NOTAS SOBRE O DIREITO A MORADIA DIGNA Lucas Marinho Lima Mayara Mychella Sena Araújo Resumo: A moradia vem sendo cada vez mais objeto de atenção das distintas ciências sociais. De forma geral, os estudos sobre essa questão tratam da sua estrutura, de aspectos referentes à sua localização e ao acesso aos serviços urbanos. Quando a discussão recai nas condições habitacionais ou sobre a análise de suas formas de ocupação, conceitos e metodologias têm sido propostos na tentativa de estabelecer os parâmetros para a definição do que seria moradia digna. Entendendo-se que o estudo desse tema envolve desde aspectos relacionado às necessidades vitais até os de produção e reprodução social, seu estudo reveste-se de grande importância quando se trata das condições de vida de uma população dado que, conforme a Constituição brasileira, todos têm o direito a uma moradia que assegure abrigo e isolamento seja do meio social, oferecendo privacidade e comodidade, quanto do meio natural, proporcionando proteção contra as intempéries. Partindo desses pressupostos, este artigo tem como objetivo recuperar de forma sucinta o estado da arte sobre o tema, apresentando questões relacionadas à moradia digna. O ponto de partida da análise será uma breve apresentação dos fatores que vêm contribuindo para o agravamento das condições habitacionais no país. Em seguida, são pontuados resultados de algumas políticas no setor e, por fim, com base no referencial teórico levantado, expõe-se o que se compreende por moradia digna. Palavras-chave: condições de moradia, questões habitacionais e moradia digna. Bacharel em Ciências Econômicas pela UNYAHNA. Graduando em Direito pela UNYAHNA (7º semestre). Atua na Coordenação de Pesquisas Sociais (COPES) diretamente vinculada a Diretoria de Pesquisas (DIPEQ) da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI). [email protected]. Mestre em Geografia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Bacharel em Urbanismo pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Atua na Coordenação de Pesquisas Sociais (COPES) diretamente vinculada a Diretoria de Pesquisas (DIPEQ) da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI). Participa da pesquisa ―Dinâmica Urbana dos Estados / Rede Urbana do Brasil e da América do Sul‖ coordenado pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA) em parceria com a SEI. [email protected]. 1 NOTAS SOBRE O DIREITO A MORADIA DIGNA Lucas Marinho Lima Mayara Mychella Sena Araújo A moradia tem sido amplamente discutida por autores das distintas ciências, a exemplo da sociologia, economia, direito, arquitetura e urbanismo. De forma geral, os estudos sobre essa questão tratam da sua estrutura, de aspectos referentes à sua localização e ao acesso aos serviços urbanos. Quando a discussão recai nas condições habitacionais ou sobre a análise de suas formas de ocupação, conceitos e metodologias tem sido propostos na tentativa de estabelecer os parâmetros para a definição do que seria moradia digna, essa vista como elemento básico que se constitui num ―mínimo social‖1. Neste artigo adota-se o conteúdo expresso no texto da lei quanto ao entendimento de moradia digna. Conforme a emenda constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, que alterou o Art. 6º da Constituição Federal de 1988, seu completo e progressivo direito estabelece-se. Após essa data, a moradia passou a ser considerada como um direito universal, que assegura o ―[...] abrigo, adequado para todos e que se façam os assentamentos humanos mais seguros, mais saudáveis e mais agradáveis, equitativos, sustentáveis e produtivos‖. Essa emenda colocou a moradia na categoria de direitos sociais, junto a educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados. Após 19 anos de sua edição original, portanto, na Constituição finalmente consagra-se o direito à moradia como um dos que conferem dignidade aos cidadãos. Conferido-lhe esse papel, cabe verificar se as condições habitacionais dos brasileiros são adequadas. Essa avaliação vem sendo realizada por meio de indicadores sociais2, que permitem aferir a proporção da população vivendo em condições de moradia precárias ou com Bacharel em Ciências Econômicas pela UNYAHNA; Graduando em Direito pela UNYAHNA (7º semestre); Atua na Coordenação de Pesquisas Sociais (COPES) diretamente vinculada a Diretoria de Pesquisas (DIPEQ) da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI). [email protected]. Mestre em Geografia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA); Bacharel em Urbanismo pela Universidade do Estado da Bahia (Uneb); Atua na Coordenação de Pesquisas Sociais (COPES) diretamente vinculada a Diretoria de Pesquisas (DIPEQ) da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI); Integrante do projeto ―Dinâmica Urbana dos Estados / Rede Urbana do Brasil e da América do Sul‖ coordenado pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA) em parceria com a SEI. [email protected]. 