OS CONCEITOS DE BEM E FELICIDADE NOS LIVROS I E II DA

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OS CONCEITOS DE BEM E
FELICIDADE NOS LIVROS I E II
DA ÉTICA A Nicômacos
DE ARISTÓTELES
Édison Martinho da Silva Difante1
Questões preliminares
A definição aristotélica da felicidade não se dissocia da questão do bem.
tendo em vista que o bem está intimamente ligado à felicidade e que ambos fazem parte da esfera das ações humanas, Aristóteles é levado a investigar o bem
a partir do humano. Em Aristóteles se requer uma investigação sobre o bem
referente a cada coisa, ou seja, que se investigue o bem em sentido particular,
que diga respeito a cada atividade ou ação do homem.
Como se sabe, tanto Aristóteles quanto Platão trabalharam sobre o conceito do bem, só que, em maior parte, de maneira distinta e a partir de diferentes critérios. Platão define o bem em sentido absoluto e único, dissociado das
coisas existentes e das funções das mesmas enquanto existentes. Em Platão,
existe uma espécie “de bem independente” (ROSS, 1987, p. 197), que não faz
parte da vida prática, conhecido e existente por si mesmo. Dessa forma, o bem
diz respeito a uma idéia distanciada da existência concreta e, de certa forma,
Mestrando do Curso de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM). Bolsista da CAPES.
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sem referência ao agir humano (ou à determinada ação). Isso não quer dizer
que ele desconsidere a existência dos bens particulares. Aliás, no Filebo, Platão
diz que o objeto da ética é o bem para o homem, portanto, é necessariamente
um bem humano.
Embora seja assim, o que Platão propõe e investiga é o bem em si. Ele o
concebe, aliás, como sendo uma unidade indiferenciada em si mesma e, como
tal, indefinível e indecifrável, o que o torna, em sentido particular, e por força
de sua absoluta unidade, mais fácil de ser definido teoricamente, visto que já
é um conceito dado de antemão. Segundo a teoria platônica, o bem “[...] é
uma idéia, um transcendente uno e imutável, ao qual se chega não através do
sensível, mas do inteligível” (PEREIRA, 1999, p. 188). O próprio Platão é consciente da inefabilidade do bem. Mas, mesmo que o bem seja indefinível, indecifrável e até mesmo inefável, constitui-se em móvel orientador, não somente do
agir, mas também das formulações teóricas do pensamento. Em outras palavras,
o bem diz respeito não só à vida ética, mas também à ciência, já que coincide
com a verdade. Neste sentido, trata-se não da verdade como estado psicológico
do “entendimento humano”, mas, sobretudo, de uma verdade ontológica ou
transcendental (em sentido kantiano). Para Platão, pois, é a Idéia do Bem que
comunica a verdade aos objetos do conhecimento, sendo que tal comunicação
somente é possível mediante a adequação entre o objeto (em questão) e a própria Idéia.
No que diz respeito à vida ética, o bem pode coincidir com a virtude, visto
que se manifesta no viver do homem. Embora seja uma Idéia, o Bem para o homem é algo que todo o ser inteligente persegue: é algo que está presente desde
sempre e que todos o conhecem enquanto conceito. O Bem para o homem,
segundo Platão, tem como característica algo que qualquer pessoa sabe, antecipadamente, que o escolhe de preferência a qualquer outra coisa e que o torna, a
partir dessa escolha, perfeitamente satisfeito.2 Portanto, a determinação do bem
se dá no conceito, antes mesmo de qualquer experiência. Contudo, no Górgias,
Platão parece mostrar claramente que o Bem diz respeito àquilo que todos desejam, e que é ele que traz o que todos, por natureza, desejam: a felicidade ou
eudaimonia (ευδαιμονία).
Em Aristóteles a Ética ou ciência política é centrada no homem. Aliás,
o homem é o objeto principal na investigação do bem. Não obstante, embora a
2
No Filebo, servindo-se das palavras de Sócrates, Platão diz que o Bem é algo de completo e
suficiente por si mesmo, não sendo assim carente de nada.
