1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ JULIANA HORSTMANN AMORIM TRATADOS DE AMOR: UMA ANÁLISE DAS OBRAS DE PIETRO BEMBO (1505) E DE TULLIA D’ARAGONA (1547) NA TRADIÇÃO FILOGRÁFICA DO RENASCIMENTO ITALIANO CURITIBA 2010 2 JULIANA HORSTMANN AMORIM TRATADOS DE AMOR: UMA ANÁLISE DAS OBRAS DE PIETRO BEMBO (1505) E DE TULLIA D’ARAGONA (1547) NA TRADIÇÃO FILOGRÁFICA DO RENASCIMENTO ITALIANO Monografia apresentada à disciplina de Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica como requisito para a conclusão do Curso de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Profª. Drª. Ana Paula Vosne Martins CURITIBA 2010 3 AGRADECIMENTOS Agradeço a todos que de alguma forma fizeram parte deste trajeto. Especialmente à minha família, meu pai Clésio e sua esposa Mirian, pelo carinho e pelo apoio. Em particular às minhas queridas: minha mãe Ingrid e minha irmã Anna, pela compreensão durante os longos dias de esforços para manter o silêncio da casa, pelos momentos em que dividimos anseios e expectativas e, sobretudo, pelo indescritível amor e companheirismo. Vocês são fundamentais. À professora e orientadora Ana Paula Vosne Martins pela sua paciência e pelo trabalho cuidadoso que oferece a cada um de seus orientandos, por sua postura séria e exigente e ainda assim, compreensiva, que continuamente nos incita a ir mais longe. Aos colegas do grupo PET História que certamente contribuíram para minha formação acadêmica, Às grandes amigas que me acompanharam durante a graduação, Roberta Teixeira, Noemi Santos, Tauane Mendonça e Rebecca Freitas, indispensáveis para a alegria cotidiana, com os quais aprendi lições para vida e compartilhei alegrias, festas, realizações, ideias, anseios, medos e por vezes tristezas que sempre nos ensinaram o valor da amizade. E não posso deixar de agradecer a uma antiga amiga, com quem festejei o início desta aventura acadêmica e com quem irei comemorar minha chegada ao final, Amanda que sempre esteve ao meu lado, mesmo quando a distância se fez sentir. Vocês todos são alegrias e memórias inesquecíveis. 4 RESUMO O tema que impulsionou esta pesquisa é o amor, não o amor cantado pelos poetas, mas o amor pensado filosoficamente no interior das cortes renascentistas. Tendo em vista que a produção cultural no Renascimento é bastante complexa estabelecemos alguns marcos delimitativos tomando como referência a definição formulada por Paul Oskar Kristeller, segundo o qual o Renascimento é um período cujas relações com a cultura e as fontes clássicas são fundamentais para a definição tanto do vocabulário quanto das diferentes áreas de estudo. Com enfoque na tradição filosófica sobre o amor, utilizamos como fontes para nosso estudo dois tratados intitulados Os Assolani (1505) de Pietro Bembo e Sobre a Infinidade do Amor (1547) de Tullia D‟Aragona. Ambas as obras tratam do mesmo tema, porém de maneiras distintas. Nesse sentido, preocupamo-nos também com outra questão, não menos importante, que são os lugares de onde os sujeitos falaram, escreveram e agiram, uma vez que estes lugares não só foram construídos pelos próprios a partir de suas inserções nas relações sociais, mas também pela memória histórica. Palavras chave: Renascimento italiano; Tratados sobre o amor; Escrita de mulheres 5 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 06 1) MARSÍLIO FICINO E A TRADIÇÃO FILOGRÁFICA 10 2) OS ASSOLANI DE PIETRO BEMBO E AS NOVAS SOCIABILIDADES MODERNAS 25 3) UMA HONESTA CORTESÃ NO RENASCIMENTO ITALIANO: TULLIA D‟ARAGONA 38 CONSIDERAÇÕES FINAIS 53 FONTES 57 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 58 6 INTRODUÇÃO O tema que impulsionou esta pesquisa não tem recebido muita atenção por parte dos historiadores do Renascimento, talvez porque até bem recentemente tenha sido mais abordado pelos estudos literários. Este tema é o amor, não o amor cantado pelos poetas, mas o amor pensado filosoficamente no interior das cortes renascentistas. Tendo em vista que a produção cultural no Renascimento é bastante diversificada e complexa devido à variedade de temas e abordagens, foi preciso estabelecer alguns marcos delimitativos. Para tanto, tomamos como referência a definição formulada por Paul Oskar Kristeller, segundo o qual o Renascimento é um período cujas relações com a cultura e as fontes clássicas são fundamentais para a definição tanto do vocabulário quanto das diferentes áreas de estudo. Esta definição, entretanto, é incompleta se não levarmos também em conta a grande quantidade de fontes da cultura e do conhecimento humanista no Renascimento, como a poesia tardo-medieval, o pensamento escolástico e as fontes árabes e judaicas. Outra questão, não menos importante, são os lugares de onde os sujeitos falaram, escreveram e agiram, uma vez que estes lugares não só foram construídos pelos próprios a partir de suas inserções nas relações sociais, mas também pela memória histórica. A historiografia do Renascimento italiano cristalizou a imagens de homens poderosos que patrocinaram a cultura, as letras e as artes e daqueles que foram patrocinados pelos poderosos que, de acordo com a clássica interpretação Jacob Burckhardt, teria resultado numa bem sucedida articulação entre cultura e poder. Portanto, a memória histórica referente ao Renascimento nos lembra alguns nomes que decisivamente estão associados ao humanismo: Maquiavel, Erasmo, Thomas More, Carlos V, por exemplo, além dos nomes de poetas, filósofos e artistas tão comumente associados ao período. Estes indivíduos parecem ter um lugar „natural‟, e, portanto indiscutível, nesta época. No entanto, esta cena não está completa visto que algumas mulheres neste período exerceram papéis tão importantes quanto os homens poderosos, os poetas, os artistas e os cortesãos. 7 Com enfoque na tradição filosófica sobre o amor, utilizamos como fontes para nosso estudo dois tratados intitulados: Os Assolani, obra que é considerada capital para compreender o que se denominou petrarquismo, publicada em 1505 por Pietro Bembo e Sobre a Infinidade do Amor, de 1547 de Tullia D‟Aragona. Ambas as obras foram produzidas no Renascimento italiano, entretanto por indivíduos bastante distintos: Bembo era uma figura representativa da classe intelectual do final do século XV e início do XVI, enquanto Tullia era uma honesta cortesã muito culta que recebeu uma educação humanista patrocinada por seu pai, o que lhe propiciou um equilíbrio entre a profissão de cortesã e as atividades de poeta e pensadora. Pretendemos, dessa forma, ressaltar as diferenças presentes em ambas as obras que tratam de um mesmo tema de maneiras diferentes. Desde Safo, passando pelos trovadores que cantavam o amor delicado, até Dante e Petrarca, o amor esteve sempre no horizonte da escrita e da sensibilidade poética. Certamente que esta definição de amor já havia sido formulada muito antes e os pensadores renascentistas se inspiraram particularmente nos diálogos platônicos para formular sua definição de amor. Num primeiro momento realizamos uma análise bibliográfica sobre o Renascimento italiano e também sobre a concepção filosófica sobre o amor que serviu de base teórica para a produção dos tratados analisados. Assim, estruturamos a monografia em três capítulos. Decidimos iniciar nossa pesquisa ressaltando o lugar da discussão sobre o amor no debate filosófico renascentista e alguns dos seus mais importantes autores. Dessa forma, no primeiro capítulo, intitulado “Marsílio Ficino e a tradição filográfica” tomamos como principal referência o livro que talvez seja o texto inaugurador desta tradição humanista e que pode ser considerado uma representação típica do círculo neoplatônico florentino, o comentário ao “Banquete” de Platão, escrito em 1469 por Marsílio Ficino sob o título em vernáculo “De amore”. A obra versa sobre novos sentimentos e sobre a contemplação como aspiração ideal de vida. A influência ficiniana possibilitou aos jovens autores do cinquettento a pensar o conceito de amor como algo mais espiritual do que físico. Por considerarmos importante uma reflexão, ainda que pormenorizada, das principais idéias de 8 Platão interpretadas por Ficino, no primeiro capítulo também estudamos as obras “O Banquete” e “Fédon” de Platão. No segundo capítulo, intitulado “Os Assolani de Pietro Bembo e as novas sociabilidades modernas”, analisamos o tratado produzido por Bembo em consonância com o os novos espaços de sociabilidade que passam a se configurar nesse contexto: os ambientes das cortes. Na análise da obra enfocamos principalmente o estilo que o autor emprega para discorrer sobre o amor, bem como a maneira como conduz o diálogo e o desfecho. Os Assolani se estrutura a partir de seis personagens que nos são apresentadas e que travam um enfrentamento dialético ao discutirem sobre temas espirituais, entre esses o amor. A obra é considerada um dos primeiros grandes tratados filográficos do Renascimento. Nela, Bembo defende que o amor é um meio de salvação espiritual propiciada aos homens. Notamos três óticas diferentes sobre o mesmo tema através de um entrelaçamento que Bembo faz da filosofia e da literatura, mas o que podemos destacar nesta sequência é a valorização do amor espiritual. No terceiro e último capítulo “Uma honesta cortesã no Renascimento italiano: Tullia D‟Aragona” analisamos a obra de Tullia intitulada “Sobre a Infinidade do Amor”. A questão principal da obra, como já sugere o título, é saber se o amor tem fim ou não. Utilizando estratégias discursivas muito bem elaboradas, Tullia endereça a pergunta a seu convidado, o filósofo aristotélico Varchi, entretanto, ao longo da obra observamos que Tullia não apenas ativa o diálogo com suas questões, mas assume o papel de autora. É perceptível a complexidade dos temas abordados por ela, que para além da discussão sobre o amor, discorre também sobre o conhecimento e sobre as relações de gênero. Atentamos, nesse sentido, para as discrepâncias entre homens e mulheres no acesso à educação, e, por conseguinte à escrita. Assim, consideramos necessário não apenas um enfoque na constatação do distanciamento das mulheres no acesso à educação, mas também nas suas explicações. Nas considerações finais oferecemos algumas conclusões sobre o trabalho realizado com intuito de apontar para as diferenças presentes nos dois tratados, já que ambos tratam sobre o mesmo tema de forma bastante diferente. Tendo em vista que a apropriação do passado nunca é linear, o gênero pode ser utilizado como uma chave para compreender as diferenças sociais e culturais na 9 maneira que as apropriações culturais são feitas. Pretendemos, dessa maneira, uma compreensão mais plural do passado através da interpelação da memória histórica no sentido de apontar uma experiência, quase desconhecida na memória histórica, referente ao Renascimento, que é a produção de Tullia D‟Aragona. 10 Capítulo 1: Marsílio Ficino e a tradição filográfica Poderás descer ao nível dos seres baixos e embrutecidos; poderás, ao invés, por livre escolha da tua alma, subir aos patamares superiores, que são divinos. Ó suprema liberalidade de Deus Pai, ó suprema e maravilhosa beatitude do homem! A ele foi dado possuir o que escolhesse: ser o que quisesse Quem não admiraria esse novo camaleão? Ou que outra coisa mais digna de ser admirada? (Pico della Mirandola – A Dignidade do Homem) Há uma longa e consolidada tradição filosófica que refletiu sobre o amor. De Safo, aos trovadores medievais, passando ainda por Dante e Petrarca o amor esteve sempre no horizonte da escrita e da sensibilidade poética. Os humanistas renascentistas também discorreram sobre o tema, no entanto, de forma bastante diferente da escrita poética. Nesse contexto o tema foi pensado através do viés filosófico, de forma diferente, portanto, da escrita poética. Nesse sentido, a ênfase dos humanistas não recaía no sentimento amoroso, mas nas qualidades do amor em si, compreendido como o caminho à verdade e à beleza. Com enfoque nessa tradição visamos compreender de que forma o amor foi problematizado pela reflexão filosófica do século XVI, através da análise de dois tratados sobre o amor produzidos no Renascimento italiano intitulados Os Assolani, de 1505, do humanista Pietro Bembo, que foi o primeiro a estabelecer as regras da língua italiana de modo seguro e coerente com base nas práticas dos maiores escritores toscanos do Trecento, e Sobre a infinidade do Amor, de 1547, de Tullia D‟ Aragona, uma “honesta cortesã”, como então eram chamadas as cortesãs cultas, refinadas e muito bem relacionadas com os homens de letras e os poderosos. A definição de amor presente nestes tratados já havia sido formulada muito antes e os pensadores renascentistas se inspiraram particularmente nos diálogos platônicos. Nesse sentido, para compreender a produção dos tratados de Pietro Bembo e de Tullia D‟Aragona, consideramos necessário atentar para a tradição filográfica, ressaltando o lugar da discussão sobre o amor no debate filosófico e 11 alguns dos seus mais importantes autores. Para tanto, tomamos como principal referência o livro que talvez seja o texto inaugurador desta tradição filográfica. Patrocinado pelos Médici, o De Amore, Commentariumin Convivium Platonis, foi escrito em 1469 por Marsílio Ficino, importante humanista italiano que traduziu e difundiu as principais obras de Platão. A obra de Ficino pode ser considerada uma representação típica do círculo neoplatônico florentino. Vinculado a um projeto de Cosme de Medici a Academia de Careggi - que criou uma forma de pensar, de sentir e de viver – Marsílio Ficino produziu a obra que em 1475 sofreu algumas modificações. O manuscrito ganhou um capítulo inexistente na versão anterior. Existe ainda uma terceira versão em língua vulgar, intitulada De amore, traduzida por Ficino. A edição latina da obra, incluída na tradução das obras de Platão e seus comentários, editada em 1484, teve ao menos vinte e três edições até 1602. A influência do Comentário esteve assegurada entre as classes cultas, mas sua repercussão ultrapassou muito os limites dos tratados filosóficos.1 De amore versa sobre novos sentimentos e sobre a contemplação como ideal de vida. Na esfera filosófica do Quattrocentos o amor já havia merecido atenção. Fora tratado como a base da família, ou em sua função cívica. A partir de Ficino, no entanto, o enfoque filosófico do amor converteu-se ao platonismo. Ficino iniciou uma nova forma de abordagem filosófica e de escrita -a dialéticareferente ao amor. Desse modo, atentando para esse novo estilo de tratar o assunto e possuindo o amor como referência central, começamos pelo contexto no qual Ficino viveu e produziu. 