COPYRIGHT © BY JEAN ROCHA TEIXEIRA DUARTE, 2008 O Jardim dos Insetos Índice Capítulo I ..................................................................................................05 Capítulo II ................................................................................................ 24 Capítulo III ...............................................................................................42 Capítulo IV ...............................................................................................54 Capítulo V .................................................................................................61 Capítulo VI ...............................................................................................83 2 Agradecimentos à tia Rail Rocha pela revisão e contínuo incentivo. 3 “Quem sabe por você ainda ser jovem não saiba, mas toda revolta é uma revolta contra a natureza... Nós todos e juntos sobrevivemos dessa forma por muito tempo! Nunca vai haver espaço para todos mandarem. Nem todos merecem estar entre os melhores, entre os que mandam”. 4 Jean Rocha Teixeira Duarte I — Você não sai mais dessa casa? – disse o tatu-bola batendo na carapaça do caracol. Já fazia alguns dias que ele não o via com sua casa nas costas a passear lentamente pelo Jardim. Eles e mais uma porção de animaizinhos moravam no vergel de um prédio de apartamentos. Ultimamente o caracol mais reclamava do que conversava e ria com os outros bichos. Ele estava mesmo muito triste, mas desaparecer sem avisar nada, preocupou a bicharada do Jardim. Tinha ganhado a fama de resmungão justamente por esses últimos dias em que era a única coisa que fazia. Toc, toc, toc. Continuou o tatu-bola batendo na casa do caracol e nada. Será que ele havia abandonado sua casa, saído pelo vergel sem ela mesmo e assim os bichos não o teriam reconhecido. Mas todos os bichos do Jardim eram conhecidos um dos outros. O Jardim dos Insetos 5 O Jardim dos Insetos Só se... Só se, não! Teria ele saído do Jardim? E ainda sem sua casa protetora? O seu corpo, como o de todo molusco, é mole, muito mole! Então Encaracolado estava em perigo! Seria loucura, puro desespero! Ultimamente ele reclamava do peso de sua casa, que não podia correr como os outros no vergel por causa dela. Que não gostava da função que arrumara no Jardim, que não lhe agradava. O tatu-bola iria com todas as suas pernas procurar por ele, por todo o vergel. E ele não era pequeno. Ainda mais para um bicho não muito grande como o tatu-bola. Bola que de gordo não tinha nada, só parecia uma bola quando enrolado. Quando esticado e andando, era magro e compacto. Eram muitas pedras, muitas plantas, irrigadores automáticos, muitas coisas. Havia algumas plantas maiores onde ele poderia ter subido como, às vezes, fazia quando estava enfezado. Quando o tatu-bola viu toda aquela imensidão de cima da pedra mais alta do Jardim, pensou: só com a ajuda de mais alguém. Um jardim de bloco pode ser pequeno para um homem ou para uma criança, mas para um tatu-bola ele é uma cidade. Com muitas coisas que também existem na cidade dos homens. O vergel ocupava toda a lateral do prédio. O tatu-bola foi, então, chamar alguém para ajudá-lo, pois, certamente precisaria. — O grilo desconfiado que trabalha como correio e mensageiro aqui do Jardim! Os dois são muito amigos! – deixou escapar para uma mamangaba que passava e que não entendeu nada. O grilo morava numa pedra. Uma fenda permitiu que ele entrasse nela e habitasse toda a sua parte oca. Jean Rocha Teixeira Duarte 6 Jean Rocha Teixeira Duarte E lá foi o tatu-bola atrás do grilo. Ele era bem mais rápido que o caracol, mas mesmo assim demorou um pouco para chegar à Pedra do Grilo como era chamada. — Seu grilo! – gritou Bola em frente à pedra. — O que você quer? Se for carta ou mensagem, hoje eu não trabalho. Estou de folga. – respondeu Grilado que sempre andava desconfiado. — É o nosso amigo, o Encaracolado! Eu já bati na casa dele e ninguém responde. Temo que tenha saído pelo Jardim ou até para fora dele, desabrigado e desprotegido de sua casa. – explicou Bola. — Você está louco! Ele não seria tão burro! O corpo dele é a coisa mais mole desse jardim. Vamos ver se ele realmente não está em casa. – especulou Grilado desconfiado de que Bola não tenha chamado direito ou batido forte o suficiente na carapaça de Encaracolado. — Vamos voltar e ver se ele realmente não está lá dentro ou ali por perto. – esclareceu o grilo. — Mas isso levaria muito tempo. Para você é fácil! Você sai pulando e chega rapidinho, mas para mim é bem mais demorado. – já foi logo avisando Bola. — É simples, você vai de carona em mim. Suba. – disse Grilado. — Você pirou? Eu nunca pulei na minha vida. Eu sei é deslizar com meus muitos pés por esse chão todo. Pular é coisa para grilo! – explicou o tatu-bola. — Se você realmente está preocupado com nosso amigo Encaracolado, vai fazer esse esforço. Depois pés não vão lhe faltar para se agarrar em mim. – insistiu Grilado. E assim foram por todo o vergel. Bola agarrado às costas de Grilado que saltava altíssimo, até chegarem onde estava a casa de Encaracolado. E os dois gritaram e bateram na casa do caracol até se cansarem. Realmente Encaracolado não estava em casa. Engraçada aquela situação... O Jardim dos Insetos 7 O Jardim dos Insetos Um caracol não estar em casa. Ele é a sua casa! Ele nasce com ela! Mas Encaracolado não estava em sua própria casa! Agora Grilado tirava os grilos da cabeça e com Bola ainda meio tonto com a viagem incrível que tiveram, decidiram sair à procura do caracol fujão. E o grilo confessou: — Eu posso pular muito, rápido e alto, mas não consigo ver os detalhes no chão com velocidade. Eu sou vagaroso quando tenho que andar pelo chão. O tatu-bola também admitiu: — Eu não sei pular e nem chegar aos lugares rapidamente, mas conheço todo o chão desse jardim, porque estou sempre deslizando por ele todos os dias. Nossas forças se completam, mas se arranjarmos mais ajuda conseguiremos ainda em menos tempo e teremos mais certeza de onde Encaracolado está. — Vamos pedir ajuda a quem mais pudermos! – exclamou Grilado. E saíram em busca de quem mais pudesse ajudá-los. Outros bichinhos do vergel que se sensibilizassem com a história de Encaracolado, o caracol que abandonou a própria casa. Até que Bola sugeriu: — A Cabeça, uma formiga saúva, pode nos ajudar. Ela é forte e conhece bem a parte do Jardim onde fica a Cerca Viva, por onde deve ter passado Encaracolado, se ele tiver saído daqui. A formiga saúva e suas companheiras de colônia tinham feito um trato com os outros bichos: não cortariam as plantas que são do Jardim. Ao invés disso, podariam a Cerca Viva que protege o vergel e ficariam com as folhas e os frutos dela como alimento. Além do que, serviriam de vigias para a entrada do Jardim. Por isso sempre havia alguma pessoa sendo mordida por delas. Eram pessoas que entravam no vergel para arrancar alguma planta ou que pisavam na grama. Pássaros que invadiam o Jardim em busca de alimento, ou melhor, de bichos, também eram ferroados pelas formigas vigias. Jean Rocha Teixeira Duarte 8 Jean Rocha Teixeira Duarte E o grilo grilado foi ao encontro das formigas. De novo com Bola em suas costas. O tatu-bola tinha os olhos arregalados e as antenas para trás quando o grilo começava a dar seus saltos incrivelmente altos. Só não caía porque tinha muitos pés para se agarrar firme. E os dois chamaram em frente ao ninho das saúvas: — Cabeça! Dona saúva! — Cabeça foi chamada junto com mais algumas formigas para resolver um problema numa das ruas. – disse uma formiga soldado que vigiava o formigueiro e a Cerca Viva. — Onde podemos encontrá-la, dona formiga? – perguntou Bola. — Nunca se sabe onde ela realmente pode estar agora, mas esta estrada dá no destino inicial delas. – sentenciou a formiga vigia apontando para um caminho. Assim os dois decidiram entrar na trilha indicada pela formiga e ver onde daria o caminho. E lá se foi Grilado com Bola nas costas, pulando altíssimo como o coração do tatu-bola. A cada pulo o coração de Bola parecia sair pela boca. Elas trabalhavam como construtoras de estradas. As trilhas das formigas eram as estradas do vergel. Essa era a função delas ali, construir as estradas e deixá-las limpas. Elas trabalhavam junto com um escaravelho, já velho, que retirava os entulhos maiores das ruas do Jardim. Os bichos do vergel diziam ultimamente que as ruas estavam um pouco abandonadas por causa do besouro que já estava prestes a se aposentar e que, às vezes, atrasava o serviço. Era um trabalho muito pesado para alguém de sua idade. Mas eram muitas ruas que se ramificavam em mais ruas por todo o Jardim. Um verdadeiro emaranhado de vias por onde os bichos do vergel iam e viam em suas atividades. No meio do caminho rumo onde estava a formiga Cabeça, Grilado teve outra idéia e contou-a ao tatu. O Jardim dos Insetos 9 O Jardim dos Insetos — Bola, eu tive uma idéia! Vamos à casa da dona Joana, que fica próxima daqui e aí perguntamos a ela se viu o Encaracolado. O paradeiro de Cabeça é imprevisível. O tempo que gastaremos tentando encontrá-la é o tempo que gastaríamos tentando encontrar Encaracolado. E nós temos pouco tempo. Joana era uma joaninha que costurava para fora. Era costureira de mãocheia e fazia roupas da cor de seu casco ou de outras joaninhas. Os bichos que as encomendavam diziam que ficavam muito bonitas. — Comenta-se que ela sabe de tudo o que acontece no Jardim. Estão sempre conversando com ela, encomendando capas de chuva que ela tão bem faz. Ela deve saber se alguém o viu nos últimos dias. – terminou de dizer Grilado. Foram, então, à casa de Joana, a costureira, para ver se ela sabia do paradeiro de encaracolado. Ela morava no oco do tronco de um velho bonsai, numa casa muito simples, mas muito bonita. — Vieram encomendar capa de chuva também? Estão todos encomendando-as por causa da época chuvosa que se aproxima. – disse a joaninha quando os viu. — Não. Nós viemos te perguntar se você sabe do paradeiro de um amigo nosso. Nós não o vemos faz alguns dias. – explicou Grilado depois de tanto salto. — Qual o nome dele? – perguntou Joana. — É Encaracolado! – respondeu o grilo. — Ah! Eu o conheço e também sua mãe que me encomendava muitas roupas quando ele ainda era pequeno. Os animais do Jardim andam comentando que ele não é visto há dias. – esclareceu Joana. Os dois agradeceram-na e retomaram a estrada rumo à Cerca Viva, divisa do vergel com o mundo exterior. Jean Rocha Teixeira Duarte 10 Jean Rocha Teixeira Duarte Para fora do Jardim só as formigas vigias tinham autorização e coragem de ir. Até o escaravelho, depois de mais velho, dizia que tinha medo de sair. Mas quem pegaria um grilo que salta tão bem como Grilado caso ele resolvesse sair do vergel e ir ao gramado em busca de seu amigo de corpo mole e sem casa? O grilo já era mesmo verde e se camuflaria perfeitamente na grama bem cuidada do gramado. Bola não era muito grande, e nas costas do grilo nem chamaria a atenção. Grilado era um grilo de tamanho médio, mas forte. Com o que Bola tinha a contar, as coisas pareceram bem menos difíceis. Pelo menos quanto à saída do Jardim. — Nessas minhas andanças eu conheci um buraco, um túnel que cabe até você. Ele não leva até de fora do Jardim, mas quase lá. Aí é só mais um pouco, pois, estaremos bem pra lá da Cerca Viva. – revelou o tatu. Após conversarem, o grilo e o tatu-bola ponderaram o perigo do gramado, de onde alguns animais que resolveram sair do Jardim um dia nunca mais voltaram. A preocupação com Encaracolado falou mais alto e os dois decidiram encarar a imensidão verde do gramado. Seria uma arriscada aventura em busca de um amigo que estava triste e agora também sem casa. Um caracol sem casa. Assim, pensando apenas no amigo, atravessaram a Cerca Viva... A fronteira do vergel que dava para um mundo desconhecido, o mundo do gramado, que quase todos os bichos do Jardim temiam. Várias histórias rondavam aquele lugar. Há muito que os bichos do vergel aprendiam com seus pais que ali não se ia, que ali existiam monstros. Também plantas carnívoras cheias de tentáculos prontos a devorar bichos intrusos e inocentes que saíssem do Jardim. Fora outros monstros indescritíveis, gigantes e maus. Entre a Cerca Viva do vergel e o gramado havia uma calçada de passeio de pessoas. Homens, mulheres e crianças que passavam ali a toda hora e que nas suas arrogâncias acabavam pisando nos bichos pequenos e indefesos. E esse era mais um mito sobre o mundo fora do Jardim: a Calçada da Morte. O Jardim dos Insetos 11 O Jardim dos Insetos Segundo os insetos mais velhos do vergel, era impossível atravessá-la sem, no mínimo, ter a metade do corpo esmagada. E todo mundo reproduzia essa história. Era muita gente passando a todo o momento, com pressa, correndo. Era como um mar revolto e traiçoeiro. Pior do que quando entrava no Jardim o jardineiro ou até gente estranha, sem cuidado algum, e acabava pisando em algum bicho. Ou quando ligavam o irrigador automático bem forte. O que causava uma verdadeira tempestade no vergel. Teriam que escolher o momento certo para atravessar a calçada. Caso contrário seriam esmagados por um pé humano. Aquilo não parecia uma lenda, uma história inventada pelos bichos mais velhos do Jardim! Realmente os dois viram muito perigo naquela calçada! Mas o grilo em dois ou três pulos atravessou-a e bem rapidamente. Foi só olhar para os dois lados e esticar as pernas compridas de grilo. Pronto! Já tinham atravessado o mar revolto de pés humanos. A calçada da qual ouviram falar quando filhotes: a calçada assassina. Tinham vencido um medo imenso! E tudo para salvar Encaracolado. Já no Grande Gramado, Grilado pulava entre a grama verde quando sentiram como que um terremoto a tremer todo o chão. Tudo balançava. Eram humanos que corriam pelo gramado! E não era pouca gente. Os humanos que eles tanto aprenderam a odiar desde filhotes. Aqueles que fabricavam venenos para matá-los e que colocavam a culpa de todos os males da Terra neles. De repente estavam ali, quase pisando-os. O único pé humano que conheciam era o do jardineiro do prédio onde ficava o vergel e o de um engraçadinho que de vez em quando ia lá buscar uma bola que caia ou roubar alguma planta. Eles realmente sabiam como odiar os humanos. De repente, pés os cercavam por todos os lados. Passavam perto deles. Tremia todo o chão feito um terremoto. Era preciso sair dali! Jean Rocha Teixeira Duarte 12 Jean Rocha Teixeira Duarte — O que é isso? – perguntou Bola a Grilado. — São pés humanos! Eu não sabia que tantos humanos corriam pelo gramado. Os bichos do Jardim têm razão. Isso aqui é aterrorizante! Eles são monstros ferozes. Se sairmos vivos já será bom. – respondeu o grilo enquanto tudo balançava. Ele dava pulos verticais para ver o quê se aproximava deles. — É melhor pararmos! Não salte mais, pelo menos por um tempo! Caso contrário seremos vistos e até quem sabe, comidos. Só pule se algum deles vier em nossa direção. – sugeriu Bola a Grilado. — E você pare de pegar essas sementes. O que você quer com elas? – perguntou Grilado a Bola. — Vou levá-las comigo! Elas são medicinais e tratam várias doenças que não se têm tratamento no Jardim! – explicou o tatu ao grilo saltador. — Bola, você ficou louco? Não se pode entrar com planta alguma no Jardim. A lei é clara! Se você fizer isso será exemplarmente punido! – explicou Grilado ao novo amigo Bola. — Mas essas plantas são diferentes! Elas tratam doenças cujo tratamento é muito doloroso ou que não se tem no Jardim. – ponderou Bola. — Eu estou te avisando porque já me sinto teu amigo e não quero te ver em maus lençóis. Não quero que sejas expulso do Jardim e eu perca outro amigo! – falou Grilado intrigado em saber se os humanos já haviam se afastado. Bola era fã de botânica. Gostava e lia muito sobre plantas. A bolsa, que ele trazia junto à cintura, já estava quase toda cheia de tantas sementes que ele pegava pelo caminho. O grilo então subiu na folha de um capim alto e ficou observando se algum humano vinha na direção deles. Após algum tempo a correria acabou e com ela o terremoto que sacudia tudo no gramado. Grilado não via mais ninguém. Nem uma pessoa sequer. Deu pulos altos para ver ao redor e longe e então disse: O Jardim dos Insetos 13 O Jardim dos Insetos — Os selvagens se foram! — Animais irracionais! – exclamou Bola. — Pular aqui é fria! Teremos que seguir andando por mais que eu seja lento quando não posso saltar. Se dermos um pulo seremos vistos e comidos por esses monstros. – explicou Grilado a Bola. Quando achavam que já era suficiente, por aquele dia, quase serem pisados por muitos e imensos pés humanos, deram conta de que um barulho se aproximava deles. Como uma pancada aumentando de força. Eram pancadas que se sucediam uma atrás da outra sem parar. — Ei, vocês! Venham para cá! Subam em mim! Rápido, rápido! – disse um bicho avermelhado. — Quem é você e por quê? – disse Bola ao bicho que os chamava. — Eu sou a Milpés! Sou a lacraia taxista e conheço isso aqui melhor do que vocês. Andem logo, venham! É uma ave que está ciscando aqui perto. Ela vai acabar encontrando-os. Subam em mim! Comigo ela não mexe porque eu sou venenosa. – enfatizou a lacraia. E eles foram. Subiram na lacraia. Quando a ave viu aquele bicho vermelho se mexendo rapidamente, fugiu com medo. Saíram, então, deslizando gramado afora no bicho envenenado. Milpés se mexia toda ao andar. Os dois passageiros já estavam enjoados e tontos. Até que Grilado perguntou à lacraia: — E como saberemos se você não está nos levando para nos comer? — Eu não vou comê-los! Não farei isso de dó. Porque sei que vocês são aqueles bobos de jardim que não sabem de nada do mundo aqui fora. Só pelo jeito de vocês, eu sei que saíram de algum jardim e, provavelmente, daquele prédio de humanos. Jean Rocha Teixeira Duarte 14 Jean Rocha Teixeira Duarte O tatu-bola e o grilo não gostaram muito de terem sido chamados de bobos. Fizeram uma cara de reprovação para a lacraia. Mas ainda sentiam medo dela. Afinal quem não teria medo de uma lacraia; uma lacraia de verdade, como as que se falavam no vergel? O bicho era mesmo um monstro. Com relação a isso os mais velhos do Jardim não mentiram. Por mais que eles não lembrassem mais como era uma lacraia. Eram as tantas descrições que confundia. Só sabiam que era assustadora. — O que vocês fazem fora do Jardim? Aqui é muito arriscado para bichos inocentes como vocês! – perguntou Milpés. — Estamos à procura de um amigo. Um amigo que saiu do Jardim e pior sem levar sua casa. – disse Grilado à lacraia. — Como é? Sem levar sua casa? – disse Milpés. — Isso! É que ele é um caracol e não levou sua casa, sua carapaça protetora. – respondeu Grilado. — Eu nunca vi isso! Um caracol que abandona sua casa! Vocês bichos de jardim são mesmos estranhos. – brincou a lacraia. — E você come seus passageiros? – provocou o tatu a lacraia respondendo a sua provocação. — Se vocês quiserem, eu posso comê-los. Aqui fora também há regras e as lacraias não podem comer seus passageiros. Até mesmo porque não teremos mais a quem transportar. – respondeu a lacraia taxista de gramado. — Mas eu darei a vocês uma carona. Só porque eu também tenho amigos e também me preocupo com eles. – acalmou os dois Milpés. — A senhora faria isso por nós? – perguntou, com todo o respeito do mundo, Bola. — Farei. Mas também não precisa me chamar de senhora que eu ainda nem filhotes tive. Subam de novo e os levarei por todo o gramado. Se aparecer algum passageiro, como sou grande, eu o carrego também. E de desvio em desvio de caminho, um dia nós chegaremos lá. – observou Milpés. O Jardim dos Insetos 15 O Jardim dos Insetos E lá se foram os três por toda a imensidão do gramado. Por toda mesmo! Toda vez que um passageiro acenava para a lacraia era mais um desvio de rota. Se o passageiro precisasse voltar, voltavam todos. Às vezes, estavam quase por terminar uma das muitas ruas do gramado quando aparecia um passageiro. Aí era fazer a vontade dele e desviar a rota de novo. Bola e Grilado aprenderam bem como se trabalha uma lacraia taxista de gramado. Rodaram o Grande Gramado o dia inteiro. Quando as lacraias taxistas trabalham sem precisar procurar por um caracol sem casa e perdido é menos cansativo. Param para descansar em seu ponto quando não há passageiros. Mas eles tinham que procurar pelo caracol fujão. E quanto mais rodavam, mais passageiros encontravam. E cada vez mais a lacraia gostava. Ela nunca havia ganhado tanta docilla num dia só. Docilla era uma minúscula frutinha que, por ser doce e suave, funcionava como a moeda local. Só que já haviam procurado por todo o gramado e nada. Perguntaram a todos passageiros e a todos pelo caminho e ninguém tinha visto Encaracolado. Encaracolado não estava pelo chão do Grande Gramado. No chão e pela grama definitivamente eles sabiam que o caracol não estava. — Talvez o caracol nunca tenha passado por aqui. O gramado pode ser grande, mas não é tão grande assim se o percorrem todo e se pergunta a todos pelo caminho como fizemos. Eu acho que o amigo de vocês realmente não saiu do jardim. Só há mais uma possibilidade. – pensou melhor Milpés. — Qual? – perguntaram Bola e Grilado juntos. — Ele estar no alto de algum arbusto ou árvore. – disse a lacraia. — Como vocês devem saber, não é comum um caracol subir em arbustos ou árvores. Em arbustos e árvores eu não subo, não sei subir. Vocês vão ter que contratar os serviços de um outro profissional. — Contratar? Mas nós não temos como. Saímos do Jardim só com a roupa do corpo. – suspirou Bola. Jean Rocha Teixeira Duarte 16 Jean Rocha Teixeira Duarte — Eu não sei se ele fará a mesma gentileza que eu fiz a vocês. Se bem que foi bom para mim também. Nunca consegui tantos passageiros. Mas vocês devem tentar, antes que anoiteça. Animais de jardim soltos, no Grande Gramado e à noite, são presas mais do que fáceis. — E quem é esse que nós devemos contratar? – indagou Grilado. — O Dourado. Ele é um besouro que fica junto ao laguinho e que também trabalha como taxista. Só que em táxi aéreo. – disse Milpés. — Você sabe quanto ele cobra? – perguntou Bola. — Não muito. Mas eu os levo até lá. É caminho para mim e sozinhos por esse gramado não durariam muito tempo. Virariam, no mínimo, comida de pardal. – falou mais uma vez a lacraia solidária. Milpés os levou ao laguinho do gramado, que na verdade funcionava como um parque para humanos. O laguinho foi construído para aliviar um pouco o calor dos que ali iam. Ele propiciou a morada para uma série de animais que dependem da água. Milpés explicou aos dois que o maior perigo do parque ficava justamente ali. São os muitos sapos, rãs e pererecas que habitam o laguinho, que, aliás, é muito bonito. Todos acham isso. Os humanos e os animais do Grande Gramado. Pelo menos é o que se comenta. Agora o besouro dourado, sapo nenhum pegava. Nem tentava. Por isso ele se dava ao luxo de viver ali. Próximo de onde muitas coisas aconteciam. — Esses dois estão precisando de um