Dois sistemas jurídicos e o homicídio Luciana Carvalho Fonseca Corrêa Pinto Como o homicídio pode variar de um país para outro? Cada sistema jurídico tem uma terminologia singular. A tarefa do tradutor é a constante busca de correspondentes que, muitas das vezes, não preenchem integralmente as acepções de um termo na língua-fonte ou, às vezes, nem sequer existem na língua-alvo. Todavia, a utilização do termo adequado não depende apenas de um bom dicionário, mas de conhecimentos técnicos por parte do tradutor. Assim, a formação jurídica em muito contribui para o sucesso profissional do tradutor e do intérprete, pois é necessário evitar traduções equivocadas, tais como “homicídiosuicídio” e “homicídio involuntário”, que não encontram correspondentes em nosso sistema, apesar de constarem de renomados dicionários bilíngües brasileiros. Expressões como estas apenas confundem o leitor, dificultando a compreensão do texto e, conseqüentemente, prejudicando o entendimento do sistema jurídico-alvo por completo. Ao examinarmos o crime de homicídio nos sistemas brasileiro e inglês, certamente encontraremos termos como homicídio, homicídio simples, homicídio culposo, homicídio culposo simples, homicídio culposo qualificado, homicídio doloso, homicídio qualificado, homicídio privilegiado, homicide, manslaughter, voluntary manslaughter, involuntary manslaughter, constructive manslaughter, gross negligence manslaughter e murder. São estes os termos aos quais tentarei, ao final, atribuir uma tradução tão próxima quanto o possível, valendo-me de um exame perfunctório dos sistemas jurídicos brasileiro e inglês traçando as linhas gerais do crime de homicídio em ambos os ordenamentos jurídicos, culminando com uma lista de termos português/inglês dos prováveis correspondentes. Sistema brasileiro O homicídio é a morte de um homem causada por um outro. É previsto no art. 121 da Parte Especial do Código Penal Brasileiro (CP) e em leis extravagantes como a Lei de Crimes Hediondos, o Código de Trânsito e o Código Penal Militar. Todavia, restringiremos este breve estudo ao exame do art. 121 do Código Penal Brasileiro, pois nele encontraremos praticamente toda a terminologia usada no sistema jurídico pátrio. Trata-se de crime contra a vida sujeito a julgamento pelo Tribunal do Júri, assim como o aborto (art. 124 a 128), o infanticídio (art. 123) e o induzimento, instigação ou auxílio a suicídio (art. 122). Em todos estes crimes o bem tutelado é a vida humana. O crime de homicídio (art. 121, CP) apresenta subespécies: o homicídio simples (caput); o homicídio privilegiado (§1.º); homicídio qualificado (§2.º); homicídio culposo (§§ 3.º, 4.º e 5.º) e homicídio doloso (§4.º). O caput do art. 121, o mais curto do diploma legal em exame, reza: “Matar alguém. Pena - reclusão de 6 a 20 anos”. O tipo penal define o homicídio simples. Esta pena, contudo poderá ser diminuída mas, para ser beneficiado por uma pena mais branda, o réu deverá provar que cometeu o crime: por motivo de relevante valor social (e.g. pai que mata estuprador da filha. A eutanásia poderia ser enquadrada aqui); por motivo de relevante valor moral (e.g. cidadão que mata um traidor da pátria); sob o domínio de violenta emoção (e.g. alguém que mate por fanatismo religioso); logo em seguida a injusta provocação da vítima (e.g. explosão de ira). Nestes casos o crime será o de homicídio privilegiado e o privilégio será examinado em quesitos feitos ao Júri. O parágrafo seguinte prevê o homicídio qualificado ao qual é atribuída uma pena de reclusão de 12 a 30 anos. O homicídio será qualificado quando for cometido: por motivo torpe, dentre os quais se incluem a paga (recebimento prévio) e a promessa de recompensa (e.g. o marido que mata a esposa que não quer se prostituir comete o crime de homicídio qualificado pelo motivo torpe); por motivo fútil (e.g. o homem que mata outro por uma lata de cerveja); com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum; à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido (e.g. exemplo clássico da última hipótese é aquele que comete o crime após ministrar à vítima uma substância entorpecente); para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime (e.g. o sujeito que mata o comparsa para que este não o denuncie comete o crime de homicídio qualificado para assegurar a impunidade). Após esta brevíssima explanação, faz-se mister esclarecer o que é o homicídio doloso. O crime de homicídio doloso é aquele que é cometido intencionalmente. Isto é, o agente quis, ou assumiu o risco de produzir, o resultado morte, diferentemente do que ocorre com homicídio culposo, no qual ele age com imprudência, negligência ou imperícia. Os homicídios qualificados do §2.