1 Dentre as diversas traduções e edições no século XX, as principais foram a R. Marcel, Commentaire sur Le Banquet de Platon (Les Belles Lettres, Paris, 1956), a de K. P. Hasse (F. Meiner, Leizig, 1914), reeditada em 1984, com introdução e notas de P. R. Blum, e por fim a adaptação italiana de G. Rensi (Carabba, Lanciano, 1934). Há também, entre as edições modernas, a edição romana de 1942, outra inglesa de S. R. Jayne (University of Missouri, Columbia, 1944), e também uma tradução para o espanhol de A. R. Díaz, editada pela Universidade de Cuyo em 1948. A versão do Commentarium in Convivium Platonis utilizada para a presente pesquisa foi realizada sobre o texto que R. Marcel considerou ser sua versão definitiva: um manuscrito autógrafo, conservado na Biblioteca do Vaticano (Vat. Lat. 7705). A tradução utilizada é a terceira edição, de 1994, da tradução realizada por Rocío de La Villa Ardura em Madrid em 1986, que visou seguir, conforme o possível, a pontuação e a terminologia ficiniana apesar das correlações feitas de termos latinos para o castelhano, atentando para a evolução semântica das línguas. 12 No interior de um amplo panorama cultural do Quattrocento, dominado pelas preocupações éticas presentes no epicurismo, no estoicismo e na escolásticatomista, o trabalho de Ficino tem uma grande importância ao reavivar a tradição platônica na história do pensamento ocidental. Os humanistas retomam os textos clássicos e decidem reinterpretá-los com outras chaves. Há um primeiro momento de assimilação da cultura romana e posteriormente do mundo grego. Vale ressaltar que o interesse pela Antigüidade Clássica greco-romana cresceu e os renascentistas visaram reinterpretar o passado considerado fundador da civilização ocidental. Foi na conjuntura da segunda metade do século XV que o platonismo encontrou grande acolhida nos meios intelectuais florentinos. No lugar do formalismo escolástico surgiu outro conteúdo. Platão tornou-se conhecido no Ocidente e com ele surgiu uma nova forma de pensar. Desde a tomada de Constantinopla por Maomé II em 1453, sábios gregos emigraram para a Itália levando manuscritos, alguns inéditos na Europa, de Platão, Plotino e Aristóteles. Além de propiciar contatos com mestres nativos da língua grega, deu-se o ressurgimento do interesse pela literatura antiga igualmente. Deste modo, sob o mecenato de Cosme de Médici grande parte da obra de Platão foi traduzida e foi fundada em Florença a Academia Platônica, por obra de Marsilio Ficino. Esta foi a primeira e o modelo das inúmeras academias não oficiais do Renascimento. Com a criação da Academia Cosme de Médici vislumbrava a criação de um utópico Estado platônico em Florença. Na academia de Careggi criou-se uma forma de pensar, de sentir e de viver. O seleto grupo de freqüentadores da academia, encarnando os princípios do programa ficiniano, estabeleceu um foco de difusão e implantação de uma ideologia que, somado às ações políticas de Lorenzo (filho de Cosme), se projetou pela cidade florentina e também em outros estados italianos. Isso também está relacionado ao fato de que várias repúblicas mantinham o equilíbrio social num ambiente de cortes. A figura de maior destaque deste cenário foi Marsílio Ficino. Nascido em 1433, recebeu sua educação em Florença e apesar de ser um verdadeiro humanista em muitos aspectos, vide a diversidade de seus interesses e ocupações, pode-se dizer que Ficino também foi médico, astrólogo, religioso, 13 filósofo e músico. Iniciou seus estudos de grego com o propósito de analisar diretamente as fontes da filosofia platônica. Entre 1469 e 1474 redigiu sua principal obra filosófica, Theologia Platonica. Foi sacerdote, desfrutou de vários benefícios eclesiásticos e chegou a ser cônego da catedral de Florença. É importante lembrar que o Renascimento é uma época complexa e abarca, como qualquer outro período, muitas diferenças cronológicas, regionais e sociais. O Humanismo renascentista, segundo a análise do historiador Paul Oskar Kristeller2, pode ser definido de acordo com sua grande diversidade semântica. Foi um movimento cultural complexo que abarcou desde a filologia às artes plásticas. Em seu interior vigoraram muitas correntes e tradições que desafiam qualquer tentativa de descrição geral. É neste período compreendido como Renascimento que o homem adquire uma nova noção do Eu em relação ao Criador e à Sua criação e aperfeiçoa-se enquanto indivíduo na busca da plenitude. Porém, apesar das características de reavaliação, inovação e transformação associadas a este período, se estabelecem múltiplos diálogos de continuidade entre o homem renascentista e o seu homólogo medieval: comungam da mesma metodologia epistemológica. Portanto, a perspectiva de Kristeller acerca da História desconstrói noções que afirmam haver ruptura marcada entre a produção intelectual do medievo e do Renascimento: “Equivocado sería sostener que la literatura clásica estuvo olvidada como um todo, durante la Edad Media, o negar que se estúdio un cierto núcleo de ella.”3 Kristeller analisa de que forma se dá a relação entre a Antiguidade Clássica e o humanismo renascentista. Nesse sentido, para compreender o mapa cultural do período moderno, principalmente da Itália do século XV, o autor propõe uma reflexão sobre a herança clássica, de modo a ressaltar a proximidade cultural entre o Renascimento, a Idade Média e outras tradições: En muchos sentidos, el Renacimiento sigue siendo una época aristotélica, que en parte mantuvo las tendências del aristotelismo medieval y en parte les dio uma 2 KRISTELLER, Paul Oskar. El pensamiento renacentista y sus fontes. Madrid: Fondo de Cultura Economica, 1993. “El pensamiento renacentista y la Antiguidad clásica” e” Los conceptos de hombre en el Renacimiento.” 3 Idem, p 43. 14 dirección nueva debido a la influencia del humanismo clásico y a otras ideas.4 Se uma das características do Renascimento é a retomada dos clássicos da Antigüidade, no que se refere ao universo das artes, da filosofia e da política, não se trata meramente de uma retomada dos temas, mas de uma apropriação e escolha. A relação dos humanistas com as fontes clássicas pode ser compreendida, de acordo com Kristeller, a partir do conceito de apropriação cultural, uma vez que os humanistas visavam, através do estudo dos clássicos, abranger e combinar conhecimentos antigos aos contemporâneos. guiados por el entusiasmo que les producía todo lo antiguo, así como por um programa consciente de imitación y revivificación de la erudición y la literatura antigua, los intelectuales renascentistas tenían um interes mucho más cabal por la literatura antigua que los estudiosos medievales o modernos.5 Nesse ponto, Kristeller enfatiza que a volta à Antiguidade Clássica pelos renascentistas não possuiu um foco único. É necessário atentar para a expansão desse foco. Propõe, então, uma leitura da Antiguidade Clássica através do mapeamento de uma grande quantidade de fontes. O historiador fornece um panorama do quadro clássico, no qual há autores que são mais lidos como Santo Agostinho, Aristóteles e Platão, por exemplo. Enfatiza também a importância de fontes cristãs, bizantinas, o pensamento escolástico, as fontes árabes e judaicas e a poesia tardo-medieval. Ao explanar sobre as diferentes fontes utilizadas pelos humanistas renascentistas, Kristeller propõe ter havido uma leitura clássica através de caminhos diferentes. Nega, portanto, uma noção homogênea da Antiguidade e do Renascimento como sucessor direto da cultura antiga. Afirma o autor: El pensamiento de los siglos XV y XVI pulula de intentos variados por reinstalar posiciones antiguas o medievales especificas, o por llegar a combinaciones nuevas o a soluciones originales. (...) Al 4 5 Idem, p 72. Idem, p 36. 15 enfrentarse a tal labor, los pensadores renacentistas recurrieron a uma variedad de precedentes antiguos y medievales que procuraron adaptar a sus problemas e ideas.6 Dessa forma, tomamos o pensamento renascentista nas suas relações com a Antiguidade Clássica. Notamos que as idéias expostas por Ficino estão profundamente marcadas por uma vasta gama de estudos referentes a diferentes fontes, tanto antigas, quanto medievais. Percebemos que, nesse aspecto, as preocupações de Ficino diferem daquelas explanadas pelos humanistas cívicos. Embora que tanto humanistas cívicos quanto humanistas cristãos tenham compartilhado o ideal da possibilidade do aperfeiçoamento humano, além de uma concepção do conjunto, em que enfocavam perspectivas universais, respeitando as diferenças, os humanistas cívicos pendiam suas questões para assuntos como a liberdade cívica e para o próprio conceito de liberdade. Suas reflexões destinavam-se às categorias políticas e às virtudes necessárias para o sacerdócio do poder. A conservação da liberdade política era muito cara aqueles pensadores que se baseavam principalmente em fontes clássicas. Cabe citar que o humanismo cívico surge num período de crise política italiana, como afirma o historiador Quentin Skinner, “um humanismo enraizado em „uma nova filosofia do engajamento político e da vida ativa‟ e devotado à celebração das liberdades republicanas florentinas.” 7 Os humanistas cívicos acreditavam num melhoramento social e, por conseguinte, individual, através da reflexão sobre o espaço público e as relações de poder. Os humanistas cristãos buscavam aproximações entre o platonismo e o cristianismo e para tal se pautaram em fontes de cunho religioso. Estes não se preocupam tanto com a questão da liberdade, pois buscavam a transformação política, social e moral através da razão vinculada à fé8. Como é o caso de Marsílio Ficino, que em De Amore expõe uma complexa definição filosófica do amor que formula a partir da releitura que fez de “O Banquete” de Platão, 6 Idem, p 264. SKINNER, Q. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. “A renascença italiana” p. 93. 8 Essa ênfase nas questões religiosas está ligada a um movimento que se iniciou antes do século XV, em meio a um clima de grande misticismo. O movimento humanista e essa busca por reformas espirituais encontram-se no final do século XV na produção erudita de pensadores como Erasmo e Thomas More. 7 16 elaborando uma filosofia que contemplava tanto aspectos filosóficos referentes ao amor em Platão, quanto à espiritualidade cristã. Interessante observar que os homens do Renascimento descobriram a filosofia antiga como um corpo autônomo de pensamento, trataram os pensadores, bem como o pensamento da Antiguidade com autonomia a partir de uma perspectiva que não pode ser descolada da cultura cristã, que conheciam sobremaneira. Notamos, outrossim, que a renovação pela fé, proposta pelos humanistas, não visava promover um fechamento do individuo em si. Pelo contrário, as transformações ocorreriam no corpo da coletividade cristã. Nesse ponto, a posição dos humanistas do norte9, frente à questão da transformação da espiritualidade, contribuiu também para as questões políticas que visavam o coletivo. O homem do Renascimento se autoconcebe como um ser dinâmico, percebe o mundo a seu redor, reconhece as possibilidades de transformar a si mesmo, é potencialmente capaz de autocriar-se, de autoprojetar-se e modelar a si mesmo com liberdade. O espírito humano deu-se conta de si. Nesse sentimento de si mesmo a que o homem chega não existe nenhuma revolta contra o divino. Lembramos, por conseguinte, que os pensadores renascentistas estavam muito voltados para a dignidade do homem e com o lugar que este ocupava no universo. Dessa forma, o humanismo, em sua origem moral, cultural e mais literário que filosófico, distingui-se da intenção de dar nova expressão às doutrinas filosóficas de certos pensadores ou escolas antigas em particular. Nesse sentido, é perceptível um distanciamento, no que se refere aos temas abordados por Ficino, daqueles outrora enfocados pelos primeiros humanistas. Ficino desenvolve um marco de referência que não existia entre os primeiros humanistas: confere ao homem uma posição bem definida em um esquematizado sistema metafísico do universo justificando a dignidade do homem10 em função desse sistema. Ficino, desse modo, insiste na universalidade 9 Erasmo de Rotterdam e Thomas More, por exemplo. O humanista Picco De La Mirandola também é um grande exemplo da grande diversidade de correntes filosóficas que permeavam o pensamento humanista. De La Mirandola, em sua obra A dignidade do Homem, apresenta extrema erudição ao se referir a várias correntes de pensamento. Nas diferentes fontes utilizadas por Pico, bem como a ampla gama de citações no decorrer do discurso, é possível verificar muitas referências justapostas, entre as quais se encontram: as 10 17 da mente humana afinada com Deus. O humanista é, portanto, o representante central e mais influente do neoplatonismo renascentista, já que nele se unem a herança filosófica e religiosa medieval e os ensinamentos do platonismo. Foi o único pensador de seu tempo que compôs um sistema filosófico completo e original. Com base na concepção de Kristeller acerca da relação que estabeleceram os humanistas com as fontes clássicas, utilizamos seu conceito de „apropriação cultural‟ para compreender a releitura que Ficino realizou da teoria platônica referente ao amor e à alma. É importante levar em conta que o neoplatonismo renascentista não é apenas um simples fragmento ou uma ramificação do movimento humanista, pois possui um lugar próprio enquanto movimento filosófico e não só como expressão erudita ou literária. O trabalho de Ficino, desse modo, adquire uma grande importância ao reavivar quantitativamente e qualitativamente a tradição platônica na história do pensamento ocidental. O neoplatonismo renascentista coloca, portanto, o amor no centro de suas reflexões filosóficas e para fazê-lo escolhe a forma dialógica, tomando Platão como referência. Consideramos importante nesse aspecto uma reflexão, a respeito das principais idéias de Platão interpretadas por Ficino. Foi Platão que, em certo sentido, combinou as idéias religiosas e filosóficas da alma e considerou que esta era o princípio animador do corpo e um agente moral e metafísico. A obra Fédon11 é o diálogo ocorrido na prisão no último dia de vida do filósofo Sócrates. A narrativa é feita por um de seus discípulos, Fédon de Élis, que relata os diálogos entre o filósofo e seus discípulos mais fiéis sobre a alma e a morte. Neste livro Platão discorre sobre a transmigração da alma e sobre sua imortalidade. Sugere que sendo a alma capaz de captar as formas inteligíveis puras - as idéias- só poderia ser incorpórea e eterna como elas. (...) a alma tem grande semelhança com o divino, imortal, inteligível, uniforme, indissolúvel e com o que permanece sempre o mesmo e se comporta da mesma maneira; ao passo que o clássicas, católicas, bíblicas, orientais, islâmicas, místicas, cabalísticas, pagãs, pré-socráticas e socráticas, além da grande influência da teoria de Ficino. 