O SISTEMA LEXICO-GRAMATICAL E O ENSINO DE LÍNGUA PARA ESTRANGEIROS Leiko Matsubara MORALES (Universidade de São Paulo) Resumo: A Gramática Sistêmico-Funcional (GSF) afirma que a língua, um sistema semiótico, realiza significados através de escolhas no sistema léxico-gramatical. Porém, para o aprendiz brasileiro de japonês em fase inicial, essa escolha requer uma reflexão. O japonês é uma língua de tipologia SOV, enquanto o português é uma língua SVO. Além disso, o japonês apresenta um léxico muito diferente da língua portuguesa. Portanto, tanto o léxico quanto a gramática causam problemas a esse estudante. Proponho a inserção de algumas palavras portuguesas na sintaxe japonesa para facilitar a aprendizagem, pois isto ajuda o aprendiz a distinguir mais claramente os elementos morfossintáticos da língua-alvo. Palavra-chave: GSF, contexto, pragmática, uso 1. Introdução Este trabalho resulta de uma reflexão quanto ao ensino de língua japonesa para aprendizes universitários brasileiros, descendentes e não-descendentes de japoneses, sem contato com a língua japonesa, além do espaço da sala de aula. Além do livro didático adotado em sala de aula, cujo enfoque se centra na gramática normativa, utilizamos alguns exercícios de aplicação elaborados pelo professor. Não obstante o fato de cada capítulo apresentar um propósito definido, com um vocabulário do cotidiano do aprendiz universitário, ainda assim observaram-se dificuldades na assimilação do léxico, decorrentes das diferenças fonéticas, sintáticas e pragmáticas. Partindo dos pressupostos teóricos apregoados pela Gramática Sistêmica Funcional (GSF), no que diz respeito principalmente à metafunção interpessoal e à seleção lexico-gramatical, focalizaremos a questão do léxico no contexto situacional. VII CONGRESSO BRASILEIRO DE LINGÜÍSTICA APLICADA - 2004 ALAB - Associação de Lingüística Aplicada do Brasil 1 2. Pressupostos teóricos Todo falante, durante o processo de comunicação, faz seleção léxico-gramatical adequada ao contexto cultural e situacional, visando obter melhor resultado nessa comunicação. Os sistemicistas exemplificam a correlação contexto versus língua (Ventola: 1995). Mas no contexto de ensino de língua estrangeira, o termo ‘contexto’ é ainda impreciso e de difícil apreensão por estrangeiros (Berry 1980/1989; Martin 1984). Assim, quando as línguas são muito distantes - como o português e o japonês, principalmente no que diz respeito ao vasto inventário lexical e com características próprias geradas por fatores extralingüísticos - a escolha de uma palavra implica necessariamente um determinado contexto de situação e uma relação pessoal específica. Em outras palavras, cada palavra carrega diversos significados simultâneos: experimental, interpessoal e textual (Halliday: 1985, 1994). No caso do japonês esta característica fica ainda mais patente: a escolha dos pronomes pessoais, objeto dos capítulos iniciais de qualquer livro didático, traz marca de seu gênero, implicando uma determinada relação interpessoal. Watakushi, watashi e boku são alguns dos exemplos mais comuns para expressar o “eu”, primeira pessoa do singular, não só diferindo no seu referencial mas também indicando a posição social ou hierárquica no contexto de uso daquele falante. 3. Metodologia de pesquisa Os dados foram coletados através de método observacional-participativo, durante o primeiro semestre de 2004. A disciplina observada foi Língua Japonesa I1, disciplina obrigatória ou eletiva, valendo crédito para alunos da graduação ou de outras unidades. A classe era constituída de alunos descendentes e não-descendentes de japoneses, assimétricos entre si no conhecimento lingüístico. A faixa etária variou dos 20 aos 30 anos, majoritariamente. Num semestre regular são ministradas três aulas por semana, das quais uma foi destinada para a prática lingüística. Até os anos anteriores, todas as aulas eram voltadas VII CONGRESSO BRASILEIRO