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ética aristotélica se construa baseada no homem, em sentido particular, ela é,
sem dúvida, uma ética social, pelo simples fato de que “[...] o homem individual
é essencialmente um membro da sociedade” (ROSS, 1987, p. 193). Segundo
Aristóteles, o bem do Estado ou da polis (Πόλις) deve estar em conformidade
com o bem dos cidadãos; e as ações dos homens sempre “[...] são praticadas
com vistas ao que lhes parece ser um bem” (Política, I, I, 1252a). Nesse sentido,
dado que a cidade é constituída por homens, o bem dela deve ser o maior ou
mais abrangente entre todos os indivíduos que nela vivem.
Da mesma forma que Platão, Aristóteles também investiga sobre a existência de um bem em geral, válido para todas as coisas. Todavia, segundo ele,
esse bem só é concebível a partir da existência dos bens particulares referentes
a cada coisa. Ele próprio, no início da Ética a Nicômacos [EN], afirma que: “Toda
a arte e toda indagação, assim como toda ação e todo propósito, visam a algum
bem; por isto foi dito acertadamente que o bem é aquilo a que todas as coisas
visam” (EN, I, 1, 1094a). Logo, deve haver um bem próprio para cada caso (ou
coisa) e com o homem não poderia ser diferente, isto é, deve existir um bem
que dê primazia ao homem enquanto homem, ou seja, ao humano enquanto
humano.
Ainda no primeiro livro da Ética a Nicômacos, Aristóteles também pressupõe que o bem é o fim último (em sentido teleológico) de qualquer atividade.
Segue-se, que o bem é
[...] o fim visado em cada ação e propósito, pois é por causa dele que os
homens fazem tudo mais. Se há portanto um fim visado em tudo que
fazemos, este fim é o bem atingível pela atividade, e se há mais de um,
estes são os bens atingíveis pela atividade (EN, I, 7, 1097a).
Na Metafísica [Met], Aristóteles fala de uma causa final referindo-se a
algo (um bem) em relação ao qual se pratica qualquer ação. Essa causa é o último fim e aquilo ao qual toda “a ação tem em mira” (Met., XII, 7, 1072b). Não
obstante, esse bem final não é o mesmo em todas as ações ou ofícios que envolvem o homem, devendo haver em cada caso um bem específico. Cada tipo de
atividade tem sua finalidade, de modo que, o bem em geral não pode ser definido como algo único e predicado de maneira igual para todas as categorias.
Com efeito, na Ética a Nicômacos, Aristóteles questiona sobre a possibilidade de um bem que possa abarcar a multiplicidade dos bens relativos às coisas
distintas. Resta claro, para ele, que o bem não é um termo geral, que corresponFilosofazer. Passo Fundo, n. 32, jan./jun. 2008, p. 135-145 .
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de pura e simplesmente a uma idéia única. Ele dá a entender que a palavra bem
é usada em tantos sentidos quanto a palavra ser, uma vez que se pode predicar
essas palavras em quase todas as categorias. Conseqüentemente, o bem, não
sendo uma noção universal e podendo ser predicado de diferentes coisas e de
diferentes modos, “[...] não é uma generalidade correspondente a uma Forma
única” (EN, I, 6, 1096 b); uma vez que, pode ser interpretado como “[...] um
princípio a título de causa final, de causa motriz ou de forma” (Met., XII, 10,
1175b).
Não obstante, Aristóteles afirma que o bem se diz em tantos sentidos
quanto o “ente”: “[...] obviamente ele não pode ser algo universal, presente em
todos os casos e único, pois então ele não poderia ter sido predicado de todas as
categorias, mas somente de uma” (EN, I, 6, 1096a). Em Aristóteles, o “Ente e
o Ser expressam conjuntamente a existência em geral”. Admitindo, além disso,
que “suas significações são múltiplas”, falar do Ente significa falar dos modos
da existência, que, segundo Aristóteles, se restringem às categorias, entre as
quais a fundamental é a da substância; ou seja, aquela mediante a qual se define
o que é ser e, com ele, o sujeito de todo o discurso posterior (SPINELLI, 1997, p.
335-336). Logo, é a partir dela que se definem todas as outras categorias. Posto
que, “[...] dos predicados, uns significam qüididade, outros qualidade, outros
quantidade, outros relação, outros ação ou paixão, outros lugar e outros tempo,
o ser significa o mesmo que cada um desses predicados” (Met., V, 7, 1017 a).