11 PLATÃO. Fédon. Tradução Heloísa da Graça Burati. São Paulo: Rideel, 2005. Biblioteca Clássica. 18 corpo é bastante semelhante ao que é humano, mortal, não inteligível, multiforme, dissolúvel e ao que nunca se comporta do mesmo modo. 12 Platão estabelece desse modo sua teoria da preexistência e da imortalidade da alma e tenta dar-lhes uma base filosófica. Para Platão o corpo representa um obstáculo à apreensão da realidade uma vez que os sentidos são imperfeitos. (...) quando a alma se serve do corpo para examinar alguma coisa, seja por meio da visão ou da audição, seja por qualquer outro órgão de percepção (pois se examina por meio do corpo, quando no exame se empregam os sentidos), então, ela é arrastada pelo corpo para aquilo que nunca é da mesma maneira, que se extravia, se perturba e tem vertigens como se estivesse embriagada, pelo fato de tocar tais coisas?13 É através do raciocínio que a alma pode ver claramente a essência das coisas, ideia presente também em sua obra O Banquete14. Escrito por volta de 380 a.C., a obra é constituída basicamente por uma série de discursos sobre a natureza e as qualidades do amor. Através de uma sucessão de discursos - iniciados num jantar na casa de um poeta, em que os convidados decidem instituir um concurso oratório de discursos de elogio ao amor - que elencam elementos de uma visão dialética sobre o amor, Platão traça o destino dos homens numa linha de ascese espiritual. Importante lembrar que o papel da retórica é de suma importância no desenrolar da obra bem como a presença da dialética socrática. Na última parte do livro, a linha argumentativa apresentada pelo interlocutor Sócrates- na voz da sacerdotisa Diotima- diferencia-se das anteriores. A elaboração platônica através do discurso de Diotima se desenvolve a partir de algumas etapas: não sendo o amor nem belo nem feio, nem deus nem mortal, o amor seria um dos muitos gênios e sua função seria a de manter o contato entre o mundo dos deuses e o mundo dos homens. De acordo com a mitologia grega uma forte característica do Amor, resultado da união entre o Recurso e a Pobreza, é o desejo da sabedoria, a 12 Idem, p. 57. Idem, p. 56. 14 PLATÃO. O Banquete; tradução, introdução e notas do Prof. J. Cavalcanti de Souza. 9ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. 13 19 filosofia. Assim, tendo anseio dessa sabedoria, o amor é filósofo por natureza. Disso decorre que a utilidade do amor é, portanto, inspirar nos homens o desejo de possuir o que é belo e o que é bom, não apenas por um momento, mas para sempre. E no entanto, prosseguiu Sócrates, bem que foi belo o que disseste, Agatão. Mas diz-me ainda uma pequena coisa: o que é bom não te parece que também é belo? Parece-me, sim. Se portanto o Amor é carente do que é belo, e o que é bom é belo, também do que é bom seria ele carente.15 Plenamente bons e belos, os deuses são uma personificação alegórica das essências estáveis de uma parte transcendente do universo, enquanto os seres humanos representam a parte inferior do universo. De acordo com a filosofia platônica, a alma objetiva, portanto, atingir o puro. A utilidade do amor consiste, portanto, em inspirar nos seres humanos a vontade de possuir o que é Bom e Belo. Com efeito, uma das coisas mais belas é a sabedoria, e o Amor é amor pelo belo, de modo que é forçoso o Amor ser filósofo e, sendo filósofo, estar entre o sábio e o ignorante.16 Geralmente o que o senso comum considera são as formas de amor físico, no entanto, bem mais eficiente é a ação do amor no espírito, que é um processo de ascese que se inicia no corpo. Segundo Platão, a geração espiritual é paralela à corporal, no entanto, superior nos seus resultados. Afirma: “com efeito, todos os homens concebem, não só no corpo como também na alma (...).”17 Essa lenta e metódica ascensão refere-se ao progressivo domínio sobre a precariedade da matéria, através de uma dedicação à verdadeira filosofia. Observamos, dessa forma, que o conceito platônico de amor perpassa uma idéia intelectual, já que ocorre no plano das idéias. Através das leituras realizadas de “O Banquete” e “Fédon” de Platão, observamos que em ambas as obras, Platão refere-se a dois conceitos chave 15 Idem, p.151. Idem, p.158. 17 Idem, p.163. 16 20 para pensar sobre a alma e o amor, o Bem e o Belo. Nota-se, portanto, uma referência tanto ética quanto estética no que tange à sua idéia sobre a utilidade do amor que está intrinsecamente ligado ao que é bom e belo. Sua concepção acerca de tais conceitos indica que o amor é o ápice de um trajeto de ascese espiritual que se constitui através de diferentes caminhos, sendo o da parturição das idéias o mais elevado. Eis, com efeito, em que consiste o proceder corretamente nos caminhos do amor ou por outro se deixar conduzir: em começar do que aqui é belo e, em vista daquele belo, subir sempre, como que servindo-se de degraus, de um só para dois e de dois para todos os belos corpos, e dos belos corpos para os belos ofícios, e dos ofícios para as belas ciências até que das ciências acabe naquela ciência, que nada mais é senão daquele próprio belo, e conheça enfim o que em si é belo.18 A leitura que Ficino realiza dessas idéias centrais de Platão evidencia-se em sua concepção filosófica presente na obra que estudamos. Vale ressaltar que durante o Renascimento a alma prefigurava como tema, não em termos que questionassem a sua existência, mas da definição de sua natureza. Para Ficino a alma é a base ontológica de seu sistema, é a possibilidade da felicidade humana que se sobrepõe à morte física. Ficino nos apresenta uma estrutura básica que corresponde à sua teoria cosmológica dos círculos, que se inter-relacionam. No centro desse sistema circular está o Bem, que é a origem e o fim desse modelo. O impulso ascendente à origem desse sistema circular constitui a essência do conceito de Ficino sobre o amor. Ressalta: “el único centro de todo es Dios, y los cuatro círculos en torno a Dios son la mente, el alma, la naturaleza y la matéria.(...) De tal modo la mente, el alma, la naturaleza y la matéria que proceden de Dios, a el se esfuerzan por retornar.”19 Além de discorrer sobre a origem e a natureza do amor, Ficino também faz apontamentos sobre sua utilidade. Segundo o humanista amor é sinônimo de 18 Idem, p.174. FICINO, Marsílio. De Amore. Comentario a el Banquete de Platon. Tradução, apresentação e notas de Rocío de la Villa Ardura. – 3ª edição- Madrid: Editorial Tecnos, 1994.p. 12. 19 21 beleza e esta é fusão entre bondade e justiça. A beleza nada mais é do que o esplendor da bondade divina. Através desse complexo esquema cosmológico observamos que Ficino introduz novos conceitos em sua filosofia referente ao amor, como Beleza e Luz: La gracia de este mundo y este ornamento es la belleza a la que el amor, desde el momento em que nació, atrajo y condujo de uma mente antes deforme a uma mente hermosa. Tal es la condición del amor, que rapta las cosas para la belleza y une lo deforme a lo hermoso. Tais conceitos são essenciais na sua definição da hierarquia cósmica. Seguindo o princípio hierárquico da ascese platônica, Ficino afirma que o amor é um movimento que começa nos corpos, ou melhor, na admiração pela beleza dos corpos, porém essa etapa é apenas um primeiro movimento, nunca seu fim. A luz divina que tudo ilumina brilha ainda mais intensamente nas almas e instigados pelo anseio da busca pela beleza, os amantes precisam ultrapassar as limitações da matéria. A verdadeira beleza, que reside na alma, não pode ser captada pelos sentidos do corpo, que são limitados. Ela só é percebida pela mente, defendia Ficino. Toda beleza visual é, portanto, espiritual. Igual que um único rayo de sol ilumina los cuatro elementos, el fuego, el aire, el agua y la tierra, así también el rayo único de Dios ilumina la mente, el alma, la naturaleza y la matéria. Y así como cualquiera que observe la luz en estos elementos, percibe el rayo del sol mismo, y a través de el se vuelve a contemplar la luz del sol, igualmente aquél que contempla lo bello en estos cuatro, la mente, el alma, la naturaleza y el cuerpo, y ama en ellos el resplandor de Dios, por médio de este resplandor ve y ama a Dios mismo.20 Nesse sentido, na obra de Ficino a luz é representada como a unidade última e a diversificação em todas as coisas, é o arco da verdade, do conhecimento. A luz é a metáfora do princípio espiritual de todas as coisas. Sua fonte é Deus, O Bem, o Sol, que tudo ilumina. Todo amor começa, assim, com o 20 Idem, p. 35. 22 olhar. “Por lo que el ojo, primero oscuro e informe a semejanza del caos, cuando mira, ama la luz, y al mirar es alcanzado por el rayo, y al recibir el rayo es formado por los colores y las figuras de las cosas.” Percebemos, por conseguinte, que em sua teoria Ficino tem por princípio que o propósito último do ser humano é ascender mediante a contemplação até chegar a uma visão direta de Deus. É perceptível aqui uma distinção clara de Ficino em relação à idéia platônica de ascese espiritual: Platão defende uma ascese espiritual com vistas ao inteligível, onde a verdadeira realidade é obtida e que é o motivo para tal ascensão. Não há em Platão referência ao retorno a Deus. Ficino, por sua vez, insere o elemento cristão nesse processo de ascendência, sua idéia central a respeito do amor platônico é enfatizar que o amor espiritual de um ser humano por outro é na realidade o anseio, o amor da alma por Deus. A linha argumentativa presente na obra de Ficino aponta para uma questão muito cara ao pensamento humanista renascentista: a dignidade do homem. Toda a ontologia ficiniana está pautada na idéia de que o homem é um microcosmo, o que justifica seu lugar privilegiado no universo e seu dever de harmonizar-se com o ritmo universal. Ficino considerava ser sua tarefa estabelecer uma harmonia básica entre o platonismo e o cristianismo. A variedade de fontes novas, de opiniões e posições tanto antigas quanto modernas fez com que muitos humanistas enfrentassem a questão de como dar unidade a essa diversidade de verdades possíveis. Assim, o pensamento ficiniano pode ser relacionado a esse posicionamento dos humanistas frente a questões de cunho filosófico e moral. Os sete discursos que compõem a obra Comentarium nos oferecem uma ontologia, uma cosmologia, uma ética, uma estética e uma teoria sobre o amor. O tratado é abundante em alegorias. A conjunção que Ficino tece entre filosofia e religião em seu trabalho pode ser relacionada ao fato de que a doutrina platônica oferecia o fundamento racional para superar a angústia frente à condição efêmera da existência humana. Desse modo, o pensamento de Marsílio Ficino não é apenas teórico, é também apologético, uma vez que aponta para uma reforma espiritual. O filósofo renascentista insere em sua obra, uma temática inexistente nos diálogos de Platão. Como concedeu à alma humana lugar central na hierarquia do 23 universo, conferiu uma expressão metafísica a uma idéia muito favorecida por seus predecessores humanistas. Se os homens do Renascimento trataram os pensadores e o pensamento da Antigüidade com autonomia, o fizeram da perspectiva de herdeiros da cultura cristã, que muito conheciam. Por conseguinte, é inegável que o entendimento da filosofia clássica, bem como das questões emergentes com que se confrontaram foram explanadas de acordo com os moldes da tradição, em decorrência do desenvolvimento da cultura cristã. Assim, pode-se dizer que a atitude do Renascimento para com a antigüidade e o cristianismo baseia-se na procura de uma base comum entre ambos. No entanto, a presença de conflitos é constatada, vide os embates entre o dogma e o espírito crítico, entre fé e conhecimento racional. Diferente da relação que se dava entre a filosofia cristã medieval e a Antiguidade, o pensador renascentista busca fundamentar sua fé através do conhecimento racional. Temse que a cultura renascentista foi a primeira a atrelar conscientemente o escopo greco-romano antigo e a tradição judaico-cristã. De acordo com Heller21 a “cultura renascentista foi a primeira a juntar conscientemente estas duas fontes.” A originalidade dessa atitude, talvez tenha se refletido na consciência autocriativa do homem renascentista, uma vez que mesclou-se a crença do aperfeiçoamento humano e a própria ação humana como idealizadora desse projeto. A insistência ficiniana em que mediante uma ascese interior a alma sobe até Deus graças à contemplação, o une com os místicos, ao mesmo tempo em que sua doutrina do amor espiritual, no sentido platônico, exerceu muita influência no pensamento, na literatura e na arte do Renascimento e também do período subseqüente, pelo menos até o século XVIII. A poética original de Ficino inspirou a iconografia de obras dos principais artistas italianos da época, como Botticcelli22, por exemplo. 