vôo com você. – disse Milpés ao besouro dourado quando chegou ao lago. — Para onde vocês vão? – perguntou Dourado a Bola e Grilado. — Na verdade eles querem um vôo panorâmico de onde se dê para ver bem a copa dos arbustos e das árvores. Eles estão à procura de um amigo que saiu do jardim do prédio. – respondeu antes dos dois, Milpés. O Jardim dos Insetos 17 O Jardim dos Insetos — Um amigo que saiu do jardim do prédio? Os bichos que saem de lá não duram uma flor de hibisco ao vento aqui fora! Isso quando passam da calçada. Quanto mais estarem na copa de algum arbusto ou árvore. Como é esse fujão? – perguntou o piloto besouro dourado. — É um caramujo, mas sem a casa nas costas. – disse Bola. — Como é? Um caramujo sem a casa nas costas? Que história confusa! Os bichos de jardim quando se metem por aqui só dá nisso. Aparecem com histórias esquisitíssimas ou se perdem para sempre. – provocou Dourado. — Primeiro o pagamento! E me digam logo todo o trajeto para que eu possa calcular direito o valor. Outra coisa: eu não agüento vocês dois nas costas! Eu só posso levar um de cada vez. E duas viagens são duas cobranças. – continuou o besouro dourado. — Mas como? Nós teremos que nos separar? Se nós nos separarmos num lugar como esse, arriscamos a nunca mais nos vermos! – perguntou espantado Grilado. — Concordo! Mas não tem só eu trabalhando com táxi aéreo aqui no gramado. Eu conheço uma libélula que também trabalha nisso. É a Lila. – explicou Dourado. — Mas nós não temos como pagar um vôo, quanto mais dois. – admitiu atordoado Bola. — Tem sim! Existe um jeito de vocês me pagarem. E não é do jeito tradicional! – exclamou o besouro dourado deixando a todos intrigado. — Como? Diga, então! – indagou Bola. — Fala logo! – disse Milpés. — Tem alguma coisa de errado nisso! – falou Grilado, baixinho, para Bola. — Olhem, trabalhando como piloto de táxi aéreo aqui fora, no gramado, eu já vi coisas bonitas. Mas nada comparado com o que falam do jardim onde vocês moram. As libélulas dizem que lá é muito bonito, lindo! Jean Rocha Teixeira Duarte 18 Jean Rocha Teixeira Duarte Dizem que há uma fonte lindíssima onde bate sol o dia inteiro. Que existem bromélias, violetas, orquídeas e todo tipo de planta rara. Os bichos vivem em harmonia uns com os outros e todo mundo ganha bem pelo que faz. Eu gostaria de conhecer a cidade de vocês. Esse jardim que todo mundo fala bem. É só isso, não arranca pedaço de ninguém! Esse é o meu pagamento! Essa é a minha condição! Aliás, é bem provável que o caracol esteja mesmo sobre algum arbusto ou até mesmo em alguma das árvores maiores. Deve ter ficado com medo do mundo aqui de baixo e subiu para se esconder. Se vocês aceitarem a minha condição, eu os levo a cada galho de arbusto e árvore. E aí? O que vocês me dizem? – perguntou o besouro dourado curioso. — Ninguém de nós, que mora no Jardim pode levar para lá quem não tenha nascido no próprio Jardim. O que vocês não sabem é que quem vem do Jardim aqui para o gramado são criminosos e infratores. Bicho que fez coisa errada lá. Nós não podemos sair do Jardim por nada. Salvo raríssimas exceções onde o governo do Jardim já tem uma equipe especial para isso; para sair do Jardim e voltar sem que nada lhes aconteça. – explicou Bola. — Vocês são dessa equipe? – perguntou Milpés. Foi então que Bola e Grilado caíram no riso e não conseguiam parar. — Nós não tínhamos como ser nada. Nós não somos de equipe alguma. Só estamos atrás do nosso amigo. – esclareceu Grilado. — Então vocês aceitam?! – perguntou Dourado. O tatu-bola e o grilo pediram um tempo a sós para pensarem melhor. Conversavam, faziam caras e bocas e voltavam a discutir mais. — E quanto tempo você quer passar no Jardim? – voltou e perguntou Bola ao besouro. — Só o tempo de eu conhecer tudo! – respondeu Dourado. — Só o tempo de você conhecer tudo é tempo demais! Se nos pegarem com estranhos no Jardim é capaz de também sermos expulsos! E a libélula vai querer entrar também? – explicou e depois perguntou Bola. O Jardim dos Insetos 19 O Jardim dos Insetos — Ela não precisa, já conhece tudo do alto. Ela pára no ar e fica apreciando a paisagem. Aliás, só ela consegue isso. – disse Dourado. — Você só quer conhecer o Jardim e depois vir embora? – perguntou Bola. — Isso. Existem muitos detalhes belos que eu desconheço. Eu, como não tenho a capacidade de parar no ar como a libélula, só vi até hoje o que me permitiu o meu vôo rápido e de pouca autonomia. Quando eu passo reto no ar, não posso ver todos os detalhes de que tanto falam. – explicou Dourado. — Então aceitamos. Se não fosse por nosso amigo não aceitaríamos isso. Só por que ele pode estar correndo perigo. – falou em nome dos dois, Grilado. E os dois se prepararam para mais uma viagem. Antes foi na lacraia taxista que dava voltas o tempo todo parecendo um touro de rodeio humano. Agora seria num besouro e numa libélula. Os três foram até ali perto em busca de Lila, a libélula piloto. Milpés ainda transportando os dois viajantes nas costas a fim de protegê-los, e Dourado voando junto deles. Quando encontraram Lila, Dourado explicou a ela o que acontecia e o que queriam. Seria uma troca de favores entre Dourado e Lila. Ele realmente ficaria devendo uma à libélula. Tudo para que ele pudesse conhecer o Jardim dos Insetos. O vergel tinha esse nome mesmo que nem todos os bichos que viviam lá fossem insetos, mas porque a maioria deles era de insetos. Inclusive os governantes. Após uma conversa entre Dourado e Lila, foi acertada a viagem. Uma viagem e tanto! O tatu-bola que só deslizava pelo chão, agora voaria pela primeira vez. E o grilo que só saltava, agora voaria de carona num besouro cor de ouro. Jean Rocha Teixeira Duarte 20 Jean Rocha Teixeira Duarte O besouro tinha umas protuberâncias na cabeça, próximas ao chifre, onde ele pedia que Grilado segurasse durante o vôo. Grilado era um grilo que apesar de desconfiado era absolutamente destemido. Sempre fora assim, desde pequeno. Um grilinho invocado e que sempre saltava mais do que qualquer outro. Já Bola se segurou mesmo no pescoço da libélula. Com tantos pés, a pegada foi das mais firmes. De repente Dourado e Lila começaram a bater asas. Era tão rápido e barulhento que faria medo a um insetinho bobo. E o zum, zum, zum começou num arranque impressionante. A libélula voava e fazia curvas muito rápidas. De repente ela parava de uma vez. Já o besouro dourado apesar de voar fazendo muito barulho, era mais seguro. Fazia curvas previsíveis e seguras. Melhor para Grilado porque Bola além das antenas para trás ficou de olhos fechados a metade do tempo para não ver o perigo que corria. Uma coisa eles haviam esquecido de perguntar aos pilotos antes daqueles vôos: se algum bicho já tinha morrido do coração ou caído de cima do besouro ou da libélula. Decolaram ainda se despedindo de Milpés, a lacraia de bom coração. Um coração que certamente nunca se contagiará por seu veneno. Foi muito rápido até chegarem ao primeiro arbusto, um hibisco amarelo todo florido. O que um caracol faria num hibisco? Eles vistoriaram tudo e não acharam nada. Foram para o próximo arbusto imediatamente. O maior medo deles era não conseguirem chegar a tempo no vergel. Além dos perigos no gramado ainda tinha o problema da Lei da Noite. Ela deveria ser rigorosamente seguida por quem morava no Jardim dos Insetos. A lei dizia que após as mariposas começarem a voar, quando a escuridão já se impunha, nenhum animal poderia se aproximar da Cerca Viva. Isso para se evitar surpresas desagradáveis enquanto os insetos dormiam. Qualquer animal que O Jardim dos Insetos 21 O Jardim dos Insetos fosse encontrado próximo à Cerca após o sol se pôr era encarado como intruso. E eles não queriam ser encarados como intrusos por aquelas formigas de mandíbulas imensas, as saúvas. Muito menos ficar a mercê dos perigos do Grande Gramado. Era prudente serem o mais breve possível na vistoria de todas as plantas. De planta em planta os quatro não viram sinal algum do caramujo sem casa. E quando perguntavam pelo caminho se alguém o tinha visto, riam deles ou achavam que era uma piada de mau gosto. Casas sem caramujo existem. Quando eles morrem sobram apenas a carcaça. Mas caramujo sem casa nunca ninguém ali havia visto e se tivesse já teria virado notícia. Para fora do vergel com a casa nas costas era pouco provável que Encaracolado realmente tivesse saído. Se fosse assim ele ainda estaria agora, no máximo, próximo à calçada. Devido ao peso de sua casa, ele costumava ser muito lento. Foi por isso que ele se revoltou e fugiu. Tudo ainda estava muito confuso na cabeça de Bola e Grilado. E provavelmente muito mais ainda na cabeça de Encaracolado. E agora que todos os arbustos já tinham sido vistoriados pelos quatro, só restava uma coisa: ir até as árvores. — O quê você pega nessas plantas? O que você quer com isso? – indagou o besouro a Bola. — São sementes de plantas incríveis. Vocês não sabem o tesouro do qual dispõem! – explicou o tatu-bola. — Bola, não pegue mais sementes! Jogue isso fora! Você vai se encrencar levando isso para o Jardim! – pediu de novo Grilado, agora quase implorando. — O quê?! Vocês não podem ter desse mato no Jardim? Lógico... É só um mato ordinário! – espantou-se Dourado com o fato. Jean Rocha Teixeira Duarte 22 Jean Rocha Teixeira Duarte A inspeção das árvores menores, algumas ainda em crescimento, foi rápida. Foram logo rumo às duas mais altas. No caminho rumo à mangueira, Bola se deu conta de uma coisa que ainda ninguém havia pensado: Encaracolado assim como eles, também podia ter pegado um táxi com algum daqueles animais que trabalham com isso. Então ele poderia sim, estar no alto de alguma das árvores. — Aqui eu não vi! – respondeu a vespa à Lila quando ela lhe perguntou se havia visto o caracol sem casa na mangueira onde ele habitava. — Nem ouvi falar! – complementou o inseto que já estava construindo sua casa há duas semanas naquela árvore. Assim foram ao eucalipto já com quase certeza de que o caramujo não estava no gramado. Ou ele nunca saíra do vergel ou já havia virado comida de bicho de gramado. Os dois amigos já estavam já estavam desiludidos quanto àquilo. Teriam arriscado suas vidas sem que Encaracolado houvesse saído do Jardim? Ou perderam mesmo um amigo daquela forma trágica? Um inocente bicho de jardim de prédio que se dera muito mal ao tentar viver naquele lugar hostil que era o Grande Gramado. Voaram então direto para o eucalipto, a outra das duas árvores maiores. Inspecionaram toda a planta e estava constatado: ou Encaracolado realmente nunca saíra do vergel ou já estava morto. O besouro agora queria o cumprimento da promessa que lhes fizeram os dois viajantes. Queria conhecer o Jardim, o Jardim dos Insetos. O Jardim dos Insetos 23 O Jardim dos Insetos II — Palavra dada é promessa cumprida! – disse Bola ao besouro. — Eu não tenho interesse em entrar no Jardim. Eu já conheço tudo do alto! – disse Lila. — Pois eu quero vê-lo e senti-lo. Só do alto não basta. – disse exigentemente Dourado. E lá se foram os quatro para a Cerca Viva, a muralha que protegia o vergel dos bichos rasteiros do mundo externo. A Cerca Viva não era uma Cerca Viva comum. Era muito mais densa, agrupada. De forma que funcionava mesmo como uma muralha. Tudo planejado e muito bem executado em mutirão pelos animais do Jardim, numa época em que as invasões eram constantes. Os bichos do Jardim eram constantemente comidos por bichos que vinham tanto do gramado quanto de outros lugares. Assim a construção da Cerca Viva foi uma idéia que manteve os animais do vergel até hoje como os mais protegidos e organizados que se Jean Rocha Teixeira Duarte 24 Jean Rocha Teixeira Duarte conhece. E qualquer invasão, depois dela pronta, seria inútil. Eles já estavam mais do que prevenidos contra os males do mundo exterior”, como diziam os governantes. E como o besouro Dourado faria para entrar no Jardim sem ser notado? Ou melhor, como os três fariam para entrar sem serem pegos? Animais estranhos que tentavam entrar no vergel eram imediatamente atacados pelas Formigas Vigias. E animais do Jardim pegos entrando nele sem autorização de saída eram presos imediatamente e depois processados. O resultado: eram sempre expulsos. A manobra que tiveram que fazer para sair do vergel já tinha sido absurda. Agora precisavam de outro plano, só que para passarem pela Cerca Viva, de volta para casa. As formigas saúvas eram espertas e não brincavam em serviço. Honravam bem a fama de trabalhadeiras que as formigas têm. Eram vivas! Tanto de dia quanto à noite. Pareciam ainda mais ativas à noite. Por isso eram consideradas essenciais para a vida em comunidade no Jardim. Eram sempre elogiadas e homenageadas pelo governante em público. Só que surgia mais um problema. Após muito pensarem, ficou decidido que Lila seria indispensável para que o plano desse certo. E mais: ela teria que participar ativamente. Dourado permanecia por perto mais ouvindo do que contribuindo na elaboração do plano. As saúvas só se afastavam da Cerca Viva por um motivo: para reparar as estradas quando isso impedia o bom funcionamento do vergel. Mas mesmo assim, obviamente, ainda ficavam algumas formigas na vigia da Cerca. Embora em menor número. Assim o plano teria que ter duas partes. A primeira: fazer com que parte das saúvas se afastasse do formigueiro rumo a alguma estrada. A segunda: fazer com que as formigas restantes se ausentassem da entrada do ninho que ficava junto à Cerca. O Jardim dos Insetos 25 O Jardim dos Insetos A dificuldade imposta para se entrar no Jardim fazia suas penas aumentarem mais ainda, caso fossem capturados. Se fossem pegos certamente iriam a julgamento. Seriam processados por uma série de delitos que tiveram que cometer. No início para salvar um amigo, agora para voltarem ao vergel. Precisavam salvar a si mesmos. Não saberiam viver naquele gramado. Não durariam muito tempo. O que precisavam fazer para entrar de volta no Jardim os comprometia mais ainda, mas era preciso. Sabiam que tudo acontecera por uma boa intenção. O plano era o seguinte: Lila chamaria a atenção de parte das formigas bloqueando a passagem em algumas estradas. As saúvas restantes, que ficavam junto ao formigueiro e à Cerca, também sobre a Cerca, seriam despistadas por ela depois. Lila soltaria em pleno vôo alguns torrões de terra e caroços de frutas sobre as estradas escolhidas. Depois, quando parte das formigas já tivesse saído para reparar as estradas, ela despistaria a atenção das restantes fazendo-se de interessada em morar no vergel. Perguntaria às Formigas Vigias o que se deve fazer para morar naquele lugar bonito. Após tudo planejado e ensaiado lá se foi Lila “bombardear” as estradas da cidade que era o Jardim dos Insetos. Começado o despejamento dos torrões de terra e dos caroços, muito bem escolhidos para que não machucassem ninguém e não causassem danos maiores, logo as formigas foram avisadas. Lila teria que ser rápida, pois, faltava pouco para escurecer e ela ainda teria que fingir para as saúvas que ainda ficassem junto ao formigueiro e à Cerca que queria morar no vergel. As formigas saíram rumo às estradas interditadas pouco tempo após Lila ter começado seu ataque calculado. Quando a libélula percebeu que a primeira parte do plano dava certo, foi para a Cerca despistar as formigas que ainda lá estavam com seu falso interesse em morar no Jardim. Jean Rocha Teixeira Duarte 26 Jean Rocha Teixeira Duarte — Ei, ei, como se faz para morar nesse Jardim? Eu estou à procura de um lugar assim faz tempo! – disse Lila às saúvas que restaram junto à Cerca. — Qual o seu nome libélula? – perguntou uma das formigas parecendo mais importante do que as outras. — É Lila! Eu tenho interesse em morar num lugar tão organizado e civilizado. – respondeu a libélula. — Agora se está aceitando animais que não sejam do Jardim, desde que não sejam infratores. Aproxime-se e vamos conversar... – continuou a formiga. A libélula sabia que não poderia ser presa de fora do Jardim, aquilo seria ilegal. Assim se aproximou. — A senhora está presa! – exclamou a formiga com jeito de importante enquanto pulava formiga de todos os lados sobre Lila, segurando suas asas. — Vocês não podem me prender fora do Jardim, eu não estou na jurisdição de vocês. – observou Lila. — Agora está! – disse a formiga puxando-a, junto com as outras, para dentro do Jardim. Pronto! O plano sofria uma baixa terrível! Lila estava presa! Naquela confusão toda entraram sem serem vistos Bola, Grilado e Dourado. — Você é uma transgressora, tentou danificar nossas estradas jogando pedras lá de cima! Vocês bichos de mato, de gramado, têm inveja do nosso jardim, de nós que moramos aqui. Vocês são mal educados. Bárbaros! Mas você será devidamente julgada e penalizada. – prenunciou a formiga com jeito de importante e que agora Lilá descobria ser a delegada. — Eu sempre desconfiei do jeito de vocês libélulas. Ficam nos observando lá de cima, paradas no ar, enquanto nós não podemos fazer nada. Eu sabia que vocês bolavam um plano para nos atacar. – completou a saúva delegada. O Jardim dos Insetos 27 O Jardim dos Insetos — Vocês não entendem? Eu fiz por bem! Pelo bem de um conhecido de vocês! – tentou defender-se Lila. — O quê? Você nos ataca e diz que foi por bem? Você é uma infratora! O resto você explica quando for interrogada. – falou mais uma vez a formiga delegada. As formigas conduziram Lila a um lugar que ela não tinha a menor idéia de onde ficava. Ela era carregada por inúmeras saúvas. Suas asas eram seguras. Assim ela foi conduzida por todo o vergel. Era de tardinha e todos os bichos assistiam àquela cena. A libélula que havia bombardeado algumas ruas do Jardim causando confusão na cidade já estava presa. As formigas saúvas gostavam de manter a fama de competentes quanto à manutenção da ordem no vergel. Eram mais do que eficientes. Chegavam a parecer perfeitas. Mas dessa vez deixaram três intrusos entrarem no Jardim... As saúvas prenderam Lila, mas o tatu-bola, o grilo, e o besouro dourado passaram sem serem percebidos. Por mais que isso tenha custado a captura de Lila ou até a sua vida. Talvez os três tenham sido os primeiros a conseguirem furar o bloqueio das formigas. A Cerca Viva parecia uma muralha intransponível. Muito densa e vigiada por saúvas espertas e competentes. Mas lá estavam os três dentro do jardim, o Jardim dos Insetos. Jean Rocha Teixeira Duarte 28 Jean Rocha Teixeira Duarte — Vamos! Entre nessa carapaça ou você será preso. – disse Grilado enquanto o besouro dourado se espremia todo para passar pela entrada da casa de caracol. Essa foi a maneira encontrada por Grilado e Bola para que Dourado não fosse delatado por alguém: disfarçar-se de caracol. — Eu não caibo aqui dentro direito! – resmungou Dourado. — Cabe, sim! Você agora é um caracol. Pelo menos até chegarmos a minha casa. Lá você volta a ser um besouro dourado como sempre foi. – observou Grilado. Foram pelo vergel, os três, Bola, Grilado e Dourado dentro de uma casa de caracol. — Credo! Isso é de um caracol morto! Morreu alguém aqui dentro! Eu estou numa casa de defunto! – reclamou Dourado. — É para você aprender a largar de querer ser o mais esperto de todos. Todo mundo morre um dia e o dia desse caracol já chegou. Se você não se calar e passar a andar como um caracol, é você quem vai morrer nas mãos das aranhas. A casa não está com cheiro ruim porque esse caracol já morreu faz muito tempo e a chuva já lavou essa casa várias vezes. – disse Grilado. — Ponha meu chapéu na cabeça e trate de andar bem devagar. Caso você tente se apressar nós seremos percebidos e presos. – disse o tatu-bola. — E para que o chapéu? – perguntou Dourado. — Para que não vejam que as suas antenas são de besouro e não de caracol. – respondeu Bola. E o besouro dourado foi cortando o Jardim imitando um caracol. Reclamava e reclamava, mas não adiantava. — Ai! Ai! Eu não agüento mais! Minhas costas doem muito, dói tudo o que poderia doer. – dizia Dourado. O Jardim dos Insetos 29 O Jardim dos Insetos — É só um esforçinho para salvar nossas vidas. As nossas e a sua também. – persuadiu de forma irônica Grilado. — O seu problema foi achar que porque era bonito também era esperto. E são coisas diferentes, Dourado. – explicou Bola. — Nós, animais de jardim, somos bobos lá fora. Vocês, animais de mato são bobos aqui dentro. Vocês nos combatem lá fora com suas selvagerias. Nós os combatemos aqui dentro com nossa organização e disciplina. – falou Grilado. Após andarem muito e pararem pouco, os três chegaram à Pedra do Grilo, a casa de Grilado. Bola e Grilado cansados. Dourado precisando ser puxado de dentro da casa do caracol e depois carregado até a cama de tanto cansaço. Dormiu durante dois dias só bebendo um pouco de água e comendo muito pouco. O besouro falava coisas sem sentido enquanto dormia. Ele claramente delirava de tanto cansaço. Foi uma jornada e tanto pelo gramado e depois já dentro do vergel. “Onde eu estou? Que lugar é esse? Que dia é hoje?”