6 Le Monde Diplomatique Brasil setembro 2009 legalização das drogas Tráfico, guerras e despenalização Racismo, xenofobia, negócios e moralismo são as raízes da atual conjuntura proibicionista. As drogas – que sempre fizeram parte da cultura humana – foram divididas em lícitas e ilícitas por motivos arbitrários e políticos. A problematização da proibição e a tentativa de encontrar soluções são vitais para a superação dessa utopia punitiva POR THIAGO RODRIGUES* N a passagem do século XIX para o século XX, drogas como a maconha, a cocaína e a heroína não eram proibidas. Ao contrário, elas eram produzidas e vendidas livremente ou com muito pouco controle. No entanto, passaram a ser alvo de uma cruzada puritana, levada adiante por agremiações religiosas e cívicas dedicadas a fazer lobby pela proibição. Nos Estados Unidos, as campanhas contra certas drogas psicoativas foram, desde o início, mescladas a preconceitos, racismo e xenofobia. Drogas passaram a ser associadas a grupos sociais e minorias, considerados perigosos pela população branca e protestante, majoritária no país: mexicanos eram relacionados à maconha; o ópio vinculado aos chineses; a cocaína aos negros; e o álcool aos irlandeses.1 Esta última, aliás, foi a primeira droga amplamente visada pelos proibicionistas americanos. E com sucesso: em 1919, eles conseguiram aprovar a Lei Seca, que proibia toda a economia do álcool no país (produção, distribuição, venda, consumo, importação e exportação). Pela sua abrangência e intenções, a Lei Seca é considerada o paradigma do proibicionismo: a meta de extinguir completamente das práticas sociais uma substância psicoativa e os hábitos relacionados a ela. Extirpar o vício. Quando a Lei Seca foi aprovada, a movimentação internacional proibicionista tinha dado seus passos iniciais. Em 1909, aconteceu em Xangai, China, a primeira conferência internacional para discutir o controle de drogas, mais especificamente do ópio e seus derivados (como a morfina e a heroína). Cedendo a pressões dos EUA, países como o Reino Unido, França, Alemanha e Holanda, cujas empresas coloniais lucravam muito com o comércio de ópio, comprometeram-se vagamente a limitar seu negócio. Apesar de pouco objetiva, a conferência foi o primeiro de uma série de encontros diplomáticos que aprofundaram as limitações probicionistas, até que, em 1961, a Convenção Única da ONU (Organização das Nações Unidas) universalizou o proibicionismo2 Esse tratado consolidou o modo de lidar com psicoativos ilegais – e as pessoas envolvidas com eles – que, em linhas gerais, perdura até ho- je: apenas as drogas com uso médico comprovado poderiam ser legais. Logo, todos os outros fins relacionados às sensações derivadas de estados alterados de consciência deveriam ser proibidos, e as pessoas relacionadas a eles, punidas. A produção de criminosos Muitos criminosos foram fruto da proibição: produtores, negociantes e consumidores de drogas foram lançados na ilegalidade. A utopia proibicionista apostou que, combinando leis punitivas com repressão policial, eliminaria hábitos relacionados a drogas que eram, muitas vezes, seculares. Não conseguiu. Ao contrário, abriu um campo de ilegalidade que apenas cresceu nas décadas de vigência da proibição. Há alguns anos, foi veiculada no Brasil uma campanha que acusava o usuário de financiar o tráfico. No entanto, o consumo de psicoativos existia antes da proibição e continuou sob ela, só que um mercado inteiro passou à ilegalidade e, com isso, inúmeras pessoas, com seus hábitos e negócios, tornaram-se criminosas. O mercado de drogas não foi eliminado por decreto nem por repressão. Assim, o que financia o tráfico de drogas não é o usuário, mas a proibição. Na busca por extinguir perigos para a sociedade, a proibição acabou por criminalizar condutas, mas nem todos, na prática, são alvos da lei. Seletivamente, a maioria dos novos criminosos foi encontrada entre as classes pobres (negros, nordestinos, mexicanos etc.) e entre subversivos (contestadores, hippies, artistas e “desajustados”). Nos Estados Unidos, a maioria dos presos por crimes relacionados a drogas é negra ou hispânica, apesar de ambos os grupos serem minorias no país3 Uma pesquisa nos dados prisionais brasileiros revelaria algo similar, com negros, mulatos, favelados e migrantes sem dinheiro. Quase todos muito novos. Jovens pobres são convocados pelos chamados partidos ou comandos do crime como soldados e aspirantes a chefetes efêmeros. Jovens pobres se alistam como soldados das forças policiais e almejam