes dele não
corriam o risco de serem considerados fugitivos do Jardim caso fossem
arremessados para fora por algum dos brinquedos. O camarada queria uma
explicação do porque do tratamento diferenciado. Ele assim como tantos ficara
sem a diversão que era o Parque das Águas. Também porque gostava de trabalhar
e ajudar no parque. Com os novos donos, as autoridades foram boas até demais.
Pelo menos se comparado com o tratamento dispensado ao grilo e ao tatu-bola.
Assim praticamente arrastou com ele Bola e Grilado, completamente
desinteressados, que fizeram de tudo para não ir, em direção à Pedra das
Pendências.
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O Jardim dos Insetos
— Nós precisamos falar com alguma autoridade que possa nos dizer o que
aconteceu. – disse o amigo indignado ao inseto que vigiava a frente da Pedra das
Pendências. Após explicar melhor ao vigia o que queriam, e depois de muita
espera, conseguiram entrar para saber de alguma autoridade por que os novos
donos do parque estavam sendo tratados de forma diferente.
— Simplesmente porque eles não são infratores como vocês! Eles são
animais distintos, que com certeza não nos trarão problemas! – disse o
responsável pela Pedra no momento.
— Só isso?! – perguntou o amigo de Grilado e Bola.
— Só?! É mais do que suficiente! – respondeu o funcionário.
Assim os três voltaram para casa, o amigo de Bola claramente mais
impressionado e revoltado com aquela situação do que o próprio tatu-bola e o
grilo. Grilado e Bola quase não falavam nada.
— Você se preocupa demais com essas coisas que sempre existiram. Não
se aborreça tanto assim. – aconselhou Bola ao amigo indignado e também ao
grilo que estava lacônico.
Foi cada um para o seu lado, para sua casa. O amigo, mais indignado que
os dois. Bola parecia conformado com tudo que lhe acontecera e lhe acontecia.
Finalmente ele se achava em paz com tudo o que era o Jardim, a ordem das
coisas e a natureza dos bichos.
Todas as semanas Bola e Grilado recebiam notícias de que o parque ia
muito bem e que crescia sem parar. Tanto em número de visitantes quanto em
tamanho. Bola continuava implacável em não querer mais discutir sobre o parque
com os bichos na rua. Dizia que tinha sido o curso normal das coisas.
— Quando não se tem muito a fazer, pelo menos não sentimos remorso. –
disse Bola aos que encontrava na rua.
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Às vezes Bola parecia um filosofo vazio e desenganado. Às vezes só
realista. A vida dos bichos do vergel, devido as suas naturezas, não era longa.
Mesmo com as plantas medicinais. Uma série de mentiras foi proferida inclusive
por ele, desde a história de Encaracolado. Desde que inventara que o amigo havia
fugido para convencer Grilado a sair com ele do Jardim, sua vida sofria os mais
graves reversos. O estranho era que Bola não percebia que acabara mudando a
história do próprio vergel com aquela “loucurinha”. Não que ele se orgulhasse da
mentira contada ao amigo grilo ou da guerra que acabara acontecendo, mas não
se via como o causador da reviravolta geral na vida no Jardim.
Talvez por isso Bola continuasse tão irredutível depois que tudo
acontecera. Parecia não se dar mais com filosofias sobre como deveria ser o
vergel. Ficara mais prático em tudo. Antes da invasão das plantas e da guerra, os
insetos nem discutiam como era viver ali. Depois começara uma onda de
esperança sobre mudanças que levaram alguns a sonharem alto demais. Um deles
foi Bola. E o tombo foi grande. O outro Grilado que o tombo também não fora
menor. Apesar de tudo os dois se mostravam bem serenos.
A bicharada se divertia para valer no novo parque. Ele já se tornara o
ponto mais freqüentados da cidade. Com o jardim todo reformado e a cada dia
ganhando uma planta mais bonita do jardineiro, parecia mesmo uma coisa da
qual ele precisava há tempos.
Uma noite, naquelas rodas de conversa que se alastravam pelo vergel, que
agora também tinha as histórias dos recém chegados como novidade, chegou um
inseto voando para contar a péssima notícia. O dono do novo parque que divertia
a todos nos finais de semana morrera. Na cidade todos já sabiam e se
entristeciam por ele. Uns choravam, outros só ficavam tristes. O dono era muito
querido por todos devido ao seu jeito bonachão e relaxado. O esquisito para
todos na roda foi que Bola e Grilado pareciam ter sentido mais a morte do velho
do que quase todos ali. Eles chegaram a chorar.
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O Jardim dos Insetos
O que todos pensavam era que havia ficado não só uma ponta de remorso, mas
todo o possível. Isso porque ainda pensavam que Grilado e Bola sentiam-se
enciumados com todo alarde e frisson com o Parque das Águas Claras. Afinal
eles teriam começado aquilo tudo e se viram substituídos por um forasteiro alémgramado ou sabe-se lá de onde. Um forasteiro bonachão e engraçado, mas um
forasteiro que só conseguira o parque com todas as regalias porque tinha ardidas
de sobra.
O grilo, então, virou-se para o resto dos bichos da roda. Olhando para
Bola, meio que esperando uma interrupção se fosse do desejo do tatu-bola, e
disse:
— Tem uma coisa que é melhor que vocês saibam através de nós mesmos,
do Bola e de mim. O Parque das Águas Claras na verdade era nosso também.
Tanto meu quanto do Bola. Ou melhor, ainda, é nosso. Nós conhecíamos o dono,
o Laycraw. Combinamos nós três de reabrir o parque. Só que aparentemente
sendo só dele para que não nos impedissem de reabrir nosso negócio.
Os bichos da roda ficaram boquiabertos. Mais do que surpreendidos:
espantados. Bola e Grilado sabiam mesmo como serem secretos e imprevisíveis.