. Assim acordou Dourado. Perguntando muito, e todo confuso. Parecia que havia dormido um século e não dois dias. Grilado explicou-lhe o que havia acontecido, onde estava e que dia era aquele. O besouro curioso realmente havia se dado muito mal. Teria virado um caracol forçadamente. Dourado fez Grilado prometer que nunca contaria aquilo a ninguém. — E onde está o tatu-bola? – perguntou Dourado. — Provavelmente trabalhando ou na casa dele. – respondeu Grilado. — E você porque não foi trabalhar? – perguntou de novo o besouro que reluzia feito ouro. — Eu não pude. Se você acordasse sozinho aqui em casa poderia ter nos causado problemas. Como ter saído por aí achando que é um de nós, um bicho de jardim. – respondeu Grilado. Jean Rocha Teixeira Duarte 30 Jean Rocha Teixeira Duarte — E como eu me recuperei tão rápido? Eu estava absolutamente cansado e de repente me sinto revigorado e forte de novo. – continuou perguntando Dourado. — Foram as sementes que Bola pegou no gramado. – respondeu o grilo. — Nós fizemos um chá com algumas delas e lhe demos... Na última vez que você acordou delirando. Sementes, aliás, que ele não deveria ter esquecido aqui em casa, porque isso é crime. Portar plantas que não são daqui é proibido. – continuou Grilado. O grilo decidiu então sair à procura de Bola para que ele fosse a sua casa retirar as sementes que teoricamente teria esquecido. Ir aonde o tatu morava e onde provavelmente estaria. Bola trabalhava próximo a sua casa como mestrecuca especialista em doces. Com as madeiras que só ele sabia encontrar, fazia doces deliciosíssimos. Não por acaso eram deveras procurados. Encontrava as madeiras certas, com a fermentação exata. Detinha um segredo que pouquíssimos conheciam. Assim como os melhores queijeiros, os melhores fabricantes de vinho e os melhores caçadores de trufas humanos. Grilado, desconfiado que era, preferiu não carregar as sementes, a prova do crime, com ele. — Bola quem trouxe isso, ele que as carregará. Eu lhe disse que não as pegasse, que seria problema depois. – falou o grilo ao besouro enquanto se arrumava para ir ao encontro do amigo tatu-bola. — Você, por favor, não saia de casa. Nunca tivemos um besouro cor de ouro aqui! – completou com uma recomendação Grilado. No meio do caminho Grilado encontrou um amigo em comum dele e Bola: Bourbon. Uma borboleta toda cheia “de não me toques” e metida a francesa a quem Grilado perguntou pelo paradeiro de Bola. Bourbon só provava os melhores néctares do Jardim. Só de flores extremamente cheirosas. Também os conseguia para Bola, para seus doces. O Jardim dos Insetos 31 O Jardim dos Insetos — Bourbon, você viu o Bola? – perguntou Grilado. — Sim, conversamos há pouco aqui mesmo. Ele passou apressado. – respondeu Bourbon. — E onde ele está agora? – perguntou o grilo também apressado. — Ele me disse que iria à casa da costureira Joana encomendar uma capa de frio. – completou a borboleta exigente. Grilado foi imediatamente à casa da joaninha costureira falar com o amigo tatu-bola. Chegando ao bonsai onde morava a costureira, encontrou o lugar repleto de moradores. Todos perguntavam e falavam ao mesmo tempo. A casa de Joana era sempre utilizada pelos insetos quando eles queriam saber alguma coisa de importante que havia acontecido dentro ou fora do vergel. E Grilado já sabia que algo havia acontecido de muito importante. Supôs que fosse a história das estradas obstruídas por uma libélula que atirara coisas em pleno vôo. — Ela já foi presa? – perguntou um dos insetos que ali estava. — Já! As saúvas suspeitam de que havia comparsas. – respondeu outro em meio à confusão. Na mesma hora o coração de Grilado ameaçou sair pela boca. Ele que era de um verde escuro ficou cor de palha de tanto medo. Se descobrissem que ele era um dos comparsas o prenderiam ali mesmo. Depois o levariam sob pancadas até o Buraco das Saúvas, como era chamado o lugar de reclusão temporária de suspeitos. De repente, Grilado viu no meio da confusão o amigo tatu-bola. Bola perguntava e respondia a muitos. O grilo foi disposto a tirá-lo dali para conversar em particular com ele. Os muitos insetos junto à porta da costureira faziam com que Grilado se sentisse num discurso político que, às vezes, acontecia no Jardim. O grilo tentava chegar perto de Bola que agora julgava ser o tatu-bola mais fofoqueiro do mundo. Grilado sentiu raiva dele e teve a impressão de que sempre soubera que o tatu fosse interessado na vida alheia. Parecia que todas as perguntas que ele já fizera ao grilo foram mexericos. Mas Grilado após muito esforço conseguiu alcançar Bola. Jean Rocha Teixeira Duarte 32 Jean Rocha Teixeira Duarte — Venha comigo agora! – disse Grilado a Bola. E saíram os dois do meio da confusão para um lugar onde ninguém os ouvisse. — Eu todo preocupado com você, com suas sementes e você aqui fuxicando. – falou o grilo a Bola. — Preocupado comigo? Você estava era preocupado com você! Com medo das sementes! Cadê elas? – perguntou Bola. — Oras, lá em casa. Você acha que eu sairia com aquilo comigo? – respondeu Grilado. — Você realmente é muito corajoso! – provocou o tatu-bola. — Sou mesmo! Por ter saído do Jardim, por ter sobrevivido àquilo! Nós estamos numa enrascada e você preocupado com capa de chuva?! – perguntou indignado o grilo. — Oh grilo desconfiado! Eu vim aqui investigar até onde sabem do nosso envolvimento com Lila. – explicou Bola. — Envolvimento com Lila? E o que aconteceu com ela. – indagou Grilado espantado. — Grilado, Lila foi presa quando entramos no Jardim! Está presa e será julgada por tentar destruir o Jardim! – enfatizou o tatu-bola. — Você está brincando!? – espantou-se o grilo quase não acreditando. — Brincando? Por que você acha que nós entramos tão fácil? Porque Lila foi presa e gerou todo um tumulto que permitiu que ninguém nos visse. A capa de chuva foi um pretexto para que eu pudesse conversar com a costureira sem levantar suspeitas. Eu não sabia que isso aqui já estava repleto de bichos. – continuou explicando Bola ao grilo que agora se sentia desesperado ao invés de raivoso. — E o que sabem sobre nós, sobre a nossa saída? – perguntou Grilado. O Jardim dos Insetos 33 O Jardim dos Insetos — Nada, mas suspeitam que ela poderia não estar sozinha. Ou seja, que havia nós três. – respondeu Bola impressionado com a situação que se apresentava aos dois. — E se alguém tiver nos visto e ainda não falou nada? – perguntou o grilo. — É disso que eu tenho medo! – respondeu Bola. — E o pior! E se Lila for condenada à morte? Ela estava só ajudando! Não tinha nada a ver com a história. Entrou nisso pelo Dourado. Agora o porquê nós não sabemos. Vamos para minha casa e lá decidiremos juntos, os três, o que fazer. – analisou Grilado. — Eu só deixei as sementes em sua casa porque a minha é muito pequena. A sua dispõe de um quintal imenso. – esclareceu Bola enquanto iam. O trajeto rumo à casa de Grilado, a Pedra do Grilo, como era conhecida pelos insetos do vergel, foi rápido e aos pulos. Mais uma vez Bola nas costas de Grilado numa viagem saltitante em que chegaram em pouco tempo. — Eu não quero ter que passar de novo por caracol, não! – exclamou Dourado enquanto discutiam já na casa de Grilado. — Ninguém está dizendo que você vai ter que fazer isso! – disse Bola meio com dó do besouro. — E como eu vou fazer aqui no Jardim? Não posso sair na rua, não posso conhecer nada? – indagou desesperançoso Dourado. — Por enquanto não, de jeito algum! É você se arriscar e será preso. – respondeu Bola. Todos já estavam bem cansados de toda aquela situação em que haviam se metido. Cansados física e mentalmente. Conversaram a tarde toda. Discutiram sobre o que valia a pena ser feito naquela situação. Os dois amigos também perguntaram a Dourado porque Lila se metera naquela emboscada. Porque se arriscara pelo besouro. O que ela ganharia com aquilo. E Dourado explicou o porquê: Jean Rocha Teixeira Duarte 34 Jean Rocha Teixeira Duarte — Por quê? Simples, porque ela não correria risco algum! Ela tinha poucas chances de ser pega e presa. Uma libélula é a coisa mais difícil de se capturar. Para ela foi docilla fácil. Ela foi muito confiante para ter deixado ser apanhada. Para Bola e Grilado estava claro: Lila se envolvera no plano apenas por docillas. Também fora interesseira como o besouro dourado. A não ser que... A não ser que Dourado estivesse mentindo. De qualquer forma teriam que dar crédito ao besouro cor de ouro. Mas de uma coisa não se esqueceriam: eles só estavam naquela situação porque Dourado os chantagiara para entrar no vergel. Poderia muito bem ter dado uma carona aos dois, rumo à Cerca Viva, como fez a Milpés por todo o gramado. Mas não! Praticamente os forçou a levá-lo junto com eles para o jardim, o Jardim dos Insetos. Poderia também ter cobrado deles de um outro jeito. Pelo menos confiado neles para que pudessem pagar depois. — E quando é o julgamento dela, Bola? – perguntou Grilado. — Daqui a cento e oitenta flores do Caramanchão. O tribunal, como você sabe, não atrasa nenhum julgamento para que não se esqueçam do feito. Para que haja o máximo de justiça. – respondeu o tatu-bola. — Temos que ir a esse julgamento. Conseguir pelo menos uma entrada. – avaliou o grilo olhando para baixo como que buscando uma solução da memória. — As entradas para os julgamentos são muito concorridas. Será que conseguiremos? – especulou Bola. — É provável que não, mas não custa tentar. – respondeu Grilado enquanto se preparava para sair. — E enquanto isso o que eu faço? – perguntou Dourado. — Você quer passear de caracol? – perguntou também Grilado. — O quê? Aquilo foi a coisa mais horrível que já me aconteceu! O Jardim dos Insetos 35 O Jardim dos Insetos Eu quero saber o que vai ser de mim. Não quero mais saber de jardim bonito nenhum. Quero voltar para onde eu fui criado e sei como funcionam as coisas. Onde eu posso ser quem eu sou, ir e vir em paz! – lamuriou o besouro dourado e vaidoso em tom de tristeza. — Enquanto as coisas não se definirem, enquanto não houver o julgamento, ninguém de nós faz nada. – disse Grilado recebendo a aprovação de Bola que concordava, acenando com a cabeça. — Mas e eu? O que faço nesse tempo todo? Não posso sair pelo Jardim! Não posso voltar para casa! Não posso nada! – reclamou outra vez Dourado. — Eu tenho uma idéia! Primeiro: nós estaremos sempre aqui com você. Você não estará morando sozinho. Está na casa de Grilado. Enquanto o julgamento não chega você pode cuidar da horta que quero montar com as sementes que peguei no mato do gramado. É uma ocupação e tanto para a cabeça. O quê você acha, Dourado? – explicou e depois perguntou Bola. — É melhor que nada. – disse sem muita empolgação o besouro que impressionava pela cor e pelo tamanho. E assim foram os dias de Dourado enquanto o julgamento de Lila não chegava. Cuidava do canteiro e até impressionou aos outros dois, já que o canteiro não ia tão mal. Grilado e Bola estavam sempre se informando sobre o andamento das investigações do “caso da libélula que atacou o Jardim”, como ficou conhecido. As plantas cresciam com uma vivacidade nas cores e já davam flores, frutos e novas sementes. O canteiro secreto, que ficava nos fundos da casa de Grilado, atrás da Pedra do Grilo, estava bem cuidado e relativamente grande. Também completamente escondido. O mês passou dia após dia quando, de repente, Grilado, Bola e Dourado deram-se conta de que faltava apenas um dia para o julgamento de Lila. Grilado com muito esforço e com toda a pouca influência que tinha no Jean Rocha Teixeira Duarte 36 Jean Rocha Teixeira Duarte vergel finalmente conseguira uma entrada para o julgamento da libélula. Só ele sabia como fora difícil obter um ingresso sem que chamasse a atenção. Afinal ele nunca fora interessado por julgamentos, nunca tinha ido a unzinho sequer. Os julgamentos eram marcados para o dia em que não se trabalhava no Jardim. Era um verdadeiro espetáculo de exaltação aos bons costumes. Havia poucos no ambiente do julgamento, mas lá fora ficava praticamente o resto dos moradores do vergel. Só não ia quem realmente não podia. Era uma festa onde se vendia e comprava coisas sem, no entanto, que se faltasse “com os costumes”, como diziam as autoridades. Porém naquele dia, anterior ao julgamento de Lila, um novo alarde percorreu todo o Jardim, como é com toda notícia ruim. Comentava-se de lado a lado, em todos os cantos da cidade que uma catástrofe tomara conta dele. Uns diziam que também era coisa da libélula “criminosa e louca”. Plantas infestaram boa parte do vergel e já competiam seriamente com as plantas que serviam de alimento aos insetos. Já se dizia que Lila também seria julgada no dia seguinte também por aquilo. Dizia-se que também fora Lila que trouxera as sementes para o Jardim, largando-as em vôo por sobre a cidade. Quando aquilo chegou aos ouvidos de Grilado, que estava entregando correspondências, ele já sabia de quem era a culpa. De Bola! O tatu invocado trouxera as sementes e insistira em ficar com elas durante o trajeto pelo gramado. Cultivara as plantas atrás da casa do grilo e aquelas pragas se alastraram por todo o vergel. Alguns insetos mais antigos já comentavam que aquilo era o fim, que seria muito difícil agora o controle das plantas invasoras. Grilado tratou de ir direto para a casa do tatu-bola quando soube da catástrofe que se impunha e que já assustava a todos. Queria algumas explicações de Bola. Era óbvio que a culpa era mesmo dele. Seria muita coincidência. Tudo se encaixava. Ele sentiu vontade de dar-lhe O Jardim dos Insetos 37 O Jardim dos Insetos uma pernada e mandá-lo para bem longe. Ele que era botânico, teria que ter uma resposta para aquilo e quem sabe uma solução. — Você viu o que você fez?! – já chegou perguntando, gritando e acusando Grilado. — O quê agora também é culpa minha? – também perguntou Bola. — Você não viu como está o Jardim? Tomado de plantas daninhas por todo lado. Aquelas mesmas plantas que você pegou sementes no gramado e está cultivando no canteiro lá de casa, contra meu gosto. Agora quem vai dançar somos nós. E provavelmente você não vai gostar da música. – respondeu o grilo. — Mas como essas plantas saíram do canteiro? Ninguém entrou ou saiu de lá com sementes delas. Não foram dadas semente daquelas plantas a ninguém. Eu tratei para que não houvesse, de forma alguma, como as sementes serem transportadas pelo vento, por exemplo. – defendeu-se Bola. — Agora o importante é pensarmos em como nos livraremos delas de forma segura e sem que ninguém mais saiba. – analisou Grilado. — Vamos para sua casa dar um jeito nisso agora. O quê você me diz? – propôs Bola ao grilo. — É o melhor a ser feito. Antes que nos descubram. Se é que já não nos descobriram. – concordou Grilado. Os dois chegaram mais uma vez em pouco tempo à casa de Grilado. O grilo nunca saltara tão rápido e alto antes. Ao chegar a casa, Grilado chamou pelo besouro, explicou-lhe o que havia acontecido e foram os três para o canteiro. Para queimar tudo! Todas as plantas sem deixar vestígios e principalmente sementes. Primeiro para não deixar provas de que era ali que se cultivavam as tais plantas que causavam a catástrofe no vergel. E segundo, para não aumentar ainda mais o estrago feito, deixando-se mais sementes no chão. Jean Rocha Teixeira Duarte 38 Jean Rocha Teixeira Duarte Os três queimaram e enterraram todas as partes das plantas. Menos as sementes, as quais trituraram com a ajuda de pedras. Agora sim pareciam livres de receberem a culpa por aquilo e de aumentarem ainda mais a catástrofe causada. Os três concordavam com o seguinte: já que o estrago já estava feito e que a catástrofe se apoderava do Jardim inevitavelmente era melhor que fosse daquele jeito. Que ninguém recebesse a culpa por uma coisa que já acontecia mesmo. O que eles deveriam era se dedicar a ajudar no combate às ervas invasoras como outros tantos no vergel estavam fazendo. Eles mais do que todos. O dia do julgamento no Jardim correu bem atípico de um dia em que se acontecia um julgamento. Não havia tantos animais do lado de fora da Pedra das Pendências. Parte dos moradores esperava em frente à Pedra por notícias, enquanto a outra parte tratava de salvar a cidade contra as plantas daninhas. Como o julgamento não costumava demorar muito, em pouco tempo já se saberia o destino de Lila. Lila se encontrava isolada todo esse tempo em uma jaula feita com teias de aranha muito resistentes. Também quem a visitaria? Ela era uma estrangeira que só recebia visitas de vez em quando para comer, beber e depor. Grilado era um dos convidados da grande demonstração de que não se desobedece às leis do vergel. As leis que sempre prezavam pelo bom funcionamento daquilo que era uma verdadeira cidade. Uma coisa sensibilizou Grilado: Lila respondeu ao interrogatório dizendo não ter tido comparsas com ela. Será que ela não sabia que os três acabaram conseguindo entrar no Jardim? De qualquer forma só de dizer que estava com dois moradores do vergel já abrandaria a sua pena. Coisa que ela não fez. Disse que estava sozinha e que sempre sonhara em morar no Jardim. Disse que fez aquilo para distrair as saúvas da Cerca e tentar entrar por ali já que as aranhas que vigiavam a parte aérea lhe pareciam mais perigosas, além de carnívoras. O Jardim dos Insetos 39 O Jardim dos Insetos Aliás, essa era a função das Aranhas do Teto, como eram qualificadas. Os intrusos e criminosos, seu pagamento. Alimentavam-se deles. Elas os comiam com gosto e desprezo. Eram só infratores tentando destruir e denegrir a imagem do vergel. Não mereciam consideração daquelas que eram sem dúvida as mais temidas do Jardim. — A senhora é culpada pelo aparecimento dessas ervas daninhas que estão assolando nosso jardim? – interrogou o juiz. — Não! Eu não tenho culpa alguma disso. Não sei nada a respeito. – respondeu a quase condenada, Lila. Depois de pouco tempo decorrido de julgamento o juiz sentenciou: — Com todos os indícios como, por exemplo, o fato de há muito tempo não entrar um invasor em nosso jardim, eu a considero culpada. Tanto pela tentativa de destruir nossas estradas quanto pelo alastramento das plantas daninhas pela cidade, o que já é do conhecimento de todos. Assim a pena será de morte. Que seja a ré entregue às aranhas ainda hoje sob a vista e na presença de todos do Jardim. Na mesma hora, Grilado que assistia ao julgamento, sentiu-se paralisado. Paralisado e culpado pelo o que acontecia a Lila. Ela fora condenada à morte e por uma coisa da qual não tinha culpa ou intenção. Teria sido no máximo sentenciada à prisão perpétua. Mas não condenada à morte se tirassem dela a acusação de ter levado para o vergel aquelas plantas que invadiam e destruíam toda a cidade dos insetos. Agora Grilado ficara com a consciência pesada. Ele saiu rápido do fórum e voltou rápido para casa. Lá estavam Bola e Dourado esperando apenas pela notícia sobre o que acontecera a Lila. Jean Rocha Teixeira Duarte 40 Jean Rocha Teixeira Duarte Naquele dia os dois não conseguiram trabalhar na retirada e queima das plantas daninhas do Jardim. No caminho Grilado foi pensando em qual seria a sua real culpa naquilo tudo. Tanto na condenação de Lila quanto na catástrofe ecológica com as plantas invasoras. E ele já sabia que a discussão entre os três, ele, Bola e Dourado não seria simples. Deveria ficar bem claro qual era a culpa de cada um. Até onde cada um se comprometera e principalmente: o que deveria ser feito para se salvar a vida de Lila. Ela não tinha mais muito tempo de vida. As execuções costumavam ser nos finais de tarde para que todos os insetos pudessem assisti-las. Dessa forma Lila tinha menos de meio dia de vida. Depois seria entregue às aranhas como acontecia com os infratores que cometiam faltas graves. Em casa, Grilado fez questão de reunir o grupo que já há mais de um mês se mantivera extremamente apreensivo quanto ao futuro de todos ali e de Lila. Discutiriam o que fazer, quem faria e como seria feito. Necessitavam de uma resposta e rápido. Muito provavelmente ela nem sabia que os três conseguiram entrar no vergel. Se eles se omitissem, seria um segredo que ninguém jamais descobriria. Mas Lila precisava deles. O Jardim dos Insetos 41 O Jardim dos Insetos III — Eu só quis conhecer o Jardim! Que mal há nisso? Ser curioso agora é crime? Eu não peguei semente nenhuma em gramado algum. Eu as plantei e cultivei as plantas porque praticamente vocês me forçaram. Eu nunca teria posto em risco o lugar onde eu moro, a minha cidade. Ainda mais um lugar como esse, quase perfeito. – discursou Dourado. Grilado e Bola em meio à discussão concordaram com Dourado. Ele não tinha culpa pelo que ali agora acontecia. Apesar de que percebiam claramente que Dourado tirava o corpo fora de tanto medo que sentia de um possível julgamento. Seria realmente entre os dois, Bola e Grilado. Deveriam decidir o que fazer, quem e como fazer. Só sabiam que deveria ser o mais rápido possível. Eles esperavam o início daquela discussão se entreolhando, enquanto Dourado só assistia. Após um silêncio avassalador, Grilado decidiu então falar. Jean Rocha Teixeira Duarte 42 Jean Rocha Teixeira Duarte — É Bola... Você pegou as sementes. Você decidiu plantá-las e cultiválas. Eu lhe avisei duas vezes quando ainda estávamos no gramado. E você teimava que não haveria problemas. Depois contra o meu gosto e eu lhe lembrando que era errado, você as plantou e nos envolveu nisso tudo. Mas eu confesso: a culpa é também minha... Nós estávamos juntos e no fundo eu sentia prazer por aquilo. Por você ter pegado as sementes. Depois quando as cultivou aqui em casa, eu poderia tê-lo impedido e não o fiz. Nós temos muita coisa a explicar à justiça antes que Lila seja entregue às aranhas. – disse Grilado. Depois se abraçaram. Os dois prometeram não falar de Dourado a ninguém do vergel ou do tribunal. Seria prudente que ele tentasse retornar ao gramado antes que algum imprevisto lhe acontecesse. Foram para a Pedra das Pendências, os dois, como faziam os que deviam algo à Justiça. Mas não dominados por saúvas e sim por livre e espontânea vontade. A peleja contra Lila já havia acabado há tempo e lá estavam os dois com algo a dizer sobre as plantas que invadiram a cidade. — Precisamos falar com o juiz. – disse Bola. — O que o tatu-bola e o grilo querem com alguém tão importante como ele? – perguntou o vigia que tomava conta do lugar na hora. Também havia muitos outros bichos com ele. — É que foi feita uma injustiça à libélula que invadiu o Jardim. E nós temos muito a falar sobre o caso. – explicou Grilado. — Vocês têm certeza do que estão fazendo? Isso aqui é coisa séria! Primeiro vocês serão ouvidos por outro funcionário, não com pelo juiz. – disse o vigia esclarecendo que o juiz não estava acessível a eles. Bola e Grilado contaram tudo o que sabiam e fizeram. Tudo o que acontecera desde o gramado. Ou melhor, desde antes de saírem do Jardim, O Jardim dos Insetos 43 O Jardim dos Insetos quando o caracol sumiu do mapa deixando a todos preocupados. Como de esperado foram imediatamente presos e a saúva delegada chamada. Antes que Lila virasse comida de aranha foi marcado um novo julgamento. Como sempre para 180 flores do Caramanchão, depois do novo esclarecimento sobre o caso. Dessa vez seriam julgados no mesmo caso Bola, Grilado e, de novo, Lila. Todos os habitantes do vergel já sabiam das últimas novidades do caso da “libélula que atacou o Jardim”. Os insetos diziam que Grilado e Bola estavam envolvidos com a libélula criminosa que tentara por inveja, “como todo animal de mato e gramado”, destruir o vergel e sua cidade feliz e harmoniosa. Os três envolvidos ficaram esperando pelo julgamento em celas diferentes. Para que não houvesse comunicação entre eles após a prisão, evitando-se dessa forma alguma combinação por parte deles sobre o que dizer a respeito do que acontecera. Dias de solidão e reflexão. Assim foi o tempo decorrido até o dia do julgamento dos dois criminosos que sabotaram o Jardim com a ajuda de uma libélula. O que um achava e sentia os outros dois não conheciam. Até nos depoimentos eles não se viam. Também foram proibidos de receberem visitas. Os três não sabiam a opinião dos outros bichos, o que pensavam deles. Um outro boato percorria o Jardim dos Insetos! Um governante que não assumia a identidade por nada, adoecera e havia sido desenganado pelos Médicos Oficiais do Jardim. Sem pensar duas vezes, ele se utilizou dos conhecimentos já quase esquecidos de uma mariposa da cidade. Pegou uma das plantas que causava problemas ao vergel, as plantas há pouco trazidas do gramado, fez um chá e ficou curado em um dia. Jean Rocha Teixeira Duarte 44 Jean Rocha Teixeira Duarte A população toda ficara sabendo. No desespero por já quase não estar encontrando as plantas tão combatidas por todos no Jardim, ele saiu pelas ruas perguntando quem não havia visto pelo menos uma delas. A bicharada que já sabia de seu estado de saúde, até mesmo porque sua cara o denunciava, só ligou uma coisa a outra. Pronto: um governante fizera uso de uma das plantas