1 A moradia é entendida como mínimo social por representar um requisito essencial para a sobrevivência, produção e de reprodução social, já que no imaginário e nas práticas cotidianas ela representa o lugar do homem no mundo, um direito básico de cidadania e, no Brasil, também, um direito social garantido constitucionalmente. 2 Segundo a visão de Jannuzi (2002, p. 54) os indicadores sociais, de modo geral constituem-se em ―[...] uma medida em geral quantitativa dotada de significado social substantivo, usado para substituir, quantificar ou operacionalizar um conceito social abstrato, de interesse teórico (para pesquisa acadêmica) ou programático (para a formulação de políticas). É um recurso metodológico, empiricamente referido, que informa algo sobre um aspecto da realidade social ou sobre mudanças que estão se processando na mesma‖. 2 dificuldades de acesso a serviços públicos adequados. Dito de outro modo, para essa análise, leva-se em consideração tanto os aspectos físicos do imóvel, que contribuem para a sensação de bem-estar, quanto o conjunto de equipamentos e serviços aos quais se tem acesso a partir dele. Pode-se dizer que a qualidade da moradia é definida pelas condições de habitabilidade e, ainda, pelo acesso as infraestruturas, além dos equipamentos e serviços urbanos. Nessa perspectiva, o entendimento do que seja moradia digna envolve aspectos que se relacionam à satisfação das necessidades vitais dos indivíduos e as de produção e reprodução social, dado que todas as pessoas têm o direito à moradia que lhes assegure abrigo e isolamento seja do meio social — oferecendo privacidade e comodidade —, quanto do meio natural, como proteção contra as intempéries. Todavia a análise do conceito do que seja moradia digna, especialmente em países capitalistas, só faz sentido quando se observam, concomitantemente, os padrões de distribuição de renda, seja no sentido vertical — entre as classes sociais — seja no sentido horizontal, entre os vários espaços nacionais, regionais, intraestaduais, distritais e municipais. No caso do Brasil, que se situa como um país de médio nível de desenvolvimento, conforme parâmetros internacionais, e apresenta-se numa situação de extrema desigualdade, seus indicadores aproximam-se aos daqueles países com os mais baixos índices de desenvolvimento do mundo. Esse problema se reflete nas diferentes formas de produção e apropriação da moradia e da organização do meio ambiente urbano. O país apresenta na própria configuração espacial de suas cidades favelas3 de um lado e as mansões de outro, o que reflete claramente as disparidades na distribuição de renda. Segundo Guimarães (2003) a existência de uma fronteira entre a modernidade e o atraso econômico, social da maioria da população, marca a situação em que os 10% mais ricos se apropriam de quase 50% da renda nacional, enquanto os 40% mais pobres ficam com menos de 11% dela. Longe de querer aprofundar numa discussão quanto a essa abordagem polêmica – a relação intrínseca estabelecida entre moradia e desigualdades na distribuição da renda – e que já conta com uma diversidade de estudiosos que a contemplam, ou mesmo tecer críticas a temática, neste artigo visa-se recuperar sucintamente o estado da arte sobre o tema. Como ponto de partida da análise faz-se uma contextualização da temática, na qual há uma breve apresentação do histórico das condições habitacionais no país. Em seguida, procura-se pontuar algumas políticas elaboradas com vistas a melhorá-las, expondo o que se compreende 3 Aqui compreendida tal como Nunes; Abreu (2009, p. 720) que utilizam o termo para descrever ―regiões urbanas de baixa qualidade de vida e infraestrutura precária, cujos moradores possuem limitado poder aquisitivo — áreas com edificações inadequadas, muitas vezes apertadas aos morros, onde é difícil construir edifícios estáveis e com os materiais tradicionais‖. 