21 HELLER, Agnes. O Homem do Renascimento. Tradução de Conceição Jardim e Eduardo Nogueira, Lisboa, Editorial Presença, 1982. p. 91. 22 Também, sob o teto do neoplatonismo, Micheangelo esculpiu Davi, obra emblemática da cultura renascentista florentina. Muitas das idéias que permeavam o imaginário renascentista estão presentes nas artes. Há, portanto, uma relação que se estabelece entre o humanismo e a expressão da sensibilidade. Os artistas renascentistas passaram a pesquisar e observar mais detalhadamente a natureza, e, sobretudo a natureza humana e as relações sociais. 24 Certamente esta visão extremamente espiritualizada e filosófica do amor era muito restrita aos círculos humanistas das cortes renascentistas italianas, mas ela fez fortuna, tendo em vista as publicações dos tratados de amor Os Assolani (1505), de Pietro Bembo e Sobre a infinidade do Amor (1547) de Tullia D‟ Aragona, que serão analisados nos próximos capítulos. 25 Capítulo 2: Os Assolani de Pietro Bembo e as novas sociabilidades modernas A doutrina do amor platônico postulada por Marsílio Ficino não só foi repetida e citada em muitos sonetos e poemas do século XVI, mas também em um grande número de obras em prosa que surgiram ao redor das academias literárias: os Tratatti d’amore. A influência ficiniana possibilitou aos jovens autores do cinquettento a pensar o conceito de amor como algo mais espiritual, que se realiza e se justifica no desejo pela beleza suprema, da qual os seres humanos captariam apenas um reflexo. Um amor que se traduz na ânsia de sabedoria que é considerado o único meio de perfeição espiritual. Tais reflexões permeavam os ambientes das cortes renascentistas que neste período propagavam um ideal de sociabilidade regulado pelo autocontrole, pelo refinamento dos gestos e das palavras, pelo conhecimento das letras, das artes e da filosofia. É nesse contexto que são produzidos tratados sobre diferentes temas. É interessante, nesse aspecto, refletir sobre a inserção do indivíduo nas sociabilidades modernas que passam a se configurar no contexto da produção dos tratados analisados. Norbert Elias23 traz importantes considerações acerca das relações sociais nos meios renascentistas, uma vez que o autor procurou compreender através da análise de tratados comportamentais indícios de mudanças de comportamento. Dessa forma, sua ênfase repousa na emergência de um indivíduo singular que se configura no Renascimento. Foi neste período que as tensões entre indivíduo e sociedade se intensificaram pela primeira vez, inaugurando problemas referentes à filosofia, à moral, à estética e, por conseguinte às subjetividades, já que com o delineamento de um espaço interior, fez-se necessário, também, a definição de uma dimensão psicológica do sujeito. Assim, o ser humano atentou para algo que o definiria internamente. Historicamente, as primeiras discussões referentes especialmente ao terreno da filosofia moral e da definição dos contornos internos no indivíduo foram realizadas por Jacob Burckhardt. Tais discussões apontaram para as diferenças 23 ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Volume 1, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. “A civilização como transformação do comportamento humano.” 26 do indivíduo renascentista e o do medievo, este último compreendido somente enquanto inserido numa ordem maior. Nesse contexto, os que se destacavam geralmente eram relegados às margens sociais, ou se destacavam devido à elevação espiritual. A grande diferença do Renascimento repousa na valorização do que é singular no ser humano. Ocorre, portanto, uma personalização, que é bem evidenciada nas artes que passam a expressar o sentimento humano.24 Norbert Elias ainda afirma que a civilidade é um longo processo histórico datado que começa a se configurar no Renascimento. Mudanças que ocorreram nos padrões de sociabilidade entre os séculos XIV e XVII são marcadas pela importância que se passa a dar ao comportamento. O autor atenta para o conceito de civilité, cunhado na segunda metade do século XVI com o manual de civilidade De civilitate morum puerilium, de Erasmo de Rotterdam. No entanto, Elias ressalta que questões semelhantes às levantadas por Erasmo, já tinham sido colocadas no medievo, bem como na Antiguidade Clássica. Segundo Elias, a obra de Erasmo teve grande circulação no período e “deu nova nitidez e força a uma palavra muito antiga e comum, civilitas. Intencionalmente ou não, ele obviamente expressou na palavra algo, que atendia a uma necessidade social da época.” 25 Como aponta, Elias compreende que a época enunciava transformações e se passou a demandar novos códigos de conduta, como o de Erasmo. A partir de então, o que passou a definir o homem nobre não era apenas o sangue, outros indícios também começaram a ser muito valorizados, como o comportamento. Os modos de conduta tornam-se centrais no âmbito das convivências, o que para Elias denota que a sociedade „estava em transição‟. O mesmo acontecia com as maneiras. (...) o tratado de Erasmo surge em uma época de reagrupamento social. É a expressão de um frutífero período de transição após o afrouxamento da hierarquia social medieval e antes da estabilização da moderna. 26 24 Giotto é um grande exemplo da configuração pictórica do sentimento expresso no rosto, por exemplo. Nesse aspecto, o retrato renascentista é outro exemplo no que tange à importância dada à fisionomia e, por conseguinte, ao ser que se individualiza. 25 Idem, p. 68. 26 Idem, p. 83. 27 Foi neste período que as pessoas da elite passaram a conviver mais tempo juntas dentro das cortes. Em decorrência de tal fato as maneiras de se relacionar com o outro passaram a ser discutidas. Dentro desse contexto o indivíduo ganha destaque e os conhecimentos sobre ele também. Nesse ponto, os humanistas tiverem importante papel. O Humanismo renascentista é então marcado pela produção tratadística, cujos temas são diferenciados. As cortes renascentistas italianas e seu ideal de sociabilidade inspiraram autores da época e alguns se tornaram muito famosos pela descrição e idealização destes espaços e dos indivíduos que neles viviam como Pietro Bembo, que escreveu Os Assolani, publicado em 1505. Os Assolani é considerada uma obra capital para compreender o que se denominou petrarquismo, termo criado por Pietro Bembo, uma figura representativa da classe intelectual do final do Quattrocento e início do Cinquecento. Em 1497 Pietro Bembo inicia seu primeiro projeto de Os Assolani que será finalizado em 1502, publicado três anos mais tarde em 1505. Em italiano foram realizadas três edições da obra: a de 1505, a de 1530, e a outra em 155253.27 Nascido em 1470 em Veneza, Pietro Bembo foi um patrício veneziano, um homem de letras e pertencia a uma família nobre. Foi um grande conhecedor das obras clássicas greco-latinas e também de seus contemporâneos, sendo sobremaneira influenciado pelo modelo literário de Cícero. É considerado uma figura representativa da classe intelectual do final do século XV e início de XVI. Bembo teve uma vida intensa de amores ilícitos nos tribunais de Ferrara, Urbino e, finalmente, Roma. Dez anos depois, Bembo deixou Roma e foi para Pádua com Morosina, a irmã caçula de uma cortesã do Vaticano. O humanista foi ativo na educação em Pádua e levou a cabo uma admirável aproximação de diversas teorias sobre a linguagem e tentou produzir uma gramática em língua italiana que não existia, dispersa como estava em numerosos dialetos. De acordo com a 27 O texto aqui utilizado provém da última e também recente edição, do manuscrito, de Carlo Dionisotti e publicado no volume Prose e Rime (Torino, Unione Tiprografico-Editrice Torinense, 1978, reimp. de sua ed. De 1960 ampliada em 1966.) reimpresso neste mesmo ano. Por tratar-se de um texto do século XVI, a edição utilizada foi submetida a modificações que não alteraram o conteúdo e estrutura da obra, mas possibilitaram maior acessibilidade ao leitor contemporâneo. O texto usado é de uma coleção espanhola, que oferece uma edição de 1990 bilíngüe e completa do texto. 28 biografia28 de Pietro Bembo, produzida por Carol Kidwell29, ele foi nomeado historiador oficial de Veneza e depois da morte Morosina se tornou cardeal. Faleceu em 1547 em Roma.30 Bernardo Bembo, pai de Pietro Bembo, serviu à República e introduziu seu filho neste exercício. Enquanto era embaixador de Florença, Bernardo Bembo construiu uma estreita relação com Lorenzo de Médici e sua família e também com o círculo florentino neoplatônico, encabeçado por Marsílio Ficino, que introduziu Bernardo Bembo nas discussões baseadas em sua obra, a Teologia Platônica, e também nas discussões sobre a imortalidade da alma. Pietro Bembo, desde muito cedo, foi educado por tutores, entre os quais, dois dos mais importantes professores do norte da Itália do século XV, Guarino Guarani e Vittorino da Feltre. Bembo viajou desde cedo e nunca abandonou esta atividade, o que, de acordo com Kidwell31, foi fundamental em seu processo de formação. Além de sua cidade natal Veneza, o humanista possuía base em várias cidades, como Florença, Messina, Roma, Bérgamo, Urbino, Ferrara, Padova, Gubbio, entre outras. Nestas cidades, Bembo viveu muitas experiências ao longo de sua vida. Ocupou diferentes cargos públicos, professou numa uma ordem religiosa, possuía uma intensa vida pública e freqüentou as cortes, ambientes cultos e refinados. Em 1497 Pietro Bembo produziu o primeiro esboço de Os Assolani, considerado um dos primeiros grandes tratados filográficos do Renascimento, finalizado em 1502. Bembo defende que o amor é um meio de salvação espiritual propiciada aos homens. De um ponto de vista filosófico-literário, a obra possui influências oriundas dos estudos da filosofia neoplatônica e do profundo conhecimento de Bembo a respeito de Petrarca. Este foi um importante intelectual do século XIV, poeta e humanista italiano. É conhecido como precursor do soneto, um tipo de poema composto por catorze versos. É considerado um dos 28 KIDWELL, Carol. Pietro Bembo: lover, linguist, cardinal. McGill-Queen‟s University Press, 2004. Carol Kidwell é decano emérito da Universidade Americana de Paris, é autor de vários livros, incluindo Sannazaro and Arcadia and Marullus e Soldier Poet of the Renaissance. 30 Esta biografia foi produzida a partir de um equilíbrio entre a literatura especializada em torno Bembo e mais livros de literatura geral sobre a cultura renascentista italiana. 31 A biografia conta com uma extensa utilização de traduções de 2.600 cartas de Bembo, incluindo o intercâmbio de cartas de amor com Lucrezia Borgia, que fornecem uma imagem da vida pessoal de Pietro Bembo. 29 29 grandes latinistas e sua fama se deve em grande medida aos seus poemas redigidos em língua italiana. Com a redação de Os Assolani Bembo construiu um diálogo sobre o amor, mas também um modelo de comportamento cortesão, uma espécie de microcosmos no qual a conversação se dá de forma dialética sobre temas espirituais, entre eles o amor, que muito agradou o público das cortes. A influência de Platão no tratado é perceptível através do caráter temático e também de elementos formais que aparecem no diálogo com as diferentes perspectivas elencadas sobre um mesmo tema, as interrupções das personagens ao longo das exposições - a fim de evitar falas muito longas - além do destaque de uma personagem que acaba por conduzir o diálogo. Importante ressaltar que os pensadores neoplatônicos renascentistas que colocaram o amor no centro de suas reflexões filosóficas, ao escreverem sobre o tema, optaram pela forma dialógica, seja inspirando-se em Platão, seja nos diálogos de Cícero. O que se nota nesta tradição literária é a valorização do conhecimento como um caminho construído pela comunicação e a interlocução entre dois ou mais indivíduos, estrutura que observamos em diferentes tratados sobre o amor produzidos nesse período, como é o caso das obras de Bembo e de Tullia D‟Aragona. Outros importantes diálogos de amor do começo do século XVI são O Cortesão, de Baltassare Castiglione (1528), cujo último capítulo dedica uma parte importante para a concepção espiritual de amor através de Pietro Bembo, os Diálogos de amor (1535), de Yehuda Abravanel, e Diálogo de Amor (1542), de Sperone Speroni. Ao tratar do amor como questão central em Os Assolani Bembo aborda a questão das relações e convivências de indivíduos que compartilham de um código social comum. Reflete, desse modo, as novas demandas que se constituíam a partir da configuração de novas sociabilidades. Portanto, é possível afirmar que Os Assolani inaugura um tipo de tratado que se baseia na tensa relação entre a emergência do indivíduo e as novas formas sociais na qual estava inserido. A obra esboça o cenário das cortes renascentistas e evidencia um estilo de vida aristocrárico. Interessante notar que o que define essa sociedade de corte é a modelação de quem vive no interior desse espaço social, reforçando o aperfeiçoamento do indivíduo. Nesse ponto, é possível estabelecer uma relação 30 entre tal ideal cortês e a ética greco-latina, que é pautada pela busca de equilíbrio, tão cara aos humanistas. A obra de Pietro Bembo atenta, portanto, para a questão da comunicação do indivíduo com o outro e com o mundo através do enfoque na configuração dos espaços sociais das cortes. Os Assolani estrutura-se a partir de seis personagens que nos são apresentados e que travam um enfrentamento dialético ao discutirem sobre temas espirituais, entre esses o amor. O diálogo possui uma estrutura tripartida, que versa sobre o amor de forma