proibidas por lei e todos sabiam. Com isso alguns insetos, principalmente mais velhos, com medo de uma doença que não tivesse cura com a ciência oficial do vergel, já pensavam em guardar algumas plantas para si. O sentimento era controverso: o medo de uma invasão ainda mais forte das plantas e o medo de adoecer e por falta das plantas morrer. Aquela situação exigia uma tomada de decisão rápida das autoridades. A população confusa não sabia o que fazer e o que pensar a respeito daquilo. Uns diziam já ter das plantas, outros abominavam a idéia. Mas uma coisa era certa, a comunidade perdia aos poucos a resistência contra as plantas tão odiadas há pouquíssimo tempo. Ao mesmo tempo que aquele seria o maior julgamento de todos os tempos no Jardim, aquela era a maior confusão social desde que ele fora construído. De alguma forma as coisas tinham a ver. Poderiam tanto ajudar quanto piorar a situação de Bola, Grilado e de Lila que em alguns dias receberiam o referendo de suas vidas. Seriam entregues às aranhas? Expulsos do vergel? Virariam escravos dali? Alguns não recebiam a pena capital, não eram expulsos do Jardim e nem viravam escravos. Eles tinham um fim ainda mais sinistro. Fim em seu sentido literal. Eles eram obrigados a exercer profissões perigosas. Trabalhar com coisas que tinha lá seu risco de morte. Quando ficavam mutilados, perdiam uma pata ou uma antena e assim toda a capacidade de trabalho e de julgamento da realidade, eram expulsos da cidade. “Isso para não virarem um fardo para a cidade e atrasar o progresso”, diziam os mandantes locais. O Jardim dos Insetos 45 O Jardim dos Insetos Em meio a tudo isso, onde estaria Encaracolado? Grilado e Bola desde que retornaram ao vergel e ainda estavam em liberdade procuraram, quando tinham tempo, pelo molusco fujão. Mas nada. Nada de Encaracolado. No atual momento, presos, é que não poderiam mesmo procurar pelo amigo que ficara triste com sua condição e resolvera sumir. E até aquele momento seu paradeiro se encontrava completamente desconhecido. O dia do julgamento havia chegado e se Encaracolado ao menos aparecesse, isso poderia amenizar as coisas para os três. Principalmente para Bola e Grilado, mas também para Lila. Ele poderia depor confirmando seu desaparecimento e o grau de amizade entre eles. Mas nada... Até nisso o pobre do Encaracolado prejudicava sem querer os dois. A pergunta que rondava a cabeça de Grilado era: Dourado havia sido mesmo justo e leal? Justo, quando disse que não cometeu crime algum ao querer conhecer o Jardim e que não carregou com ele semente alguma de planta. Mas a idéia de entrar no vergel havia sido dele! Assim teria sido ele leal? Será? Perguntava-se Grilado no fundo de sua cabeça. Porém no ponto em que tudo já estava não seria ele quem o entregaria. Grilado não queria agora correr o risco de ser ele o desleal. O Jardim todo se juntou em frente à Pedra das Pendências. Era o maior julgamento do Jardim Moderno. Nesse período jamais houvera uma insurreição sequer contra as leis tão fortes do vergel. Era os três contra os senhores da lei e da verdade. A população recebia informações confusas sobre o que realmente havia acontecido e até da vida moral de Bola e Grilado. Coisas que antes pareciam tão normais agora se tornavam ofensivas aos bons costumes daquele que era talvez o melhor dos jardins para se viver. Onde todos sonhavam em morar e ter uma vida próspera. Grilado e Bola puseram tudo isso em risco por um amigo. Jean Rocha Teixeira Duarte 46 Jean Rocha Teixeira Duarte Chegara o dia do julgamento e os três já agradeciam ao tempo por isso. Não suportavam mais um dia sequer. Era melhor que se decidisse e logo sobre a vida dos três. Insetos ou não, mas que se decidisse. Enfim o julgamento dos três! Com suas perguntas e resposta quase infindáveis! — Por que os senhores saíram do Jardim? – perguntou o juiz primeiro a Bola. E Bola então respondeu: — Nosso amigo Encaracolado sumiu. Havia indícios de que ele havia fugido para fora do Jardim. Nós preocupados fomos atrás dele. Eu e Grilado. — E por que não contataram as saúvas? – indagou de novo o juiz. — As saúvas não se preocupam quando o problema é com os caracóis. – explicou o tatu. — E por que elas não se preocupam? – perguntou irônico e já enfezado o juiz. — Porque caracóis não são insetos. Assim como eu. Também porque não moram em lugar fixo. O que aqui é visto com maus olhos. – todos no tribunal soltaram gritos de espanto. Bola havia tocado em feridas graves da vida em jardim. — E como vocês tiveram tanta certeza de que o caracol havia realmente fugido daqui? – inquiriu de novo o meritíssimo. — Apesar da lentidão ao se locomover, os caracóis levam vantagem para fugir do Jardim! Como suas carapaças são jogadas fora, depois que morrem, pela Cerca Viva, eles passam desapercebidos quando se aproximam dela. Uma carcaça próxima à Cerca não gera suspeita nas saúvas. Basta que o caracol suje sua casa com barro para que pareça uma carcaça desabitada de caracol. Assim aos poucos eles se aproximam da saída do Jardim sem gerar suspeita. Se alguma saúva se aproxima eles simplesmente se encolhem, encolhendo-se lá dentro. – explicou Bola. O Jardim dos Insetos 47 O Jardim dos Insetos — Mas o senhor não disse que ele não havia saído do Jardim sem sua casa nas costas?! – interpelou o juiz. — E ele saiu! Só que pode ter pegado uma casa abandonada próxima à Cerca Viva! – continuou Bola. — Por que os senhores se associaram a alguns animais no Grande Gramado? Os senhores sabem que não devem se juntar a bichos de mato e gramado. – afirmou o magistrado esperando uma colocação de Bola. — Quando se está no gramado se vive como no gramado. Nós precisávamos da ajuda de alguns deles e até fomos salvos por uma lacraia. – disse Bola, o que provocou nova onda de exclamações de assombro. Bola tocara em mais uma ferida, ou melhor, um trauma do vergel. A lacraia fora um bicho que dera muitos problemas quando o Jardim ainda não estava na era moderna. Quando o jardim ainda não era o Jardim, o Jardim dos Insetos. Quando era apenas um pedaço de terra com plantas num prédio de humanos. A lacraia havia sido um dos bichos que se recusaram a viver em jardim. E assim com muito esforço fora colocada para fora para nunca mais retornar. Bola e Grilado além de saírem do vergel o que era proibido, também se envolveram com velhos inimigos do Jardim dos Insetos. — O senhor sabe o perigo que representa uma lacraia? De quão rebelde ela é? O senhor não aprendeu isso na escola? Todos os filhotes aprendem sobre os bichos em que se deve confiar e os que não se deve confiar para a boa vivência e harmonia do Jardim! – o juiz então fez uma série de perguntas que já demonstravam estrema impaciência com o tatu-bola. — O senhor sabe o perigo que representa uma aranha? De quão cruéis elas são? Principalmente se perderem os seus empregos! Eu aprendi na escola várias coisas, sim. Também deduzi que quem expulsou as lacraias do Jardim foram as aranhas. Isso por falta de comida. Como a comida era pouca e não poderia haver mais inseto comendo inseto, elas trataram para que os insetos invasores ficassem só para elas. – disse Bola ao juiz. Jean Rocha Teixeira Duarte 48 Jean Rocha Teixeira Duarte Bola estava enfurecido. Dizia o que vinha à cabeça, embora fosse a mais pura verdade. A cada nova resposta, ouvia-se novos bramidos de indignação, tanto de dentro quanto de fora da Pedra das Pendências. O juiz então mandou chamar Grilado, queria a sua versão sobre o ocorrido. A versão do grilo fora idêntica à de Bola em tudo. Em certo momento do julgamento Grilado fora interrogado pelo juiz sobre a selvageria dos animais do Grande Gramado. — Os animais que existem no Jardim são quase os mesmos que se tem no gramado, mas com medos e necessidades diferentes. – disse Grilado. Quando foi interrogado sobre se haviam se comportado como animais de mato, Grilado respondeu: — Sim, às vezes. Quando se está no gramado se vive como no gramado. Naquele momento o advogado de Grilado e Bola pediu a palavra ao juiz. Foi lhe dito que fosse breve e então ele começou a defesa: — Meritíssimo, não há provas de que as plantas que causaram mal ao Jardim foram trazidas pelos meus clientes. Podem ter vindo sob forma de sementes na roupa de outro inseto que também tenha saído dele. Assim como meus clientes saíram do Jardim e ninguém os viu, outros também podem ter saído. Meus clientes garantem que as plantas por eles trazidas do Grande Gramado e cultivadas, não saíram do canteiro onde elas foram plantadas. Sob essa dúvida deve pesar qualquer tipo de pena que eles venham a receber. O júri, só de insetos, já reunido para a decisão parecia pelas expressões dos rostos indeciso quanto à culpa de cada um. Nada também que se pudesse confirmar. Naquele momento, as Autoridades Jardinais não conseguiam provar a culpa nem de Bola, nem de Grilado. Isso devido à manobra do advogado dos réus. Por mais que fosse provável a participação de Bola e Grilado no “caso das plantas proibidas”, como estava sendo chamado, não havia prova material. Havia apenas a certeza de que ambos saíram do vergel e se associaram a um inseto de gramado, pondo em risco a vida no Jardim. O Jardim dos Insetos 49 O Jardim dos Insetos A opinião geral no Jardim era de que havia até sido um ato nobre a saída dos dois à procura de um amigo que corria risco de morte. Mas pôr em risco a vida dos moradores com as plantas proibidas tão ensinadas na escola era demais. Motivo de condenação à expulsão ou de entregar às aranhas. Foi então que uma Autoridade Jardinal pediu a palavra ao juiz dizendo: — Nós temos uma prova, meritíssimo, de que o acusado Bola, coletou as sementes no gramado de forma criteriosa, sabendo o que fazia, e que foram essas sementes que causaram a catástrofe no Jardim. Mas precisamos de algum tempo para trazer essa prova contundente. O julgamento foi suspenso por um instante. Para que a Autoridade Jardinal tivesse tempo de apresentar a prova de que foram as sementes trazidas por Bola que causaram o transtorno ao vergel. Porém a autoridade não conseguiu o que queria, a prova cabal. Assim foi decidida a sentença dos três acusados. Fezse silêncio até que o juiz a proferisse. Foi um silêncio doloroso para os três futuros sentenciados. Parecia que aquilo era proposital. Todos esperavam lá fora e de dentro da Pedra para saber o que aconteceria aos “dois traidores do Jardim”. Então sentenciou o juiz: — Como a idéia de sair do Jardim foi do tatu-bola e foi ele quem trouxe as sementes para cá, eu o sentencio à expulsão. Ao grilo seja imposta a pena de retratação pública. A libélula seja entregue às aranhas. A diferença nas condenações impressionou os que souberam da decisão. Bola recebera a sentença de expulsão do vergel enquanto Grilado fora condenado a uma simples retratação pública. Os bichos se perguntavam se a pena aplicada a Bola não havia sido rigorosa demais. Se ele havia sido penalizado à expulsão por não ser um inseto. Se Grilado também participou, porque fora praticamente absolvido. Mas também diziam: “a Justiça sabe o que faz, a Justiça não falha”. Jean Rocha Teixeira Duarte 50 Jean Rocha Teixeira Duarte Outra coisa que intrigava tanto a população quanto às autoridades era o fato de que os insetos já praticamente adotavam as plantas como remédio. Ao mesmo tempo em que se aumentava o seu consumo, corria-se o perigo de uma nova expansão agressiva das plantas. E vice-versa... Momentaneamente era um controle eficaz. O alto consumo bloqueava o crescimento desordenado das ervas. Doenças que antes destruíam e matavam famílias inteiras, agora eram combatidas de forma simples e direta. Das plantas trazidas por Bola, todas tinham uma importância fundamental. Praticamente todas as doenças encontravam sua cura naquelas plantas. O tatu-bola que era um aficionado por botânica soubera realmente escolher as sementes certas tanto nas plantas, quanto no chão. O espaço em sua bolsa fora preenchido da forma mais racional e proveitosa possível. Só uma das plantas não tinha poder medicinal, mas era lindíssima. Bola havia dito a Grilado: “essa por mais que não seja medicinal, eu não posso deixar de levá-la”. As Autoridades Jardinais haviam decidido que uma medida drástica deveria ser tomada e imediatamente. As plantas que eram invasivas e agressivas ao extremo, encontravam um eficaz método de controle: os próprios adoentados que delas se utilizavam. As autoridades sabiam que o crescimento populacional seria rápido com os insetos agora não mais morrendo tão fácil. Aquilo transformaria o Jardim em pouco tempo num lugar super-povoado e de miséria total. Aquilo que antes fora um lugar de harmonia e de boas condições de sobrevivência para todos, agora preocupava. Então uma reunião com todos os habitantes do vergel foi marcada. Todos reunidos em frente ao Caramanchão do Governo ouviram a seguinte proclamação do governador do Jardim: O Jardim dos Insetos 51 O Jardim dos Insetos — Queridos moradores do Jardim dos Insetos, devido à atual circunstância e com o aval de nossos técnicos de que corremos sérios riscos de extinção e do fim da nossa cidade, está proibido o uso de plantas para o tratamento de doenças de agora em diante. Essas plantas são proibidas há muitas gerações e sempre fizeram mal a nossos ancestrais. Não se tem certeza de quais as verdadeiras implicações de seus usos. Procurem sempre os Médicos Oficiais quando estiverem doentes ou com problemas. Colaborem para o bem e harmonia de nossa cidade. Quem for pego usando ou portando esse tipo de planta receberá a pena de morte. De hoje em diante qualquer de nossas autoridades tem a permissão de entrar em qualquer lugar para inspeção se há dessas plantas. Isso até que se elimine de vez essa praga de nossos dias atuais. Estava claro que o bem e a harmonia do vergel dependeriam de uma vida curta para todos. E da própria vida ninguém abre mão. Uma notícia, porém, agradou a Bola e Grilado, soando como música de bons pássaros canoros aos seus ouvidos. Lila quando foi ser entregue às aranhas, para ser comida, mostrou a elas que seu instinto valia a fama de espertas das libélulas. Ela ficou parada, fazendo-se de estátua e de boba, como sempre fazem as libélulas, e provou uma coisa: as libélulas são mais ágeis e espertas do que as saúvas e as aranhas. Lila conseguiu fugir, e dando uma aula de habilidade, praticamente zombando de todos. Bola ao ser expulso do Jardim, ouviu ainda uma autoridade do governo. Em seu discurso a Autoridade Jardinal disse que se fosse por ela, o governo usaria o tatu-bola para repor a libélula que serviria de alimento às aranhas. Mais uma vez Bola teria que enfrentar o Grande Gramado. Muitos foram assistir à expulsão de Bola com gritos de ódio. Outros, conhecidos, apenas assistiam tristemente. Mas lá se foi o tatu-bola, e na opinião da maioria para a morte. O que se sucedeu nos dias seguintes foi catastrófico para o vergel... Jean Rocha Teixeira Duarte 52 Jean Rocha Teixeira Duarte Com o equilíbrio das plantas e dos bichos desfeito no Jardim, a população dos bichos cresceu, cresceu até quase não se comportar. As famílias agora tinham muitos filhotes. O alimento era quase insuficiente. Não se morria mais por qualquer coisa, qualquer doença. Bastava pegar no canteiro, que toda família agora tinha em casa, uma das plantas que Bola levara para o vergel e fazer um chá ou algo um pouquinho mais elaborado e pronto. As doenças sumiam, eram curadas sem muitos problemas. Mas de quem era a culpa por aquilo tudo? De Bola ou da população que se recusava a abrir mão das ervas e da própria vida. Para as Autoridades Jardinais era dos dois. Eram muitos insetos para um só Jardim. Os governantes anunciaram uma medida que resolveria aquela problemática toda. Bola era lembrado o tempo todo como o inconseqüente que causara aquilo tudo. Por muitos anos as plantas proibidas foram consideradas um mal e sequer falava-se nelas. Era um dos tabus no vergel. Na verdade Bola era um dos únicos de que se tinha notícia que ainda sabia alguma coisa delas. Seu avô, que já falecera, ensinara a ele o que sabia. O povo do Jardim, agora numeroso, dizia que Bola tinha um livro secreto que falava tudo de plantas proibidas. E que fora através dele que Bola aprendera a diferenciar as plantas a serem pegas quando estava no gramado. Desconfiou-se também que as Autoridades Jardinais guardavam alguns exemplares desses livros, que como as plantas foram proibidos. Como? Elas vinham sempre com explicações que só poderiam ter sido retiradas de algum compêndio ou algo parecido. E aquelas figuras mais espertas que sempre existe em qualquer lugar deduziram rapidinho. O Jardim dos Insetos 53 O Jardim dos Insetos IV — O que você faz aqui? Voltaram atrás na sentença e te expulsaram ao em vez de te darem às aranhas? – perguntou Bola a Lila quando a viu. Lila já o esperava quando mal ele saíra do vergel expulso pelas saúvas sob o discurso de uma autoridade jardinal. — Não! Se dependesse deles uma hora dessas eu estava todo enrolada numa teia e sendo sugada por uma aranha assassina! Eu fugi, Bola! – respondeu Lila. — Suba e vamos para casa que eu lhe conto tudo. – continuou a libélula que se sentia como que nascida de novo. Ao chegarem à casa de Lila, que morava próximo ao laguinho, onde dava seus rasantes na água toda tarde, foram dormir. Descansar e tentar esquecer o passado recente e tenebroso onde foram presos, ameaçados e quase mortos. Quando acordou na casa de Lila e não a encontrou, Bola teve medo de sair sozinho naquele lugar tão cruel e assim a esperou. Jean Rocha Teixeira Duarte 54 Jean Rocha Teixeira Duarte — O que você come, Bola? – perguntou Lila quando voltou da rua. — Algumas madeiras que amolecem com a umidade e ficam deliciosas. Eu já consegui algumas aqui na própria árvore, sem prejudicá-la. – respondeu Bola. — Olhe, nós temos muito o que conversar! Você precisa saber de algumas coisas que não lhe foram ditas em tempo correto. Eu só aceitei participar do plano de vocês, de entrar no Jardim, porque eu estava sendo chantagiada. Aquele besouro dourado além de curioso é um traidor. – começou a explicação a libélula. — O que? Traidor? – interrompeu Bola. — Ele nos entregou, ele nos entregou! Ele nos sabotou! Disso eu tenho certeza! – terminou o chocante esclarecimento Lila. Bola estava impressionado com o que ouvira. O besouro vaidoso além de exigente era um traidor. — Ele já havia tentado morar no Jardim uma vez. Só que não o aceitaram. Ele nunca assumiu isso, mas alguns animais falavam. Ele sempre foi muito determinado, ambicioso e corajoso. Pode muito bem ter nos entregue em troca de alguma coisa. – explicou Lila. — Quanto ao seu amigo caracol, deve mesmo estar morto. – disse Lila. — Disso eu também tenho certeza. – falou Bola. — E como você tem certeza? – perguntou Lila. — Meu amigo nunca saiu do Jardim. Eu vi o vi morrer. – respondeu Bola. Agora Lila se sentia mais do que confusa. Eles participaram de uma mentira. Foi Bola quem os envolveu naquilo tudo. O Jardim dos Insetos 55 O Jardim dos Insetos — Encaracolado morreu lentamente em meus braços. Por falta de um remédio. De um remédio só encontrado em algumas plantas. Aquelas proibidas no Jardim e que eu peguei aqui no gramado. Eu prometi a ele que faria com que os insetos não mais morressem por falta de plantas medicinais. A relação dos insetos com as plantas sempre foi muito grande. Só no Jardim não podemos nos utilizar delas. Para que vivamos pouco e para que o Jardim comporte toda nossa população. Não como nós realmente somos, mas para que nos comporte. Vivendo pouco, mas todos pelo menos sobrevivendo. – disse Bola. — Você sabia que eu quase morri por isso! Sabia que colocou em risco também a vida do seu amigo, Grilado, com essa mentira? Ele tinha o direito de saber por que estava naquela viagem com você. Ele se arriscou por um motivo que não existia! – exclamou Lila. — Eu não lhe contei porque tinha certeza de que tudo daria certo. – explicou Bola. — Ninguém tem certeza de nada! Você tinha certeza de que daria certo? Não deu certo! Tanto é que estamos aqui! Eu viva por pura sorte e você condenado a viver nesse lugar hostil no qual nunca se acostumará. – continuou Lila. — Quando eu disse que daria certo, foi em relação a Grilado. Desde o início ele estava livre de qualquer condenação naquele julgamento. Ele, enquanto inseto, jamais seria condenado às aranhas. – explicou-se Bola. — Mesmo assim! Essa sua mentira poderia ter feito, no mínimo, com que ele fosse expulso do Jardim. Até a mim você prejudicou e comprometeu. Se não fosse toda essa história, essa mentira, não haveria plano e eu não teria entrado nessa. Não teria sido condenada à morte. – discursou mais uma vez a libélula em tom de lição de moral. Jean Rocha Teixeira Duarte 56 Jean Rocha Teixeira Duarte — Lila, se você tivesse nos alertado que o besouro era um egoísta frustrado, nada disso teria acontecido. – disse Bola enquanto olhava o gramado da janela da casa da libélula.. — Eu sei que eu também errei, mas foi você quem primeiro nos envolveu nisso tudo! E a família do caracol, do Encaracolado? O que diz disso tudo? Você alegando que ele estava desaparecido, quando na verdade ele já havia morrido. – indagou Lila. — Encaracolado não tinha família. Era um caracol que só contava com os amigos. Caracóis no Jardim dos Insetos são considerados lentos demais para que se perca tempo com eles... Pelo menos por parte das autoridades. – esclareceu penoso Bola. — E eu que pensava que aquilo tudo fosse um paraíso. Pelo menos lá de cima parece. – disse Lila. — E é um paraíso! Depende de como você vê as coisas, de como encara a realidade. O problema é que eu sempre fui meio rebelde mesmo. Mas alguns vivem bem nele. Mesmo não sendo uma Autoridade Jardinal ou outra coisa tão respeitada. Mesmo vivendo pouco. – falou o tatu-bola um tanto nostálgico com o que via pela janela. Bola assistia da árvore, onde morava Lila, à batalha que era para cada um ali sobreviver. Pensava em como seria para ele viver num lugar no qual não tinha a menor experiência. Faria o quê para não ser engolido pelo o mundo cruel do gramado? Bicho de mato. Era isso o que ele viraria. Viveria ou ao menos tentaria sob esse exílio perturbador. Na manhã do primeiro dia, após a volta ao gramado, Lila acordou disposta a sair cedo para trabalhar. Faria o maior número de vôos possível para compensar o tempo que ficara presa no vergel. Saiu e disse a Bola que veria algo, “se é que havia”, para ele trabalhar que não fosse perigoso demais. O Jardim dos Insetos 57 O Jardim dos Insetos Um ex-morador de jardim no gramado geralmente é presa fácil, mas Bola estava predestinado a mudar aquilo. Tatus-bolas são animais “casca grossa”, e têm a vantagem de passarem despercebidos a maior parte do tempo. Assim o recém expulso do vergel passou seu primeiro dia no gramado: sozinho na casa de Lila. Quando Lila regressou já noite da jornada dos vôos, chegou com a boa nova para Bola. Havia sim uma coisa que ele podia fazer. Ser marceneiro, já que gostava tanto de