3 como moradia digna. Por fim, a síntese conclusiva que considera evidentemente a inesgotabilidade do tema, contudo são oferecidos elementos para o desenvolvimento de trabalhos futuros. Contextualização da temática A questão habitacional, no caso brasileiro, faz parte de um cenário heterogêneo, reflexo de um país múltiplo e variado, que conta com uma diversidade de características físicas, dinâmicas culturais, e também, uma estrutura desigual de distribuição da renda. No Brasil, a habitação é motivo de políticas públicas oriundas, sobretudo, da esfera federal do governo e nunca se constituiu em um problema para as elites nacionais. A questão é tida como problema pertinente às camadas populares – classe média e baixa – da sociedade, sobretudo as de mais baixa renda, ―a demanda e mesmo a dificuldade de acesso à habitação transcende grupos e famílias da baixa renda e termina sendo uma questão de grupos com distintos níveis econômicos‖ (NUNES; ABREU, 2009, p. 720). O crescimento das cidades brasileiras reflete num contexto histórico de desigualdades sociais e de concentração da renda, no qual o cenário urbano é marcado por fortes contrastes na sua estrutura física e paisagem. Segundo Souza (2009, p. 139), ditas diferenças traduzemse na: [...] ‗cidade formal‘ – caracterizada por áreas com boa oferta de infraestrutura, reguladas pelo mercado imobiliário e normalmente atendendo à legislação urbanística, no que diz respeito às condições de edificação e uso do solo – e, por outro lado, pela ‗cidade informal‘ – caracterizada pela implantação de loteamentos irregulares e clandestinos, bem como invasões de áreas públicas e privadas [...]. Tal situação tem suas raízes no final do século XIX, quando, nas palavras de Mattedi (2009), os processos econômicos e políticos desencadearam uma sequência de transformações expressas também no espaço urbano sob uma forma precoce de ―segregação‖ social. Essa autora afirma ainda que os problemas desse período devem ser sempre citados quando se estuda a temática em pauta, uma vez que se constituem em uma das principais causas estruturais da realidade habitacional da atualidade. Como se depreende de suas palavras: A promulgação da primeira Lei de Terras, em 1850, e o período subsequente que culmina com a abolição são alguns dos fatores que vão contribuir com a formação do grande contingente populacional que, expulso de áreas onde predominava o trabalho escravo, vai ocupar os morros urbanos, sobretudo em cidades como o Rio de Janeiro e Salvador. Datam do final daquele século as primeiras notícias sobre os mocambos que proliferam aqui e ali [...] (MATTEDI, 2009, p. 807). 4 É na década de 1930, quando da passagem de uma sociedade fundamentada na vida e na produção agrária para o modelo urbano-industrial, que se evidencia, pela primeira vez de forma tão intensa, a migração do tipo campo-cidade. A inexistência de terras4 para atender a essa nova demanda do contingente populacional (ex-escravos; operários das indústrias nascentes; funcionários públicos; ex-soldados das guerras do Paraguai e Canudos, dentre outros grupos sociais) que se desloca para as áreas urbanas, além daqueles que já estavam nas cidades e não tinham moradia, são processos que se somam e repercutem no mercado de terras. O que resulta no agravamento da situação e coloca em evidencia a segregação que já se observava antes, essa representa a essência da questão habitacional brasileira, que se estende por todo o século XX. E a habitação continuou sendo: [...] um bem praticamente proibido, pelas vias legais e de mercado, para essa parcela da população do país. À época, já faziam parte do cenário urbano as moradias precárias e insalubres, como os cortiços5 densamente ocupados e localizados nas áreas centrais, e os então chamados ‗mocambos‘, nos morros e nas periferias das cidades (MATTEDI, 2009, p. 807). Desde então, esse tipo de moradia precária, indigna etc. adensa as cidades e, apesar de algumas políticas terem sido pensadas e postas em prática, não resolveram a questão. E, efetivamente, as condições mínimas de dignidade aos cidadãos não têm sido garantidas. Principais políticas no setor habitacional As políticas habitacionais, entendidas como processos de urbanização adotados pelo poder público para atendimento da população de baixa renda, transmudam-se no tempo, ganha novos horizontes a cada governo. Porém, sua essência permanece a mesma, qual seja, a garantia de moradia à população, em especial, a mais carente. Os desdobramentos práticos e conceituais quanto a questão da moradia ocorrem, no Brasil, desde antes de 1930, quando a produção e a distribuição de unidades habitacionais eram deixadas a cargo da iniciativa privada. Somente durante o primeiro governo de Getúlio Vargas é que foram construídos os primeiros conjuntos habitacionais para algumas categorias de profissionais – bancários, ferroviários etc. –, por meio dos novos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAP‘s)6. 