Sempre apareciam com uma novidade incrível, mesmo estando bem
intencionados. O grilo e o tatu-bola não sabiam como se dar por vencidos. No
momento, segundo os dois, teriam que lutar pelo parque, pela herança a que
tinham direito.
Quando saíram dali, já tinham certeza de uma coisa: de que a notícia
correria toda a cidade como um raio. E era isso o que eles queriam. Que todos
soubessem e que assim não tivesse como nada de obscuro acontecer...
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O comentário no Jardim era um só naquele momento: o parque mesmo
com a morte de Laycraw ainda tinha donos. Eram Grilado e Bola. E os dois,
foram à Pedra das Pendências reclamar os seus direitos sobre o Parque das Águas
Claras. Afinal era justo reaverem tudo aquilo que ajudaram a construir, mesmo
que na surdina. E lá se foram para reivindicar seus direitos. Quando lá estavam,
as autoridades mostraram já saber que eles eram os donos e que tinham direito ao
parque. A notícia realmente chegara a todos os confins da cidade, inclusive às
autoridades. Por isso os governantes demonstraram total conhecimento do caso.
Bola e Grilado já esperavam!
Fora uma atitude inteligente fazer com que todos no vergel soubessem que
eles também eram donos do parque. E de papel passado... O testamento que cada
um dos três sócios deixou foi em nome dos outros dois. Grilado e Bola queriam
que os moradores tivessem uma opinião antes de qualquer possível manobra
arbitrária de alguma autoridade. Temiam que fossem inventadas mentiras
quaisquer que os impedissem de retomarem o parque. Se o parque precisasse de
um outro dono de mentira e de fachada, outro estrangeiro, eles arrumariam. Sem
problemas... O importante, segundo Grilado e Bola, era que o parque continuasse
no Jardim, levando alegria a todos. Os insetos eram outros depois do parque. Já
se pensava em outras diversões que certamente dariam certo, assim como o
Parque das Águas e o Parque das Águas Claras.
Bola percebera rapidamente o que os esperava e tratou logo de repassar a
Grilado o que pensava: deveriam se preparar para mais um embate com a Justiça.
Também para uma série de tentativas de manipulações e de provocações banais.
Às vezes até ficavam meio confusos e em dúvida sobre quem naquela confusão
toda realmente tinha razão.
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O Jardim dos Insetos
Bola e Grilado estavam na Pedra das Pendências para provar que o parque
era mesmo deles. Todos seus esforços não ficariam facilmente para o governo.
Eles eram a partir dali herdeiros legítimos. Mas como já sabiam, a contenda seria
mais do que disputada. E com o embate com as autoridades aproximando-se,
rapidamente tudo se confirmaria...
— Por que vocês não se declararam também donos do Parque das Águas
Claras? – perguntou o juiz a Bola e Grilado, indicando que Grilado falasse
primeiro.
— Porque nós não víamos necessidade disso. Não era preciso. –
respondeu Grilado.
Depois o juiz acenou para Bola para que ele respondesse também.
— Foi por isso, senhor juiz. Apenas por isso. – confirmou Bola.
— Mas foi obscuro isso que vocês fizeram! Fazer com que todos
acreditassem que o parque era só de uma pessoa quando também vocês eram
donos. Pousam sobre vocês a suspeita de que teriam intenções terceiras. Por isso
não disseram serem igualmente proprietários do Parque das Águas Claras! –
afirmou o juiz.
Já quase no fim do julgamento, Bola que percebia quase tudo já perdido
para as autoridades pediu a palavra ao juiz e disse:
— E quais intenções foram comprovadas a nosso respeito? O que nós
fizemos de errado, afinal? – perguntou Bola.
— É aí que está! Nunca saberemos! Eu não acho que vocês devam ficar
com o parque como herança. Também não acho que mereçam. Caso contrário
ficariam. Não pura e simplesmente o merecimento por terem sido donos, mas o
merecimento por uma série de coisas. Coisas estas que nunca demonstraram e
nunca terão. Reintegro o Parque das Águas ao Jardim, ao governo dessa cidade.
E é tudo. – determinou o juiz.
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Os bichos que assistiam ao julgamento ficaram entristecidos por Bola e
Grilado, mas não surpresos com a decisão das Autoridades Jardinais. Elas já
haviam sido, sob a ótica da população, severas com eles. Mas pela primeira vez
acontecia algo que jamais acontecera: uma manifestação se instalara no Jardim
dos Insetos! Era bicho se reunindo por todo lado. E todos os grupos se
encontrando no mesmo lugar, em frente à Pedra das Pendências. De imediato
vendo todo aquele alvoroço, toda aquela multidão de insetos em frente ao
segundo lugar mais importante da cidade, as autoridades deduziram de novo
errado. Acharam que foram Grilado e Bola quem organizaram aquilo. Afinal a
concentração fora tão rápida e ao mesmo tempo tão sincronizada, que parecia
mesmo que alguém exercia algum tipo de liderança. Desfecho: Bola e Grilado
presos.
Em frente à prisão mais manifestações. Não haveria saúvas suficientes
para segurar tanto bicho. Eram insetos e outros tipos de bichos por todo lado. A
multidão gritava uma coisa só: “soltem Bola e Grilado”. Repetidas vezes... Sem
parar! Os animais tinham uma atitude bem espontânea. Mas seria um sentimento
de justiça, a necessidade de correção de um erro, ou medo de ficar sem o parque
com todas as suas diversões?
O fato era que os dois sabiam como pôr o parque para funcionar. Só eles e
Laycraw sabiam como. Sem o tatu-bola mestre-cuca e o grilo carteiro não
haveria ali a mesma alegria de antes. Não haveria mais o parque funcionando. E
eles não estavam dispostos a passar aquilo que aprenderam sozinhos, nem pago.