distinta, o que aponta para a influência do método platônico. O livro se inicia com uma extensa introdução do autor que discorre sobre a estrutura da obra. De forma bastante didática, Bembo visa ensinar qual é o amor bom e qual é o mal. A história se passa em uma festa celebrada por Caterina Cornaro, rainha de Chipre, em Ásolo, único baluarte monárquico permitido dentro da República veneziana. A festa durou três jornadas: depois da refeição, das atuações e de outros divertimentos que nos são descritos, duas jovens passam a entoar canções que versam sobre o amor. A primeira delas, a qual imaginamos ser acompanhada por um alaúde de acordo com a riqueza de detalhes descritos por Bembo, trata, de maneira bastante amarga, dos malefícios do amor. Já a segunda canção é um elogio sobre o amor. A terceira e última canção enaltece o amor espiritual. Esta cena finaliza a primeira parte da festa. Os seis amigos, ao invés de retirarem-se para fazer a cesta, decidem passear pelos belos jardins do palácio, onde concordam em conversar sobre o tema já apresentado pelas donzelas anteriormente nas canções: o amor. Interessante ressaltar o minucioso detalhamento que Bembo faz dos jardins do palácio, um espaço renascentista por excelência. Assim, ao discorrer sobre o amor, as personagens seguem aparecendo desprovidas de descrições prévias, como se o autor da obra almejasse salientar o ambiente cortês ante outros elementos da obra. Era este jardín muy deleitable y hermoso e maravilla, mas porque em recontar todas sus perfecciones sería prolijo, digo que demás de un crucero que le partia por el médio, muy cubierto de parras y muy sombrio, daba uma misma calle a los que entraban de un 31 cabo y del otro, que se extendía por los lados del ala larga, la cual era muy ancha y larga y toda enlosada de piedra viva (...)32 O diálogo inicia-se com Gismondo, que provoca os outros participantes a falarem. Cada um dos três interlocutores Perotino, Gismondo e Lavinello, defendem suas idéias respectivamente, discorrendo sobre o amor doloroso, o prazer imbricado no amor e por fim o amor espiritual. Notamos, através da fala desses interlocutores, três óticas diferentes sobre o mesmo tema através de um entrelaçamento que Bembo faz da filosofia e da literatura. Vale destacar que além das personagens masculinas, há também personagens femininas no diálogo, Berenicia, Lisa e Sabinetta que, no entanto, possuem importância diferente das personagens masculinas: não são apresentadas como protagonistas, tampouco são colocadas num plano de igualdade intelectual com os homens, que são os que emitem opiniões e ideias. As intervenções das personagens femininas na obra são bem distintas das personagens maculinas. Em Bembo a mulher é o objeto e o fim do amor e as personagens femininas podem ser consideradas peças decorativas, reduzidas a meras ativadoras do diálogo, já que carecem de uma entidade psicológica mais complexa como aparece nas personagens masculinas. Após a introdução, Perotino é o primeiro a discorrer sobre suas experiências amorosas, e, por conseguinte sobre sua concepção de amor. Segue: Fingen los poetas, los cuales suelen a veces, entre las fábulas, decir verdades, que em los oscuros abismos, entre las miserables turbas de los dañosos, hay uno sobre cuya cabeza está um canto grandísimo colgado de un hilo muy delgado. Éste, mirando a la piedra y atemorizándose de la caída, está de continuo em aquel miedo. Tal es el estado de los miserables enamorados, los cuales, estando siempre em recelo de sus posible daños, casi temiendo la grave caída de sus desenventuras sobre sus cabezas, viven los cuitados en perpetuo temor; el triste corazón los solicita no sé qué diciéndoles de continuo; calladamente atorméntalos cada hora, algún mal consigo mismo adivinando.33 32 33 BEMBO, Pietro, 1505: Gli Asolani / Los Asolanos, Ed. Bosch, Barcelon, 1990. P. 71. Idem, p. 151. 32 O tom de Perotino é melancólico e afirma que o amor nada mais é que um grande prejuízo universal e fonte de amargura e dor. Pautando-se numa argumentação mais literária que filosófica, notamos um tom profundamente pessimista do interlocutor: (...) Quando yo pienso al tormento que me das, Amor, tan fuerte, pensando del mal que siento escapar, corro contento derecho para la muerte. Pero ya que llego al paso, que es puerto de esta mar penosa, tal gozo amaso dentro em mi que no le paso. El alma torna a alentar. Así me mata el vivir, así me aviva la muerte. !Oh, miséria! !Oh, mal tan fuerte! que el vivir puede inducir sin que por muerte se acorte.(...)34 Perotino finaliza seu discurso de forma bastante enfática, descrevendo os muitos tormentos que sofrem aqueles que amam. Assim conclui seu passeio pelo tema: (...) Asaz claro habréis podido, señoras, comprender, por lo que hábeis oído, qué cosa sea Amor y cuán dañosa y pesada; el cual, hecho ofensor y rebelde a la majestad de la naturaleza, a nosotros, los hombres, tan amados por ella, dotados por especial gracia del entendimiento, que es parte divina, para que así, haciendo nuestra vida más pura, trabajásemos de subir con el al cielo, despojándonos él de ello, por ventura miserablemente nos tiene con el pie hundidos y encenagados en las fealdades terrenales de tal manera que muchas veces desventuradamente no ahogamos.35 Após as palavras de Perotino, todos os presentes se retiram até o dia seguinte. A segunda parte do livro, mais extensa, tem como principal interlocutor 34 35 Idem, p. 115. Idem, p. 193. 33 Gismondo, que é quem conduzirá a reflexão sobre o amor através de um enfoque absolutamente oposto a de Perotino: Digo, pues, así, que decir cualquier amargor no proceda de outra cosa sino de Amor, es cosa vana, porque si esto fuese verdad, por cierto que toda dulzura no vendría ni procedería de outra cosa sino del ódio, pues que tan contrario es el ódio del amor cuan diverso es lo amargo de lo dulce. Mas por cuanto del aborrecer no puede proceder ninguna dulzura, porque cualquier ódio, en cuanto es ódio, siempre entristece a todo corazón y la de dolor, parece así mismo que por necesidad se concluya que de amor ningún amargor pueda proceder en manera alguna jamás. ¿Pues veis ahora, Perotino, cómo ya yo hallo armas con las cuales te venzo?(...)36 Gismondo discorre sobre o amor de forma a exaltá-lo como fonte de todo o bem, sem o qual seria impossível viver. A fala de Gismondo trata de um amor feliz, e ao pensar sobre o prazer do desfrutar da beleza de uma dama, da emoção dos encontros. No estilo empregado por Bembo para descrever a situação notamos a influência de Petrarca, tanto pela forma do poema quanto pelo destaque dos recursos metafóricos e do lirismo erótico presente no soneto. Ni aire dulce por la siesta, ni el zumbido muy suave de la mar; ni el pasar por la floresta de linda dama en quien cabe dulce amar. Jamás fueron medicina de muy penoso cuidado, tan preciada, que merezca alguna estima si con el gozo a mi dado es cortejada. El recocijo y placer que em mi pecho está encerrado es tan suave que Amor, para si esconder, le quiso en mi bien cerrado, puso llave.37 36 37 Idem, p. Idem, p. 219. 34 Percebemos também, no desenrolar da fala de Gismondo as marcantes influências de Platão, quando discorre sobre a natureza do amor, e de Aristóteles ao refletir sobre a virtude: Porque dime, Perotino, ¿nunca oíste decir que em el princípio los hombres tenían dos caras y cuatro manos y cuatro pies, y, por conseguiente, los otros miembros de dos de nuestros cuerpos? Los cuales, después partidos por Júpiter por el médio porque le querían quitar el señorio, quedaron hechos tal como ahora son. Mas porque ellos quisieran tornar de buena gana a su integridad, porque de aquella suerte tenían doblado poder y valíanse dos, tanto más de lo que después aca se valen, por ende, luego, como em pie se levantaban, así cada uno se juntaba a su mitad.38 Gismondo afirma que o amor não pode ser comparado à paixão e que é algo necessário para os homens e mulheres, uma vez que o amor é o desejo de encontrar a outra metade perdida, mito platônico do andrógino. Nesta segunda parte do livro podemos notar que para Bembo o amor é o elemento que pode dar a coloração ideal à vida e que é capaz de manter vivos os homens. Neste aspecto, a sensualidade é ressaltada quando a beleza dos corpos femininos é aclamada. Com um enfoque diferente dos observados nos dois capítulos anteriores, o terceiro livro trata do amor ao estilo platônico. A forma do diálogo assemelha-se à dos livros anteriores, mas o problema colocado nesta parte do livro tem um caráter filosófico. As dimensões amorosas são agora recitadas por Lavinello a partir de concepções platônicas, o que torna o conceito de amor deste capítulo distinto dos anteriores. Lavinello refuta o conjunto das idéias expostas por seus companheiros predecessores, opina, assim, que o amor não é sempre mal e que não pode produzir nada bom, como afirma Perotino, mas que também não é sempre bom, como apontara Gismondo. Afirma então que o amor pode ser bom e mal, argumento, entretanto utilizado por Lavinello só para introduzir um desencadeamento argumentativo que indica serem as opiniões de Perotino e Gismondo apenas vias distorcidas sobre o amor. Neste ponto, trata de um conceito de amor imbricado no desejo do belo. Segundo esse argumento, a 38 Idem, p. 245. 35 beleza consiste a harmonia e proporção entre o corpo e a alma. A beleza dos corpos e da alma tem como fim primordial ser conduzida aos nossos pensamentos e pode ser captada respectivamente pelos sentidos humanos, através dos olhos e dos ouvidos. Verificamos, portanto, um conceito de amor entendido de forma espiritual, distante de fatores que possam causar dor e sofrimento. Lavinello então entoa canções dedicadas a enaltecer as três vias que propiciam a apreensão da beleza. A primeira canção é dedicada ao prazer auditivo: Que un gesto tan hermoso veo mostrarme, tan pura voz y un pesar tan ligero, que puesto que no espero por mi próprio saber ni por outra arte tan graciosa y tan nueva cual no da el cielo, aunque mil de ellas llueva, lo que siento escribir, ni con gran parte; pero mi firme estrella que a ratos lo platique mándalo ella. (...)39 Já a segunda canção enaltece o prazer visual: (...) Lirios, calta, violeta, acanto y rosas, Zafíes y rubíes, perlas de oro Descubro armonia de cosas muy preciosas Siento en el alma andar, y dulce coro, angelical si vuestra voz he oído. (...)40 A terceira e última canção diz respeito à esfera do pensamento: (...) El que no sabe la gloria del cielo en ver las almas la Divindad, pruebe este gozo y puede alcanzarle; nunca más temerá calor ni hielo, ni menos outra alguna adversidad osará en algún tiempo fatigarle. (...)41 39 Idem, p. 389. Idem, p. 397. 41 Idem, p. 401. 40 36 Para concluir sua argumentação sobre o amor Lavinello narra uma história que teria lhe acontecido: perdido num bosque enquanto passeava, encontrou-se com um ermitão, que através de uma longo discurso - aos moldes socráticos demonstra que seu conceito de amor, explicitado anteriormente, também não era absolutamente válido, não levava em conta que a beleza dos corpos não é própria e natural deles. Seria apenas um reflexo da beleza suprema que procede de Deus, ao qual deveriam dirigir-se aqueles que desejassem gozar do verdadeiro amor. Bembo trata, por fim, de um amor que se concebe num desejo de beleza, mas da verdadeira beleza, proveniente de Deus. No trecho abaixo percebemos claramente a aposta de Bembo na filosofia neoplatonica corrente na época: Pero aún mucho mayor deleite te será, y sin fin más maravilloso, si tu pasares de estos cielos que se ven a los que no se ven, y subiendo de uno en outro, contemplares las verdades que allí son, y de esta manera, Lavinelo, ensalzaras tus deseos a aquella hermosura. Porque es cosa averiguada, entre los que están acostumbrados a mirar no menos con los ojos del entedimiento que con los del cuerpo, que allende de este mundo sensible y material del cual yo ahora te hablava y cada cual habla de él más a menudo, porque se vê, hay outro mundo ni material ni sensible, mas fuera de toda manera de éste, apartado y puro, que em derredor le sobrecerca y que de él es siempre buscado y juntamente hallado, todo apartado de él y que todo mora en cada una de sus partes (...)42 Observamos uma estreita relação entre a concepção de Bembo referente ao amor e a da Marsílio Ficino. Em Os Assolani assim como em De Amore notamos uma ênfase na questão da ascese espiritual como aspiração ideal de vida. Bembo conclui sua explanação refletindo que embora existam diferentes nuances em torno do amar, como a dor ou o prazer que estão relacionadas aos aspectos físicos, o verdadeiro amor se realizaria num plano espiritual. Refere-se, nesse sentido, à teoria neoplatônica referente ao amor e à imortalidade da alma, uma vez que entende que esse processo de ascese deve estar ligado a um impulso de 42 Idem, p. 439. 37 retorno a Deus que é concebido por estes autores como a fonte de todo o bem e por conseqüência de todo o amor. Um amor que se converte em um único meio de perfeição espiritual. 