4 Segundo a visão de Mattedi (2009), a não destinação de terras ao novo contingente populacional devia-se, em grande medida, a privatização de terras públicas que levava a uma dupla consequência: de um lado, amplos segmentos sociais privados do seu direito, de um possível acesso ao mercado formal de habitação, e, de outro, iniciou-se a formação do capital e do parque imobiliário brasileiro. 5 Conforme estudiosos sobre o tema, tais como Mattedi, Brandão e Souza os ―cortiços‖ são também conhecidos como ―cabeças de porco‖, normalmente, encontrados nas grandes cidades brasileiras. 6 Como uma política habitacional voltada as famílias pertencentes a classe média. 5 Em 1946, cresce a demanda por moradias para as famílias mais carentes nas cidades. Com o objetivo de construir habitações para venda e locação, apoiar a indústria de materiais de construção, implementar projetos de saneamento básico e definir regras para construções habitacionais foi criada a agência de financiamento e construção para a população da classe média e baixa, a Fundação da Casa Popular. Ressalta-se que entre 1961 e 1962, a moradia torna-se preocupação fundamental para o governo e as políticas habitacionais desse período não tiveram continuidade nos anos seguintes, que corresponderam ao período de ruptura e mudanças não apenas na esfera das políticas públicas, como em todo os setores da sociedade. Após 1964, fica estabelecido o Sistema Financeiro de Habitação (SFH). A partir daí, é criado o Banco Nacional de Habitação (BNH)7, com o objetivo de guiar, disciplinar e controlar o SFH, promovendo a construção e aquisição de casas, principalmente, para as famílias de baixa renda. Das décadas de 1930 a 1980, notou-se que vários instrumentos que visavam diminuir os problemas referentes à demanda por habitação foram sucessivamente criados, transformados, transferidos entre os setores do governo federal e, finalmente, desativados, inclusive o BNH, que foi criado com a intenção de difundir a propriedade residencial, especialmente entre as classes menos favorecidas, e sua finalidade foi desviada para o atendimento da demanda da classe média, conforme palavras de Bolaffi (1981, p. 177): [...] Inexplicavelmente, até poucos anos atrás os ‗incentivos‘ concedidos aos mutuários pela receita federal chegaram a atingir 50% da totalidade do valor das prestações anuais, deduzíveis da renda bruta dos contribuintes, ou seja, mais um polpudo incentivo – mas leiam-se subsídios – exatamente para as faixas de renda que dele menos careciam. Apesar do BNH ter sido instituído como uma política de habitação para as famílias com rendimentos abaixo de cinco salários mínimos, distorções de propósitos foram observadas ao longo de sua vigência. Até 1975, por exemplo, o BNH só dedicava 3% dos seus financiamentos para as famílias que, por princípio, deveriam ter acesso ao recurso. Segundo Bolaffi (1981, p. 178), os mutuários com rendimentos superiores a 20 salários poderiam obter mais de um milhão de cruzeiros (3.500 UPC) que pagariam em 20 anos a juros praticamente negativos, ―graças à combinação de uma correção monetária inferior à real com os outros ‗incentivos‘ fiscais adicionais‖. 7 Criado, juntamente com o Sistema Financeiro de Habitação (SFH), pela Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964 e extinto pelo Decreto-lei nº 2.291, de 21 de novembro de 1986. Após o seu fechamento, as atividades do BNH foram incorporadas pela Caixa Econômica Federal. 