O funcionamento dos brinquedos, não só nos irrigadores, dependia de uma
técnica que só Grilado e Bola conheciam. Eram muitos detalhes. Quando o
governo tentou pôr os brinquedos para funcionar depois que o parque foi
declarado perigoso, aconteceu muito desastre para um parque só.
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O Jardim dos Insetos
Bola e Grilado já haviam deixado claro a todos na roda onde deram
primeiro a notícia: eram também donos do Parque das Águas Claras e não
repassariam a ninguém como se punha aquilo para funcionar caso não ficassem
com ele. Aquilo era mérito deles e, portanto, eles deveriam se beneficiar de tudo
o que haviam descoberto e desenvolvido com muito esforço. Assim a alegria do
vergel, num trocadilho, já bem arraigada, dependia a partir dali dos dois.
Os insetos em frente à Pedra das Pendências se afligiam com a situação do
grilo e do tatu. Era a primeira manifestação que o Jardim via desde que fora
criado. E para o desgosto total dos dois, já estava decidido e inclusive dito no
tribunal que o parque funcionaria no primeiro final de semana após o julgamento,
com os lucros sendo revertidos para o governo. Mas a manifestação ficou só nos
gritos...
Uma coisa, porém surpreendeu e mexeu muito com Grilado e Bola; a
população decidiu não mais culpá-los pela briga com o governo. E melhor: não
freqüentavam mais o parque na administração do governo. O juiz deixou claro no
julgamento que os dois estavam proibidos de montarem outro parque que
competisse com o do governo e também de freqüentá-lo.
Uma noite, Bola dormindo, muitos dias após a perda do segundo parque,
acordou espantado com o que sonhara. Quis ir à casa de Grilado lhe contar, mas
ainda era madrugada. Ficou acordado até o dia clarear pensando no que havia
sonhado e fazendo várias anotações. Logo quando amanheceu foi encontrar o
amigo grilo para lhe contar o sonho e o que anotara até amanhecer.
Bola encontrou Grilado próximo à pedra onde morava, já saindo para
trabalhar em sua antiga rotina diária depois que acabara o parque aquático.
— Tudo bem? O que o traz aqui tão cedo? – perguntou Grilado logo que
viu Bola em frente de sua morada.
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— Eu tive um sonho, quero lhe contar! – respondeu tatu-bola.
— Sonho? Eu pensei que só os insetos sonhassem. Você nunca me contou
um sonho! De qualquer forma, só à noite, após minha jornada com as cartas e as
mensagens. Agora não teríamos tempo. Já estou em cima da hora! Pelo caminho,
igualmente não seria bom, com esses meus pulos todos você nem conseguiria
falar. – explicou o grilo.
— Está bom! Eu volto aqui após seu horário de carteiro. – disse Bola já
saindo também.
E Bola passou o dia inteiro com o sonho na cabeça, querendo contar para
alguém e não podia. Queria dividir aquele segredo só com o grilo que virara seu
melhor amigo. Não contaria a qualquer um. Realmente tinha algo de especial
naquilo. Um sonho, geralmente, não exige tanto segredo assim. Seja engraçado,
seja esquisito, conta-se a qualquer um. Se for o caso de que tenha sido ridículo
demais simplesmente se cala. Mas o tatu-bola queria contá-lo, mas só ao amigo.
Ao amigo de tantas aventuras e confusões.
Com o dia devidamente transcorrido, lá se foi Bola para a casa do grilo.
Agora teriam tempo suficiente para saborearem a mais nova “loucurinha” do
tatu-bola...
— Eu tenho mais uma idéia para ganharmos ardidas nesse lugar! Talvez
você nunca tenha ouvido falar em algo parecido! É simplesmente demais! É um
lugar onde os animais podem ser cantores. Basta querer. Qualquer um pode ser
uma cigarra, até um sabiá. – explicou Bola.
— E como? – indagou Grilado.
— Nós montamos um grupo onde cada um, numa função, faz as vezes de
uma orquestra. Como a que se apresenta no gramado. Aquela de humanos. Ali os
bichos cantarão sendo guiados por quem realmente sabe cantar. – completou
Bola.
— Mas nem todos insetos sabem cantar. – insistiu Grilado.
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O Jardim dos Insetos
— Você não entendeu?! Vários cantando juntos, ao mesmo tempo, as
desafinações ficam imperceptíveis. Vai ser uma incrível fábrica de sonhos para
quem sempre sonhou em ser uma cigarra ou um pássaro canoro. Fazendo sua
própria música... Qual inseto, por mais medo que já tenha sentido deles, não se
encanta com o canto de certos pássaros? – explicou melhor Bola.
— Olha Bola... Devo te confessar.. A sua idéia é muito boa! Mas agora
tudo o que fizermos será pretexto para que as autoridades nos tomem isso
também, caso dê certo. Seu sonho não é estúpido, assim como nenhum dos
outros foram... Mas corremos esse risco. – considerou o grilo querendo ser o
mais realista possível.
Os músicos da orquestra corrigiriam e direcionariam o canto dos
desafinados. Tudo parecia mágico. E também mágico pareceu quando Bola e
Grilado resolveram pôr o plano em prática.
— O lugar vai se chamar A Casa dos Novos Cantores! – adiantou Bola ao
grilo.
De novo os panfletos saíram cidade a fora sendo entregues por ajudantes e
futuros membros da Orquestra dos Novos Cantores. Todos já sabiam onde
poderiam ouvir música e também cantá-las. E na primeira noite o regente A Casa
já estreou com lotação total.
No início quase todos estavam bem tímidos quanto a cantar e praticamente
só ouviam os insetos da orquestra. Mas aos poucos foram se soltando e todos já
cantavam e aprendiam uma coisa: podiam, sim, cantar. Alguns até melhores que
as cigarras e pássaros. O sucesso foi estrondoso e os insetos só esperavam pela
próxima noite em que poderiam cantar e espantar seus males.