38 Capítulo 3: Uma honesta cortesã no Renascimento italiano: Tullia D’Aragona A memória histórica do Renascimento nos incita a lembrar de alguns nomes que decisivamente estão associados ao humanismo. De Maquiavel a Carlos V, estes indivíduos, como aponta a historiadora Ana Paula Vosne Martins 43, parecem ter um lugar „natural‟ nesta época. As mulheres, no que tange à esfera das relações sociais, parecem sempre associadas à atividade da reprodução dos filhos e da honra familiar, ou ao domínio da carne da imaginação, do sonho e das alegorias. Atentar, entretanto, para as discrepâncias entre homens e mulheres no acesso não só à escrita, mas também à memória conduz a um olhar que vai além das representações marcadas e podem nos conduzir ao lugar, à voz e à escrita de mulheres como Tullia D‟Aragona. Assim, faz-se necessário não apenas um enfoque na constatação do distanciamento das mulheres no acesso à educação, mas também nas suas explicações. Figuras importantes do multifacetado cenário cultural, artístico e político italiano do século XVI, as famosas cortesãs eram mulheres que possuíam grande inserção no universo das artes, da poesia e dos círculos eruditos. Cidades como Veneza, Roma e Florença tornaram-se famosas pelo espetáculo de refinamento e luxo propiciado pelas cortesãs. Estas eram mulheres refinadas, educadas e treinadas para poderem manter uma conversação inteligente com os homens cultos. Discutiam a música, declamavam e conheciam os assuntos políticos. Eram famosas pela beleza e pelo luxo em que viviam. Embora cortesã pareça ser o substantivo feminino de cortesão, as cortesãs eram mulheres que se dedicavam a um ofício profundamente marcado pelo preconceito e pela desonra, não desfrutavam, dessa forma, da virtú dos cortesãos, que eram os homens refinados que vivam no seleto mundo das cortes renascentistas. Tullia D‟Aragona, filha de Giulia Campana e do Cardeal Luigi D‟Aragona, exerceu a mesma profissão da mãe de cortesã44. Recebeu uma educação 43 MARTINS, Ana Paula V. Tratados de Amor: uma análise da inserção de Tullia d‟Aragona (1547) na tradição filográfica do renascimento italiano. DEHIS-UFPR. 2008. 44 De acordo com a historiadora Ana Paula Vosne Martins estas mulheres tão presentes nas artes, na poesia, nos relatos dos viajantes, mas também nas calúnias e perseguições foram muito importantes para a fama das cidades italianas durante o Renascimento. Embora compartilhem da mesma etimologia, cortesãos e cortesãs são pessoas de mundos diferentes. O cortesão é o homem refinado de bom nome que vive no mundo seleto das cortes renascentistas. A cortesã é 39 humanista patrocinada por seu pai, o que lhe propiciou um equilíbrio entre a profissão de cortesã e as atividades de poeta e pensadora. Ela viajou para as principais cidades italianas e soube tecer ligações amorosas, de amizade e colocar-se sob a proteção dos poderosos. Cabe ressaltar que sua presença nestes círculos se deve em parte à sua profissão de cortesã, mas foi garantida porque ela foi reconhecida pelos contemporâneos como poeta de talento e como humanista As honestas cortesãs, como Tullia D‟Aragona, tiveram uma sólida formação humanista. Jamais se expunham publicamente como prostitutas e eram mantidas por homens poderosos e ricos, ou mesmo protegidas por humanistas que as admiravam. Elas precisavam da vida pública, não só por razão de seu ofício, mas também porque algumas ambicionavam a escrita, visto que haviam sido educadas na cultura humanista. Diferiam neste ponto das mulheres das elites, que deveriam ser vigiadas e ter a honra protegida pelos homens, sendo afastadas dos convívios sociais. Amadas ou odiadas, respeitadas ou humilhadas, as honestas cortesãs povoaram a imaginação e a escrita dos homens renascentistas. Tullia foi uma figura notável não somente por seus atributos físicos, que foram elogiados nos poemas de seus amantes e admiradores, mas também por sua inserção nos círculos literários e humanistas do Renascimento além de sua produção poética, epistolar e ensaísta à qual se dedicou ao longo de sua vida. D‟Aragona além de dominar muito bem os códigos do neoplatonismo e do petrarquismo na escrita de sua poesia, soube também desenvolver uma refinada sociabilidade, tão cara aos cortesãos e damas que freqüentavam os salões renascentistas. Há que se ressaltar, porém, que embora fosse reconhecida por seu talento enquanto escritora, Tullia foi alvo também de intrigas, acusações e sátiras, justamente por adentrar o espaço da escrita poética, considerado masculino. A possibilidade da reversão dos papéis sexuais ameaçou os homens poderosos do uma mulher refinada, educada, mesmo que medianamente, mas treinada para conseguir manter uma conversação inteligente com os homens cultos. A associação entre a sexualidade e o refinamento da educação e dos comportamentos das cortesãs as distinguia das outras mulheres que também viviam da prostituição, mas em condições muito diferentes. 40 Renascimento. As mulheres que aspiravam funções literárias ou públicas eram vistas como mulheres masculinizadas, representavam, por conseguinte, uma recusa à obediência para a cultura dominante. Assim, as mulheres cujas ambições levassem a adentrar de forma ousada os lugares masculinos da cultura e da sociedade suportavam o fardo da sexualidade ilegítima. Podemos dizer que se situavam num espaço fronteiriço, eram consideradas “mulheres monstruosas” Sua origem social foi constantemente relembrada, e sua posição enquanto cortesã foi, sem dúvida, uma marca permanente na vida de Tullia. Extremamente culta, sofisticada, livre, muito bem relacionada, Tullia ousou se expor num ambiente público, não só através de sua atividade como honesta cortesã, mas através da pena, o que tornava ainda mais severo o tom das críticas endereçadas à ela por seus detratores. Vale destacar que somente há mais ou menos quinze anos que pesquisas sobre uma perspectiva feminista e de gênero sobre o lugar ocupado pelas mulheres na cultura renascentista passaram a ser produzidos, não só pelos especialistas em poesia italiana, mas também pelos historiadores do Renascimento. A cultura humanista do Renascimento foi estudada a partir de atores e espaços bem definidos entre aqueles homens que ascenderam ao poder através do mecenato e aqueles homens que foram patrocinados pelos poderosos. Como uma das explicações para o apogeu da cultura e da civilidade no Ocidente, portanto, a historiografia do Renascimento italiano cristalizou a idéia de que o mecenato dos poderosos articulado ao desejo pelo conhecimento e a fama por parte dos humanistas e artistas teria resultado numa bem sucedida articulação entre cultura e poder, de acordo com a clássica interpretação de Jacob Burckhardt.45 Verificamos que poder e cultura estavam imbricados nos novos espaços de sociabilidades, já que através de poderosos mecenas, a construção de bibliotecas, palácios, academias, além do patrocínio para inúmeras traduções de textos antigos do latim e do grego foram realizadas. Estes espaços de sociabilidade foram criados nas pequenas cortes das cidades italianas de maior importância política e econômica da época, que 45 BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1991. Ver particularmente o capítulo 1, “O Estado como obra de arte”. 41 expressavam a heterogeneidade das formas políticas no território. Porém, tinham em comum a personalização do poder de famílias e líderes político-militares como os Médici, os Montefeltro, os Gonzaga, os Este, os Sforza e o rico patriciado da República de Veneza. Neste capítulo em que analisamos a obra de Tullia D‟Aragona, consideramos importante fazer uma reflexão sobre a inserção das mulheres nestes espaços cultos renascentistas46. Desse modo, é importante destacar que houve a participação de algumas mulheres nos espaços das cortes renascentistas, mais pluralistas, voltados à cultura humanista. A ascensão da mulher erudita e escritora ocorreu neste cenário e muitas delas conseguiram publicar livros, alcançaram a notoriedade e foram reconhecidas pela qualidade de seus escritos e pelo talento com que escreveram e se dedicaram às letras. Este foi o caso de Túllia que expôs suas idéias através de seus escritos. Nestes espaços algumas mulheres exerceram papeis tão importantes quanto os homens poderosos, os poetas, os artistas e os cortesãos. Como bem aponta a historiadora Margaret L. King a mulher do Renascimento 47 abrange muitas mulheres: de mães às bruxas, das santas enclausuradas às guerreiras, rainhas, escritoras. No clima artístico e intelectual do Renascimento, a maioria das mulheres de classes dominantes não governava, mas partilhava algumas prerrogativas do poder. Particularmente na Itália, exerciam o poder através do mecenato. As mulheres podiam exibir sua autoridade para moldar o pensamento e a cultura. Assim, nas cortes, centros de riqueza, de atividades criativas e do uso da palavra, havia oportunidades para que mulheres cultas desempenhassem papéis de patronesse das artes a da cultura, como observamos na obra O Cortesão de Baltassare Castiglione, que ao descrever a corte de Urbino, reflete que ambos os sexos deveriam possuir um comportamento elegante, definido pelo fenômeno da corte. Os homens não deveriam ser muito turbulentos enquanto que as mulheres deveriam ser belas e inteligentes. Notamos que eram inúmeras virtudes que as 46 SMARR, Janet L. “Dialogue of Dialogues: Tullia D‟Aragona and Sperone Speroni.” MLN 113 (1998) 204-212; CURTIS-WENDLANDT, Lisa. “Conversing on love: text and subtext in Tullia D‟Aragona Dialogo della Infinità d‟Amore.” Hypatia Vol.19, n.4 (Fall 2004). 47 O recorte temporal e espacial proposto por King é definido de forma simples: inclui todas as mulheres cujas vidas se desenrolaram entre 1350 e 1650 na zona da Europa Ocidental. 42 mulheres deveriam possuir. No capítulo que Castiglione dedica à dama, afere que esta deveria ser refinada, culta, agradável e deveria dominar a arte da conversação, da música e da dança. Algumas damas amealharam tanta fama quanto seus maridos, só que em outro terreno, o da sociabilidade refinada e o da cultura, pois elas patrocinavam poetas, artistas e filósofos, que por sua vez procuravam estar sempre presentes nas cortes, e assim construíam suas reputações. O acesso à educação No mundo do saber, as mulheres permaneceram suspeitas durante o Renascimento. Se recebiam educação erudita e escreviam eram consideradas pouco femininas. É importante ressaltar que tanto as mulheres quanto os homens pobres não recebiam qualquer educação formal, embora muitos fossem treinados para exercer certos ofícios. Entretanto, a educação para homens e mulheres de classes médias e altas era distinta, uma vez que essas mulheres geralmente eram iniciadas numa cultura feminina específica, através da qual eram ensinadas as tarefas do lar, além da adoção de uma postura de silêncio e de obediência. Aprendiam a ler, mas esta leitura deveria ser limitada a alguns exemplares, os de devoção entre outros títulos como os de Dante, Petrarca e Boccaccio. Deste modo, a educação para estas mulheres possuía um duplo sentido: o de educar para o desenvolvimento de traços mais adequados ao casamento, bem como o de guiá-las no manejo da economia doméstica.48 Estes eram os componentes necessários à educação feminina: conselhos de castidade, silêncio e obediência. De acordo com King é possível observar que no século XIV muitas mulheres das classes superiores tinham adquirido uma instrução básica e também começaram a desenvolver o gosto pela leitura de livros em vernáculo. Para King o 48 Publicado em 1523, pelo humanista espanhol Juan Luis Vives o livro Institutio foeminae christianae apresenta um vasto comentário do humanista sobre o assunto. Durante sua carreira, Vives desafiou o monopólio escolástico da educação universitária, além de apontar para a responsabilidade do Estado na assistência aos pobres, abrindo, dessa forma, um espaço para uma educação às mulheres. Entretanto, a educação prevista por Vives para a mulher no Renascimento não cultivaria sua mente, mas daria suporte a seus deveres familiares. 43 triunfo do vernáculo entre as leigas corresponde ao afastamento do latim, a língua dos poderosos e seus conselheiros. De acordo com a autora, os séculos posteriores abundam em mulheres pensadoras, cuja escrita obteve maior audiência. A primeira autora independente, a ítalo-francesa Christiane de Pizan49, afirmou que se as mulheres recebessem a mesma educação dos homens, podiam fazer tudo o que os homens faziam. Alguns humanistas do período eram simpáticos à educação das mulheres: Erasmo, por exemplo, reconhecia a capacidade feminina de aprender as mesmas matérias que os homens e admirava as mulheres cultas de sua época. O alemão Agrippa defendeu a igualdade das mulheres contra a autoridade tradicional. Havia, portanto, pelo menos um pequeno grupo de homens que acreditava na aptidão feminina para uma educação superior. Os pais das mulheres cultas por vezes, foram os responsáveis pela educação das filhas. A maioria dos pais, porém, não desejava uma filha instruída e foram raros aqueles que tinham consideração pela inteligência de suas filhas. Este foi o caso do pai de Tullia D‟Aragona. Sobre a Infinidade do Amor Sobre a Infinidade do Amor50, escrito em 1547, faz parte do extraordinário corpo de diálogos produzidos no contexto italiano, no século XVI. A obra foi escrita por Tullia D‟Aragona que nasceu provavelmente em 1508 e foi uma das mais famosas escritoras romanas da Itália renascentista. Além do diálogo aqui analisado, Tullia escreveu as “Rime”, poesias muito comentadas e elogiadas e o poema épico “Il Meschino”. De acordo com Lisa Curtis-Wendlandt51 a escrita de Tullia ainda não recebeu a devida atenção no interior do discurso filosófico moderno. 49 Christine de Pizan (c.1365-1431) nasceu na Itália, mas ainda pequena foi com a família para a França, onde seu pai, médico e humanista, passou a servir o rei de França, Carlos V. Foi orientada pelo pai a uma educação nos moldes humanistas. 50 D‟Aragona, Tullia. Sobre a infinidade do amor. São Paulo: Martins Fontes, 2001. A obra utilizada nesta pesquisa foi traduzida a partir do texto Dialogo della signora Tullia d‟Aragona – Della infinita di amoré, contido nos Trattati d‟amore de Cinquecento, organizado por Giuseppe Zonta e publicado pela Editora Bari Gius. Laterza & Figli, em 1912. 