madeira. Bola saiu com Lila na manhã seguinte para iniciar-se no trabalho de marcenaria. Seria tranqüilo! Bola não se assustou com aquilo. Não trabalharia com madeiras que só ele sabia encontrar e transformar nos mais deliciosos doces. Sim com madeiras duras que suportassem o peso dos animais dali. Mais uma vez uma outra realidade. Viu-se há pouco condenado à morte, àquele lugar. Aquilo seria um prêmio frente ao que esperara do gramado. Após muitíssimas flores trabalhando como marceneiro, eis que um dia chega à árvore onde trabalhava, fazendo um pedido, uma encomenda, nada mais nada menos que Dourado. Pelo susto que esboçou, Bola achou que até ficara insensível, pois, pensava que seria pior quando o encontrasse. — Você voltou para cá, seu traidor! – disse Bola quando viu Dourado. — Você queria que eu fosse para onde? Aqui é o meu lugar! E te digo uma coisa: esqueça o que aconteceu, que é melhor para você! Eu não sou traidor nada! – disse o besouro. — Se você quer um móvel não me importa. Eu não lhe atenderia nunca. Não sei como você se atreve! – explicou Bola. — Se você não me atendesse eu iria para outro marceneiro que faz o mesmo serviço. Eu não estou aqui para encomendar nada... Foi você quem cedeu às vaidades de um besouro cor de ouro. E te digo mais: você foi expulso, eu também. O mais errado nisso tudo foi você. Você causou sua Jean Rocha Teixeira Duarte 58 Jean Rocha Teixeira Duarte própria desgraça e a dos seus dois amigos também. Assim sendo atenda-me logo como você faz com os outros que aqui vêm. – concluiu Dourado explicando como deveria agir tanto ele como Bola dali para frente no gramado. — Você é um interesseiro! Por que está aqui? Não nos traiu? Pode dizer logo! Por que você foi expulso do Jardim? O que você fez para isso? – disse Bola. — Eu? Nada. Mas eles forçaram a barra e acabaram arrumando uma desculpa para não ter que suportar a minha presença lá. – respondeu o besouro. Lila quase não acreditou quando Bola lhe contou à noite quando chegaram do trabalho sobre o seu encontro com Dourado. — Será que ele quer alguma coisa com você? Que participe de mais algum plano maluco? – indagou Lila. — Eu acho que não. – respondeu Bola. — Ainda bem. Senão seria ainda pior a sua vida aqui fora. – disse Lila. — Você precisa saber de uma coisa que talvez não tenha tomado conhecimento no Jardim. – disse Lila. — O que é? – perguntou Bola. — É sobre as aranhas de lá. – continuou a libélula. — O que tem as aranhas do Jardim? – indagou Bola intrigado e já quase assustado. — Elas atacam os bichos aqui fora. Ultimamente os habitantes do Jardim andam tão amedontrados com o rigor dos julgamentos, que praticamente não está mais havendo crimes, e conseqüentemente alimento para elas. Não havendo condenações, elas saem e nós somos os condenados. – explicou Lila. — E as aranhas aqui do gramado o que fazem? – perguntou Bola. O Jardim dos Insetos 59 O Jardim dos Insetos — Quando as aranhas do Jardim saem atrás de alimento, quem fica com fome são as aranhas aqui do gramado. E aí de novo quem sofre as conseqüências somos nós. Nós que não temos nada a ver com isso e que não fizemos nada. É só tomar cuidado à noite, que é quando elas saem para que ninguém as veja no escuro. – enfatizou Lila. Certamente que Bola tomaria todo cuidado. Ele, praticamente, só ia ao emprego e voltava direto para casa. E isso, de carona na libélula. O tatu-bola de jardim ainda sentia muito medo daquilo que os moradores do vergel chamavam de mato. Um gramado que sem dúvida à noite, com suas muitas sombras, era ainda mais perigoso. Os dias passavam, mas a resistência de Bola ao gramado diminuía pouco. Ele não sabia quantos igual a ele estavam naquela situação: de exilados do Jardim. Teria só mais ele do vergel vivendo ali? Não havia números exatos e provavelmente os expulsos não queriam ser identificados. Por quê? No anonimato a vida era mais segura e rentável. O que se podia pensar de um exmorador de jardim que fora expulso por uma infração à lei. Por mais que aquilo ali fosse o Grande Gramado, não seria vantagem se identificar como tal. Jean Rocha Teixeira Duarte 60 Jean Rocha Teixeira Duarte V — Você sabe em que época estamos? – perguntou Lila. — Como assim em que época estamos? – também perguntou Bola. — Isso só acontece uma vez por ano! Depois só no ano seguinte. Você nunca deve ter assistido ao espetáculo delas... No Jardim não existem cigarras, não é mesmo? – explicou Lila. — Não! Meu avô me disse que é porque as autoridades julgavam-nas parasitas. Comiam as raízes das plantas e só cantavam uma vez por ano. Um verdadeiro descaso com os trabalhadores. Mas na realidade as cigarras foram expulsas há muito, muito tempo do Jardim porque não podiam seguir a cartilha dos governantes. – esclareceu Bola. — Não entendi! Cartilha? – perguntou Lila. — A natureza delas é essa: de ficar sob o solo um ano e cantar por um mês. Não foram respeitadas e acabaram mesmo expulsas. – explicou o botânico à anfitriã libélula. O Jardim dos Insetos 61 O Jardim dos Insetos Alguns dias depois, Bola em sua nova ocupação, encontrou mais uma vez quem menos gostava no gramado e talvez na vida: Dourado, o besouro traidor, como pensava Bola. Um besouro vaidoso e ganancioso que traíra até sua amiga Lila. O tatu-bola pensou: “ele só vem de novo falar sei lá o quê e pronto”. Era uma relação interessante... A de um exilado de jardim e do delator que o entregara às autoridades do vergel. Mas Dourado negava que tivesse feito tal coisa. Provavelmente um não falaria do outro para ninguém no gramado, pois, os dois necessitavam de descrição sobre quem eram. Quando o besouro viu que Bola estava totalmente sozinho, chegou perto dele e disse bem baixo: — Eu tenho uma coisa para lhe contar. Chamaram-me ao Jardim ontem. Não sei como me localizaram aqui no gramado. Eu fui lá e tivemos uma reunião que durou quase a tarde toda. Participaram autoridades e algumas partes interessadas. Cogitou-se e depois acabaram decidindo por uma coisa muito útil e inteligente. Eu estou lhe dizendo isso porque sei que você também quer descrição. Segundo porque daqui a alguns dias todos saberão. Eles, do Jardim, vão exportar remédios para várias partes aqui da região. Para longe e para perto. Para outros jardins e para moradores de mato. Provavelmente também para o Grande Gramado. Aquelas plantas com as quais você infestou a cidade deles, enfim vão servir para alguma coisa. — O quê? É com aquelas plantas que eles vão fabricar esses remédios? – perguntou espantado Bola. — É! Claro! Com as plantas curativas! Não é isso que elas são? – completou Dourado. — Mas elas não são perigosas? Dizia-se no Jardim que não havia ainda certeza dos danos que elas poderiam causar alongo prazo. – insistiu Bola. Jean Rocha Teixeira Duarte 62 Jean Rocha Teixeira Duarte — Pois tudo já foi comprovado, segundo eles. Agora eles estão dizendo que só precisam de insetos corajosos e jovens para levar a descoberta aos lugares mais distantes desse mundo. A outros matos e gramados. A jardins longínquos. – explicou Dourado. — E o que eu tenho a ver com isso? Eu nem forte sou! – ressaltou Bola. — São três os motivos porque querem você, e a mim também. Eles me pediram para te explicar... Quanto a você, primeiro: você é inteligente. Segundo: é de família de poucos filhos. Sua morte não teria impacto para o sustento da sua família. Terceiro: uma semente... Há uma planta que eles acabaram perdendo. Eles sabem que só você pode ajudar nisso. Falou-se que você ainda teria escondidas sementes dessa planta. Ela é rara, mas não é tão difícil de domesticação. E a proposta é a seguinte: você terá seus direitos de morador do Jardim dos Insetos restituídos. Seu crime será esquecido, mas só se você nos ajudar nessa missão que será boa para toda a população do Jardim. E eu poderei morar definitivamente no Jardim, como sempre quis e sonhei! O que você me diz? – perguntou o besouro. — E de quem vem essa ordem? – também perguntou Bola. — Do governador! Diretamente dele. – respondeu Dourado. — Para que não ajam dúvidas, eles disseram que você poderá falar com ele para se certificar. Uma ordem também dele. – completou o besouro. — Impressionante como as coisas mudaram rápido. – provocou Bola. — Na natureza é assim mesmo! As coisas são rápidas! – respondeu Dourado. — Engraçado, não é o que eu lia a respeito. Na natureza... – falou Bola, desistindo no final de explicar ao besouro que as coisas na natureza acontecem gradualmente. O Jardim dos Insetos 63 O Jardim dos Insetos As coisas, como foram propostas por Dourado, pareceram a Bola até tentadoras. Voltar ao vergel e continuar a vida lá como antes. Sem restrições e impedimentos. Mas Bola pensava e muito sobre toda aquela reviravolta que acontecia em menos de ma estação. Já não tinha notícias do Jardim dos Insetos. Como estavam as coisas por lá. Era óbvio que essa mudança de mentalidade dos governantes tinha um motivo ainda obscuro para ele. — Amanhã eu passo aqui para pegá-lo e irmos para o Jardim. Você recomeçará sua vida. Eu iniciarei a minha. Isso aqui nunca foi vida. Você e eu teremos uma nova chance. – explicou o besouro dourado. No dia seguinte foi o que aconteceu. Bola fora acordado pelo besouro que parecia ter pressa. O tatu-bola e Lila se despediram. Ele já havia lhe explicado tudo. Contara tudo o que havia conversado com Dourado. Lila não quis ir com eles também. E nem o besouro sabia se ela poderia. Lila dissera que sua vida estava ali. Lila o alertara bastante sobre a vaidade e a ganância do besouro. Também sobre o que seriam capazes certos membros do governo do Jardim. Bola foi sobre o besouro voando até o vergel. Passou pela Cerca Viva e já o esperavam para saber dele como recuperar a planta perdida. Era de extrema importância para os interesses do Jardim, segundo disseram os governantes. Era impressionante para Bola a passagem de criminoso exemplarmente punido, para um ajudante do governo, naquilo que as próprias autoridades classificavam como primordial para o vergel. Ele se interessara não só por voltar a viver no Jardim, mas também para retificar sua imagem junto a todos os habitantes. Mal chegaram ao vergel e já foram diretamente para a reunião tão esperada e importante. Bola achou estranha tanta pressa. Queriam dele logo a ajuda. Parecia que as coisas seriam tratadas de um jeito bastante informal. Logo que começou a reunião, ficou claro quando o governador disse: “sem sentimentalismos, pois, já estamos perdendo tempo”. Jean Rocha Teixeira Duarte 64 Jean Rocha Teixeira Duarte — Bem, você é aquele rapaz expulso há pouco tempo do Jardim por rebelião. Loucura da sua parte, mas estamos dispostos a perdoar tudo desde que você colabore conosco. Você nos causou muitos problemas, mas agora pode se desculpar com todos nessa missão que vai mudar os rumos da nossa cidade; trazer novas perspectivas ao nosso jardim e melhorar muito a vida de toda a população. Disseram-me que você é inteligente, o que conta muito a seu favor nesse momento, e que nunca antes também tinha feito nada que desabonasse a sua conduta. Há alguns poréns que devem ser tratados o quanto antes. Primeiro: a planta que precisamos para a fabricação de alguns remédios... Preciso saber o que você sabe sobre ela. Se já lhe disseram qual planta é e como estamos a respeito dela. – iniciou a discussão o governador. — Não. Eu ainda não sei qual é. – respondeu Bola. — É a betumeira. Nós a perdemos e dependemos dela agora para que os negócios dêem certo. Você dispõe de sementes dela ou sabe onde encontrá-la? – perguntou a Autoridade Jardinal. — Sementes eu não tenho, mas sei onde encontrá-las. – explicou Bola. — Você iria ainda hoje lá para que não aja perda de tempo?! – perguntou mais uma vez o governador. — Se for imprescindível e para o bem do Jardim, sim! – respondeu Bola. — É imprescindível! Tenha certeza disso! Você terá tudo o que precisar nessa busca! – enfatizou o governante. — Tratemos agora dos outros detalhes dessa nova empreitada do nosso Jardim. Quem trabalhará nas várias frentes do projeto... Temos que definir quem continuará na fabricação dos remédios, quem trabalhará na distribuição e quem ficará com a produção das plantas. – disse o governador. O Jardim dos Insetos 65 O Jardim dos Insetos — Na verdade, governador, nós já temos quase tudo definido a não ser a parte de distribuição, de entrega dos remédios já prontos. Quase ninguém quer se arriscar a participar. Ainda mais com os salários que oferecemos. – disse um dos presentes, uma Autoridade Jardinal. — Eu tenho uma idéia. – inseriu-se de novo na discussão Bola. — Então diga, meu jovem! – exclamou o governador. — Nós podemos utilizar as cigarras do gramado. Seria uma grande rede de entrega pelos mais variados lugares. Aproveitamos enquanto elas estão em suas épocas de reprodução, saindo do chão para cantar. – explicou Bola. — Mas e depois, governador? Quando já estiver passado a época das cigarras e elas voltarem para o solo? Como será? – inquiriu uma das autoridades num tom de desconfiança quanto à validade da idéia. — Depois nós arranjamos outros para substituí-las. De início as cigarras são ótimas e nos servem muito bem. A idéia é ótima e está aceita. – sentenciou o governador. — Assim podemos ajudá-las. Melhorar sua situação de não poderem trabalhar por terem uma vida tão curta. – explicou Bola. — Então que seja assim! – foi tudo o que disse a Autoridade Jardinal máxima. Bola, assim que acabou aquela que fora a primeira reunião, o primeiro contato com aqueles que tão bem o puniram, foi direto dormir. Tinha sido um dia e tanto! Tudo por uma tentativa de consertar o passado. Por mais que soubesse como tinham sido as coisas, Bola sentia uma ponta de arrependimento e remorso. Na casa que muito bem disponibilizaram para ele, para aquela primeira noite, pensou sobre como tudo estava correndo. À noite, entrando um pouco pela madrugada, refletiu muito. Tinha tido uma excelente idéia: ajudar as cigarras oferecendo-lhes aquele trabalho de distribuidoras dos remédios. Elas precisavam, pois, há muito não juntavam Jean Rocha Teixeira Duarte 66 Jean Rocha Teixeira Duarte recursos. Elas eram perfeitas para a ocasião. Cantariam o quanto quisessem e aproveitariam para fazer as entregas. Firmariam novos negócios por onde passassem. Porém Bola... Seu sonho de voltar ao Jardim para retomar sua atividade mais do que elogiada de mestre-cuca de doces estava adiada agora que trabalharia para o governo. As caçadas de madeiras nobres em ponto de fermentação que só ele sabia e as receitas de pratos das mais finas iguarias doces estavam proteladas. A nova empreitada do Jardim “rumo ao progresso”, como disse o governador, se bem conduzida, daria bons frutos. Mas Bola pensava mais nas cigarras do que no progresso. E foi ter com elas. Acompanhado de uma pequena comissão jardinal seguiu rumo ao gramado, para falar-lhes. Algumas já haviam saído do chão e já cantavam por todo o gramado. A quantidade ainda era pouca, só algumas cigarras a cantar sem parar. Essas segundo um dos membros da comissão que estava com Bola, é que deveriam ser aliciadas. Bola achou estranho o termo “aliciadas”. Quando questionado, o membro da comissão e representante do governador tratou logo de trocar o que dissera para “convidadas”. Dessa forma eram essas cigarras que deveriam ser treinadas para entregar os remédios. Assim as demais quando nascessem já saberiam como agir com as já entregadoras de remédio. Bola organizou uma reunião com as cigarras e lhes explicou qual era sua proposta e como seriam os seus trabalhos. E óbvio queria saber delas se aceitavam a tarefa. As cigarras recém saídas do chão, ainda meio perdidas no mundo à tona, não sabiam bem se teriam alguma vantagem naquilo. Até que uma cigarra que falava cantado mais alto que todas, cantou pedindo silêncio e disse o que pensava. O Jardim dos Insetos 67 O Jardim dos Insetos — Nós não confiamos nesses governantes do Jardim dos Insetos. Ficamos sabendo aqui agora que nossos ancestrais foram expulsos de lá há anos. Definitivamente não temos confiança neles. Mas nós sabemos quem é você, que foi capaz de sair do Jardim e se arriscar aqui fora. Tudo por um amigo. Em você nós confiamos! Agora vamos logo dizendo: nós não aceitaremos uma trapaça sequer. Principalmente daqueles que nem sabem como são as coisas aqui. Pode não parecer, mas nós temos como deixar nossos conhecimentos e o modo como sempre vivemos para nossos descendentes. Eu acho que é nisso que esses manipuladores de jardim tanto confiam. No fato de que nós não temos como transmitir aquilo que aprendemos com o tempo. Pensam que só porque vivemos pouco, só cantamos por duas semanas e depois voltamos para debaixo do chão somos estúpidas. Isso é um segredo nosso. Algumas coisas subvertem a ordem normal. Essa é uma delas. Nós sempre resistiremos! – assim discursou a cigarra que parecia uma líder nata daquelas que sempre se viram de alguma forma injustiçadas. E começou aquilo que foi um serviço de entregas com direito a música. Eram cigarras cantando e entregando os remédios fabricados no vergel para todo canto possível. Elas tinham direito a entrar no Jardim quando entendessem e saíam carregadas com os frascos de remédio. A receita com as vendas deveria estar andando às mil maravilhas, pois, as vendas eram muitas e a todo momento. Mas a alegação do governador às cigarras era outra. Segundo o combinado, o pagamento a cada três dias, já que as cigarras têm uma vida curta e queriam aproveitar logo o fruto de seus trabalhos. O governador por outro lado, dizia que não era bem assim. Dizia que o início seria conturbado quanto ao equilíbrio das contas. Depois sim, viriam os lucros. Mas para Bola estava claro: o governador se recusava a pagar as cigarras. E o pior: Bola suspeitava que ele estivesse esperando só a morte delas para não ter que pagar a ninguém. Já estavam na quarta semana e nada de pagamento. Era nítida a má intenção do mandatário e seus asseclas. Jean Rocha Teixeira Duarte 68 Jean Rocha Teixeira Duarte Quando já estavam prestes a “voltar para o chão”, expressão utilizada pelos bichos como eufemismo do real fim das cigarras, que era a morte, elas reclamaram os seus respectivos pagamentos. — Ao menos para deixar aos nossos filhos! – disse uma das cigarras, extremamente magoada com aquela situação. Mas acabaram morrendo sem que houvesse pagamento. A reivindicação dos herdeiros seria no mínimo tardia. Só dali a um ano. Entre as cigarras todas são irmãs, pois, convivem sob o chão por muitos anos. Até lá a certeza era de descaso e impunidade. Quem reclamaria por elas? E quem aceitaria, depois de tudo o que aconteceu às cigarras, o emprego de entregador de remédios? Por livre e espontânea vontade, só um idiota. Fora uma lição e tanto para os moradores do gramado. Na primeira tentativa de aproximação entre aqueles dois mundos, o que acontecera fora muito depreciativo para a reputação do vergel. Eles que tanto pregavam que os moradores do gramado eram verdadeiros selvagens, agiram de forma pior. Com o término da época das cigarras a revoada não passou a ser menor. Alguma coisa acontecera para que parecesse que ainda havia cigarras voando por todo lado. Era uma revoada de insetos sem fim. O céu estava todo poluído de tanto bicho que ia e vinha. Só que não eram insetos de um tipo só. Era todo tipo de inseto voando. Também pelo chão havia vários tipos deles rastejando e pulando. E de todos os lugares. Uns vinham de um lago próximo, outros de matos distantes e de um parque público mais adiante. Era uma mistura de insetos de vários tipos e de vários lugares. Havia também aranhas, escorpiões e outros tipos de bichos. Mas por que aquilo? Seria uma revolta contra o que fizeram às cigarras. Teriam assim, os bichos daquele gramado se organizado após o ocorrido com as cigarras. — Bola, porque estão todos voando e por todo lado? Você os contratou? – perguntou Lila. O Jardim dos Insetos 69 O Jardim dos Insetos — Não! Sinceramente, eu não sei quem são! – respondeu o tatu. — Credo, parece que ficou todo mundo louco! Parece que está tudo sem lógica. – disse a libélula. — O pior é que estão comendo tudo! É uma nuvem faminta! São bichos aqui do gramado e de outros lugares destruindo pela fome tudo o que vêem pela frente. Eles se chocam no céu, caem e se levantam para mais selvageria! – respondeu mesmo que não perguntado Bola, de tão confuso com aquilo tudo que acontecia a sua frente. — Temos que descobrir o que está acontecendo! O porquê disso tudo. Ou tudo será destruído! – exclamou Bola. Assim saíram Lila e Bola, o tatu de novo de carona na libélula, para saber o que ocorria. O porquê daquela selvageria e espécie de rebelião, mesmo que descontrolada. Lila e Bola voaram por todos os lados e viram muitas coisas: bichos voando, pulando, rastejando-se, uns passando por cima de outros. Uma outra coisa também muito os preocupou. Era o que poderia ser a perpetuação de tudo aquilo, daquela rebelião não combinada. Ovos! Ovos postos em todos os lugares! Nas árvores, nos arbustos, na grama, no barro e em construções humanas. Seria uma nova catástrofe que não acabaria simplesmente ali. E quando aqueles ovos rompessem? Uma nova superpopulação nasceria. Depois outra, e mais outra... Somava-se dessa forma, três catástrofes em pouquíssimo tempo. A catástrofe das plantas, a das cigarras e por último a da superpopulação de bichos do gramado e de outras partes. A causa, uma barata lhes explicou e então entenderam definitivamente. — Com aqueles remédios, nós insetos agora vivemos mais e assim reproduzimos mais. Todos querem tudo. Viver muito, comer muito, procriar muito. – disse a barata. Jean Rocha Teixeira Duarte 70 Jean Rocha Teixeira Duarte A situação exigia uma medida e imediatamente. “Como estaria o Jardim a uma hora dessas?”, pensou Bola. Foram o mais rápido para lá, Bola e Lila. Lila voava o mais rápido que podia. No meio daquela confusão celeste foi deveras difícil. Desviava-se o tempo todo dos bichos cheios de fome que pareciam desorientados, sem a menor noção e medo. Lila e Bola chegaram e logo se impressionaram com o que viam sobre a Cerca Viva. Havia bichos de todo tipo: insetos e parecidos com insetos. As saúvas e as aranhas se desdobravam para conter aquela invasão esfomeada. As saúvas atacavam os animais rastejantes e as aranhas os animais voadores. Era evidente que os insetos do gramado queriam comer também o que tinha no vergel. Bola mais uma vez pôde entrar nele sem restrições das saúvas. Ele tinha medo que até isso já tivesse mudado. Foi direto falar com as autoridades. Acabaram deixando que Lila também entrasse com ele. Queria saber o que eles tinham em mente numa hora como aquela. A cidade ameaçada de destruição total, eles, que eram os governantes, deveriam ter no mínimo uma solução. — Nós não temos poder de fogo contra tantos bichos. Todas as nossas defesas já estão em combate junto à Cerca Viva e nas teias de proteção aérea. – explicou o governador. — O jeito é tentar uma negociação! Tentar fazer com que desistam e procurem