Mesmo, porém, que a significação do ser sirva a cada um desses predicados, é, com efeito, o significado primordial da substância ou qüididade que dá
sentido a todos os demais. O bem pode compreender ou abarcar a multiplicidade de diferenças de bens de naturezas distintas, de acordo com cada uma
das categorias. Como já foi posto, o bem é aquilo para o qual todas as coisas
tendem, pois sempre é dito em relação a alguma coisa, sendo o fim visado para
tal coisa ou tal atividade (no caso das ações). É preciso considerar que existem
bens absolutos em si mesmos, mas intermediários em referência a outros, ou
até mesmo em relação a outro fim. Na Ética aristotélica, o fim para o qual
tende uma ação particular “[...] pode ser apenas um meio para um fim mais
longínquo”.3 Posto, aliás, que cada ação tem necessariamente de possuir um fim
último, válido em si próprio. “Aristóteles infere, sem hesitar, que o fim último de
todas as ações deve ser o mesmo” (ROSS, 1987, p. 194).
3
“Dos bens restantes, alguns devem ser preexistentes como pré-requisitos da felicidade, e outros
são naturalmente coadjuivantes e instrumentais” (EN, I, 9, 1099b).
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1. Sobre a “função” própria do humano
Com efeito, Aristóteles identifica o bem como o fim último para a ação
humana. Consequentemente, tudo o que se faz é com vistas a algum bem. Segundo a concepção aristotélica, o bem, para o homem, somente é alcançável
por meio de uma práxis.4 Ele consiste em uma busca “[...] que somente ocorre
onde há movimento” (PAIXÃO, 2002, p. 39) ou, necessariamente, onde houver ação. Ademais, o bem do homem, assim como a função humana, é uma
atividade da alma:
Com efeito, da mesma forma que para um flautista, um escultor ou qualquer outro artista e, de um modo geral, para tudo que tem uma função
ou atividade, consideramos que o bem e a perfeição residem na função,
um critério idêntico parece aplicável ao homem, se ele tem uma função.
[...]. Até as plantas participam da vida, mas estamos procurando algo
peculiar ao homem (EN, I, 7, 1097b).
O viver, o reproduzir-se, assim como a percepção são comuns às outras
espécies. O homem, com efeito, possui uma faculdade que os outros animais
não possuem e, por princípio, deve agir de acordo com ela. Tal faculdade consiste no pensamento ou na razão. Por ser unicamente humana, é através dela
que o homem deve determinar a sua vida.5 Segundo Aristóteles,
[...] se este é o caso, repetimos, o bem para o homem vem a ser o exercício ativo das faculdades da alma de conformidade com a excelência,
e se há mais de uma excelência, de conformidade com a melhor e mais
completa entre elas (EN, I, 7, 1098a).
É ela (αρετή) que permite, enfim, ao homem cumprir da melhor forma
as suas tarefas.6
O termo práxis (Πράξη) é traduzido para o português por “ação”. O alcance do termo práxis
é sempre ético. Não designa, pois, qualquer espécie de “ação”, mas aquela que se vincula à
conduta humana (boa ou má).
5
“Então, se a função do homem é uma atividade da alma por via da razão e conforme a ela, e se
dizemos que uma pessoa e uma pessoa boa têm uma função do mesmo gênero – por exemplo,
um citarista e um bom citarista e assim por diante em todos os casos –, sendo a qualificação a
respeito da excelência acrescentada ao nome da função (a função de um citarista é tocar cítara,
e a de um bom citarista é tocá-la bem), se este é o caso (e afirmamos que a função própria do
homem é um certo modo de vida , e este é constituído de uma atividade ou de ações da alma
que pressupõem o uso da razão, e a função própria de um homem bom é o bom e nobilitante
exercício desta atividade ou a prática destas ações, se qualquer ação é bem executada de acordo com a forma da excelência adequada” (EN, I, 7, 1098a).
6
Mário da Gama Kury prefere utilizar excelência (moral) como correspondente ao termo grego
Аρετή, conceito tradicionalmente traduzido por virtude.