DE LINGÜÍSTICA APLICADA - 2004 ALAB - Associação de Lingüística Aplicada do Brasil 2 aos estudos morfossintáticos, de cunho eminentemente teórico-acadêmico2. Aprendizes sem o domínio da língua tinham dupla tarefa: dominar a terminologia gramatical japonesa e adquirir o conhecimento empírico da língua. Frente às dificuldades recorrentes enfrentadas por eles, lançamos uma hipótese: se a substituição de uma das aulas teóricas por uma atividade mais prática não compensaria essa dificuldade e conseqüentemente diminuiria a evasão e aumentaria o aproveitamento. Assim, experimentalmente, no primeiro semestre deste ano, uma das aulas semanais foi convertida em prática. Totalizaram-se 17 aulas no semestre, voltadas exclusivamente para a produção oral e escrita. Para melhorar a psicologia da classe, foi introduzido o conceito de peer response “aprendizagem colaborativa”, em que o professor passa as instruções e os aprendizes executam tarefas através da aprendizagem colaborativa (Ikeda: 20043, Nunan: 1993, Reid: 1993). 4. Dificuldades intrínsecas do sistema lingüístico Ressalta-se a distância lingüística entre o japonês e o português, em termos fonético, morfossintático e pragmático. Doi (1985) esclarece as diferenças cruciais em termos fonéticos, diferentemente do português que é uma língua de ritmo acentual de oposição tônica versus átona, o japonês é de ritmo moraico, em que cada unidade é portadora de acento alto e baixo. Morfologicamente, o caráter aglutinante e flexional é um obstáculo adicional, pois implica, além da memorização do vocabulário, a competência gramatical. Para ilustrar questões de estrutura gramatical, seguem-se os exemplos abaixo: Exemplo 1 Eu gosto de sushi. Sushi/ ga/ suki/ desu. (1) 1 (2) (3) (4) Disciplina ministrada no curso de Língua e Literatura Japonesa da Universidade de São Paulo, no primeiro semestre de cada ano. 2 Manifesto meus sinceros agradecimentos às profas. Junko Ota e Grace Rie Okata pela colaboração e aplicação experimental dessa modalidade de aula durante o primeiro semestre de 2004. 3 Palestra “A aula de língua japonesa através da aprendizagem colaborativa: peer response” proferida pela profa. Reiko Ikeda, da Universidade Ochanomizu (Tóquio, Japão) na Fundação Japão em São Paulo, em 11 de fevereiro de 2004. 3 VII CONGRESSO BRASILEIRO DE LINGÜÍSTICA APLICADA - 2004 ALAB - Associação de Lingüística Aplicada do Brasil (1) sushi (2) morfema de complemento de desejo (3) gostar (4) morfema de auxiliar verbal de polidez. Exemplo 2 Eu não queria ter sido obrigada a comprar aquele livro. Watashi/ wa/ ano/ hon/ o/ kawa/sa/re/taku/naka/tta/desu. (1) (2) (3) (4) (5) (6) (7) (8) (9) (10) (11) (12) (1) Eu (2) morfema de tópico (3) aquele (4) livro (5) morfema de Objeto Direto (6) raiz verbal comprar (7) auxiliar verbal de voz causativa (8) auxiliar verbal de voz passiva (9) auxiliar verbal de desejo (10) auxiliar verbal de negação (11) auxiliar verbal de ação concluída (12) auxiliar verbal de polidez Do exposto, depreende-se que no exemplo 1 o sujeito lingüístico não é explícito, enquanto no português há duas formas de explicitá-lo: um pelo uso do pronome ‘eu’ e outro pela desinência verbal. No japonês, o morfema ‘ga’ é indicador de complemento de desejo e é usado somente em primeira pessoa; de modo que na terceira pessoa mudase a estrutura gramatical. Assim, esta estrutura é uma fórmula fechada, aplicável exclusivamente para a primeira pessoa e deve ser, preferencialmente, assimilada através dos drills (exercícios de repetição)4 para a sua memorização. Essa dificuldade restringirá o tipo de léxico que será apresentado ao drill – ou seja, o professor deverá ser exímio controlador do léxico e das estruturas gramaticais. VII CONGRESSO BRASILEIRO DE LINGÜÍSTICA APLICADA - 2004 ALAB - Associação de Lingüística Aplicada do Brasil 4 No exemplo 2, as unidades constitutivas revelam ainda mais diferenças entre as duas línguas. Enquanto há uma ordem canônica, na combinação dos morfemas de auxiliares verbais5 que operam somente nessa ordem, à medida que os aprendizes são expostos às construções mais complexas, os aspectos próprios da língua (aglutinante e flexional) vêm à tona, podendo haver prejuízo para a aprendizagem se essas construções são introduzidas a destempo. 