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Na segunda noite o mesmo sucesso... Os insetos jovens, velhos e filhotes
cantavam sem a menor pretensão e vergonha, alguns de forma excelente.
Cantavam e seus males espantavam, e cada vez mais. Nunca houvera coisa igual,
pelo menos que se tivesse notícia em toda aquela região.
Insetos que não eram de canto, cantando como pássaros e cigarras.
O conjunto musical que acompanhava os cantores só esperava por suas vozes.
Uma banda com vários grilos friccionando uma perna na outra, cada um numa
força tal que permitia uma série de efeitos sonoros. Outros insetos usavam
instrumentos de sopro e de percussão no acompanhamento. Ficava tanto bonito
quanto afinado e eficiente. Pela primeira vez pensava-se até na formação de uma
orquestra própria do Jardim dos Insetos.
Quando a noite caía e todos estavam em casa, os insetos do vergel já
sabiam onde espantar seus males. Porém um rumor sobre A Casa dos Novos
Cantores se disseminou. Dizia-se que à noite não se ouvia mais grilos cantando
como antes da criação da banda. Quem dizia? As Autoridades Jardinais! Elas
queriam saber por que isso estava ocorrendo. Explicaram que isso acontecia
porque os grilos estavam agora trabalhando como músicos na Orquestra dos
Novos Cantores. Queriam seriamente conversar com Bola e Grilado sobre o fato.
Quanto á tal autorização não haveria problemas. A Casa dos Novos Cantores não
era um comércio! Vivia de doações, de colaborações espontâneas!
Porém a verdade era que ainda havia muitos grilos “fazendo a noite”,
como se dizia no vergel. Grilado sabia disso porque era grilo e amigo de todos
eles. Mais uma vez estava claro: os dois, Grilado e Bola, estavam sendo
perseguidos pelo governo do Jardim.
O lugar onde os insetos se encontravam para cantar ficava na estátua oca
de sapo. E lá apareceram alguns do governo do Jardim para saber por que Bola e
Grilado tinham tirado os grilos de sua função noturna, de “fazer a noite” com
seus friccionados de patas.
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O Jardim dos Insetos
— Ainda há tantos grilos pelo Jardim à noite que nem se dá para contar. –
esclareceu Bola às autoridades presentes.
— Essa noite eu quase não dormi por conta da falta de grilos. Todos os
insetos, sejam do Jardim, sejam de fora dele, não dormem sem ouvir o som deles.
É como se não houvesse noite. Todos nós já estamos completamente
acostumados com essa música que nos faz dormir quando a escuridão cai. Talvez
você não saiba por não ser um inseto também. – explicou a autoridade a Bola.
— Eu sempre gostei do som dos grilos à noite e ainda gosto porque eles
ainda “cantam”, e a note toda. Nem se nós quiséssemos, conseguiríamos pôr
todos os grilos na banda. Assim isso já é uma prova mais do que suficiente de
que não interferimos no sono de ninguém. Simplesmente porque os poucos grilos
que usamos em nossa orquestra não prejudicou em nada “fazer a noite” como
todos falam. – defendeu-se Bola à autoridade.
— Isso é o que você pensa. – foi a última coisa que disse a autoridade
antes de prender Bola e Grilado.
Muito rapidamente todos na cidade souberam da prisão dos dois, e agora
tinham certeza de suas inocências. Dessa vez nenhuma manipulação do governo
surtiria efeito sobre a população. Todos sabiam da inocência do tatu-bola e do
grilo. Eles tinham uma orquestra onde se cantava e só. Não era nem um comércio
e nem outro parque de diversões aquático. Aquilo era injustiça demais! Mais uma
vez os insetos do vergel ficariam sem diversão. Primeiro foram os parques e
dessa vez seria A Casa dos Novos Cantores. Assim os insetos que se
encontravam sempre na Casa decidiram formar uma comissão para ir falar com o
governador sobre o absurdo da prisão dos amigos.
— Nós viemos aqui falar com os senhores a respeito de Bola e Grilado. –
disse um dos bichos que representava o grupo para uma autoridade que saía da
Pedra das Pendências.
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— O que vocês têm a ver com isso? Algum de vocês também está
envolvido nesse crime? Vocês sabiam que eles dois tentaram desfazer uma
tradição que já dura gerações. Os grilos “fazem a noite” ser o que ela é muito
antes dos avôs de vocês terem nascido. Por isso vão continuar presos e ficarão lá
até o julgamento. – advertiu a autoridade.
— Os grilos que permaneceram pelo Jardim eram suficientes para “fazer a
noite” daqui. Não houve crime algum em contratar alguns deles para A Casa dos
Novos Cantores. – disse o representante para a autoridade que nesse momento
dava as costas para todos.
— O problema não é só quantos, mas o exemplo dado. – retrucou a
autoridade parecendo não conseguir mais sustentar seu argumento.
— Nós não aceitamos mais esse tipo de explicação sem fundamento. Só
sairemos daqui se os dois forem libertados. – concluiu o representante do grupo.
— Vocês devem estar ficando loucos ou coisa pior! Não se diz isso a uma
autoridade, muito menos em frente à Pedra das Pendências. Eu poderia prender
todos vocês agora! – ameaçou a autoridade.
— Eu acho que não! Dessa vez é bicho demais! – disse de novo o
representante do grupo depois apontando para a Pedra num gesto que significou
que eles deveriam entrar e libertar Bola e Grilado de lá.
E não foi difícil pela quantidade de animais que havia ali. Os insetos
entraram e todos juntos espantaram as aranhas que faziam a vigia dos dois
amigos presos. Depois arrebentaram as teias e puxaram os dois, libertando-os
daquilo.