4
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O fato é que o homem deve conduzir a sua vida de acordo com a racionalidade que lhe é própria, já que a sua função consiste, basicamente, “numa
atividade da alma que implica um princípio racional”. Como ocorre com as demais atividades ou coisas que existem, o bem do homem reside na sua função,
portanto, ela deve ser bem desempenhada. Segue-se, que a atividade humana,
além de ser guiada pelo elemento racional, deve ser mediada pela virtude, cabendo à Ética (ciência da conduta) disciplinar e dirigir esse agir do melhor modo
ao melhor fim.
Considerando que a atividade do homem é um fim em si mesmo, que
pressupõe a felicidade, o fim, pois, deve estar submetido a um plano ou regra
devidamente justo e certo. Nesse mesmo sentido, Aristóteles usa o termo (verbo) deliberar, que também pode ser entendido como escolha: uma vez posto o
fim, a deliberação versará sobre os meios, na dependência dos quais se alcançará
esse fim.
A função do homem consiste no bem deliberar, pois é a partir da boa escolha que o homem é capaz de atuar de acordo com o que a sua razão lhe indique
ser a ação justa e, necessariamente, a mais correta. Aristóteles, com efeito, diz
que o agir humano deve ser desempenhado com vistas a um certo objetivo ou ter
alguma pretensão, ou seja, o agir deve ser direcionado a algo, a uma finalidade.
Além disso, é necessário que o direcionamento (do agir) e também o objetivo (o
fim) não provenham meramente por instinto. Pois, como já foi salientado, o ser
humano deve agir conforme a racionalidade que lhe é própria. O seu agir deve
ser direcionado a partir de um motivo que provenha de um princípio racional
cuja finalidade é o bom e o reto.
Aristóteles chama de virtuoso, no que se refere a uma disposição de caráter de uma pessoa, aos “hábitos dignos de louvor”. Existem duas formas de
virtude ou excelência que aparecem no início do livro II da Ética a Nicômacos:
Como já vimos, há duas espécies de excelências: a intelectual e a moral.
Em grande parte a excelência intelectual deve tanto o seu nascimento
quanto o seu crescimento à instrução (por isto ela requer experiência e
tempo); quanto à excelência moral, ela é o produto do hábito” (EN, II,
1, 1103 a);
Por isso, ela pode também ser considerada como a capacidade disposicional de atuar corretamente.
Posta essa distinção, Aristóteles é levado a afirmar que a virtude ou a excelência moral no homem é uma disposição de caráter que o torna bom, e que
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“[...] o leva a desempenhar bem a sua função” (EN, II, 6, 1106a). É a partir desse
princípio racional, por excelência, que o homem deve guiar seu agir e fazer tudo
conforme a reta escolha:
A excelência moral, então, é uma disposição da alma relacionada com a
escolha de ações e emoções, disposição esta consistente num meio termo
(o meio termo relativo a nós) determinado pela razão (a razão graças a qual
o homem dotado de discernimento o determinaria) (EN, II, 6, 1106b).
Em outras palavras, a função própria do humano deveria ser agir de acordo com o princípio racional, próprio do homem dotado de “sabedoria prática”
(φρόνηση).7
2. Sobre o conceito de felicidade (ευδαιμονία)
Delimitada a função característica do homem, pode-se agora identificar
o que seria ou o que é a felicidade (a eudaimonia, segundo o conceito grego).
David Ross é da opinião que a tradução convencional de eudaimonia por felicidade é imprópria. Insiste que, enquanto a “[...] felicidade designa um estado
de sentimento, diferindo do prazer apenas pela sua sugestão de permanência,
de profundidade e de serenidade [...] ”, a eudaimonia é “[...] uma espécie de
atividade, e não qualquer espécie de prazer” (ROSS, 1987, p. 196). Por isso,
prefere traduzir eudaimonia por bem-estar, uma vez que, o bem deve apresentar
duas características: a auto-suficiência e ser final (sempre escolhido por si próprio). O bem-estar, com efeito, deve se dar, em primeiro lugar, de acordo com
a faculdade característica do homem e; em segundo lugar, “[...] deve ser uma
atividade, não uma mera potencialidade; em terceiro, deve estar de acordo
com a virtude” (ROSS, 1987, p. 197) que apenas pode manifestar-se no agir
propriamente dito.