5. O que selecionar e como aplicar? A GSF apregoa que um falante faz escolha lexico-gramatical no processo de comunicação; no ensino de LE, torna-se ainda mais relevante reduzir opções abertas de estruturas gramaticais e escolhas lexicais. A tendência metodológica é do ensino comunicativo; no entanto, em se tratando de japonês, é importante uma dose maior de exercícios de repetição para a sua fixação. A metodologia de ensino como LE desenvolvida no Japão preconiza o ensino mediado por bunkei (estruturas gramaticais), uma vez que o drill centra-se na memorização das estruturas e não focaliza as unidades constitutivas. Em termos sintáticos, a prática de drill com pequenas variações amplia significativamente a oportunidade de o aprendiz praticar maior número de vezes articulação lingüística. Analisando o contexto micro e imediato de sala de aula, observa-se dupla dificuldade em memorizar um novo vocabulário e ao mesmo tempo articular gramaticalmente. Por exemplo, se o objetivo de uma aula é a introdução do objeto direto, o professor deve fazer uma prévia seleção de palavras para o drill de substituição6. Durante os exercícios de drill, no início, somente com complementos de palavras japonesas, foi observada uma breve estagnação até que palavras do universo do cotidiano do aluno fossem inseridas: caipirinha, batida, quentão etc. Desde então, a dinâmica melhorou e a participação dos alunos aumentou. Quando o professor permitiu incluir caipirinha e batida, alguns alunos voluntariamente arriscaram a responder em 4 Vide anexo 1: tipos de drill. Aqui não há equivalência com os ‘verbos auxiliares’ do português ou inglês, uma vez que os ‘auxiliares verbais’ são morfemas sem autonomia morfológica. 6 Nesse tipo de exercício, normalmente mantém-se a estrutura gramatical e substitui o complemento verbal (objeto direto). 5 VII CONGRESSO BRASILEIRO DE LINGÜÍSTICA APLICADA - 2004 ALAB - Associação de Lingüística Aplicada do Brasil 5 frases negativas, de modo a romper aquele padrão uniforme de exercício e avançar nos exercícios de aplicação7. Outra técnica introduzida foi de peer work, “aprendizagem colaborativa” de modo que a elaboração de exercícios escritos fosse feita entre os colegas da classe e não mais individualmente. Deliberadamente os grupos de alunos foram compostos de modo que houvesse melhor distribuição de conhecimento da língua, alternando aqueles com maior e menor conhecimento. Observou-se maior participação na execução de tarefas e tanto os alunos com e sem conhecimento foram beneficiados, já que o “filtro afetivo”8 diminuiu em relação aos “erros”9 e aumentou um clima de solidariedade entre os alunos. Para evitar produção desenfreada de interlíngua, tampouco de processo de pidgnização em sala de aula, a escolha do léxico foi um ato consciente, ficando restrito às palavras sem correspondência na língua-alvo ou de origem inglesa, que de alguma forma facilitam na memorização. É importante a conscientização por parte dos professores que durante a aprendizagem ocorrem dois processos distintos: memorizar o léxico e lidar com questões gramaticais; isso requer várias habilidades simultaneamente. A metafunção inerpessoal é outra questão que está imbricada nos primeiros diálogos produzidos em japonês. A simples expressão “muito prazer” pode estar imbuída de diferentes graus de polidez: dôzo yoroshiku ou dôzo yoroshiku onegai shimasu ou, ainda, dôzo yoroshiku onegai itashimasu. (em ordem crescente de polidez), não devendo sua diversidade ser apresentada de uma única vez. E por fim, é necessário que as estruturas gramaticais sejam apresentadas dentro de um contexto de situação, seja na forma de diálogo, seja na forma de pequenos trechos. 