outro lugar para suas selvagerias! – disse uma das autoridades. — Seu tolo! Não se negocia com um esfomeado, muito menos com milhares! Temos que resistir até enquanto pudermos! – exclamou o governador. — Eu sei como detê-los, e sem que se machuquem ou morram. – disse Bola. — Como, jovem?! – perguntou vários presentes ao mesmo tempo. O Jardim dos Insetos 71 O Jardim dos Insetos — Se conseguirmos ligar um daqueles irrigadores, nós os expulsamos com água. É só fazer peso junto ao botão que aciona o irrigador. Depois tampamos alguns buracos e apontamos alguns jatos d’água na direção deles. – explicou Bola. — É isso! Vão e juntem o máximo de insetos que conseguirem. Expliquem que é uma questão de sobrevivência. – disse o governador. Logo em seguida chamou uma das autoridades e falou-lhe bem baixo para que só ela ouvisse. — Quando os irrigadores estiverem ligados... – ia dizendo o governador quando saiu da sala com a autoridade. — Os irrigadores? Não iria ser só um? – perguntou a autoridade. — Para matarmos todos eles de uma vez por todas, só ligando vários irrigadores. E quando eles já estiverem ligados, faça com que alguns que estiverem trabalhando nessa investida, reúnam pedras e as joguem em frente à água. Assim funcionará como um canhão de guerra humano. Dessa forma destruiremos esses selvagens que não sabem viver em paz! – sentenciou mais uma vez o governador. E correu um decreto que foi passado de boca em boca pelo por todo o Jardim através das autoridades. Todos, com exceção das saúvas e das aranhas, deveriam se dirigir aos irrigadores imediatamente. Cada inseto avisado deveria informar o mesmo aos insetos que encontrasse pelo caminho, não importando o que estivesse fazendo. Quem descumprisse a ordem governamental estaria sujeito à pena capital, ser entregue às aranhas. Os insetos se amontoaram em cima dos botões de acionamento dos irrigadores para fazer o peso mínimo suficiente para ligá-los. A água saía e alguns dos bichos buscavam e jogavam pedras em frente à água. Foram verdadeiros tiros que derrubavam primeiro os insetos que voavam tentando furar o bloqueio das aranhas. Depois foi a vez dos bichos que tentavam entrar pela Cerca Viva. Melhor de novo para os insetos do vergel. Jean Rocha Teixeira Duarte 72 Jean Rocha Teixeira Duarte As aranhas e as saúvas, já avisadas, abrigaram-se saindo da Cerca Viva e da teia de proteção aérea. Foi um ataque d’água intercalado com pedras. A perda entre os bichos do gramado foi total. A baixa entre os insetos do Jardim foi pequena. Muitos do gramado morreram quando as pedras foram atiradas junto à água. Outros também morreram afogados no mar de lama que virou o vergel. As plantas ficaram bem danificadas e também a casa de muitos. Praticamente todo o Jardim. A reconstrução daquilo tudo não seria fácil e nem barata. Os bichos do vergel contavam com uma grande ajuda: sempre que acontecia alguma coisa mais grave o Jardim era novamente reparado pelo jardineiro do prédio. O jardineiro naquelas horas era sempre bem-vindo. Uma mão na roda. Para replantar as plantas ornamentais que tanto interessavam aos insetos e para secar aquele mar de lama que virara o vergel. Mas as perdas de vida seriam realmente dolorosas e difíceis de se esquecer... Mas ainda havia um problema que importunava as autoridades e agora também a população: os ovos deixados pela superpopulação faminta que fora toda morta. O que aconteceria quando aqueles ovos eclodissem? Certamente uma nova onda de fome e uma nuvem sem fim de animais esfomeados. A vida de todos estaria mais uma vez em perigo! A depender das autoridades, não... Destruir os ovos! Essa foi a solução sem meias palavras dos mandatários. — Somos nós ou eles! São os nossos filhotes ou os deles! Vocês ficam com quem? – disse no discurso em praça pública o governador. Não tinha nada mais a ser feito a não ser destruir os ovos antes que eclodissem. Assim pensava o governador e todo o seu grupo de asseclas. De novo todos foram intimados a participar daquela nova missão: matar os insetos do gramado ainda em ovos. Reuniram-se logo e saíram todos juntos, O Jardim dos Insetos 73 O Jardim dos Insetos rumo ao gramado. Era só fazer o que com muita simplicidade fora combinado: comer os ovos. A comida naquele momento estava sendo distribuída pelo governo, as muitas plantas que serviam de comida estavam completamente destruídas. O Armazém Governamental era o único lugar que ainda tinha alimento. O racionamento foi logo uma solução adotada. Todos comiam o mínimo possível. O governo não dava mais comida para a população alegando que não havia mais. A fome era absurda e assim todos se dirigiram ao gramado. Com a fome que estavam, comeram praticamente todos os ovos, quando não, até as plantas. Bola ficou impressionado quando soube o que acontecera. Recusara-se a participar daquela selvageria. Alguns disseram que provavelmente ele estaria “bolando mais um plano louco”. Pensavam que principalmente ele, que planejara muito da reação do Jardim rumo ao progresso, deveria ter participado da guerra. A Guerra do Gramado, como foi batizada pelas autoridades já no dia seguinte. Segundo Bola, um verdadeiro canibalismo. Assim descrevia, com essas palavras, o que pensava sobre o ocorrido: “uma demonstração bizarra de selvageria”. Muitos comeram ovos de bichos da própria espécie. Não tentaram nem contornar o problema com um plano que não fosse tão cruel. Resolveram da forma mais fácil e absurda. Um plano do qual ele não participara e que destruiu toda a população do gramado. Bola já morava de novo em sua antiga casa no vergel. Queria após a Guerra do Gramado, encontrar-se com Grilado. Conversar com aquele que era agora seu melhor amigo. A cidade só pensava numa coisa: reconstruir tudo outra vez. Esperavam só que o jardineiro começasse a replantar, a pintar as pedras de novo de branco, tirar o barro, ajeitar a grama e aí sim refariam as estradas e o restante que dependia só deles. A guerra fora uma reviravolta no futuro de todos. Mudara para sempre a vida ali. E a culpa daquilo ficou na boca dos insetos, tanto literalmente, quanto numa discussão sem tamanho. Jean Rocha Teixeira Duarte 74 Jean Rocha Teixeira Duarte A maioria dos insetos não tinha assim tanto julgamento crítico para saber a fundo de quem era a culpa. Mas ela ia de Bola a Bola e Grilado. A população mais uma vez tendia fortemente a achar que a culpa não era dos governantes. — Só uns jovens sem experiência para achar que podiam ter trazido aquelas plantas aqui para o Jardim. – disse um inseto já idoso. Mas antes que Bola procurasse Grilado, ele o recebeu em sua casa. O grilo fora levar-lhe uma mensagem, uma mensagem do governo. — Eu tenho para você um recado. É do governo. – disse Grilado depois de cumprimentar o amigo com um forte abraço. — Vamos ver o que é. O que eles têm para mim dessa vez. – provocou Bola já abrindo a carta. — Estão pedindo a minha presença no Caramanchão do Governo. O que será dessa vez?! – continuou o tatu. — Você soube de algum acontecimento novo. – perguntou Bola a Grilado. — Não! Nem teria como. Aqui ninguém anda falando nada além da reconstrução. A única coisa que esperam é pela reconstrução. – respondeu Grilado. — Você andou fazendo mais alguma coisa errada? – perguntou brincando Grilado. — Com certeza não! Mas o errado aqui é bem relativo dependendo das circunstâncias. – observou Bola. — Com menos insetos no Jardim agora, eu gostaria de saber como tudo vai ficar. Quem agora vai fazer o quê para compensar essa falta. – refletiu sobre o que se passava o grilo. — Apesar de toda desgraça, depois de tudo o que aconteceu, as coisas mudarão um pouco mais por aqui. Quem sabe... Eu tenho que estar ainda hoje à tarde no Caramanchão do Governo para fazer não sem bem o que. Não deve ser coisa boa... – completou Bola terminando a conversa sobre aquele assunto. O Jardim dos Insetos 75 O Jardim dos Insetos — Eu também tenho uma coisa para lhe contar? – confessou Bola. — O que tatu-bola inconformado? – indagou Grilado. — É uma coisa bem séria e que eu já deveria ter-lhe dito! – completou Bola. — Eu acho que já sei do que se trata... – surpreendeu o grilo bom de saltos. — Como você saberia? Impossível! – analisou o tatu. — Depois desse tempo todo, de todo o ocorrido eu acabei descobrindo que Encaracolado não morreu. Eu preferi não te agora aborrecer porque não era necessário. Eu fiquei assustado quando descobri, mas acabei entendendo com muito esforço que o que você fez foi pela memória dele. Você estava exilado no gramado, com a vida mais do que arruinada. Não precisa de mais isso sobre você agora que está de volta. Embora confesse que fiquei com muito remorso, sentime traído. Mas agora tudo já passou. – explicou Grilado dando seu melhor abraço, jamais antes dado a um inseto, ao amigo tatu-bola. Os dois ainda se sentiam muito amigos. Sobreviveram a toda loucura que fora a guerra contra os bichos invasores do gramado. Ambos tiveram perdas entre amigos, assim como quase todos no vergel. Mas de quem fora a culpa de toda aquela desgraça? Bola cumpriu algumas coisas que tinha para fazer ainda pela manhã e foi à tarde encontrar-se com as Autoridades Jardinais. Estava decidido a não se envolver mais com eles. Já havia recuperado seus direitos como cidadão e não devia mais nada. Assim pensava o tatu-bola. — Sente-se para conversarmos. Nós já nos conhecemos bem. Soubemos que você se recusou a participar da Guerra do Gramado. Por quê? – perguntou uma autoridade. — Eu achei covardia! Havia outra maneira menos cruel de resolver o problema. Não se precisava fazer o que foi feito. – respondeu Bola. Jean Rocha Teixeira Duarte 76 Jean Rocha Teixeira Duarte — E como você resolveria? – perguntou de novo, agora outro na Mesa das Autoridades. — Primeiro não matando, só expulsando. Usando só água, não pedras na água. – explicou Bola. — E os ovos que estavam no gramado, prontos para eclodirem e nos devorar por completo? – perguntou a autoridade mais uma vez. — Ninguém pensou sequer por um minuto... Em como não fazer aquilo. Poderíamos ter recolhido os ovos e levado-os para longe. Assim eu preferi manter-me imparcial naquilo tudo. – respondeu o tatu-bola. — Imparcial! Afinal você mora aqui ou lá! Onde você cresceu e sempre viveu? – desabafou gritando outra autoridade. — Eu não faria diferença no massacre. Eu não sou bom nessa coisa de matar. – disse Bola. — Muito bem... O problema é que decidimos juntar os bichos que sempre têm idéias boas assim como você para nos auxiliar nesse nosso novo projeto. Você sabe que cometeu uma falta grave não tendo participado da guerra. Sabe que pôs todos em perigo não assumindo sua responsabilidade na guerra. Sabe também que não estamos lhe chantageando, que estamos lhe orientando. As leis e as regras devem ser cumpridas por todos no Jardim. É assim e assim sempre foi. – explicou uma das autoridades. Bola se viu encurralado. Fosse o que fosse o tal do projeto, ele teria que participar, para se livrar provavelmente de mais uma expulsão. A nova empreitada, depois de explicada por uma das autoridades, pareceu bem simples. Com a intenção de dar ao Jardim uma revigorada econômica, aceitava-se pela primeira vez, depois que ele tornara-se um lugar fechado para bichos de fora, novos moradores. Porém não eram quaisquer moradores. — Como em tudo, precisa-se de critério. O nosso critério será declaradamente econômico. – foi sincero a todos o governador. O Jardim dos Insetos 77 O Jardim dos Insetos — E qual o problema nisso? – já emendou o governante máximo antes que alguém contestasse. A notícia correu para além do Grande Gramado. No Jardim dos Insetos todos já sabiam também. Em parte a população encontrava-se feliz com os benefícios que a nova leva de moradores traria. Por outro lado, encontrava-se temerosa e desconfiada. Quem tivesse de ir para o Jardim, iria de longe. Não havia mais ninguém no gramado, muito menos com as credenciais exigidas. Se bem que todos sabiam que o gramado logo, logo estaria de novo tomado por bichos vindos de longe. Rapidinho toda aquela imensidão onde cabia muito bicho, seria alvo do desejo de muitos. O gramado se tornara um lugar triste. Com a eliminação de toda a população de insetos dali, também os outros animais que dependiam deles foram embora. Tanto bichos parecidos com os insetos, como as aranhas, quanto animais maiores como as aves e os sapos. Parecia mais um deserto. A continuar daquele jeito nem as flores vingariam. O comentário se espalhou muito mais rápido do que previram as autoridades. Vários animais se dirigiram para o vergel para saber como passar a viver ali. O Jardim dos Insetos ainda possuía a Cerca Viva e as teias das aranhas, que eram o mínimo para que se mantivesse como sempre fora. Mas maioria dos que pleiteava morada era recusada. Aí era voltar para onde vieram. Às vezes para muito longe. Já outros poucos, eram aceitos. Todavia alguns animais causavam tanto controvérsia quanto medo. Estava difícil encontrar com facilidade insetos e outros bichos que cumprissem os prérequisitos para morar no vergel. Dessa forma o governo passou a aceitar mesmo bichos que não eram assim tão confiáveis da população. Bichos que antes eram repugnados por ela. Como, por exemplo: a lacraia, o escorpião e a vespa. Jean Rocha Teixeira Duarte 78 Jean Rocha Teixeira Duarte — Eles têm o que os outros não têm. Recursos para nos auxiliar nesse momento. Não precisamos de moradores que piore nossa situação. Mas de novos residentes que nos ajudem. Não podemos aumentar a massa de pobres e esfomeados! – disse o governador. — Se quiséssemos morrer, não teríamos lutado! – concordou uma das autoridades. A triagem deveria ser minuciosa, porém não demorada, disse o governador. Precisava-se outra vez dar dinamismo ao Jardim. Todavia ainda esperavam uma coisa: que o jardineiro começasse o conserto no jardim. Sem uma força absurdamente superior a deles, não adiantaria. Assim como os humanos dependem dos insetos para uma série de coisas, eles dependiam daquele humano. O prometido para os novos moradores era de que o jardineiro começaria a consertar o vergel muito breve. Mas como garantir aquilo. Eles dependiam do jardineiro assim como dependiam da chuva. E não podiam fazer nada tanto num quanto noutro caso. O povoamento já começava. Os novos moradores foram recebidos com saudações e muita festa. Dentro das possibilidades para a época. Ainda sobre muito barro, todos fizeram questão de deixar claro em juramento que a partir daquela data todos seriam um só. A nova população esperava por dias em que fosse bom lembrar-se que ali estava o melhor lugar em que um inseto poderia viver. Um certo dia um homem de botas conhecidas entrou no Jardim e começou suas benfeitorias. Era o jardineiro! Havia agora um ar de renovação com o início das obras. As autoridades decidiram começar a reconstruir alguns itens de infraestrutura com o início dos reparos do homem. “Oportunidades surgirão”, diziam os governantes. Muitas atividades necessitariam de novos empreendedores. Bola e Grilado estavam dispostos a começarem uma vida nova a partir dali. Serem donos de algo que fosse realmente deles e de que pudessem se orgulhar. O Jardim dos Insetos 79 O Jardim dos Insetos Bola tivera uma idéia genial. Os insetos do vergel já viviam mais tempo e melhor com as plantas e não abriam mão delas. Cultivava-se por toda parte, mas ainda escondido. Plantava-se nas ruas de forma que não virassem praga e quando delas precisavam iam à noite e as colhiam. Viver muito era algo que ninguém ali abria mão. O que lhes faltava era lazer. Prazer em viver mais. Não viver por viver. Faltava diversão, diversão pura. Uma mudança de hábitos para que os insetos aprendessem a se divertir, a aproveitar a vida. Só trabalho e conversas isoladas eram muito pouco. Quem desejasse começar algo, apenas deveria se cadastrar e pronto. O Jardim tinha a fama de ordeiro e de ter tudo sob controle há tempos. Bola pensou unicamente em Grilado para começarem o negócio. Mais uma aventura dos dois. — Novos tempos exigem uma nova mentalidade. – disse Bola a Grilado. — É uma oportunidade e tanto. – respondeu Grilado. — Com a chegada desses novos moradores, podemos ganhar divertindo a eles e a todos. – continuou Grilado. A idéia de Bola para o negócio que começariam era simples: com os irrigadores fariam um brinquedo que divertiria a todos. Tanto lançando-os com segurança nos jatos d’água, quanto fazendo-os rodar no aparelho. Tudo com muita segurança. Ainda bolavam novos brinquedos em reuniões que duravam noites inteiras. Queriam montar um verdadeiro parque de diversões ali. Coisa que só se havia ouvido falar entre humanos. O próprio gramado, diziam os insetos, era um lugar de divertimento para os humanos. Mas ninguém nunca soube precisar ao certo. Os bichos do Jardim achavam aquilo estúpido. Pensavam que havia coisas mais importantes a serem feitas. Jean Rocha Teixeira Duarte 80 Jean Rocha Teixeira Duarte Grilado e Bola saíram anunciando e explicando o que aconteceria de novidade na cidade naquele próximo final de semana. Começaram primeiro pelos imigrantes recém chegados ao vergel. Eles eram mais acostumados a coisas daquele tipo, que envolvia pura e simplesmente diversão. Porque tinham mais experiência, conheciam vários lugares, e também porque tinham mais condições financeiras. E realmente foram eles que melhor os receberam para ouvir sobre o entretenimento que teria o Jardim dali para frente. Quase todos aceitaram o convite para o primeiro fim-de-semana de demonstrações grátis. Se dependesse de Grilado e Bola, o vergel também seria um lugar de diversão. De manhã cedinho já havia vários dos convidados para aquele que prometia ser o primeiro de muitos finais de semana de muita alegria. Havia filas em frente aos brinquedos e muito bicho disposto a experimentar de tudo um pouco. A maioria era formada por novos moradores do Jardim. Alguns ainda desconfiados diziam que já haviam visto coisa melhor. Outros diziam que parecia ótimo. Tudo muito bom, mas faltava uma coisa que acabou dispersando rapidinho os pretendentes a clientes do parque: comida. Não tinha ninguém ali vendendo algo para comer. Com o vergel ainda em recuperação, sem comida nas ruas, os insetos se viram obrigados a irem para casa saciar a fome. Corria um boato de que os recém chegados não comiam do que se tinha na rua. Frutos ou sementes. Só comiam alimentos preparados e elaborados. Grilado e Bola agora precisavam de quem quisesse ganhar ardidas com isso, vendendo alimentos em frente aos brinquedos, no parque. As ardidas equivaliam ao seu mesmo valor num tempero que, por ser muito apreciado e raro no Jardim, funcionava como parâmetro para a moeda. Tiveram que recrutar os interessados rapidamente. Depois passaram novamente por toda a cidade dizendo que agora teriam comida já pronta no parque. Toda a propaganda fora feita mais uma vez. Embora antes, os visitantes tivessem gostado muito dos brinquedos. Pelo menos até sentirem fome. O Jardim dos Insetos 81 O Jardim dos Insetos Bola e Grilado saíram para fazer toda a propaganda sobre o novo parque, que agora contaria com comida para facilitar a vida de quem lá fosse. Também mais outro final-de-semana gratuito onde se poderia brincar sem preocupações. Dessa vez contaram também com a propaganda dos próprios bichos que já haviam ido ao parque. Eles, quando perguntados, diziam que havia sido bom o passeio, mas que só não havia alimento apropriado: a nova promessa de Grilado e Bola para o parque. Mais um final-de-semana chegara e com ele mais outra jornada para Bola e Grilado. Fariam de tudo para que dessa vez tudo desse certo. Havia de novo uma multidão de insetos esperando para se divertir. Além dos brinquedos, o parque dispunha também de algumas piscinas para o divertimento de todos. Os jatos lançavam os que brincavam longe com segurança. Eles caíam na água sem se afogarem. Rodavam no irrigador e terminavam também por cair na água. De novo com toda a segurança. Tudo corria como no previsto por Bola e Grilado. Tudo correra perfeitamente, sem surpresas desagradáveis. Comida para todos os gostos era vendida no parque. O sucesso foi total, com elogios de todos os freqüentadores e promessas de retorno. De tão bom, parecia um sonho para o tatu-bola e o grilo. Após tanto sufoco, com prisões e expulsões, eles se viam muitissimamente bem. E as notícias corriam por todo o Jardim. No início eram boas, depois... Jean Rocha Teixeira Duarte 82 Jean Rocha Teixeira Duarte VI Depois: más! As boas pareciam sinceras. As más, assim como as plantas invasoras pareciam plantadas. Elogiava-se muito o parque de Grilado e Bola, mas alguns boatos pairavam no esforço dos dois. Falava-se por toda a cidade, após o sucesso do parque, que os brinquedos poderiam ser perigosos. Mas como se os insetos quanto àqueles brinquedos estavam protegidos? Isso devido às suas resistências naturais de insetos. Todo inseto possui uma carapaça bem resistente. Os bichos que realmente não eram insetos, também não encontravam muito problema. Além do que os brinquedos pareciam realmente muito seguros e controláveis. Quando se cai na água tudo fica mais seguro. Em velocidade controlada nenhum dos bichos corria risco de morte. Bola e Grilado pediram auxílio a alguns especialistas do vergel que já haviam trabalhado inclusive para o governo. O controle da força da água e a resistência natural dos bichos assegurava tudo. Mas os boatos continuaram como um golpe baixo por parte não se sabia de quem. Quando os insetos O Jardim dos Insetos 83 O Jardim dos Insetos viram que realmente os brinquedos não ofereciam risco de acidente algum, surgiu um novo e mais perigoso rumor. O governo avisava que caso alguém fosse arremessado para fora do Jardim num dos brinquedos, ele não poderia regressar. Ficaria caracterizada fuga da cidade. Rapidamente todos já sabiam daquilo que mais parecia um decreto. Os visitantes, então, foram reduzindo a freqüência ao parque até ele acabar abandonado, deserto. De qualquer forma estava tudo pago e os dois ficaram até com algum lucro de todo o investimento. Que todos se divertiram para valer com o parque, isso foi. Os brinquedos faziam os bichos se esquecerem da recente guerra, da perda de parentes. Fora o parque de Grilado e Bola, não havia muito com o que se divertir. Os momentos de folga eram preenchidos mais com conversa. Nos finais de semana os insetos iam visitar uns aos outros, e só. No mais, de vez em nunca as autoridades organizavam alguma coisa em alguma data comemorativa. Geralmente bem monótona. Bola e Grilado voltaram mesmo para seus antigos trabalhos. Bola voltou a ser mestre-cuca e Grilado carteiro. Decidiram esquecer tudo o que fosse relativo ao parque. Tudo o que os fez crer que poderiam ser um dia o que viam em alguns insetos do vergel: alguém importante e respeitado. Durante um mês, aquilo foi o que de melhor já havia lhes acontecido. Mas agora era como se nunca tivesse existido. — Alguns bichos e coisas estão fadadas a nunca darem certo. – disse Bola a Grilado, que