6 Em todo seu período de atuação, o BNH e seu respectivo SFH financiaram pouco mais de um terço das unidades habitacionais construídas no Brasil (4,5 milhões), entre 1967 e 1985. Desse valor, menos de 6% foi destinado ao setor de ―interesse social‖, aqueles cujos beneficiários possuíam renda familiar de um a três salários mínimos (BRANDÃO, 1997). Na realidade, desde a sua criação, o BNH gozou de um grau de autonomia muito menor do que geralmente se supõe e os alcances e limites de sua atuação foram determinados pelos Ministério do Planejamento (Roberto Campos) ou da Fazenda (Delfim Neto e Simonsen) em função das conveniências da política monetária e do modelo de acumulação e concentração de renda imposto pelo Governo federal (BOLAFFI, 1981, p. 177). Em 1973, tendo sido reconhecido o ―fracasso‖ do BNH para a aquisição de moradias para os setores mais carentes da população, o governo cria o Plano Nacional de Habitação Popular (PLANHAP), com o correspondente Sistema Financeiro de Habitação Popular (SIFHAP), que acarretou alguns resultados reais, as Companhias Habitacionais (COHAB‘s). Mas, ainda assim, as políticas adotadas não conseguiram atenuar o intenso processo de favelização e queda na qualidade habitacional. Muito embora novas políticas habitacionais tenham sido geradas a cada novo Governo, os resultados nem sempre foram satisfatórios, visto a crescente demanda da população de baixa renda por moradia. Entre os anos 1980 e 1990, além da queda no poder aquisitivo dos cidadãos face a crise econômica do período, houve também os altos índices de inadimplência que atingiram o SFH que acarretaram na extinção do BNH, em 1986. A problemática da moradia parece ter sido mais amplamente discutida na sociedade a partir do processo de redemocratização. Com ele, diversos movimentos sociais se consolidaram e ocorreu uma série de fóruns de debates sobre as questões sociais. Boa parte dessas discussões subsidiou a construção da Constituição de 1988 que, conforme Brandão (1997, p. 279), ―[...] abriu pela primeira vez o tema em nível amplo e introduziu dispositivos que permitem ampliar a margem de defesa de interesses sociais urbanos, mas nem por isso parece ter-se elevado significativamente a pressão social pelo direito à cidade‖. Assim, após um longo período de esfriamento da discussão política e pública em torno da temática política urbana, nos anos 1990, os movimentos populares de moradia passaram atuar no Fórum Nacional de Reforma Urbana e apresentaram ao Congresso Nacional uma iniciativa popular subscrita por um milhão de eleitores, sendo criado o Fundo Nacional de Moradia Popular e o Conselho Nacional de Moradia Popular, com objetivo de implantar uma política habitacional nacional para a população de baixa renda. 7 Resultado direto dessa mobilização foi, também, a promulgação da Lei nº 10.257/2001, o Estatuto da Cidade. Essa lei institui uma série de instrumentos jurídicos de regularização fundiária ao regulamentar os Arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelecendo as diretrizes gerais da política urbana. A partir desses, o direito à moradia inscreve-se, especialmente, para os setores de baixa renda, como um dos fundamentos da função social da cidade e da propriedade. Com a criação do Ministério das Cidades, que passa a ser o órgão responsável pela política de desenvolvimento urbano no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, começou-se a programar mudanças no quadro habitacional. Nunes; Abreu (2009) afirmam que: Iniciaram-se, então, estudos e pesquisas com vistas a uma política setorial de habitação, política essa que se inscreveu dentro da concepção de desenvolvimento urbano integrado, no qual a habitação não se restringe à casa: incorpora o direito à infraestrutura, saneamento ambiental, mobilidade e transporte coletivo, equipamentos e serviços urbanos e sociais. Buscasse garantir direito à cidade, dentro de um modelo participativo e democrático que reconhece a possibilidade de intervenção nas políticas públicas como direito dos cidadãos (NUNES; ABREU, 2009, p. 725). Todavia, apenas recentemente, após longa tramitação no Congresso Nacional, foi aprovado, em 2005, o projeto de lei que instituiu o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), criando, simultaneamente, o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS)8 e o seu conselho gestor9. A Política Nacional de Habitação de Interesse Social baseia-se em princípios que defendem a ―moradia digna‖ como direito e vetor de inclusão social, e que necessariamente deve cumprir com a função social da propriedade urbana. Nessa nova política, a demanda habitacional de interesse social foi elevada à condição de questão de Estado. Em tal contexto, a moradia passou a ser vista, pelo Estado, como elemento necessário