º são todos homicídios dolosos. O homicídio culposo previsto nos §§ 3.º e 4.º é o crime cometido por um agente que não quis o resultado morte. É causado por negligência (omissão do dever geral de cautela), imprudência (ação perigosa) ou imperícia (falta de aptidão para o exercício de arte ou ofício). O homicídio culposo poderá também ser qualificado quando: resultar de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício; o agente deixar de prestar imediato socorro à vítima; o agente não procurar diminuir as conseqüências do seu ato; o agente fugir para evitar prisão em flagrante. Se não ocorrer nenhuma das hipóteses supra (§4.º), o homicídio culposo será dito simples. Uma peculiaridade do homicídio culposo é o fato de o juiz poder deixar de aplicar a pena, se as conseqüências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária, como, por exemplo, no caso em que o agente fique paraplégico ou na hipótese de morte de um filho. São estas, em suma, as figuras que fazem parte do homicídio no sistema jurídico brasileiro. Examinaremos, em seguida, o sistema inglês. Sistema inglês A primeira grande diferença entre os dois sistemas é notada quando se procura os diplomas legais que tipificam o homicídio na Inglaterra e País de Gales. É interessante notar que o crime de murder não está previsto em um diploma legal, isto é, em uma lei ou um código. Isto decorre do fato de o sistema inglês ser substancialmente jurisprudencial (e não consuetudinário como muitos imaginam). Conseqüentemente, a tarefa de achar um termo em português que se aproxime do murder inglês exige uma análise dos elementos do crime na jurisprudência e doutrina inglesas. Para o sistema inglês, considera-se homicide: the unlawful killing of a human being. Como é considerado o mais grave crime previsto no ordenamento jurídico, a ele são atribuídas as maiores penas. Homicide é gênero do qual murder e manslaughter são espécies. Assim, o crime de murder ao qual é estabelecida a maior pena do sistema inglês, que é a de prisão perpétua (life imprisonment), é considerado um common law offence (crime previsto na jurisprudência, não possuindo definição em um diploma legal) e, como tal, foi definido por Coke: "Murder is when a man of sound memory, and the age of discretion, unlawfully killeth within any county of the realm any reasonable creature in rerum natura under the king's peace, with malice aforethought, either expressed by the party or implied by law, so as the party wounded, or hurt etc. die of the wound or hurt, etc. within a year and a day after the same." Por meio deste conceito, podemos destacar os elementos que fazem do homicide um crime de murder. São eles: o agente capaz; a morte de um homem causada por outro; a morte injustificada; o dolo; a ocorrência da morte da vítima no período de ano e dia em decorrência da lesão (Este requisito foi abolido pela Law Reform Act de 1996). Como se observa do desmembramento da definição supra, o crime de homicide e o crime de homicídio não apresentam os mesmos elementos, o que dificulta o uso da terminologia adequada, impedindo um perfeito paralelo entre os sistemas brasileiro e inglês. Todavia, a questão será melhor elucidada quando analisarmos a figura manslaughter. Sob diversas condições, o crime de murder poderá ser desqualificado para manslaughter, crime cuja pena é menos severa. Situação semelhante ocorre no sistema brasileiro quando, por exemplo, o homicídio simples é desqualificado para culposo ou privilegiado, ou ainda quando o homicídio deixa de ser crime na presença de uma das excludentes de antijuridicidade (legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal, exercício regular do direito) previstas nos arts. 23 a 25 na Parte Geral do CP. Há, pois, dois tipos de manslaughter: voluntary e involuntary. Dar-se-á voluntary manslaughter quando o réu puder valer-se das três defesas (three statutory defences) previstas no Homicide Act de 1957: provocation, diminished responsibility e suicide