51 CURTIS-WENDLANDT, Lisa. “Conversing on love: text and subtext in Tullia D‟Aragona Dialogo della Infinità d‟Amore.” Hypatia Vol.19, n.4 (Fall 2004). p. 44 A obra foi publicada pela primeira vez pela editora veneziana de Giolito de‟Ferrari, e se estrutura a partir de três interlocutores: Tullia, seu amigo, o filósofo aristotélico Varchi e um de seus ex-amantes, Benucci. Como apêndice há uma carta de outro admirador seu, o poeta Muzio. O diálogo se passa na vila de Tullia, nos arredores de Florença. De acordo com Sperone Speroni52, o diálogo é uma forma de prosa que possui muito de poesia e também de comédia. Comporta, dessa forma, várias personagens. Estas devem ser relativas a tipos reconhecíveis na cidade, e cada uma delas deve falar de acordo com o que lhes parece próprio de sua posição. Geralmente os diálogos possuem vários interlocutores que argumentam de acordo com seus costumes de vida. O diálogo pode ser considerado semelhante à dialética e à retórica, já que são artes ligadas ao provar e ao persuadir. Partindo de tais observações, podemos aferir que no diálogo do Tullia deve se levar em consideração que sua fala possui relação com sua prática amorosa enquanto cortesã. A questão principal da obra, como já sugere o título, é saber se o amor tem fim ou não. Utilizando estratégias discursivas muito bem elaboradas, Tullia endereça a pergunta a seu convidado Varchi, entretanto, ao longo da obra observamos que Tullia não apenas ativa o diálogo com suas questões, mas assume o papel de autora. É perceptível, dessa forma, a complexidade dos temas abordados por ela, que para além da discussão sobre o amor, discorre também sobre o conhecimento e sobre as relações de gênero. Logo no início do diálogo, Tullia censura Varchi, que contaria com muita “lógica”: VARCHI. Estais muito desconfiada hoje, mais do que o natural e contrariamente a vosso costume. E, no entanto, sabei que, tendo me concedido aquilo que é, ou seja, que „fim‟ e „término‟ são a mesma coisa, não podeis negar-me o que segue necessariamente, a saber, que aquilo que não possui fim não possui término, e vice-versa. Do que tendes medo? O que nos faz hesitar em conceder o que reconhecestes não poder negar? 52 Sperone Speroni (1500-1588) foi discípulo do aristotélico Pietro Pomponazzi, membro eminente da Acadêmia dos Infiammati em Pádua e autor, entre outros, de diálogos, dos quais os mais notáveis são o Diálogo delle lingue e o Dialogo di amore, em que Tullia é uma das personagens 45 TULLIA. Tenho medo do que poderia me acontecer. Não sei. No início, esses lógicos embaralham o cérebro dos outros e dizem „sim‟ e „não‟; depois querem que diga no lugar deles e não cessam enquanto sua vontade não fique acima, seja errada ou reta. Tanto que, por mim, costumo compará-los aos ciganos quando enganam os passantes.53 À moda aristotélica, Varchi começa sua resposta definindo a terminologia para o seu debate. As palavras limite e término são estabelecidas como sinônimos, tem-se que algo sem fim também deve ser sem limite. Mas quando referente às palavras amor e amar Tullia nega sua sinonímia com o fundamento que um é um substantivo e outro verbo, e "verbos possuem um tempo, e os nomes têm significado sem tempo.”54 Com sua perspectiva temporal ampliada, considera Tullia que os verbos devem ter mais status que os substantivos. Insistindo na distinção aristotélica entre essência e acidente, Varchi afirma que a implicação temporal do verbo amar só é uma de suas propriedades acidentais. O amor como um substantivo e o amor como um verbo, ele argumenta, ainda são em sua essência o mesmo. TULLIA. (...) Dizeis que resolvestes a dúvida, e faltam o principal e o melhor. Fico satisfeita em conceder-vos tudo o que disseste até agora, mas isto não vos serve de nada enquanto não provardes que Amor não tem fim; e isso eu não sei como podeis provar. VARCHI. A vontade que tenho de ouvir alguns dos que aqui estão e o fato de parecer-me muito fácil o que a vós, talvez porque o quereis, parece obscuro e impossível, fizeram-me dizer isso assim. Mas que argumentos alegais para provar que Amor tenha fim? TULLIA. Nenhum, porém, é como vos digo. VARCHI. Quereis, portanto, que eu creia na autoridade. TULLIA. Não, senhor, mas na experiência, que é a única coisa em que acredito, muito mais do que em todos os argumentos de todos os filósofos.55 Varchi relaciona esta distinção aristotélica para o corpo humano e a alma e pergunta à Tullia “o que julgas mais digno: a alma em si, sem o corpo, ou a alma com o corpo”. Ela pergunta: "Quem não sabe que o conjunto todo, ou seja, 53 Idem, p.15. Idem, p. 22. 55 Idem, p. 45 54 46 a alma e o corpo unidos, é mais nobre e perfeito do que a alma sozinha?” 56 Sem criticar explicitamente a tradição filosófica, a questão de Tullia carrega implicações de longo alcance para o seu reconhecimento posterior da deficiência do amor humano. Ela se direciona a Varchi argumentando que segundo seus próprios princípios lógicos a alma e o corpo em conjunto devem ter pelo menos o mesmo valor que a alma tomada por si mesma, porque mesmo que o corpo não acrescente valor para a alma, a alma continuaria a exercer o mesmo poder unido com o corpo como ele seria por si só. Varchi discorda com o fundamento de que a mistura de corpo e alma não diminui o grau de pureza deste último. Só a alma é mais nobre "do mesmo modo como uma quantidade de ouro vale mais quando pura e isolada do que quando suja de lama ou misturada ao chumbo (...)”57 Esta hierarquia do corpo e da alma expressa no diálogo servirá como um pré-requisito para a seguinte distinção entre o amor espiritual e o amor sensual. Quando perguntada sobre o que é amor, Tullia o define como "um desejo de gozar com união aquilo que é verdadeiramente belo ou que parece belo no amante.”58 De acordo com Varchi, sua descrição do amor e do amar demonstra que ambas possuem um mesmo efeito e, assim, teriam também uma causa idêntica. Quanto a esta causa, Tullia acredita que a beleza é a mãe do amor, enquanto o conhecimento seria o pai. Varchi, no entanto, argumenta o contrário: parte da ideia de que o amor é um movimento, que necessita de um agente externo. Como sua causa, o amado seria este agente, que evocaria desejos de amor no amante. Assim, como parte ativa, o amado é considerado mais nobre do que o amante. Este argumento expresso por Varchi, que aponta para uma dicotomia terminológica, é estabelecida a partir da utilização dos termos opostos atividade e passividade, como indicadores de perfeição e imperfeição. De acordo com filósofa Lisa Curtis-Wendlant, na tradição aristotélica perfeição e imperfeição são associados com a superioridade masculina sobre a feminina. Logo, se a parte ativa é mais perfeita, de acordo com a tradição aristotélica sobre ambos os termos, então a beleza seria o pai, não a mãe do amor. Outra questão é colocada a partir desse desencadeamento de ideias. Se o amor dos amantes baseia-se num movimento que necessita de um agente 56 Idem, p. 30 Idem, p. 31. 58 Idem, p. 40. 57 47 externo, o que acontece quando o amor deixa de ser provocado? Varchi conclui que cada amante dever ter um “fim” em mente porque se não houvesse tal fim do movimento do amante para o amado, não haveria desejo e por consequência amor. Se os que atingem seu fim já não se movem, tem-se que ao atingirem seus objetivos, os amantes tornam-se satisfeitos. Concluindo esta argumentação Varchi afirma que dessa forma, o amor tem um fim e seria possível conceber um amor dentro de limites. TULLIA. Compreendi. Quereis dizer que, enquanto se ama, não se ama com término e que, depois, quando não se ama mais, a questão perde o sentido. Até nessa lógica vejo a mão de Deus. Mas, dizei-me: não acreditais que existam pessoas que amam para atingir o próprio objetivo e, uma vez satisfeitos, deixam de amar? VARCHI. Não, senhora. TULLIA. Perdoai-me, mas vós mostrais pouca experiência em casos de amor; pois eu assaz os conheci e conheço. 59 Tullia também faz um ponto a favor da finitude do amor ressaltando o valor de sua própria experiência. Ela sabe que não só os homens se apaixonam, mas também que eles cessam de amar. Neste caso, porém, Varchi avalia que a falha é o problema de rotular de amor ações que nada condizem com tal prática. A sequência do diálogo examina então a distinção entre os dois tipos diferentes de amor. Notamos que apesar dos argumentos de Tullia e de Varchi sobre a natureza finita do amor, existe uma maneira em que o amor também pode ser considerado infinito. Tullia explica como os desejos de pessoas no amor são infinitos e eles não podem se estabelecer depois de atingir alguma coisa. Isto porque depois de obtê-lo, os amantes anseiam por algo a mais, e depois outra coisa e algo mais depois disso. Tullia lembra que o amor é um substantivo polivalente. Aponta, assim, para a distinção entre o amor vulgar e o virtuoso. O amor vulgar está ligado ao simples desejo físico e apenas à procriação da espécie, deixando de exisitir assim que o desejo é satisfeito. O amor virtuoso, por outro lado é um sinal de nobreza do 59 Idem, p. 53. 48 indivíduo. Este amor não é gerado pelo desejo, mas pela razão e seu fim principal é um processo espiritual no qual almeja-se a transformação de si próprio para objeto do amor de alguém. Neste processo Tullia enfatiza a importância dos sentidos espirituais, tais quais os de visão, audição e, acima de tudo, a imaginação. Já se aproximando do fim do diálogo, Varchi levanta três questões finais relativas ao reconhecimento de Tullia sobre o amor vulgar. Em primeiro lugar, Varchi quer saber por que o amor vulgar é chamado de vulgar. Em segundo lugar, pergunta como o amor entre homens e meninos pode ser explicado e finalmente, a satisfação do desejo físico parece fazer aumentar ao invés de acabar com os apetites físicos. Tullia responde às questões levando a cabo uma importante modificação de sua definição sobre o amor, proposta anteriormente. A dicotomia inicialmente elencada por ela que estabeleceu a diferença entre o amor espiritual e o amor vulgar, nesse ponto ganha novos contornos. Agora o amor vulgar, outrora reprovável, é elogiado justamente por sua capacidade de geração de descendentes. TULLIA. (...) Vos respondereis da maneira que sei. Quanto à primeira, digo que sei bem que daquelas coisas que nos vêm pela natureza não podemos ser criticados nem elogiados; por isso, nem nas plantas nem nos animais tal amor pode ser criticado, ou chamado de lascivo ou desonesto, e nem mesmo nos homens; ao contrário,deve ser louvado. E tanto mais no homens, quanto esses produzem coisas mais perfeitas e mais dignas do que as produzidas pelas plantas e pelos animais; contanto, que tal apetite não seja desenfreado e excessivo, como muitas vezes observamos nos homens, que possuem livre-arbítrio, o que não ocorre nas plantas e nos animais, não porque são animais, como já dizia certa imperatriz, mas porque são guiados por um intelecto que não erra. Portanto, assim como ninguém pode ser repreendido por comer ou beber – ao contrário, merece ser elogiado, pois mediante tais ações restaura o calor natural e a umidade radical que nos mantém vivos -, merece ser enaltecido, e não censurado, aquele que gera um ser semelhante a si próprio (...)60 60 Idem, p. 102. 49 A pensadora aponta que os seres humanos não devem ser responsabilizados pelos impulsos de sua natureza. O aspecto físico que os homens possuem em comum com as plantas e os animais não devem ser considerados desonestos ou mesmo lascivos, em vez disso, o amor físico deve ser exaltado, no entanto, atenta para a subordinação dos desejos à razão, sinal distintivo que separa os seres humanos dos animais. A razão é, portanto, representada como a ligação entre a natureza e a moral. A dicotomia entre razão e natureza e a superioridade da primeira sobre a segunda, é mantida. Porém, percebemos na obra e mais especificamente neste ponto do diálogo, um distanciamento de Tullia da ortodoxia do neoplatonismo no que se refere aos aspectos físicos do amor, porque ela segue esta doutrina até certo ponto. TULLIA. O amor honesto, que é próprio dos homens nobres, ou seja, daqueles que possuem o espírito nobre e virtuoso, sejam quem forem, pobres ou ricos, não é gerado pelo desejo, como o outro, mas pela razão; e tem como fim principal transformar-se nele, de modo que os dois tornem-se um único ou quatro. Tal transformação foi discutida muitas vezes e com muita elegância tanto pelo senhor Francesco Petrarca, quanto pelo reverendíssimo cardeal Bembo. E por que só pode dar-se espiritualmente, seguese que em tal amor apenas os sentidos espirituais têm lugar principal, ou seja, a visão e a audição, e mais ainda a fantasia como a mais espiritual.61 Embora seu conceito de amor virtuoso seja emprestado de uma ideia cristianizada do amor platônico, Tullia enfatiza que além dessa união espiritual o amante também deseja “a união corporal para poder tornar-se, o mais que possa, um único ser com a coisa amada; mas como não consegue tornar-se tal, por não ser possível que os corpos penetrem inteiramente um ao outro, jamais poderá satisfazer esse desejo e assim não atinje jamais seu fim e, portanto, não poderá amar com término como concluí anteriormente.”62 61 62 Idem, p.91. Idem. 50 Um indivíduo pode se mover livremente de um estágio de amor para outro em ambos os sentidos. Tullia compara esse processo de transmutação com o processo que ocorre com uma planta quando esta tem sua natureza classificada como doméstica ou selvagem. Tullia através desse exemplo sugere implicitamente que o que muda não é a natureza essencial da planta (ou, por analogia, do amor), mas sua aparência e sua aceitação social. Amor vulgar, neste caso, poderia ser descrito como aquele que também possui a potencialidade e a nobreza do amor sincero. Temos que os limites colocados anteriormente entre amor vulgar e amor espiritual embaçam-se. A passagem de uma fase de amor a outro é possível e aparece como característica em todos os homens. Esta ênfase no papel dos „sentidos espirituais‟ como meio de ascenção foi um tema recorrente na literatura de base neoplatônica do Renascimento referente ao amor, como já observamos nas obras de Marsílio Ficino e de Pietro Bembo. Tullia, entretanto, segue esta doutrina só até certo ponto. Embora seu conceito de amor virtuoso e vulgar seja oriundo de uma cristalizada ideia do amor platônico, a escritora enfatiza a união corporal, além da espiritual, entre os amantes, alegando que esta também seria um desejo de união que poderia efetuar de fato uma identificação total entre