para assegurar salubridade, segurança, conforto e titulação, princípios expressos na definição de ―moradia digna‖ presente no texto da lei como aquela ―[...] que ofereça condições de salubridade, segurança e conforto aos seus habitantes, acesso aos serviços básicos, e que esteja livre de 8 O FNHIS tem como objetivo centralizar e gerir os recursos orçamentários liberados para a execução de programas habitacionais de interesse social. A sua criação auxilia na junção dos recursos de várias origens como a iniciativa privada (doações, pagamento de multas entre outros) e do Orçamento Geral da União. Esses recursos são repassados para os estados, Distrito Federal e municípios para auxiliar na execução de programas habitacionais destinados à população de baixa renda. (MAGALHÃES, 2006). 9 Com relação aos recursos do FNHIS, o acesso dos gestores estaduais e municipais fica condicionado ao atendimento dos seguintes requisitos: assinatura do Termo de Adesão ao SNHIS, constituição do Fundo Habitacional de Interesse Social, criação do Conselho Gestor do Fundo de Habitação de Interesse Social, elaboração do Plano Local Habitacional de Interesse Social e dos relatórios de gestão. 8 qualquer discriminação no que se refere à habitação ou à garantia legal da posse” (BRASIL, 2005). Mais recentemente, a questão do déficit habitacional foi incluída no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e se transformou numa de suas ações. O PAC da habitação constituiu-se, assim, como resposta a um dos principais desafios apontados pelo balanço acima citado e como um passo inovador de grande impacto destinado a reverter o quadro de desigualdade social e territorial, de modo a tornar efetivo o direito à cidade dos habitantes desses assentamentos (NUNES; ABREU, 2009, p. 727). O que se entende por moradia digna Antes de entrar no objetivo deste ponto do trabalho e a fim de contextualizar a discussão sobre o tema, considerou-se fundamental elencar alguns acontecimentos que marcaram o cenário internacional em relação ao assunto e que se relacionam ao direito à moradia. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada em 1948 pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), foi a primeira a citar o direito a moradia. O conteúdo expresso no seu texto diz que ―toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, moradia, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis‖ (art. 25, § 1º apud MORAIS; GUIA; PAULA, 2006, p. 230). Contudo, o principal instrumento internacional legal que versa sobre o direito à moradia é o Pacto Internacional de Direitos Econômicos e Sociais e Culturais (PIDESC). Esse foi, adotado pela ONU, em 1966, e ratificado pelo Brasil e mais 138 países. Segundo o PIDESC, ―os Estados partes reconhecem o direito de toda pessoa à moradia digna e comprometem-se a tomar medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito‖ (art. 11, § 1º apud MORAIS; GUIA; PAULA, 2006, p. 230). Para reforçar os signatários desse pacto a cumprirem as metas nele propostas, o Comitê das Nações Unidas para os Direitos Econômicos e Sociais e Culturais (CESCR) estabelece as diretrizes gerais e as monitora, avaliando a conformidade das políticas dos países membros aos objetivos nele contidos. Ainda no cenário internacional, o Centro das Nações Unidas para Assentamentos Humanos (Habitat) foi criado na I Conferência da ONU sobre Assentamentos Humanos. Essa foi realizada em 1976, em Vancouver. Nesse, consolidou-se a questão das cidades como nova estratégia de atuação da ONU, especialmente nos países em desenvolvimento. 9 A Declaração de Vancouver reafirmou, o direito universal à moradia digna, destacando a importância da eliminação da segregação social e racial, mediante a criação de comunidades melhor equilibradas, onde se combinem diferentes grupos sociais (MORAIS; GUIA; PAULA, 2006, p. 231). Em 1992, na elaboração da Agenda 21 realizada no Rio de Janeiro e adotada pela Conferência da ONU para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, também se ressaltou a importância da moradia digna para o bem-estar das pessoas, esta entendida como: [...] mais do que ter um teto sobre a cabeça. Significa também privacidade adequada; espaço adequado; acessibilidade física; segurança adequada; segurança da posse; estabilidade e durabilidade estrutural; iluminação, calefação e ventilação adequadas; infra-estrutura básica adequada tal como