Dado que existem várias formas de bem e de finalidade (na vida do homem), devem existir também vários fins relacionados ao agir. Nem todos os fins
ou finalidades, obviamente, são finais (no sentido de ser o último), restando, evidente, que existe apenas um bem final sendo que o maior dos bens é sempre o
mais desejável e, mediante qualquer adição, sempre resultará em um bem maior.
Se é assim, todo o bem (ou fim último) que é almejado a partir de outros
pode ser considerado o mais absoluto entre os fins ou então o mais longínquo,
7
O termo grego phrônesis pode ser traduzido como discernimento ou prudência ou, conforme
W. D. Ross, como virtude.
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ou ainda, talvez o bem supremo ou o sumo bem; pois ele nunca é desejado em
função de outro, e todos os outros (que são apenas intermediários) somente são
desejáveis em vista dele. Visto que ele “é o fim último de toda a ação” humana,
ou “o maior bem que pode ser realizado” por meio da ação, pode-se acrescentar
que esse fim ou esse bem é “[...] o objetivo, em relação ao qual o homem fixaria todos os seus procedimentos” (HOBUSS, 2002, p. 17). Uma vez, pois, que
depende do agir humano, segundo Aristóteles, cabe à Ciência Política o estudo
dessa finalidade, que necessariamente deverá ser o maior bem humano, no sentido estrito da palavra. Em virtude disso, “[...] parece que a felicidade, mais que
qualquer outro bem, é tida como este bem supremo” (EN. I, 7, 1097a). Ademais, ninguém escolhe esse bem visando outra coisa, e, com certeza, pode-se
dizer, no caso da felicidade, que ninguém a escolhe tendo em vista outra coisa
além dela própria. No entanto, o próprio Aristóteles afirma que: “[...] dizer que
a felicidade é o bem supremo parece um truísmo” (EN, I, 7, 1097b). Segundo
ele, o bem supremo é um conceito que existe basicamente como idéias, sendo
alvo de uma busca constante por parte dos homens. Com efeito, o bem supremo não passa de uma espécie de causa motora, que existe somente enquanto
conceito. Mas, é a partir dele, que o homem deve guiar toda a sua vida.
A “[...] felicidade ninguém escolhe por causa das várias formas de excelência, nem, de um modo geral, por qualquer outra coisa além dela mesma”
(EN, I, 7, 1097b). Buscada em si mesma, ela é “algo absoluto e auto-suficiente”,
sendo também a “finalidade da ação”, de modo que o fim a ser alcançado é ela
própria. Portanto, a felicidade diz respeito a uma espécie de fim último bom por
si mesmo, para além do qual, ou não há, ou não necessita haver, estruturalmente, nenhum outro fim. Assim posto, ela deve ser “para o homem a plenificação”
do que ele realmente é, representando, assim, um fim em si mesma. Pois, todo o
agir humano é fundamentado a partir da felicidade, que pode não somente ser
entendida como um fim, mas também como um primeiro princípio.
A felicidade deve ser entendida como uma atividade e não como um
mero estado de ânimo ou de satisfação instantânea presente no ser humano.
Assim como o bem, ela é considerada como sendo um fim último, inerente à
própria ação ou atividade. Falar do bem, entendido como fim do homem, significa falar de algo que é objeto de desejo e de tendência por parte do próprio homem. Por ser algo que ainda não se realizou, mas que justamente por isso quer
se realizar e deve poder ser realizado, “[...] o bem não é apenas um ser que se
deve conhecer, mas também um dever ser que se deve realizar” (BERTI, 1998,
p. 119). A felicidade também pode ser vista como uma potencialidade, ou seja,
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como algo que pode vir a se realizar. Ela é assim entendida como a finalidade da
ação, a partir da própria ação, mas também como um fim inerente ao decorrer
do agir e determinado pela virtuosidade da própria ação.