Todo o vergel soube de imediato! Pela primeira vez desde sua criação
aquela cidade via uma insurreição contra as autoridades e o governo. Também
de imediato todos do governo se reuniram para a discussão de uma decisão a ser
tomada. Queriam uma reunião o mais rápido possível.
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O Jardim dos Insetos
Passaram a noite toda discutindo o que deveria ser feito naquela situação. Com
certeza nem perceberam se os grilos cantavam ou não com tanta agitação e
gritaria de parte a parte.
Um discurso à população! Essa foi a solução encontrada. Era preciso falar
a todos sobre o ocorrido, convencê-los de que a invasão à Pedra das Pendências
fora uma afronta. Talvez naquele momento nem eles pensassem mais dessa
forma. Todos, sem exceção, sabiam que Bola e Grilado eram inocentes. Não
poderia haver nada de errado em se contratar uns poucos grilos e pô-los como
músicos de uma casa onde os insetos só se divertiam e cantavam.
Discurso marcado rapidamente, discurso pronunciado de forma bem
demorada. Depois de muito rodeio, já no fim do discurso, o governador disse o
que queria à população reunida na maior praça do Jardim, a Praça das Rosas:
— Assim queridos irmãos do Jardim dos Insetos, como todos já sabem,
esse ocorrido foi a maior abominação já vista desde a nossa existência. Uma
verdadeira selvageria, onde se libertaram dois criminosos que insistem em
desobedecer às leis repetidamente. Assim sendo, para se evitar mais prisões,
pedimos a quem souber do paradeiro dos dois que nos avise e que todos
colaborem para o bem-estar de nossa cidade. Obrigado pela compreensão e
aguardamos a ajuda de todos.
O problema para os governantes foi que o grupo que estava com Bola e
Grilado decidiu escondê-los de forma que pouquíssimos bichos soubessem de
seus paradeiros. Bola, Grilado e os que agora os protegiam, sabiam que se não
fosse assim um ou outro inseto acabaria acreditando naquele discurso e os
entregando. Bola dizia que alguns insetos eram bem inocentes. Então assim
deveria ser para um mínimo de segurança depois que tantos bichos se
comprometeram no resgate dos dois.
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Uma semana se passou e nada de Bola e Grilado. As autoridades não
tiveram o retorno que esperavam da população. Ninguém denunciara Grilado ou
Bola. Seja porque não queriam, seja porque não sabiam de seus paradeiros.
A pompa toda sempre demonstrada pelo governo principalmente contra os
“inimigos do Jardim”, como eles mesmos diziam, agora parecia um tanto
comprometida. E um novo discurso estava a caminho para todos de novo.
O principal medo dos governantes era que aquele ato servisse de exemplo a
outros que poderiam se inspirar nele. O discurso veio no mesmo local e também
com muito público. Outra vez o governador.
— Moradores e moradoras do nosso Jardim, é com imenso respeito que
mais uma vez venho num discurso em praça pública, pedir-lhes a ajuda. Como
todos sabem, há cerca de uma semana dois criminosos foram resgatados da Pedra
das Pendências por alguns insetos contaminados com suas mentiras. Nós, após
muita discussão, decidimos que aqueles que participaram da invasão e que
decidirem colaborar na prisão desses delinqüentes, serão perdoados. Caso
contrário, conseguiremos as informações que precisamos através de nossos
funcionários, e aqueles envolvidos serão presos e expulsos do Jardim.
O discurso do governador causou uma perturbação geral de imediato. Por
terem sido muitos os que participaram do cerco à Pedra, muitos insetos e os
familiares dos envolvidos se viram numa trama dramática. Seriam presos? E seus
familiares também? Foi uma coisa que preocupou a todos. A invasão fora um
procedimento correto? Por mais que Bola e Grilado fossem inocentes, a
população tinha direito de ter feito o que fez? Daí se seguiu uma série de
questionamentos que alguns respondiam abertamente e com segurança, enquanto
outros simplesmente não tinham muita certeza, tamanha a complexidade do caso
para eles.
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O Jardim dos Insetos
Uma coisa começava a parecer óbvia entre quase todos no vergel: as
Autoridades Jardinais eram uma entidade à parte no Jardim. Por quê? Talvez pela
série de privilégios de que gozavam. Nunca a população da cidade onde antes
tudo acontecia planejadamente, via isso tão claramente.
Bola e Grilado continuavam em liberdade e sem nunca terem sido
delatados. Num lugar que quase ninguém sabia. Sabia-se apenas que realmente
eles não tinham culpa. O quanto o poder de persuasão do discurso das
Autoridades Jardinais poderia convencer algum inseto a entregá-los era o que os
preocupava.
Dessa forma como ninguém entregava os dois escondidos ao governo,
começou-se a cumprir a ameaça do governante máximo: as prisões dos que
participaram da invasão à Pedra.
— Quem sabe assim vocês não decidam entregar onde estão aqueles dois.
– disse uma saúva após prender um dos envolvidos na invasão.
O gramado demorava a recuperar a população. As Autoridades Jardinais
não viam ameaça, uma represália pela guerra e o massacre cruel. Simplesmente
porque, segundo os governantes, não sobrara ninguém para vingar os mortos.
Todos ovos haviam sido comidos. Aquela época fazia quatro estações que as
cigarras foram covardemente enganadas. E ainda tinha insetos que acreditam que
realmente não havia como pagá-las.
As cigarras agora começavam mais uma vez sua luta pela vida. Saíam do
chão e trocavam de pele até ficarem de um tamanho em definitivo. Qualquer um
sabe o que acontece às cigarras. Elas se transformam embaixo do chão e depois
emergem para mostrar ao mundo seus dotes de cantoras. Sempre se pode vê-las
pelo gramado, dispersas por toda parte. Nas árvores e arbustos, bebendo suas
seivas. Por isso elas não se viam como parasitas ou uma praga para as plantas.
Entendiam que dentro do contexto da natureza faziam parte de um motor maior.