pact. O réu poderá também se valer de defesas gerais (general defences) aplicáveis a todos os crimes, entre elas: mistake, ignorance of law, intoxication, insanity, duress, etc. que, em regra, no Brasil assumem a denominação de atenuantes e agravantes. Todavia, examinaremos apenas as defesas previstas no Homicide Act, a saber: diminished responsibility: Where a person kills or is a party to the killing of another, he shall not be convicted of murder if he was suffering from such abnormality of mind (whether arising from a condition of arrested or retarded development or any inherent causes or induced by disease or injury) as substantially impaired his mental responsibility for his acts and omissions in doing or being a party to the killing (Homicide Act 1957). provocation: The jury will decide whether the defendant was in fact provoked and whether provocation was enough to make a reasonable man do what the defendant did (Homicide Act 1957). suicide pact: It is the common agreement between people having for its object the death of all of them, whether or not each is to take his own life, but nothing done by a person who enters into a suicide pact shall be treated as done by him in pursuance of the pact unless it is done while he has the settled intention of dying in pursuance of the pact (Homicide Act 1957). Por fim, antes de estabelecermos a correlação entre os dois sistemas na terceira parte deste trabalho, falaremos sobre o involuntary manslaughter. Haverá o crime de involuntary manslaughter quando o agente não tiver o dolo (mens rea) do murder. São exemplos: dar um soco na vítima e esta cair e morrer, e ameaçar alguém com uma arma carregada que acidentalmente dispara. O crime de involuntary manslaughter subdivide-se em duas categorias principais: constructive manslaughter e gross negligence manslaughter. Haverá constructive manslaughter quando o agente praticar atos ilícitos e perigosos (unlawful and dangerous acts) que podem culminar em lesões corporais (physical harm) ou morte. Como se vê, não há a intenção de causar o resultado morte que advém de conduta ilícita e perigosa. Há, entretanto, a intenção de realizar o ato ilícito ou perigoso. Gross negligence manslaughter também é previsto na jurisprudência e foi definido em R v Bateman (1925) [19 Cr App R 8]: (...) the negligence of the accused went beyond a mere matter of compensation between subjects and showed such disregard for the life and safety of others as to amount to a crime against the State and conduct deserving punishment." A linha divisória entre as categorias do involuntary manslaughter não é nítida, e em muitos casos um crime é enquadrado em ambas. Conclusão As sutilezas de cada sistema tornam árdua a tarefa do tradutor. Pois, apesar de haver figuras semelhantes em cada sistema, não há figuras idênticas. O exemplo mais claro é o homicídio privilegiado. Embora este crime exista em ambos os sistemas brasileiro e inglês, os elementos de cada um diferem grandemente, dificultando a uniformização da terminologia. Como poderá o tradutor transpor esses obstáculos? Tendo em vista a tecnicidade da matéria, é muito perigoso valer-se de “homicídio-suicídio” para definir o homicídio privilegiado do sistema inglês pelo pacto de suicídio. O leitor que se deparar como uma expressão desta, certamente nada extrairá da mensagem do texto. Uma solução mais clara, talvez (ressalvado o contexto maior do termo), seja uma tradução definitória como, por exemplo, chamar o voluntary manslaughter de homicídio privilegiado do sistema inglês e explicar também o privilégio; e.g. se é o de suicide pact, diminished responsibility ou de provocation. Assim, o tradutor transmitirá o verdadeiro conteúdo do termo na língua-fonte e não utilizará termos que sejam ininteligíveis para o leitor. [INSERIR GRÁFICO AQUI Luciana Carvalho Fonseca Corrêa Pinto é autora, tradutora e intérprete jurídica, advogada e especialista em direito pela PUC/SP. Mestranda em tradução e lingüística de corpus pela Universidade de São Paulo, ela também é professora de tradução e interpretação na Associação Alumni. [OLHO: O crime de homicide e o crime de homicídio não apresentam os mesmos elementos, dificultando o uso da terminologia adequada.] [INSERIR Carvalho-BR EM ALGUM LUGAR DO TEXTO COM A SEGUINTE LEGENDA: Lista de termos jurídicos e seus definições em inglês]