os amantes. Porém, enquanto que o amor pode ocorrer através de uma fusão entre as almas dos amantes, o mesmo não ocorre entre os corpos, já que os organismos humanos não podem unir-se formando uma unidade corporal completa. Nesse sentido, o amante nunca será capaz de satisfazer seu desejo de tornar-se o objeto de seu amor, por conseguinte o amor não tem limites, já que não se pode amar com limites. Verificamos aqui que o amor físico para Tullia é parte integrante do mesmo tipo do virtuoso amor. A admissão dos aspectos físicos imbricados na sua concepção sobre o amor virtuoso é um ponto chave para compreender a produção de Tullia. Notamos, portanto, a presença de elementos platônicos empregados ao longo do texto, mas são por vezes transformados e modificados, apontando para uma mescla entre erudição e a própria experiência de Tullia. Tullia segue a tradição neoplatônica, mas marca sua diferença. Destaca-se no grupo trattatisti. Ela tenta lutar com os padrões de discurso. Enquanto Varchi está tentando discutir a questão na forma oficial, “adequada”, aristotélica, ela permanentemente o interrompe, questionando sua própria metodologia. Em Sobra 51 a Infinidade do Amor, Tullia aparece principalmente no papel de aluna aprendiz, enquanto Varchi assume a posição daquele que ensina. Varchi, ao longo do discurso quase nunca questiona os procedimentos argumentativos elencados, somente para lembrar à Tullia o método de discurso. A inclusão da metodologia aristotélica efetuada por Tullia D‟Aragona em sua obra pode ser relacionada ao prestígio que o domínio deste discurso filosófico possuía na época. A inclusão desta “linguagem do poder”, como aponta CurtisWendlant, ajudou D‟Aragona a promover-se como competente escritora. Ao longo de seu texto, Tullia tece uma relação entre poesia e filosofia, refere-se a Boccaccio e a Petrarca, introduz na discussão, dessa maneira, a poesia como uma alternativa de abordagem do tema. A influência de Cícero em sua obra também é presente, visto que o modelo dialógico ao estilo de Cícero foi difundido durante o Renascimento. No entanto, há uma série de elementos não cicerionianos em Sobre a Infinidade do Amor. A inclusão de um interlocutor feminio no diálogo é um significativo desvio deste modelo, por exemplo. Além disso, Tullia não era membro da aristocracia, pelo contrário, sua profissão como cortesã poderia facilmente suscitar um duvidoso status social. Na obra ela, porém, aparece como anfitriã e líder da conversa com seus convidados. Os limites entre Tullia (a personagem) e Tullia (autora) a se confundem. Ao se apropriar das estratégias discursivas comuns na produção literária do Renascimento D'Aragona estabelece seu próprio ponto de vista filosófico. Tullia d'Aragona não é certamente a mais radical e crítica escritora de seu tempo ao escrever sobre os temas das relações amorosas e sexo. Ela é mais contida do que a veneziana Veronica Franco, outra famosa intelectual e cortesã que escreveu de uma forma mais provocativa sobre questões de gênero, amor e sexualidade na segunda metade do século XVI. Entretanto, o diálogo de Tullia, suscita uma força perturbadora. Além de sua contribuição única para as teorias renascentistas sobre amor, além da notável complexidade com que ela força uma reavaliação dos objetivos e dos métodos de comunicação, d'Aragona também provoca um confronto entre a filosofia e sua própria experiência. Tullia nos mostra através de sua escrita como soube usar habilmente de estratégias para se firmar num meio cultural no qual as mulheres eram admitidas mais como musas inspiradoras e senhoras respeitáveis do que como pensadoras. 52 Ela soube manusear as ferramentas humanistas da retórica, da poesia, do diálogo e das boas e refinadas maneiras para se tornar conhecida, respeitada e considerada pela sua virtú. Insatisfeita com o lugar que socialmente as mulheres como ela ocupavam, Tullia mostrou que as idéias dos filósofos e dos poetas sobre o amor, a vida, as relações entre homens e mulheres eram muito limitadas, quando não mesmo equivocadas. 53 CONSIDERAÇÕES FINAIS A pesquisa que realizamos nessa monografia se insere numa tradição historiográfica que vem pelo menos há 30 anos trabalhando para corrigir uma distorção nas definições e interpretações históricas, neste caso em particular, do Renascimento. Trata-se de contribuir para uma compreensão mais plural do passado a partir da escolha de um tema pouco estudado pelos historiadores do Renascimento, o amor, sendo mais abordado, entretanto pelo viés dos estudos literários. Para tanto analisamos os tratados sobre o amor produzidos no século XVI por Pietro Bembo e Tullia D‟Aragona. Para melhor compreender a produção desses tratados consideramos necessário atentar para a tradição filográfica, ressaltando o lugar da discussão sobre o amor no debate filosófico e alguns dos seus mais importantes autores. Assim, no primeiro capítulo analisamos a obra Amore, Commentarium In Convivium Platonis publicada em 1469 por Marsílio Ficino, importante humanista italiano que traduziu as obras de Platão e difundiu suas idéias. Esta escolha se deve ao fato de sua doutrina do amor espiritual influenciou sobremaneira o pensamento, a literatura e a arte do Renascimento pelo menos até o século XVIII. Ao expor uma complexa definição filosófica do amor que formulou a partir da releitura que fez de “O Banquete” de Platão, Ficino nos apresenta uma filosofia estruturada a partir de conceitos platônicos sobre a alma e o amor e também de elementos cristãos. Esta fusão pode ser relacionada ao contexto em que o humanista produziu. Ainda que houvesse algumas características de reavaliação, inovação e transformação associadas a este período, os homens do Renascimento e do medievo ainda comungavam da mesma metodologia epistemológica. Com enfoque nessa perspectiva tomamos o pensamento renascentista nas suas relações com a Antiguidade Clássica, como nos propõe o historiador Paul Oskar Kristeller. Notamos que as idéias expostas por Ficino estão profundamente marcadas por uma vasta gama de estudos referentes a diferente fontes, tanto antigas, quanto medievais. Através da leitura da bibliografia referente ao tema e da análise das fontes percebemos a complexidade imbricada em trabalhar com recortes bem marcados como é o caso do Renascimento. Dessa forma, ao utilizarmos o conceito de 54 apropriação proposto por Kristeller visamos atentar para as continuidades presentes nas obras dos „modernos‟ em relação aos „antigos‟ atentando para releitura que o humanista Marsilio Ficino realizou das principais idéias platônicas referentes ao amor, criando um terceiro discurso sobre o tema. Percebemos também que as discussões elencadas por Ficino diferiam das dos humanistas cívicos. Estes pendiam suas questões para assuntos como o conceito de liberdade, por exemplo. Há que se ressaltar, no entanto, que tanto humanistas cívicos quanto os humanistas cristãos compartilharam o ideal da possibilidade de um aperfeiçoamento humano, além de uma concepção de conjunto por enfocarem perspectivas universais. Observamos, porém, que Ficino defende a contemplação como aspiração ideal de vida, cujo foco principal deveria ser uma aproximação de Deus. Com a análise dos tratados Os Assolani de Bembo e Sobre a Infinidade do amor de Tullia D‟Aragona pudemos detectar os pontos similares, como a influência neoplatônica em ambas as obras e principalmente as diferenças presentes nos dois tratados. Estes versam sobre o mesmo tema através de distintos pontos. Nesse sentido, preocupamo-nos também no enfoque nos sujeitos, dos lugares de onde falaram, escreveram e agiram, tendo em vista que tais lugares não foram somente construídos pelos próprios a partir de suas inserções nas relações sociais e nas práticas culturais, mas pela memória histórica. A influência platônica em ambos os tratados é perceptível através dos temas e também dos elementos formais que presente nos diálogos como as diferentes perspectivas sobre um mesmo assunto, as interrupções das personagens ao longo das exposições além do destaque de uma personagem que acaba por conduzir o diálogo. Na análise de Os Assolani , no segundo capítulo, enfocamos principalmente o estilo que o autor emprega para discorrer sobre o amor, bem como a maneira como conduz o diálogo e o desfecho. Bembo inaugura um tipo de tratado que se baseia na tensa relação entre a emergência do indivíduo e as novas formas sociais na qual estava inserido. Nesse sentido, preocupamo-nos em não descuidar de relacionar a produção da obra com seu contexto em que novos espaços de sociabilidade passam a se configurar: as cortes renascentistas. A obra esboça o cenário desses ambientes e evidencia um estilo de vida 55 aristocrático. Portanto, em Os Assolani Bembo atenta para a questão da comunicação do indivíduo com o outro e com o mundo através do enfoque na configuração dos espaços sociais das cortes. Nesse ponto, é possível estabelecer uma relação entre tal ideal cortês e a ética greco-latina que é pautada pela busca de equilíbrio, tão cara aos humanistas. A obra é considerada um dos primeiros grandes tratados filográficos do Renascimento. Através de um texto bastante tradicional e rebuscado Bembo estrutura sua obra partir de seis personagens que nos são apresentadas. Após discorrer sobre as diferentes formas de amar Bembo defende que o amor é um meio de salvação espiritual propiciada aos homens. Percebemos, através da fala dos interlocutores do diálogo, óticas diferentes sobre o mesmo tema através de um entrelaçamento que Bembo faz da filosofia e da literatura, lembrando da grande influência de Petrarca e Cícero na sua escrita. No terceiro capítulo percebemos que em Sobre a Infinidade do Amor Tullia discorre sobre o mesmo tema, porém, de maneira muito diferente. A linguagem utilizada por ela é sofisticada e demonstra o alto grau de erudição que possui. No entanto, sua escrita parece ser menos rebuscada que a de Bembo, o que não prejudica a exposição de suas ideias, pelo contrário. Em seu diálogo Tullia referese às hierarquias entre poesia, filosofia e experiência no que diz respeito ao conhecimento, neste caso o conhecimento do amor. Insere no diálogo a realidade colocando em dúvida as definições estruturadas pela lógica do interlocutor Varchi. Com essa atitude ela não nega o processo de reflexão encabeçado pelo filósofo aristotélico, mas aponta para os limites das definições fechadas que não levam em conta as múltiplas fontes do conhecimento, entre elas a experiência e a poesia. Através da análise das fontes Os Assolani e Sobre a Infinidade do Amor pudemos perceber que na tradição renascentista as mulheres têm lugar nos diálogos, como observamos em Os Assolani. No entanto, o papel delas é secundário. São os homens (ficcionais ou não) que desempenham o papel mais importante na condução do discurso filosófico sobre o amor. As mulheres geralmente são ativadoras do diálogo, fazem perguntas que permitem aos interlocutores masculinos o desenvolvimento de seus argumentos. Percebemos aqui, uma crucial diferença entre a escrita de Tullia e de Bembo. Esse distanciamento se dá, justamente pela problematização dos respectivos lugares 56 de enunciação: Bembo, poeta de grande renome, com acentuada respeitabilidade nos meios cultos renascentistas que através de um denso discurso sobre o amor, aponta para uma perspectiva unilinear que não leva em consideração as múltiplas fontes do conhecimento, entre elas a experiência. Por outro lado temos o lugar de Tullia, uma cortesã que possuía uma sólida formação cultural e que construiu se lugar no interior da produção do discurso poético e literário nos ambientes das cortes renascentistas. A alteridade da escrita de Tullia repousa não só no fato de escrever sobre um tema tão caro aos humanistas da época, mas também na maneira como problematiza as relações sociais. Ela conseguiu inserir-se num espaço masculino, no qual raramente uma mulher era aceita. Levou para o debate um elemento central, que era sua experiência como cortesã. Através de seu erudito conhecimento e escrita demonstrou que as mulheres não eram inferiores aos homens por um motivo natural. O que ocorria de fato era o restrito acesso delas ao conhecimento e às experiências que os homens cultos possuíam Tendo em vista que a apropriação do passado nunca é linear, os estudos de gênero podem ser utilizados como uma chave para compreender as diferenças sociais e culturais na maneira que as apropriações culturais são feitas. Pretendemos, dessa maneira, uma compreensão mais plural do passado através da interpelação da memória histórica no sentido de apontar uma experiência, quase desconhecida na memória histórica, referente ao Renascimento, que é a produção de Tullia D‟Aragona, única mulher que escreveu um diálogo de amor no período. Certamente que ela não foi admitida no debate como uma igual – seu lugar de gênero e como cortesã nunca foi apagado – mas sua escrita nos mostra as estratégias utilizadas, que forçaram os limites das convenções e dos cânones renascentistas. 57 FONTES BEMBO, Pietro, 1505: Gli Asolani / Los Asolanos, Ed. Bosch, Barcelon, 1990. D‟ARAGONA, Tullia. Sobre a infinidade do amor. São Paulo: Martins Fontes, 2001. PLATÃO. O Banquete; tradução, introdução e notas do Prof. J. Cavalcanti de Souza. 9ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. _______. Fédon. Tradução Heloísa da Graça Burati. São Paulo: Rideel, Biblioteca Clássica, 2005. FICINO, Marsílio. De Amore. Comentario a el Banquete de Platon. Tradução, apresentação e notas de Rocío de la Villa Ardura. – 3ª edição- Madrid: Editorial Tecnos, 1994. 58 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1991. CASTIGLIONE, Baltasar. O Cortesão. São Paulo: Martins Fontes, 1997. Primeiro Livro. CURTIS-WENDLANDT, Lisa. “Conversing on love: text and subtext in Tullia D‟Aragona Dialogo della Infinità d‟Amore.” Hypatia Vol.19, n.4 (Fall 2004). ELIAS, Norbert. O processo civilizador. 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