Um motor onde uma das peças para o seu
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bom funcionamento eram elas, as apreciadoras de seiva. Tudo num perfeito
equilíbrio, onde só por dois meses por ano as cigarras bebiam da seiva das
plantas, que não suportariam se fosse mais do que isso. Teriam suas reservas
completamente sugadas. Mas a natureza só permitia por dois poucos meses para
que tudo funcionasse em harmonia.
Sempre espalhadas por toda parte, as cigarras, dessa vez estavam
completamente agrupadas. Os outros bichos que ocupavam o gramado, ainda
com uma população muito pequena, acharam que era medo do que havia
acontecido no ano anterior. Medo de serem de novo exploradas, tendo que
trabalhar de graça, sem receber nunca por isso. Só porque tinha um destino
rápido na Terra. Aquela união toda das cigarras só ajudava a provar que de
alguma forma secreta elas deixavam suas impressões sobre o mundo para seus
descendentes. Filhotes que só viriam ao mundo quatro estações mais tarde.
Assim, numa manhã aparentemente igual às outras, viu-se uma coisa que
jamais se tinha visto no Grande Gramado: uma revoada sem precedentes! Eram
as cigarras. Elas cantavam e voavam com toda força. Uma miríade, uma nuvem
que assustou a todos no gramado. A nuvem pousava nas árvores e arbustos e
depois saía ainda maior e mais carregada. Parecia que não parava de crescer a
cada pouso e decolagem.
Após várias decolagens, a nuvem demonstrou ter um destino único e
urgente: um jardim de blocos de um prédio ali próximo ao gramado. Mas não
qualquer jardim de blocos de apartamento de humanos. Seria um que, querendo
ou, após aquilo, não seria o mesmo e dividiria opiniões. Não dentro da nuvem
das cigarras que tinha uma opinião só e toda a certeza de que aquilo era a coisa
mais certa a ser feita. Mas fora da miríade geraria rumores muitos sobre o
ocorrido. Era o vergel que todos costumavam falar de boca cheia, o Jardim dos
Insetos.
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O Jardim dos Insetos
As cigarras na nuvem tinham uma certeza: todas elas reunidas como uma
bola de abelhas “europa” em vôo rápido, furaria qualquer rede de proteção aérea
das aranhas. As cigarras são maiores e voam ainda mais rápido do que as
melíferas. As aranhas escolhidas para trabalharem como vigias aéreas eram
grandes e caprichavam muito em suas teias. Trançavam e retrançavam os fios de
forma que nenhum animal que comesse insetos entrasse no Jardim. Nenhuma
cigarra sozinha ou pássaro insetívoro conseguia entrar, tamanha a resistência da
rede das aranhas. Porém as cigarras todas juntas, naquela nuvem, poderiam
arrebentar a malha protetora, que até aquela presente data, funcionara muito bem
como uma perfeita barreira aérea.
Os bichos que estavam no chão olhavam para cima tentando entender
aquilo tudo. Desde que a tal nuvem de cigarras começara a se formar, pousando e
decolando cada vez maior, os bichos dali perguntavam-se se havia uma cigarra
que comandava a miríade. Isso por que elas sempre agiram sozinhas, todos
sabiam disso.
Assim a nuvem organizada das cigarras seguiu rumo ao Jardim dos
Insetos. Foi só o tempo de decolarem da última árvore, uma Sibipiruna e já
estavam arrebentando as muitas teias de aranhas da cidade antes considerada
ideal para se morar. Parecia o fim do mundo, o fim do mundo dos insetos. Mas
nem todos os habitantes do Jardim dos Insetos eram insetos. Então por que ele
tinha esse nome? Isso era uma pergunta que Bola e Grilado sempre se faziam.
Por mais que já soubessem da resposta. Talvez se perguntassem querendo
encontrar uma resposta que não fosse o óbvio: as autoridades eram
marimbondos, e os marimbondos são insetos.
Já dentro do vergel, com toda a rede de proteção aérea arrebentada, as
cigarras foram ao Caramanchão do Governo reivindicar o pagamento da dívida
que o Jardim tinha com elas. Ainda dentro do vergel a nuvem recebia ainda mais
cigarras. Aquelas que ou acabaram de nascer ou que quando as
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cigarras estavam para sair rumo à cidade encontravam-se mudando de pele. Até
essas, temporãs, não seguiam sozinhas para ali. Esperavam outras, mesmo que
não muitas, para voarem juntas e em mais segurança para a reivindicação que
marcaria a história dos animais do gramado e do Jardim para sempre.
Quando os bichos do vergel viram aquela nuvem de cigarras imensa que
ainda crescia cada vez mais, quem tinha casa e podia correr, correu para ela. Os
caracóis entraram todos para dentro de suas carapaças. Todas as atividades, até as
mais importantes e essenciais, foram deixadas de lado quando os bichos viram
que, naquele momento, o que importava era salvarem suas vidas. Quando
olhavam para cima e não viam mais as aranhas protegendo o teto, o medo era
total. Dizia-se que as formigas saúvas ainda protegiam sim, mas as suas larvas no
fundo do chão. Cada um se via salvando só a si e a seus parentes, no máximo.
Em frente ao Caramanchão do Governo, uma voz entre as cigarras falou:
— Viemos cobrar aquilo que vocês nos devem. Aquilo que ficaram
devendo aos nossos parentes! — Com quem eu falo? – perguntou o governador.
— Com um bicho entre nós, que somos muitos! – respondeu a mesma voz
ao governador.
— Eu não falo sem saber quem comigo fala! – esbravejou o governante.
— Já nós falamos até com ladrões! – rebateu a voz reclamante.
— E então, como será pago o que vocês nos devem? – perguntou de novo
a voz.