preferiu não responder. Uma atividade arriscada para a população. Isso foi o divulgado pelas Autoridades Jardinais. Uma insegurança que punha em risco a população da cidade dos insetos. A oportunidade se abriu, mas se mostrou bem traiçoeira. Jean Rocha Teixeira Duarte 84 Jean Rocha Teixeira Duarte Acostumando-se de novo ao Jardim como ele era antes da Guerra do Gramado, Grilado e Bola se surpreenderam certa tarde com um papel entregue por um amigo em comum. Era a propaganda de um parque, um parque aquático como o deles. E o mais sórdido: no mesmo lugar onde ficava o Parque das Águas. Ele procurou os dois para lhes mostrar o panfleto que tinha nas mãos. — Vocês ficaram sabendo do parque aquático que montaram no Jardim? – perguntou inseto aos dois. — Não. Que parque? Onde fica? – perguntou Bola. — Adivinha?! No mesmo lugar onde ficava o parque de vocês! – respondeu o amigo em comum. — Eu não me surpreenderia com mais nada. – respondeu Bola. — Agora, no parque deles, Se o bicho for lançado para fora do Jardim, ele pode voltar e ainda ganha uma indenização! E por que com a gente não podia, seria considerado um fugitivo do Jardim? Eu quero saber por quê! Vamos descobrir agora! – disse de novo o amigo chamando Bola para ir perguntar às autoridades. O inseto amigo tinha ficado bem mais perturbado do que o grilo e o tatu com a notícia do novo parque que ficava no mesmo lugar e usava as mesmas ferramentas de jardim. Só que com a diferença de que os visitantes dele não corriam o risco de serem considerados fugitivos do Jardim caso fossem arremessados para fora por algum dos brinquedos. O camarada queria uma explicação do porque do tratamento diferenciado. Ele assim como tantos ficara sem a diversão que era o Parque das Águas. Também porque gostava de trabalhar e ajudar no parque. Com os novos donos, as autoridades foram boas até demais. Pelo menos se comparado com o tratamento dispensado ao grilo e ao tatu-bola. Assim praticamente arrastou com ele Bola e Grilado, completamente desinteressados, que fizeram de tudo para não ir, em direção à Pedra das Pendências. O Jardim dos Insetos 85 O Jardim dos Insetos — Nós precisamos falar com alguma autoridade que possa nos dizer o que aconteceu. – disse o amigo indignado ao inseto que vigiava a frente da Pedra das Pendências. Após explicar melhor ao vigia o que queriam, e depois de muita espera, conseguiram entrar para saber de alguma autoridade por que os novos donos do parque estavam sendo tratados de forma diferente. — Simplesmente porque eles não são infratores como vocês! Eles são animais distintos, que com certeza não nos trarão problemas! – disse o responsável pela Pedra no momento. — Só isso?! – perguntou o amigo de Grilado e Bola. — Só?! É mais do que suficiente! – respondeu o funcionário. Assim os três voltaram para casa, o amigo de Bola claramente mais impressionado e revoltado com aquela situação do que o próprio tatu-bola e o grilo. Grilado e Bola quase não falavam nada. — Você se preocupa demais com essas coisas que sempre existiram. Não se aborreça tanto assim. – aconselhou Bola ao amigo indignado e também ao grilo que estava lacônico. Foi cada um para o seu lado, para sua casa. O amigo, mais indignado que os dois. Bola parecia conformado com tudo que lhe acontecera e lhe acontecia. Finalmente ele se achava em paz com tudo o que era o Jardim, a ordem das coisas e a natureza dos bichos. Todas as semanas Bola e Grilado recebiam notícias de que o parque ia muito bem e que crescia sem parar. Tanto em número de visitantes quanto em tamanho. Bola continuava implacável em não querer mais discutir sobre o parque com os bichos na rua. Dizia que tinha sido o curso normal das coisas. — Quando não se tem muito a fazer, pelo menos não sentimos remorso. – disse Bola aos que encontrava na rua. Jean Rocha Teixeira Duarte 86 Jean Rocha Teixeira Duarte Às vezes Bola parecia um filosofo vazio e desenganado. Às vezes só realista. A vida dos bichos do vergel, devido as suas naturezas, não era longa. Mesmo com as plantas medicinais. Uma série de mentiras foi proferida inclusive por ele, desde a história de Encaracolado. Desde que inventara que o amigo havia fugido para convencer Grilado a sair com ele do Jardim, sua vida sofria os mais graves reversos. O estranho era que Bola não percebia que acabara mudando a história do próprio vergel com aquela “loucurinha”. Não que ele se orgulhasse da mentira contada ao amigo grilo ou da guerra que acabara acontecendo, mas não se via como o causador da reviravolta geral na vida no Jardim. Talvez por isso Bola continuasse tão irredutível depois que tudo acontecera. Parecia não se dar mais com filosofias sobre como deveria ser o vergel. Ficara mais prático em tudo. Antes da invasão das plantas e da guerra, os insetos nem discutiam como era viver ali. Depois começara uma onda de esperança sobre mudanças que levaram alguns a sonharem alto demais. Um deles foi Bola. E o tombo foi grande. O outro Grilado que o tombo também não fora menor. Apesar de tudo os dois se mostravam bem serenos. A bicharada se divertia para valer no novo parque. Ele já se tornara o ponto mais freqüentados da cidade. Com o jardim todo reformado e a cada dia ganhando uma planta mais bonita do jardineiro, parecia mesmo uma coisa da qual ele precisava há tempos. Uma noite, naquelas rodas de conversa que se alastravam pelo vergel, que agora também tinha as histórias dos recém chegados como novidade, chegou um inseto voando para contar a péssima notícia. O dono do novo parque que divertia a todos nos finais de semana morrera. Na cidade todos já sabiam e se entristeciam por ele. Uns choravam, outros só ficavam tristes. O dono era muito querido por todos devido ao seu jeito bonachão e relaxado. O esquisito para todos na roda foi que Bola e Grilado pareciam ter sentido mais a morte do velho do que quase todos ali. Eles chegaram a chorar. O Jardim dos Insetos 87 O Jardim dos Insetos O que todos pensavam era que havia ficado não só uma ponta de remorso, mas todo o possível. Isso porque ainda pensavam que Grilado e Bola sentiam-se enciumados com todo alarde e frisson com o Parque das Águas Claras. Afinal eles teriam começado aquilo tudo e se viram substituídos por um forasteiro alémgramado ou sabe-se lá de onde. Um forasteiro bonachão e engraçado, mas um forasteiro que só conseguira o parque com todas as regalias porque tinha ardidas de sobra. O grilo, então, virou-se para o resto dos bichos da roda. Olhando para Bola, meio que esperando uma interrupção se fosse do desejo do tatu-bola, e disse: — Tem uma coisa que é melhor que vocês saibam através de nós mesmos, do Bola e de mim. O Parque das Águas Claras na verdade era nosso também. Tanto meu quanto do Bola. Ou melhor, ainda, é nosso. Nós conhecíamos o dono, o Laycraw. Combinamos nós três de reabrir o parque. Só que aparentemente sendo só dele para que não nos impedissem de reabrir nosso negócio. Os bichos da roda ficaram boquiabertos. Mais do que surpreendidos: espantados. Bola e Grilado sabiam mesmo como serem secretos e imprevisíveis. Sempre apareciam com uma novidade incrível, mesmo estando bem intencionados. O grilo e o tatu-bola não sabiam como se dar por vencidos. No momento, segundo os dois, teriam que lutar pelo parque, pela herança a que tinham direito. Quando saíram dali, já tinham certeza de uma coisa: de que a notícia correria toda a cidade como um raio. E era isso o que eles queriam. Que todos soubessem e que assim não tivesse como nada de obscuro acontecer... Jean Rocha Teixeira Duarte 88 Jean Rocha Teixeira Duarte O comentário no Jardim era um só naquele momento: o parque mesmo com a morte de Laycraw ainda tinha donos. Eram Grilado e Bola. E os dois, foram à Pedra das Pendências reclamar os seus direitos sobre o Parque das Águas Claras. Afinal era justo reaverem tudo aquilo que ajudaram a construir, mesmo que na surdina. E lá se foram para reivindicar seus direitos. Quando lá estavam, as autoridades mostraram já saber que eles eram os donos e que tinham direito ao parque. A notícia realmente chegara a todos os confins da cidade, inclusive às autoridades. Por isso os governantes demonstraram total conhecimento do caso. Bola e Grilado já esperavam! Fora uma atitude inteligente fazer com que todos no vergel soubessem que eles também eram donos do parque. E de papel passado... O testamento que cada um dos três sócios deixou foi em nome dos outros dois. Grilado e Bola queriam que os moradores tivessem uma opinião antes de qualquer possível manobra arbitrária de alguma autoridade. Temiam que fossem inventadas mentiras quaisquer que os impedissem de retomarem o parque. Se o parque precisasse de um outro dono de mentira e de fachada, outro estrangeiro, eles arrumariam. Sem problemas... O importante, segundo Grilado e Bola, era que o parque continuasse no Jardim, levando alegria a todos. Os insetos eram outros depois do parque. Já se pensava em outras diversões que certamente dariam certo, assim como o Parque das Águas e o Parque das Águas Claras. Bola percebera rapidamente o que os esperava e tratou logo de repassar a Grilado o que pensava: deveriam se preparar para mais um embate com a Justiça. Também para uma série de tentativas de manipulações e de provocações banais. Às vezes até ficavam meio confusos e em dúvida sobre quem naquela confusão toda realmente tinha razão. O Jardim dos Insetos 89 O Jardim dos Insetos Bola e Grilado estavam na Pedra das Pendências para provar que o parque era mesmo deles. Todos seus esforços não ficariam facilmente para o governo. Eles eram a partir dali herdeiros legítimos. Mas como já sabiam, a contenda seria mais do que disputada. E com o embate com as autoridades aproximando-se, rapidamente tudo se confirmaria... — Por que vocês não se declararam também donos do Parque das Águas Claras? – perguntou o juiz a Bola e Grilado, indicando que Grilado falasse primeiro. — Porque nós não víamos necessidade disso. Não era preciso. – respondeu Grilado. Depois o juiz acenou para Bola para que ele respondesse também. — Foi por isso, senhor juiz. Apenas por isso. – confirmou Bola. — Mas foi obscuro isso que vocês fizeram! Fazer com que todos acreditassem que o parque era só de uma pessoa quando também vocês eram donos. Pousam sobre vocês a suspeita de que teriam intenções terceiras. Por isso não disseram serem igualmente proprietários do Parque das Águas Claras! – afirmou o juiz. Já quase no fim do julgamento, Bola que percebia quase tudo já perdido para as autoridades pediu a palavra ao juiz e disse: — E quais intenções foram comprovadas a nosso respeito? O que nós fizemos de errado, afinal? – perguntou Bola. — É aí que está! Nunca saberemos! Eu não acho que vocês devam ficar com o parque como herança. Também não acho que mereçam. Caso contrário ficariam. Não pura e simplesmente o merecimento por terem sido donos, mas o merecimento por uma série de coisas. Coisas estas que nunca demonstraram e nunca terão. Reintegro o Parque das Águas ao Jardim, ao governo dessa cidade. E é tudo. – determinou o juiz. Jean Rocha Teixeira Duarte 90 Jean Rocha Teixeira Duarte Os bichos que assistiam ao julgamento ficaram entristecidos por Bola e Grilado, mas não surpresos com a decisão das Autoridades Jardinais. Elas já haviam sido, sob a ótica da população, severas com eles. Mas pela primeira vez acontecia algo que jamais acontecera: uma manifestação se instalara no Jardim dos Insetos! Era bicho se reunindo por todo lado. E todos os grupos se encontrando no mesmo lugar, em frente à Pedra das Pendências. De imediato vendo todo aquele alvoroço, toda aquela multidão de insetos em frente ao segundo lugar mais importante da cidade, as autoridades deduziram de novo errado. Acharam que foram Grilado e Bola quem organizaram aquilo. Afinal a concentração fora tão rápida e ao mesmo tempo tão sincronizada, que parecia mesmo que alguém exercia algum tipo de liderança. Desfecho: Bola e Grilado presos. Em frente à prisão mais manifestações. Não haveria saúvas suficientes para segurar tanto bicho. Eram insetos e outros tipos de bichos por todo lado. A multidão gritava uma coisa só: “soltem Bola e Grilado”. Repetidas vezes... Sem parar! Os animais tinham uma atitude bem espontânea. Mas seria um sentimento de justiça, a necessidade de correção de um erro, ou medo de ficar sem o parque com todas as suas diversões? O fato era que os dois sabiam como pôr o parque para funcionar. Só eles e Laycraw sabiam como. Sem o tatu-bola mestre-cuca e o grilo carteiro não haveria ali a mesma alegria de antes. Não haveria mais o parque funcionando. E eles não estavam dispostos a passar aquilo que aprenderam sozinhos, nem pago. O funcionamento dos brinquedos, não só nos irrigadores, dependia de uma técnica que só Grilado e Bola conheciam. Eram muitos detalhes. Quando o governo tentou pôr os brinquedos para funcionar depois que o parque foi declarado perigoso, aconteceu muito desastre para um parque só. O Jardim dos Insetos 91 O Jardim dos Insetos Bola e Grilado já haviam deixado claro a todos na roda onde deram primeiro a notícia: eram também donos do Parque das Águas Claras e não repassariam a ninguém como se punha aquilo para funcionar caso não ficassem com ele. Aquilo era mérito deles e, portanto, eles deveriam se beneficiar de tudo o que haviam descoberto e desenvolvido com muito esforço. Assim a alegria do vergel, num trocadilho, já bem arraigada, dependia a partir dali dos dois. Os insetos em frente à Pedra das Pendências se afligiam com a situação do grilo e do tatu. Era a primeira manifestação que o Jardim via desde que fora criado. E para o desgosto total dos dois, já estava decidido e inclusive dito no tribunal que o parque funcionaria no primeiro final de semana após o julgamento, com os lucros sendo revertidos para o governo. Mas a manifestação ficou só nos gritos... Uma coisa, porém surpreendeu e mexeu muito com Grilado e Bola; a população decidiu não mais culpá-los pela briga com o governo. E melhor: não freqüentavam mais o parque na administração do governo. O juiz deixou claro no julgamento que os dois estavam proibidos de montarem outro parque que competisse com o do governo e também de freqüentá-lo. Uma noite, Bola dormindo, muitos dias após a perda do segundo parque, acordou espantado com o que sonhara. Quis ir à casa de Grilado lhe contar, mas ainda era madrugada. Ficou acordado até o dia clarear pensando no que havia sonhado e fazendo várias anotações. Logo quando amanheceu foi encontrar o amigo grilo para lhe contar o sonho e o que anotara até amanhecer. Bola encontrou Grilado próximo à pedra onde morava, já saindo para trabalhar em sua antiga rotina diária depois que acabara o parque aquático. — Tudo bem? O que o traz aqui tão cedo? – perguntou Grilado logo que viu Bola em frente de sua morada. Jean Rocha Teixeira Duarte 92 Jean Rocha Teixeira Duarte — Eu tive um sonho, quero lhe contar! – respondeu tatu-bola. — Sonho? Eu pensei que só os insetos sonhassem. Você nunca me contou um sonho! De qualquer forma, só à noite, após minha jornada com as cartas e as mensagens. Agora não teríamos tempo. Já estou em cima da hora! Pelo caminho, igualmente não seria bom, com esses meus pulos todos você nem conseguiria falar. – explicou o grilo. — Está bom! Eu volto aqui após seu horário de carteiro. – disse Bola já saindo também. E Bola passou o dia inteiro com o sonho na cabeça, querendo contar para alguém e não podia. Queria dividir aquele segredo só com o grilo que virara seu melhor amigo. Não contaria a qualquer um. Realmente tinha algo de especial naquilo. Um sonho, geralmente, não exige tanto segredo assim. Seja engraçado, seja esquisito, conta-se a qualquer um. Se for o caso de que tenha sido ridículo demais simplesmente se cala. Mas o tatu-bola queria contá-lo, mas só ao amigo. Ao amigo de tantas aventuras e confusões. Com o dia devidamente transcorrido, lá se foi Bola para a casa do grilo. Agora teriam tempo suficiente para saborearem a mais nova “loucurinha” do tatu-bola... — Eu tenho mais uma idéia para ganharmos ardidas nesse lugar! Talvez você nunca tenha ouvido falar em algo parecido! É simplesmente demais! É um lugar onde os animais podem ser cantores. Basta querer. Qualquer um pode ser uma cigarra, até um sabiá. – explicou Bola. — E como? – indagou Grilado. — Nós montamos um grupo onde cada um, numa função, faz as vezes de uma orquestra. Como a que se apresenta no gramado. Aquela de humanos. Ali os bichos cantarão sendo guiados por quem realmente sabe cantar. – completou Bola. — Mas nem todos insetos sabem cantar. – insistiu Grilado. O Jardim dos Insetos 93 O Jardim dos Insetos — Você não entendeu?! Vários cantando juntos, ao mesmo tempo, as desafinações ficam imperceptíveis. Vai ser uma incrível fábrica de sonhos para quem sempre sonhou em ser uma cigarra ou um pássaro canoro. Fazendo sua própria música... Qual inseto, por mais medo que já tenha sentido deles, não se encanta com o canto de certos pássaros? – explicou melhor Bola. — Olha Bola... Devo te confessar.. A sua idéia é muito boa! Mas agora tudo o que fizermos será pretexto para que as autoridades nos tomem isso também, caso dê certo. Seu sonho não é estúpido, assim como nenhum dos outros foram... Mas corremos esse risco. – considerou o grilo querendo ser o mais realista possível. Os músicos da orquestra corrigiriam e direcionariam o canto dos desafinados. Tudo parecia mágico. E também mágico pareceu quando Bola e Grilado resolveram pôr o plano em prática. — O lugar vai se chamar A Casa dos Novos Cantores! – adiantou Bola ao grilo. De novo os panfletos saíram cidade a fora sendo entregues por ajudantes e futuros membros da Orquestra dos Novos Cantores. Todos já sabiam onde poderiam ouvir música e também cantá-las. E na primeira noite o regente A Casa já estreou com lotação total. No início quase todos estavam bem tímidos quanto a cantar e praticamente só ouviam os insetos da orquestra. Mas aos poucos foram se soltando e todos já cantavam e aprendiam uma coisa: podiam, sim, cantar. Alguns até melhores que as cigarras e pássaros. O sucesso foi estrondoso e os insetos só esperavam pela próxima noite em que poderiam cantar e espantar seus males. Jean Rocha Teixeira Duarte 94 Jean Rocha Teixeira Duarte Na segunda noite o mesmo sucesso... Os insetos jovens, velhos e filhotes cantavam sem a menor pretensão e vergonha, alguns de forma excelente. Cantavam e seus males espantavam, e cada vez mais. Nunca houvera coisa igual, pelo menos que se tivesse notícia em toda aquela região. Insetos que não eram de canto, cantando como pássaros e cigarras. O conjunto musical que acompanhava os cantores só esperava por suas vozes. Uma banda com vários grilos friccionando uma perna na outra, cada um numa força tal que permitia uma série de efeitos sonoros. Outros insetos usavam instrumentos de sopro e de percussão no acompanhamento. Ficava tanto bonito quanto afinado e eficiente. Pela primeira vez pensava-se até na formação de uma orquestra própria do Jardim dos Insetos. Quando a noite caía e todos estavam em casa, os insetos do vergel já sabiam onde espantar seus males. Porém um rumor sobre A Casa dos Novos Cantores se disseminou. Dizia-se que à noite não se ouvia mais grilos cantando como antes da criação da banda. Quem dizia? As Autoridades Jardinais! Elas queriam saber por que isso estava ocorrendo. Explicaram que isso acontecia porque os grilos estavam agora trabalhando como músicos na Orquestra dos Novos Cantores. Queriam seriamente conversar com Bola e Grilado sobre o fato. Quanto á tal autorização não haveria problemas. A Casa dos Novos Cantores não era um comércio! Vivia de doações, de colaborações espontâneas! Porém a verdade era que ainda havia muitos grilos “fazendo a noite”, como se dizia no vergel. Grilado sabia disso porque era grilo e amigo de todos eles. Mais uma vez estava claro: os dois, Grilado e Bola, estavam sendo perseguidos pelo governo do Jardim. O lugar onde os insetos se encontravam para cantar ficava na estátua oca de sapo. E lá apareceram alguns do governo do Jardim para saber por que Bola e Grilado tinham tirado os grilos de sua função noturna, de “fazer a noite” com seus friccionados de patas. O Jardim dos Insetos 95 O Jardim dos Insetos — Ainda há tantos grilos pelo Jardim à noite que nem se dá para contar. – esclareceu Bola às autoridades presentes. — Essa noite eu quase não dormi por conta da falta de grilos. Todos os insetos, sejam do Jardim, sejam de fora dele, não dormem sem ouvir o som deles. É como se não houvesse noite. Todos nós já estamos completamente acostumados com essa música que nos faz dormir quando a escuridão cai. Talvez você não saiba por não ser um inseto também. – explicou a autoridade a Bola. — Eu sempre gostei do som dos grilos à noite e ainda gosto porque eles ainda “cantam”, e a note toda. Nem se nós quiséssemos, conseguiríamos pôr todos os grilos na banda. Assim isso já é uma prova mais do que suficiente de que não interferimos no sono de ninguém. Simplesmente porque os poucos grilos que usamos em nossa orquestra não prejudicou em nada “fazer a noite” como todos falam. – defendeu-se Bola à autoridade. — Isso é o que você pensa. – foi a última coisa que disse a autoridade antes de prender Bola e Grilado. Muito rapidamente todos na cidade souberam da prisão dos dois, e agora tinham certeza de suas inocências. Dessa vez nenhuma manipulação do governo surtiria efeito sobre a população. Todos sabiam da inocência do tatu-bola e do grilo. Eles tinham uma orquestra onde se cantava e só. Não era nem um comércio e nem outro parque de diversões aquático. Aquilo era injustiça demais! Mais uma vez os insetos do vergel ficariam sem diversão. Primeiro foram os parques e dessa vez seria A Casa dos Novos Cantores. Assim os insetos que se encontravam sempre na Casa decidiram formar uma comissão para ir falar com o governador sobre o absurdo da prisão dos amigos. — Nós viemos aqui falar com os senhores a respeito de Bola e Grilado. – disse um dos bichos que representava o grupo para uma autoridade que saía da Pedra das Pendências. Jean Rocha Teixeira Duarte 96 Jean Rocha Teixeira Duarte — O que vocês têm a ver com isso? Algum de vocês também está envolvido nesse crime? Vocês sabiam que eles dois tentaram desfazer uma tradição que já dura gerações. Os grilos “fazem a noite” ser o que ela é muito antes dos avôs de vocês terem nascido. Por isso vão continuar presos e ficarão lá até o julgamento. – advertiu a autoridade. — Os grilos que permaneceram pelo Jardim eram suficientes para “fazer a noite” daqui. Não houve crime algum em contratar alguns deles para A Casa dos Novos Cantores. – disse o representante para a autoridade que nesse momento dava as costas para todos. — O problema não é só quantos, mas o exemplo dado. – retrucou a autoridade parecendo não conseguir mais sustentar seu argumento. — Nós não aceitamos mais esse tipo de explicação sem fundamento. Só sairemos daqui se os dois forem libertados. – concluiu o representante do grupo. — Vocês