Na Ética a Nicômacos, Aristóteles faz menção à possibilidade de a felicidade somente ser obtida em uma vida futura, somente depois da morte. Não
obstante, segundo o contexto da Ética grega, a felicidade é algo que deve se
realizar aqui, no interior da polis, a partir da mais digna atividade humana. O
homem, em sentido aristotélico, não pode ter por objetivo coisas imutáveis e
eternas, ou seja, coisas que transcendam o mundo sensível.8 No entanto, a felicidade, é considerada “[...] algo permanente e não facilmente sujeito a mudanças,
enquanto a roda da fortuna pode muitas vezes dar uma reviravolta completa
em relação ao mesmo homem” (EN, I, 10, 1100a).
A felicidade, associada ao modo de agir ou de como a ação é realizada,
depende da virtude e apenas secundariamente dos bens exteriores. Ademais, o
bem e o bem feito residem no bem fazer. O bem que a felicidade representa para
o homem é de natureza absoluta, não porque todos a desejam e sim porque é
imanente à atualidade vivida da ação. Por isso, deve estar em conformidade
com a melhor e mais perfeita virtude, uma vez que a ação virtuosa implica na
faculdade característica do homem. Portanto, o estar feliz não tem sentido se
não forem consideradas as formas para a obtenção da felicidade.
Sendo a virtude a disposição de caráter que conduz ao melhor fim (de
acordo com a regra moralmente certa), a ação virtuosa é boa e nobre. Segundo
Aristóteles, o homem deve necessariamente agir, e agir bem. Pois é na ação que
se impõe a qualificação de um ser moral (virtuoso). Levando isso em conta, e
dado que a virtude é necessária à boa ação, então é a ação virtuosa que caracteriza a felicidade.9
A felicidade, por excelência, consiste em uma atividade. Segundo
Aristóteles, somente uma boa ação pode ter um bom fim (enquanto satisfação pessoal). No entanto, é correto dizer que a felicidade reside na satisfação
íntima proporcionada pela virtuosidade da própria ação, tal como vivida inte Afirmar que um homem, somente depois de morto pode, com segurança, ser considerado feliz,
significa para Aristóteles, apenas constatar que: “[...] somente quando um homem está morto
pode com certeza ser qualificado de feliz, por estar afinal salvo dos males e infortúnios” (EN,
I, 10, 1100 a).
9
Supõe-se, com efeito, que não basta apenas possuir a virtude, mas é preciso forçosamente exercitá-la, ao passo que ela é fundamentalmente “decisiva à definição da felicidade”. Considerando que somente um homem virtuoso pode ser feliz, cabe ressaltar que é a partir da prática de
atos virtuosos que os homens se tornam virtuosos, assim como se tornam justos aqueles que
praticam atos justos.
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riormente por quem a efetua, visto que é mediante a ação que os indivíduos
são qualificados de morais ou não e que as “ações virtuosas se adquirem pela
prática” de atos justos e voluntários. As virtudes podem ser resumidas como
as formas efetivas de agir mediante a eleição cuidadosa e deliberada. Elas são,
segundo a concepção aristotélica, as verdadeiras determinantes das melhores
formas do agir, tendo-se em vista o melhor fim possível (a felicidade). Portanto,
a felicidade se faz ou se constrói no decorrer da própria ação, sendo vivida a
cada momento por quem age. A felicidade pode ser entendida essencialmente
como energia, ação ou atividade: somente o homem ativo é capaz de realizar-se,
dia após dia.
Com efeito, a Ética aristotélica é uma teleologia (τελεολογία). Se a felicidade é, ao mesmo tempo, a causa e o fim, a eficiência da causa está na realização da ação, no seu próprio fim (τέλος). A idéia do télos deve, portanto,
necessariamente, estar presente do início ao fim da ação. Na medida em que
não é somente um mero fim, mas também o motivo de todo o agir. O fim (a
felicidade) sempre deve ser o último a ser executado e em contrapartida, o primeiro no propósito.
Enfim, o melhor momento para viver a felicidade é o agora da ação praticada: e, visto que não existe um caminho propriamente dito para a felicidade,
então, o caminho é ela mesma. Portanto, ser feliz consiste em viver bem e agir
em perfeito acordo consigo mesmo sendo que, a felicidade é a atividade condizente com o tipo de final que diz respeito à ação praticada, tendo em vista o
fim ao qual ela se destina.
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