— Nós não temos como pagar-lhes! É impossível! Ainda mais agora que
teremos que reconstruir algumas coisas que vocês destruíram em nosso jardim! –
observou enfaticamente o mandatário máximo do vergel.
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O Jardim dos Insetos
— Não acreditamos mais no que vocês nos dizem! Teremos que conferir!
Aí sim, teremos certeza disso! – voltou a falar a voz entre as cigarras.
— Venham! Vamos nos certificar se realmente temos como receber agora
mesmo! – exclamou a “voz das cigarras”, chamando todas para entrar no Banco
dos Insetos que ficava atrás do Caramanchão do Governo.
— O que vocês estão prestes a cometer é crime, e o mais terrível segundo
as leis daqui! – esbravejou o governador.
— O que vocês fizeram é que foi crime. Um crime grande e covarde.
Agora nós estamos prestes a fazer justiça. – continuou a “voz das cigarras”.
Assim as cigarras entraram no Banco dos Insetos. Foram muitas, sem dar
a menor chance de reação. Nele comprovaram suas suspeitas. Havia milhares de
ardidas armazenadas. Segundo as anotações de balanço do banco descobriram
que havia como o pagamento ter sido feito a seus parentes. Realmente as cigarras
foram covardemente traídas e enganadas. Trabalharam arduamente durante suas
vidas inteiras em vão. Era a prova de que as Autoridades Jardinais haviam sido
mais do que injustas. Haviam sido desleais, covardes e prepotentes. Milhares e
milhares de vidas destinadas à escravidão velada e dissimulada. Algumas
daquelas cigarras não haviam nem deixado filhotes, de tanto envolvimento com
as entregas dos remédios e ainda na incerteza se haveria pagamento.
Realmente foram tempos dramáticos que as cigarras queriam deixar como
lição de justiça. Mas tudo foi cobrado com juros e correção monetária. De acordo
com os índices dos próprios governantes, que, aliás, eram altíssimos.
Mas foi tudo pago! E na mesma moeda. Justiça feita, as cigarras se viam
na condição de dar um fim a toda àquela injustiça e violência, que poderia um dia
voltar-se novamente contra elas.
— Agora precisamos de um nome! – articulou de novo a voz entre as
cigarras.
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— Mas para quê? – perguntou a cigarra que se encontrava mais perto da
voz que falava.
— Para que o Jardim tenha um nome de acordo com o que ele realmente é
e significa para todos! – explicou a voz.
— E qual será o nome? – indagou outra cigarra no meio da multidão.
— Os moradores é que vão decidir! Decidirão inclusive se querem um
novo nome! – esclareceu a voz que falava desde o início com o governador.
— Há um problema! – foi mais ou menos o que disse uma voz na
aglomeração das cigarras em frente ao Caramanchão do Governo.
— Qual? – perguntou “a voz das cigarras”.
— Praticamente todos os moradores do Jardim fugiram para o gramado.
Eles estão assustados, convencê-los a voltar será difícil. Aqui só deve restar
agora os caracóis, que são lentos para fugir. – disse uma cigarra anônima.
— Então, que todas as cigarras se encarreguem de dar a boa nova aos que
fugiram para o gramado. Digam-nos que retornem ao Jardim, pois, nada de mau
lhes acontecerá. Digam também que haverá uma votação para que se decida qual
será o novo nome do Jardim. – voltou a dizer a voz.
E lá se foram todas as cigarras em direção ao gramado, dar as boas-novas
sobre o novo vergel, que todos idealizariam dali em diante. Também foi Lila, a
libélula camarada, que agora moraria no Jardim.. Porque afinal de contas
somente eles poderiam decidir sobre onde morariam.
As cigarras sobrevoaram todo o Grande Gramado divulgando a mensagem
sobre o novo Jardim que renascia. Era difícil convencer os insetos que estavam lá
a voltarem para ali. Muitos não acreditavam que aquela havia sido uma invasão
pacífica, que não haveria mortos e nem violência. Nunca se vira tanta cigarra e
todas reunidas. Os bichos do vergel se inteiraram com os poucos moradores do
gramado sobre como as cigarras sempre agiram. Souberam que elas eram
pacíficas, mas que com toda a história sobre a escravidão de seus parentes,
tinham se revoltado.
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O Jardim dos Insetos
Depois disso sumiram... Todas elas... Todas as cigarras...
— Onde estão as cigarras? – perguntou Bola após pouco tempo sem as
ver.
— Você não sabe, não é mesmo!? Essa é a tão falada “retirada
misteriosa”. Por isso ninguém sabe para onde elas vão. Alguém sabe por acaso
para onde elas vão? Simplesmente somem. – explicou Lila a Bola e Grilado,
pouco acostumados com coisas de mato.
Os ex-moradores do Jardim, agora no gramado, relutavam, mas aos
poucos voltavam para o seu velho vergel de orquídeas, violetas, bromélias e
rosas. Demorou, mas todos retornavam, com exceção de alguns poucos.
Coincidência ou não, justamente aqueles que compunham as Autoridades
Jardinais. Eles diziam que não morariam num lugar onde cigarras é que
governavam, que seria uma bagunça e uma desordem sem fim. Também foi visto
junto a eles um besouro cor de ouro, um antigo conhecido de Bola e Grilado.
— Onde já se viu? Cigarras que nem sabem o que aconteceu há uma
estação atrás, que ficam quase o tempo todo embaixo do chão, governarem um
jardim como o Jardim dos Insetos! Mas um dia nós retornaremos e de novo
restauraremos a lei e a ordem. Tudo pela tradição! – disse uma Autoridade
Jardinal.
Todos os moradores juntos! Mais uma vez estavam todos no vergel! Em
frente à Praça das Rosas! Para a votação sobre o novo nome que seria dado ao
Jardim. Primeiro decidiriam se o nome Jardim dos Insetos condizia com a
realidade do jardim, já que nem todos ali eram insetos. Depois, caso decidissem
que Jardim dos Insetos não era um nome apropriado, decidiram qual seria o novo
título.