devem estar ficando loucos ou coisa pior! Não se diz isso a uma autoridade, muito menos em frente à Pedra das Pendências. Eu poderia prender todos vocês agora! – ameaçou a autoridade. — Eu acho que não! Dessa vez é bicho demais! – disse de novo o representante do grupo depois apontando para a Pedra num gesto que significou que eles deveriam entrar e libertar Bola e Grilado de lá. E não foi difícil pela quantidade de animais que havia ali. Os insetos entraram e todos juntos espantaram as aranhas que faziam a vigia dos dois amigos presos. Depois arrebentaram as teias e puxaram os dois, libertando-os daquilo. Todo o vergel soube de imediato! Pela primeira vez desde sua criação aquela cidade via uma insurreição contra as autoridades e o governo. Também de imediato todos do governo se reuniram para a discussão de uma decisão a ser tomada. Queriam uma reunião o mais rápido possível. O Jardim dos Insetos 97 O Jardim dos Insetos Passaram a noite toda discutindo o que deveria ser feito naquela situação. Com certeza nem perceberam se os grilos cantavam ou não com tanta agitação e gritaria de parte a parte. Um discurso à população! Essa foi a solução encontrada. Era preciso falar a todos sobre o ocorrido, convencê-los de que a invasão à Pedra das Pendências fora uma afronta. Talvez naquele momento nem eles pensassem mais dessa forma. Todos, sem exceção, sabiam que Bola e Grilado eram inocentes. Não poderia haver nada de errado em se contratar uns poucos grilos e pô-los como músicos de uma casa onde os insetos só se divertiam e cantavam. Discurso marcado rapidamente, discurso pronunciado de forma bem demorada. Depois de muito rodeio, já no fim do discurso, o governador disse o que queria à população reunida na maior praça do Jardim, a Praça das Rosas: — Assim queridos irmãos do Jardim dos Insetos, como todos já sabem, esse ocorrido foi a maior abominação já vista desde a nossa existência. Uma verdadeira selvageria, onde se libertaram dois criminosos que insistem em desobedecer às leis repetidamente. Assim sendo, para se evitar mais prisões, pedimos a quem souber do paradeiro dos dois que nos avise e que todos colaborem para o bem-estar de nossa cidade. Obrigado pela compreensão e aguardamos a ajuda de todos. O problema para os governantes foi que o grupo que estava com Bola e Grilado decidiu escondê-los de forma que pouquíssimos bichos soubessem de seus paradeiros. Bola, Grilado e os que agora os protegiam, sabiam que se não fosse assim um ou outro inseto acabaria acreditando naquele discurso e os entregando. Bola dizia que alguns insetos eram bem inocentes. Então assim deveria ser para um mínimo de segurança depois que tantos bichos se comprometeram no resgate dos dois. Jean Rocha Teixeira Duarte 98 Jean Rocha Teixeira Duarte Uma semana se passou e nada de Bola e Grilado. As autoridades não tiveram o retorno que esperavam da população. Ninguém denunciara Grilado ou Bola. Seja porque não queriam, seja porque não sabiam de seus paradeiros. A pompa toda sempre demonstrada pelo governo principalmente contra os “inimigos do Jardim”, como eles mesmos diziam, agora parecia um tanto comprometida. E um novo discurso estava a caminho para todos de novo. O principal medo dos governantes era que aquele ato servisse de exemplo a outros que poderiam se inspirar nele. O discurso veio no mesmo local e também com muito público. Outra vez o governador. — Moradores e moradoras do nosso Jardim, é com imenso respeito que mais uma vez venho num discurso em praça pública, pedir-lhes a ajuda. Como todos sabem, há cerca de uma semana dois criminosos foram resgatados da Pedra das Pendências por alguns insetos contaminados com suas mentiras. Nós, após muita discussão, decidimos que aqueles que participaram da invasão e que decidirem colaborar na prisão desses delinqüentes, serão perdoados. Caso contrário, conseguiremos as informações que precisamos através de nossos funcionários, e aqueles envolvidos serão presos e expulsos do Jardim. O discurso do governador causou uma perturbação geral de imediato. Por terem sido muitos os que participaram do cerco à Pedra, muitos insetos e os familiares dos envolvidos se viram numa trama dramática. Seriam presos? E seus familiares também? Foi uma coisa que preocupou a todos. A invasão fora um procedimento correto? Por mais que Bola e Grilado fossem inocentes, a população tinha direito de ter feito o que fez? Daí se seguiu uma série de questionamentos que alguns respondiam abertamente e com segurança, enquanto outros simplesmente não tinham muita certeza, tamanha a complexidade do caso para eles. O Jardim dos Insetos 99 O Jardim dos Insetos Uma coisa começava a parecer óbvia entre quase todos no vergel: as Autoridades Jardinais eram uma entidade à parte no Jardim. Por quê? Talvez pela série de privilégios de que gozavam. Nunca a população da cidade onde antes tudo acontecia planejadamente, via isso tão claramente. Bola e Grilado continuavam em liberdade e sem nunca terem sido delatados. Num lugar que quase ninguém sabia. Sabia-se apenas que realmente eles não tinham culpa. O quanto o poder de persuasão do discurso das Autoridades Jardinais poderia convencer algum inseto a entregá-los era o que os preocupava. Dessa forma como ninguém entregava os dois escondidos ao governo, começou-se a cumprir a ameaça do governante máximo: as prisões dos que participaram da invasão à Pedra. — Quem sabe assim vocês não decidam entregar onde estão aqueles dois. – disse uma saúva após prender um dos envolvidos na invasão. O gramado demorava a recuperar a população. As Autoridades Jardinais não viam ameaça, uma represália pela guerra e o massacre cruel. Simplesmente porque, segundo os governantes, não sobrara ninguém para vingar os mortos. Todos ovos haviam sido comidos. Aquela época fazia quatro estações que as cigarras foram covardemente enganadas. E ainda tinha insetos que acreditam que realmente não havia como pagá-las. As cigarras agora começavam mais uma vez sua luta pela vida. Saíam do chão e trocavam de pele até ficarem de um tamanho em definitivo. Qualquer um sabe o que acontece às cigarras. Elas se transformam embaixo do chão e depois emergem para mostrar ao mundo seus dotes de cantoras. Sempre se pode vê-las pelo gramado, dispersas por toda parte. Nas árvores e arbustos, bebendo suas seivas. Por isso elas não se viam como parasitas ou uma praga para as plantas. Entendiam que dentro do contexto da natureza faziam parte de um motor maior. Um motor onde uma das peças para o seu Jean Rocha Teixeira Duarte 100 Jean Rocha Teixeira Duarte bom funcionamento eram elas, as apreciadoras de seiva. Tudo num perfeito equilíbrio, onde só por dois meses por ano as cigarras bebiam da seiva das plantas, que não suportariam se fosse mais do que isso. Teriam suas reservas completamente sugadas. Mas a natureza só permitia por dois poucos meses para que tudo funcionasse em harmonia. Sempre espalhadas por toda parte, as cigarras, dessa vez estavam completamente agrupadas. Os outros bichos que ocupavam o gramado, ainda com uma população muito pequena, acharam que era medo do que havia acontecido no ano anterior. Medo de serem de novo exploradas, tendo que trabalhar de graça, sem receber nunca por isso. Só porque tinha um destino rápido na Terra. Aquela união toda das cigarras só ajudava a provar que de alguma forma secreta elas deixavam suas impressões sobre o mundo para seus descendentes. Filhotes que só viriam ao mundo quatro estações mais tarde. Assim, numa manhã aparentemente igual às outras, viu-se uma coisa que jamais se tinha visto no Grande Gramado: uma revoada sem precedentes! Eram as cigarras. Elas cantavam e voavam com toda força. Uma miríade, uma nuvem que assustou a todos no gramado. A nuvem pousava nas árvores e arbustos e depois saía ainda maior e mais carregada. Parecia que não parava de crescer a cada pouso e decolagem. Após várias decolagens, a nuvem demonstrou ter um destino único e urgente: um jardim de blocos de um prédio ali próximo ao gramado. Mas não qualquer jardim de blocos de apartamento de humanos. Seria um que, querendo ou, após aquilo, não seria o mesmo e dividiria opiniões. Não dentro da nuvem das cigarras que tinha uma opinião só e toda a certeza de que aquilo era a coisa mais certa a ser feita. Mas fora da miríade geraria rumores muitos sobre o ocorrido. Era o vergel que todos costumavam falar de boca cheia, o Jardim dos Insetos. O Jardim dos Insetos 101 O Jardim dos Insetos As cigarras na nuvem tinham uma certeza: todas elas reunidas como uma bola de abelhas “europa” em vôo rápido, furaria qualquer rede de proteção aérea das aranhas. As cigarras são maiores e voam ainda mais rápido do que as melíferas. As aranhas escolhidas para trabalharem como vigias aéreas eram grandes e caprichavam muito em suas teias. Trançavam e retrançavam os fios de forma que nenhum animal que comesse insetos entrasse no Jardim. Nenhuma cigarra sozinha ou pássaro insetívoro conseguia entrar, tamanha a resistência da rede das aranhas. Porém as cigarras todas juntas, naquela nuvem, poderiam arrebentar a malha protetora, que até aquela presente data, funcionara muito bem como uma perfeita barreira aérea. Os bichos que estavam no chão olhavam para cima tentando entender aquilo tudo. Desde que a tal nuvem de cigarras começara a se formar, pousando e decolando cada vez maior, os bichos dali perguntavam-se se havia uma cigarra que comandava a miríade. Isso por que elas sempre agiram sozinhas, todos sabiam disso. Assim a nuvem organizada das cigarras seguiu rumo ao Jardim dos Insetos. Foi só o tempo de decolarem da última árvore, uma Sibipiruna e já estavam arrebentando as muitas teias de aranhas da cidade antes considerada ideal para se morar. Parecia o fim do mundo, o fim do mundo dos insetos. Mas nem todos os habitantes do Jardim dos Insetos eram insetos. Então por que ele tinha esse nome? Isso era uma pergunta que Bola e Grilado sempre se faziam. Por mais que já soubessem da resposta. Talvez se perguntassem querendo encontrar uma resposta que não fosse o óbvio: as autoridades eram marimbondos, e os marimbondos são insetos. Já dentro do vergel, com toda a rede de proteção aérea arrebentada, as cigarras foram ao Caramanchão do Governo reivindicar o pagamento da dívida que o Jardim tinha com elas. Ainda dentro do vergel a nuvem recebia ainda mais cigarras. Aquelas que ou acabaram de nascer ou que quando as Jean Rocha Teixeira Duarte 102 Jean Rocha Teixeira Duarte cigarras estavam para sair rumo à cidade encontravam-se mudando de pele. Até essas, temporãs, não seguiam sozinhas para ali. Esperavam outras, mesmo que não muitas, para voarem juntas e em mais segurança para a reivindicação que marcaria a história dos animais do gramado e do Jardim para sempre. Quando os bichos do vergel viram aquela nuvem de cigarras imensa que ainda crescia cada vez mais, quem tinha casa e podia correr, correu para ela. Os caracóis entraram todos para dentro de suas carapaças. Todas as atividades, até as mais importantes e essenciais, foram deixadas de lado quando os bichos viram que, naquele momento, o que importava era salvarem suas vidas. Quando olhavam para cima e não viam mais as aranhas protegendo o teto, o medo era total. Dizia-se que as formigas saúvas ainda protegiam sim, mas as suas larvas no fundo do chão. Cada um se via salvando só a si e a seus parentes, no máximo. Em frente ao Caramanchão do Governo, uma voz entre as cigarras falou: — Viemos cobrar aquilo que vocês nos devem. Aquilo que ficaram devendo aos nossos parentes! — Com quem eu falo? – perguntou o governador. — Com um bicho entre nós, que somos muitos! – respondeu a mesma voz ao governador. — Eu não falo sem saber quem comigo fala! – esbravejou o governante. — Já nós falamos até com ladrões! – rebateu a voz reclamante. — E então, como será pago o que vocês nos devem? – perguntou de novo a voz. — Nós não temos como pagar-lhes! É impossível! Ainda mais agora que teremos que reconstruir algumas coisas que vocês destruíram em nosso jardim! – observou enfaticamente o mandatário máximo do vergel. O Jardim dos Insetos 103 O Jardim dos Insetos — Não acreditamos mais no que vocês nos dizem! Teremos que conferir! Aí sim, teremos certeza disso! – voltou a falar a voz entre as cigarras. — Venham! Vamos nos certificar se realmente temos como receber agora mesmo! – exclamou a “voz das cigarras”, chamando todas para entrar no Banco dos Insetos que ficava atrás do Caramanchão do Governo. — O que vocês estão prestes a cometer é crime, e o mais terrível segundo as leis daqui! – esbravejou o governador. — O que vocês fizeram é que foi crime. Um crime grande e covarde. Agora nós estamos prestes a fazer justiça. – continuou a “voz das cigarras”. Assim as cigarras entraram no Banco dos Insetos. Foram muitas, sem dar a menor chance de reação. Nele comprovaram suas suspeitas. Havia milhares de ardidas armazenadas. Segundo as anotações de balanço do banco descobriram que havia como o pagamento ter sido feito a seus parentes. Realmente as cigarras foram covardemente traídas e enganadas. Trabalharam arduamente durante suas vidas inteiras em vão. Era a prova de que as Autoridades Jardinais haviam sido mais do que injustas. Haviam sido desleais, covardes e prepotentes. Milhares e milhares de vidas destinadas à escravidão velada e dissimulada. Algumas daquelas cigarras não haviam nem deixado filhotes, de tanto envolvimento com as entregas dos remédios e ainda na incerteza se haveria pagamento. Realmente foram tempos dramáticos que as cigarras queriam deixar como lição de justiça. Mas tudo foi cobrado com juros e correção monetária. De acordo com os índices dos próprios governantes, que, aliás, eram altíssimos. Mas foi tudo pago! E na mesma moeda. Justiça feita, as cigarras se viam na condição de dar um fim a toda àquela injustiça e violência, que poderia um dia voltar-se novamente contra elas. — Agora precisamos de um nome! – articulou de novo a voz entre as cigarras. Jean Rocha Teixeira Duarte 104 Jean Rocha Teixeira Duarte — Mas para quê? – perguntou a cigarra que se encontrava mais perto da voz que falava. — Para que o Jardim tenha um nome de acordo com o que ele realmente é e significa para todos! – explicou a voz. — E qual será o nome? – indagou outra cigarra no meio da multidão. — Os moradores é que vão decidir! Decidirão inclusive se querem um novo nome! – esclareceu a voz que falava desde o início com o governador. — Há um problema! – foi mais ou menos o que disse uma voz na aglomeração das cigarras em frente ao Caramanchão do Governo. — Qual? – perguntou “a voz das cigarras”. — Praticamente todos os moradores do Jardim fugiram para o gramado. Eles estão assustados, convencê-los a voltar será difícil. Aqui só deve restar agora os caracóis, que são lentos para fugir. – disse uma cigarra anônima. — Então, que todas as cigarras se encarreguem de dar a boa nova aos que fugiram para o gramado. Digam-nos que retornem ao Jardim, pois, nada de mau lhes acontecerá. Digam também que haverá uma votação para que se decida qual será o novo nome do Jardim. – voltou a dizer a voz. E lá se foram todas as cigarras em direção ao gramado, dar as boas-novas sobre o novo vergel, que todos idealizariam dali em diante. Também foi Lila, a libélula camarada, que agora moraria no Jardim.. Porque afinal de contas somente eles poderiam decidir sobre onde morariam. As cigarras sobrevoaram todo o Grande Gramado divulgando a mensagem sobre o novo Jardim que renascia. Era difícil convencer os insetos que estavam lá a voltarem para ali. Muitos não acreditavam que aquela havia sido uma invasão pacífica, que não haveria mortos e nem violência. Nunca se vira tanta cigarra e todas reunidas. Os bichos do vergel se inteiraram com os poucos moradores do gramado sobre como as cigarras sempre agiram. Souberam que elas eram pacíficas, mas que com toda a história sobre a escravidão de seus parentes, tinham se revoltado. O Jardim dos Insetos 105 O Jardim dos Insetos Depois disso sumiram... Todas elas... Todas as cigarras... — Onde estão as cigarras? – perguntou Bola após pouco tempo sem as ver. — Você não sabe, não é mesmo!? Essa é a tão falada “retirada misteriosa”. Por isso ninguém sabe para onde elas vão. Alguém sabe por acaso para onde elas vão? Simplesmente somem. – explicou Lila a Bola e Grilado, pouco acostumados com coisas de mato. Os ex-moradores do Jardim, agora no gramado, relutavam, mas aos poucos voltavam para o seu velho vergel de orquídeas, violetas, bromélias e rosas. Demorou, mas todos retornavam, com exceção de alguns poucos. Coincidência ou não, justamente aqueles que compunham as Autoridades Jardinais. Eles diziam que não morariam num lugar onde cigarras é que governavam, que seria uma bagunça e uma desordem sem fim. Também foi visto junto a eles um besouro cor de ouro, um antigo conhecido de Bola e Grilado. — Onde já se viu? Cigarras que nem sabem o que aconteceu há uma estação atrás, que ficam quase o tempo todo embaixo do chão, governarem um jardim como o Jardim dos Insetos! Mas um dia nós retornaremos e de novo restauraremos a lei e a ordem. Tudo pela tradição! – disse uma Autoridade Jardinal. Todos os moradores juntos! Mais uma vez estavam todos no vergel! Em frente à Praça das Rosas! Para a votação sobre o novo nome que seria dado ao Jardim. Primeiro decidiriam se o nome Jardim dos Insetos condizia com a realidade do jardim, já que nem todos ali eram insetos. Depois, caso decidissem que Jardim dos Insetos não era um nome apropriado, decidiram qual seria o novo título. Jean Rocha Teixeira Duarte 106 Jean Rocha Teixeira Duarte Na primeira votação com todos os moradores votando, decidiu-se que o nome era inadequado. Não poderia continuar daquele jeito. E na segunda votação, Jardim dos Bichos foi o nome mais votado para o novo nome. Surgiram também, a partir daquele momento em que os bichos do vergel se viam livres para pensar e disser o que sentiam, gritos clamorosos pedindo julgamento para as Autoridades Jardinais. Como a injustiça comprovável fora com as cigarras, os bichos deixaram a cargo das cantoras do gramado a decisão. Elas decidiram que não queriam mais retaliações quanto ao ocorrido com seus parentes há quatro estações, no ano anterior. A saída das autoridades para fora da cidade, já seria um alívio para todos ali. Um caracol do Jardim, numa das muitas reuniões que tiveram, disse não achar justo que ele, que não era um inseto, fosse chamado de tal. — Nada contra os insetos, mas que cada um fosse chamado de acordo com suas características. – disse o caracol. Entre todas as sugestões a que vingou foi a de Bola. Bola e seu amigo se mostravam em público depois de todo o ocorrido, a Revolução das Cigarras. O tatu-bola achava que se deveria ensinar nas escolas, a todos os filhotes, os tipos de bichos que havia ali. Também que se deveria chamar cada animal de acordo com o seu tipo. Assim sempre se estaria agindo da maneira mais correta e delicada. As ex-autoridades do vergel pediram um tempo para que pudessem retirar seus pertences antes de ir em definitivo para o Grande Gramado. Era estranha aquela situação. Realmente eram orgulhosos e arrogantes aqueles que por muito tempo governaram o Jardim dos Insetos. O governador, porém, junto de várias autoridades, antes de partir de uma vez por todas, pediu para falar com Bola e Grilado. Os dois ouviram o que o ex-governante tinha para lhes dizer. O Jardim dos Insetos 107 O Jardim dos Insetos — Eu queria perguntar-lhes uma coisa antes de ir embora definitivamente, mas não para sempre. Onde foi que nós erramos com vocês, com você e esse grilo? – perguntou o ex-governador a Bola e Grilado. — Talvez parecendo mais arrogante do que nós! – respondeu Bola ao marimbondo. — Quem sabe por você ser jovem ainda não saiba, mas toda revolta é uma revolta contra a natureza. – continuou o ex-mandatário. — Pois assim ela permitiu que fosse. – rebateu Grilado. O governador parecendo um tanto melancólico e resignado, com o espírito indiscutivelmente atormentado, continuou sua alocução final no Jardim: — Mas será que foi tão mau assim?! Nós sobrevivemos dessa forma por tanto tempo! Nunca vai haver espaço para todos mandarem. Nem todos merecem estar entre os melhores, entre os que mandam. – perguntou já respondendo o marimbondo, agora de espírito moribundo. Bola então falou ao ex-mandatário máximo do ex-Jardim dos Insetos: — Temos que viver na realidade que é a natureza! Cada um, segundo a sua natureza, cada um segundo a sua possibilidade. Mas todos com chances iguais, sempre iguais. – respondeu Bola enquanto a comitiva de retirantes, entre os bichos do Jardim, esperava o debate para partir. Mais uma vez o governador lhes falou. Ele parecia não querer convencer ninguém de nada, apenas deixar uma insegurança plantada no coração de cada um que ali ficasse, para sempre. A vespa disse: — Antes nós também tínhamos uma realidade. Foi por acaso tudo um sonho? Era ou não era real?! Aqui também foi construída uma verdade, mas segundo o que fomos quando todos juntos. Cada bicho artificializará a natureza para si e para os outros. A sua realidade não é a realidade, é a realidade que você egocentricamente artificializou para você mesmo. Jean Rocha Teixeira Duarte 108 Jean Rocha Teixeira Duarte Grilado, vendo uma chance, voltou a falar: — O Jardim deve ser um lugar que seja bom para todos! O governador ainda tinha mais a dizer: — Ainda assim alguém terá sempre que estar por cima. Há pouco fomos nós. Por muito tempo, eu confesso. Agora serão vocês e eu gostaria muito de saber o que vocês farão, e o quanto mudarão. Vida longa a todos vocês! Bola sentiu-se na obrigação de falar de modo mais apropriado ao momento, mesmo que fosse mais rude. — Você pode seguir as regras e continuar com todos, ou ser você mesmo e terminar sozinho... Não que você vá necessariamente ter vantagem maior num ou noutro caso. Na verdade você nunca conseguiria são por muito tempo no segundo caso. Estar por cima é mais doce do que um fardo. Depois a troca de palavras entre os três começou num ritmo mais que alucinante. — Até as formigas, cada uma, no fundo trabalha para si mesma. Na verdade todos vivemos para nós mesmos. Governe como se nada estivesse acontecendo. É melhor para vocês. – proferiu o ex-governador. — Você pode pensar o que quiser de nós, mas nós ainda estamos certos. – replicou Grilado. — Vocês se preocupam demais! A dor do mundo é a dor do mundo! E a dor do mundo é a dor na natureza, a dor de se estar vivo! – reforçou sua idéia o ex-mandatário máximo. — A sua vantagem, nesse momento, é já ter discursado demais que até parece poético e filosofal! Você que vivia livre no Caramanchão do Governo, considere-se, agora que saiu de lá, preso! Preso a esse mundo! Um mundo onde você terá que ser mais do que uma vespa egoísta. – exclamou Grilado. — Tudo isso por causa de um bando de cantoras desordenadas? – perguntou o governador. — Não! Tudo isso por causa de um caracol... – terminou Bola. O Jardim dos Insetos 109 FIM 110