ingressar em tropas de elite para lutar contra o narcotráfico. Na guerra cotidiana entre polícia e traficantes, e entre grupos rivais do tráfico, pessoas vão sendo eliminadas com balas certeiras e perdidas. Ou são detidas para − estigmatizadas e marcadas − dificilmente deixar a prisão um dia, mesmo se forem soltas ou fugirem. Uma guerra na guerra Em 1972, o presidente Richard Nixon declarou guerra às drogas, consideradas por ele uma ameaça à segurança nacional americana. A partir de então, os EUA se identificavam como um país consumidor de drogas produzidas em outros lugares e que, por causa disso, tinha o direito de defender suas fronteiras e, quando necessário, atacar as fontes dessas substâncias. Ainda que essa divisão estanque entre países produtores e países consumidores não tenha se sustentado diante das evidências (maconha cultivada nos EUA e no Canadá, drogas sintéticas produzidas nesses dois países e também na Europa), a lógica da war on drugs complementou o proibicionismo diplomático já consolidado.4 Como numa efetiva guerra, os Estados Unidos investem, há quase 40 anos, na militarização do combate ao narcotráfico. Desde as ações bélicas americanas nos Andes, na década de 1980, passando pelo Plano Colômbia, lançado em 1999, até à recente Iniciativa Mérida – versão mexicana do plano colombiano, iniciada em 2008 –, bilhões de dólares têm sido destinados para o combate militar ao narcotráfico. E, ainda assim, o mercado ilícito de drogas não deixou de se adaptar e expandir. Desse modo, a guerra às drogas, alçada à posição de questão geopolítica crucial neste início do século XXI, se apresenta infindável em sua violência e muito interessante para potencializar negócios: a indústria bélica vende para os dois lados (traficantes e forças de segurança); as indústrias químicas, idem (por exemplo, precursores para a fabricação de psicoativos e desfolhantes para fumegar plantações de coca); as empresas de segurança privada protegem criminosos e oleodutos, enquanto os bancos lavam dinheiro. O combate ao narcotráfico se constituiu como uma guerra em muitas: em vielas, favelas, fronteiras e através das fronteiras. E quanto mais se aposta na utopia proibicionista, mais rentável e interminável a guerra às drogas tem se mostrado. Reformar ou ousar? Diante da constatação de que a guerra às drogas não alcançou seu objetivo declarado, especialistas, autoridades e personalidades públicas passaram a defender a reforma do proibicionismo. A partir dos anos 1980, por exemplo, liberais como o economista Milton Friedman e os editores da revista The Economist retomaram argumentos utilitaristas para afirmar que o uso de drogas não era o ideal, mas que a proibição era pior pelos custos que gerava (em violência, dinheiro e violação das liberdades individuais). A ilegalidade apenas produzia criminalidade e descontrole (de uso e de mercado). Então, a melhor maneira de controlar as drogas seria legalizando-as. Com isso, o grande mercado ilícito seria suprimido, empresas legais poderiam se dedicar ao negócio, o direito dos consumidores seria respeitado e os impostos gerados com a tributação serviriam para financiar campanhas de conscientização contra as drogas e para tratamento de adictos. Friedman e a The Economist defenderam a legalização de todas as drogas ilícitas. Hoje, personalidades como os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Ernesto Zedillo (México) defendem a descriminalização do uso das chamadas “drogas leves”, principalmente da maconha. Descriminalizar o uso significa não tratar o usuário como criminoso, o que não implica “deixá-lo livre”: ao ser considerado “usuário”, o indivíduo passa a ser capturado por um circuito de penas alternativas (prestação de serviços à comunidade ou, até mesmo, tratamento médico compulsório). Para os traficantes permanece a punição prisional, e para as drogas, mantém-se a proibição. Tanto os argumentos liberais quanto tais discursos a favor da descriminalização não são apologistas das drogas. Pelo contrário, consideram os psicoativos nocivos e indesejáveis. Dessa forma, poderíamos dizer que, em geral, esses pontos de vista são desfavoráveis ao consumo, mas consideram o proibicionismo um modo pouco eficaz para controlá-lo. Seus defensores argumentam que seria preciso considerar as drogas como um problema de saúde pública e não de segurança pública. Nesse sentido, a nova lei brasileira sobre drogas – aprovada em 2006 e que segue proi- setembrO 2009 Le Monde Diplomatique Brasil debates em curso bicionista – estabelece