6. Considerações finais A teoria e a prática representam as extremidades de um mesmo continuum, por isso é preciso que haja uma comunicação entre ambas, sem que se percam as características de cada uma delas. Embora, estejamos bem alicerçados na teoria GSF, sua contribuição está na descrição sistematizada e metodológica como a questão do 7 Vide anexo 2: drill de OD. KRASHEN, S (1992). 9 CORDER, S. P (1992). VII CONGRESSO BRASILEIRO DE LINGÜÍSTICA APLICADA - 2004 ALAB - Associação de Lingüística Aplicada do Brasil 8 6 contexto é esmiuçada. No caso do japonês, é importante sempre levar em consideração o léxico e o contexto de produção, já que isso implica um léxico específico e a escolha de um elimina necessariamente o outro. É importante sempre levar em conta o perfil do aprendiz, principalmente a sua faixa etária e seu aspecto profissional para ‘selecionar’ o que deve ser dado numa determinada aula e não sobrecarregá-lo com todas as possibilidades que a língua oferece. A aula deve ser dosada com uma boa introdução, de modo que se dê um suporte cultural; devem seguir-se exercícios de fixação para trabalhar a articulação lingüística e, no final, exercícios de aplicação, que ilustrem os contextos de uso. Os dados coletados ainda serão analisados e processados, de modo que no futuro próximo teremos números mais precisos para a sua publicação. Anexo 1: Tipos de drill 1. Drill de repetição O professor (P) apresenta o modelo e o aprendiz (A) repete: P: Yasui desu ka. É barato? A: Yasui desu ka. É barato? P: Takai desu ka. É caro? A: Takai desu ka. É caro? 2. Drill de ampliação É um tipo de repetição, mas o modelo de repetição torna-se extenso. P: Yasui desu ka. É barato? A: Yasui desu ka. É barato? P: Shinbun wa yasui desu ka. O jornal é barato? A: Shinbun wa yasui desu ka. O jornal é barato? 3. Drill de desenvolvimento O aprendiz insere novos complementos, tornando a frase extensa. P: Yasui desu ka. É barato? VII CONGRESSO BRASILEIRO DE LINGÜÍSTICA APLICADA - 2004 ALAB - Associação de Lingüística Aplicada do Brasil 7 A: Shinbun wa yasui desu ka. O jornal é barato? P: Pizza wa oishii desu ka. A pizza é saborosa? A: São Paulo no pizza wa oishii desu ka. A pizza de São Paulo é saborosa? 4. Drill de substituição Exercício que visa a fixação das estruturas gramaticais. P: Yasui – yasui desu ka. Takai Barato - É barato? Caro A: Takai desu ka. É caro? P: Oishii Saboroso A: Oishii desu ka. É saboroso? 5. Drill de transformação Exercícios de mudança estrutural. P: Yasui desu ka. É barato? A: Yasukunai desu ka. Não é barato? P: Takai desu ka. É caro? A: Takakunai desu ka. Não é caro? 6. Drill de junção Exercício que visa juntar duas frases. P: Oishii desu, yasui desu. É saboroso, é barato. A: Oishikute, yasui desu. É saboroso e barato. P: Yasui desu, chiisai desu. É barato e é pequeno. A: Yasukute, chiisai desu. É barato e pequeno. 7. Drill de perguntas e respostas O professor pergunta e o aprendiz responde ou vice-versa. P: Yasui desu ka. É barato? A: Hai, yasui desu. Sim, é barato. VII CONGRESSO BRASILEIRO DE LINGÜÍSTICA APLICADA - 2004 ALAB - Associação de Lingüística Aplicada do Brasil 8 P: Takai desu ka. É caro? A: Iie, takakunai desu. Não, não é caro. Anexo 2: Drill de substituição: exercícios de substituição de OD. P: Miruku Leite A1: Miruku o nomimasu. Tomo leite. P: Ocha Chá. A 2: Ocha o nomimasu. Tomo chá. P: Kôhii Café. A 3: Kôhii o nomimasu. Tomo café. P: Agora façam você mesmos! A4: Guaraná o nomimasu. Tomo guaraná. A 5: Caipirinha o nomimasu. Tomo caipirinha. A 6: Caipirosca o nomimasu. Tomo caipirosca. A 7: Uísque o nomimasu. Tomo uísque (estrangeirismo) P: Uisukii o nomimasu. Tomo uísque. A 7: Hai, uisukii o nomimasu. Sim, tomo uísque (com fonética japonesa) P: Yoku dekimashita. Muito bem. 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