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Jean Rocha Teixeira Duarte
Na primeira votação com todos os moradores votando, decidiu-se que o
nome era inadequado. Não poderia continuar daquele jeito. E na segunda
votação, Jardim dos Bichos foi o nome mais votado para o novo nome. Surgiram
também, a partir daquele momento em que os bichos do vergel se viam livres
para pensar e disser o que sentiam, gritos clamorosos pedindo julgamento para as
Autoridades Jardinais. Como a injustiça comprovável fora com as cigarras, os
bichos deixaram a cargo das cantoras do gramado a decisão. Elas decidiram que
não queriam mais retaliações quanto ao ocorrido com seus parentes há quatro
estações, no ano anterior. A saída das autoridades para fora da cidade, já seria um
alívio para todos ali.
Um caracol do Jardim, numa das muitas reuniões que tiveram, disse não
achar justo que ele, que não era um inseto, fosse chamado de tal.
— Nada contra os insetos, mas que cada um fosse chamado de acordo
com suas características. – disse o caracol.
Entre todas as sugestões a que vingou foi a de Bola. Bola e seu amigo se
mostravam em público depois de todo o ocorrido, a Revolução das Cigarras. O
tatu-bola achava que se deveria ensinar nas escolas, a todos os filhotes, os tipos
de bichos que havia ali. Também que se deveria chamar cada animal de acordo
com o seu tipo. Assim sempre se estaria agindo da maneira mais correta e
delicada.
As ex-autoridades do vergel pediram um tempo para que pudessem retirar
seus pertences antes de ir em definitivo para o Grande Gramado. Era estranha
aquela situação. Realmente eram orgulhosos e arrogantes aqueles que por muito
tempo governaram o Jardim dos Insetos. O governador, porém, junto de várias
autoridades, antes de partir de uma vez por todas, pediu para falar com Bola e
Grilado. Os dois ouviram o que o ex-governante tinha para lhes dizer.
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— Eu queria perguntar-lhes uma coisa antes de ir embora definitivamente,
mas não para sempre. Onde foi que nós erramos com vocês, com você e esse
grilo? – perguntou o ex-governador a Bola e Grilado.
— Talvez parecendo mais arrogante do que nós! – respondeu Bola ao
marimbondo.
— Quem sabe por você ser jovem ainda não saiba, mas toda revolta é uma
revolta contra a natureza. – continuou o ex-mandatário.
— Pois assim ela permitiu que fosse. – rebateu Grilado.
O governador parecendo um tanto melancólico e resignado, com o espírito
indiscutivelmente atormentado, continuou sua alocução final no Jardim:
— Mas será que foi tão mau assim?! Nós sobrevivemos dessa forma por
tanto tempo! Nunca vai haver espaço para todos mandarem. Nem todos merecem
estar entre os melhores, entre os que mandam. – perguntou já respondendo o
marimbondo, agora de espírito moribundo.
Bola então falou ao ex-mandatário máximo do ex-Jardim dos Insetos:
— Temos que viver na realidade que é a natureza! Cada um, segundo a
sua natureza, cada um segundo a sua possibilidade. Mas todos com chances
iguais, sempre iguais. – respondeu Bola enquanto a comitiva de retirantes, entre
os bichos do Jardim, esperava o debate para partir.
Mais uma vez o governador lhes falou. Ele parecia não querer convencer
ninguém de nada, apenas deixar uma insegurança plantada no coração de cada
um que ali ficasse, para sempre. A vespa disse:
— Antes nós também tínhamos uma realidade. Foi por acaso tudo um
sonho? Era ou não era real?! Aqui também foi construída uma verdade, mas
segundo o que fomos quando todos juntos. Cada bicho artificializará a natureza
para si e para os outros. A sua realidade não é a realidade, é a realidade que você
egocentricamente artificializou para você mesmo.
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Grilado, vendo uma chance, voltou a falar:
— O Jardim deve ser um lugar que seja bom para todos!
O governador ainda tinha mais a dizer:
— Ainda assim alguém terá sempre que estar por cima. Há pouco fomos
nós. Por muito tempo, eu confesso. Agora serão vocês e eu gostaria muito de
saber o que vocês farão, e o quanto mudarão. Vida longa a todos vocês!
Bola sentiu-se na obrigação de falar de modo mais apropriado ao
momento, mesmo que fosse mais rude.
— Você pode seguir as regras e continuar com todos, ou ser você mesmo
e terminar sozinho... Não que você vá necessariamente ter vantagem maior num
ou noutro caso. Na verdade você nunca conseguiria são por muito tempo no
segundo caso. Estar por cima é mais doce do que um fardo.
Depois a troca de palavras entre os três começou num ritmo mais que
alucinante.
— Até as formigas, cada uma, no fundo trabalha para si mesma. Na
verdade todos vivemos para nós mesmos. Governe como se nada estivesse
acontecendo. É melhor para vocês. – proferiu o ex-governador.
— Você pode pensar o que quiser de nós, mas nós ainda estamos certos. –
replicou Grilado.
— Vocês se preocupam demais! A dor do mundo é a dor do mundo! E a
dor do mundo é a dor na natureza, a dor de se estar vivo! – reforçou sua idéia o
ex-mandatário máximo.
— A sua vantagem, nesse momento, é já ter discursado demais que até
parece poético e filosofal! Você que vivia livre no Caramanchão do Governo,
considere-se, agora que saiu de lá, preso! Preso a esse mundo! Um mundo onde
você terá que ser mais do que uma vespa egoísta. – exclamou Grilado.
— Tudo isso por causa de um bando de cantoras desordenadas? –
perguntou o governador.
— Não! Tudo isso por causa de um caracol... – terminou Bola.
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FIM
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