que a quantidade de droga flagrada com alguém determinaria se a pessoa é “usuária” ou “traficante”. Como essa lei não define esses números, no dia-adia fica a cargo dos policiais e do delegado registrar a categoria. Nessa brecha, segue a prática da seletividade penal, marcando a diferença social e de cor entre “usuários” e “traficantes”. Hoje, é provável que aquele que não se enquadre no estereótipo de “usuário” ou “traficante” não tenha problemas com a polícia. Para quem não tem essa sorte ou recursos (para eventuais subornos ou advogados), o proibicionismo funciona. E funciona seletivamente, sustentando a violência e grandes negócios. Saber que a proibição se estruturou historicamente a partir de camadas de moralismo, racismo, seletividade penal e preocupação com a saúde pública é fundamental para que o debate sobre as drogas seja problematizado, evitando as polêmicas estéreis e sensacionalistas que geralmente dominam a discussão. É importante para que se tenha em mente que passos estratégicos podem ser dados para enfrentar o proibicionismo, sem considerar propostas de legalização ou de descriminalização do uso como panaceias progressistas deslocadas das práticas sociais e históricas em que se inscrevem. O psiquiatra americano Thomas Szasz provocou discussão ao afirmar que a verdadeira legalização das drogas aconteceu quando substâncias que não eram reguladas pelo direito passaram a sê-lo diretamente pela via da proibição.5 As bases mais elementares do proibicionismo – moralismo, racismo, defesa de uma certa saúde universal – não são abaladas por propostas de legalização para o mercado ou descriminalização que mantém a proibição. Seria então o caso de tentar um deslocamento, uma mudança de ângulo, reparando nos argumentos dos abolicionistas penais, como o jurista holandês Louk Hulsman, que diante do excesso de penalizações e soluções pretensamente universais, nos convidou a pensar fora do campo penal, despenalizando condutas e situações para encontrar encaminhamentos singulares que solucionem situações particulares, utilizando, por exemplo, recursos do direito civil, como a conciliação e as compensações6. O filósofo Michel Foucault afirmou que o frustrava que “sempre o problema das drogas seja tratado em termos de liberdade ou proibição”. Isso, porque, segue Foucault, “as drogas são parte de nossa cultura. Da mesma forma que não podemos dizer que somos ‘contra’ a música, não podemos dizer que somos ‘contra’ as drogas”7. A busca de soluções universais é o vício que aflige até mesmo sinceros críticos da proibição. E há traficantes de sonhos e propostas aos borbotões. No entanto, a tarefa de problematizar o proibicionismo e as propostas antiproibicionistas parece vital para que essa utopia punitiva não seja contraposta a outras soluções também pretensamente universais. Essa tarefa é incômoda, mas importante para mostrar como a proibição não é natural ou inevitável. Ela tem uma história política que é preciso conhecer para enfrentar. *Thiago Rodrigues é professor credenciado do Programa de Pós-graduação em Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense, membro do Nu-Sol/PUCSP e pesquisador associado ao NEST/UFF e GAPCon/ Ucam. É coordenador licenciado do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina (Fasm). 1 Antonio Escohotado, Historia elemental de las drogas, Barcelona, Anagrama, 1996. 2 William McAllister, Drug diplomacy in the twientieth century, Nova Iorque, Routledge, 2000; e Thiago Rodrigues, Narcotráfico, uma guerra na guerra, São Paulo, Desatino, 2003. 3 Ver John S. Robey, “A war on drugs or a war on minorities?” em Stuart Nagel (org.), Handbook of legal policy, Nova York, Marcel Dekker Inc., 2000. Consulte também Beatriz Labate, Sandra Goular, Mauricio Fiore, Henrique Carneiro e Edward McRae (orgs.), Drogas e cultura, novas perspectivas, Salvador, Edufba, 2008. 4 Edson Passetti, Das “fumeries” ao narcotráfico, São Paulo, Educ, 1991; e Thiago Rodrigues, Política e drogas nas Américas, São Paulo, Educ/Fapesp, 2004. 5 Thomas Szasz, Nuestro derecho a las drogas, Barcelona, Anagrama, 1993. 6 Para discussão sobre a perspectiva abolicionista penal, consulte o site do Núcleo de Sociabilidade Libertária (NuSol) – www.nu-sol.org – em especial os “Verbetes abolicionistas” e as edições da revista Verve. Consulte também Edson Passetti (org.), Curso livre de abolicionismo penal, Rio de Janeiro/São Paulo, Revan/Nu-Sol, 2002. 7 Michel Foucault, “Michel Foucault, uma entrevista: sexo, poder e política”. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento. Em Verve, São Paulo, Nu-Sol, v. 5, 2004, pp. 264-65. POR MARCO MAGRI* O debate sobre uma reforma nas políticas e leis de drogas não está sendo pautado, na mídia e no governo, por acaso. Após reunião das Nações Unidas, realizada em março deste ano em Viena, que avaliou a última década de políticas internacionais sobre drogas, diversas ações começaram a ganhar notoriedade e publicidade no país. A constatação de que não existe mais um consenso mundial sobre a política de drogas foi essencial para que diversas iniciativas pouco conhecidas ganhassem espaço no debate. Paralelamente à agenda oficial, a política proibicionista de guerra às drogas já era criticada duramente no Brasil por diversos setores e movimentos. O conceito de “redução de danos”, que agora faz parte do vocabulário de todos que trabalham com o assunto, cresceu e tem sido amplamente citado como alternativa aos fracos resultados das políticas de abstinência. No sistema de saúde, esta abordagem tem tido resultados surpreendentes em comparação com seus investimentos ainda escassos. Com uma estratégia muito mais próxima do usuário de drogas, a redução de danos tem conseguido trazer de volta aqueles cidadãos abandonados pelas políticas públicas em geral. Além disso, entre os dependentes, o tratamento sustentado é muito mais eficaz e tem tido resultados sensivelmente melhores. Neste campo, a Aborda (Associação Brasileira de Redutoras e Redutores de Danos) tem sido responsável por articular nacionalmente os redutores de danos engajados em uma mudança no paradigma do tratamento dos usuários de drogas. As universidades e a produção acadêmica em geral têm papel fundamental na construção da crítica ao proibicionismo. São diversos os pesquisadores que nos últimos anos se dedicaram a demonstrar cientificamente que a guerra às drogas é uma batalha perdida, que um mundo livre de drogas nunca existiu e que são muitas as esferas responsáveis pelo debate desta questão, não somente a do direito penal. Entre os principais atores deste processo está o Neip (Núcleo de Estudos Interdisciplinar sobre Psicoativos) e o IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais). Estes grupos respondem pela produção de conhecimentos que propiciam uma crítica fundamentada na pesquisa científica, com reconhecimento internacional. A sociedade civil tem sido também essencial na construção da crítica ao modelo proibicionista e na proposição de novas plataformas para a política de drogas. A organização não governamental Viva Rio tem ações voltadas, especificamente, para essa questão, e atuação constante nos debates nacionais e internacionais. A ONG Psicotropicus também tem tido participação forte no debate, incluindo temas como violência urbana e criminalização da pobreza, relacionando-os com o tráfico de drogas. Em outras regiões do país, movimentos começam a debater a política de drogas de maneira descentralizada. Em Salvador, a Ananda desempenha papel fundamental na articulação dos redutores de danos locais, pesquisadores acadêmicos e ativistas pró- legalização. Em São Paulo, o Coletivo D.A.R (Desentorpecendo a Razão) recentemente iniciou debates sobre política de drogas e tem avançado na articulação local a partir de uma concepção que responsabiliza o proibicionismo pela violência do crime e do Estado. Realizada desde 2007, a Marcha da Maconha foi às ruas pedir a legalização e encontrou forte resistência sob a acusação de apologia ao crime e ao tráfico de drogas. Com a argumentação de que a proibição da Marcha fere o direito de liberdade de expressão, a Procuradoria Geral da República levou ao Supremo Tribunal Federal a questão, que deve ser analisada nos próximos meses. Segundo notícias e declarações de integrantes do Governo, do Parlamento e do Judiciário, podemos vislumbrar uma tentativa, ainda neste ano, de mudança em alguns pontos da Lei de Drogas, ou na política de drogas em geral. É somente a partir do enraizamento sem preconceitos deste debate na sociedade que se poderá vislumbrar um contexto no qual os problemas decorrentes do abuso no uso de drogas sejam resolvidos longe da esfera da militarização e do direito penal. Abandonar o paradigma da proibição significa construir uma regulação que respeite o princípio constitucional da autonomia do individuo, defenda e promova os direitos humanos dos usuários de drogas e que não atue como causa ou justificativa de violência por parte do crime e do Estado. *Marco Magri, cientista social, membro dos Coletivos Marcha da Maconha e D.A.R. 7