serviços de abastecimento de água, esgoto e coleta de lixo, qualidade ambiental e fatores relacionadas à saúde apropriados; e localização adequada no que diz respeito ao local de trabalho e aos equipamentos urbanos: os quais devem estar disponíveis a um custo razoável [...] Fatores relacionados ao gênero e à idade [...] devem ser considerados (MORAIS; GUIA; PAULA, 2006, p. 234). Já em Istambul, em 1996, realizou-se a II Conferência da ONU sobre Assentamentos Humanos (II Habitat), que aprovou a Agenda Habitat, adotada pelo Brasil. O documento traz como um dos principais objetivos, a moradia digna para todos e o desenvolvimento sustentável dos assentamentos humanos num mundo em urbanização. A Declaração de Istambul reafirmou o direito à moradia [...] que reitera o comprometimento da comunidade internacional com a realização completa e progressiva do direito à moradia digna. Para esse fim, os Estados partes deveriam tomar providências para garantir a segurança legal da posse, a proteção contra a discriminação e a igualdade no acesso à moradia adequada e financeiramente acessível para todos (MORAIS; GUIA; PAULA, 2006, p. 231). Em 2000, a Declaração do Milênio incorporou aos objetivos gerais da ONU, os direitos à moradia e ao saneamento adequado, por meio da campanha Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. No Brasil, a questão da moradia passa, necessariamente, pela da posse da terra e a do cumprimento da função social da terra. A necessidade de a propriedade cumprir sua função social sempre foi princípio constitucional brasileiro, desde a Constituição Federal de 1934. Entretanto, ao longo do tempo, sua prática foi negligenciada pelos proprietários privados com apoio da omissão do poder público em fazer valer esta norma. A percepção desse quadro levou os constituintes de 1988, a dedicarem um capítulo específico à política urbana nos Arts. 182 e 183. Esses dispositivos destinam-se, 10 fundamentalmente, a gravar a propriedade urbana com a obrigação de cumprir sua função social. Determina-se que as terras que não cumprem tal função social devem ser desapropriadas para fins de reforma urbana. E o plano diretor10 municipal constitui-se como paradigma dessa obrigação. Contudo, a própria Constituição represa sua eficácia quando remete a aplicação das penalidades instituídas à regulamentação em lei federal. Com relação ao que se entende como cumprimento da função social, conforme consta no Estatuto da Cidade (Art. 39), a propriedade tem essa condição quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas. Nesse Estatuto obrigam-se os proprietários a promover o adequado aproveitamento dos vazios urbanos ou terrenos subtilizados ou ociosos, sob pena de sanção pelo poder público por retenção especulativa da terra como reserva de valor11. Nas cidades, os altos preços da terra impõem expressivos custos sociais que, ressaltese, são regressivos, inversamente proporcionais à capacidade de pagamento de quem os suporta. Obrigados a buscar alojamento em áreas distantes e precariamente providas de serviços públicos, são exatamente os mais pobres os que arcam com os custos mais elevados de transporte e de acesso a bens e serviços urbanos. Retornando ao tema deste trabalho, no Brasil, segundo sua ordem jurídica, o direito à moradia foi garantido apenas após a Constituição de 1988 e o Estatuto da Cidade 12. Ou seja, no plano normativo, o direito à moradia foi primeiramente reconhecido por documentos internacionais e somente na década de 1990 foi incorporado expressamente ao direito interno. Segundo as palavras de Nunes e Abreu (2009, p. 723) após a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1948) e o PIDESC (1966) é que se ―[...] passa a prescrever expressamente o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si própria e para sua família, incluindo aí o item ‗moradia digna‘‖. 10 O plano diretor deverá vincular as funções da propriedade às diretrizes e objetivos da política urbana estabelecida democraticamente no município. O poder público municipal, por meio do plano diretor, pode exigir o cumprimento do dever do proprietário em benefício da coletividade, o que implica numa destinação concreta do seu imóvel para atender a uma função social, que poderá ser para uma finalidade econômica, habitacional, de preservação ambiental, corrigir distorções do crescimento urbano, etc. 11 Como sanção à retenção especulativa está prevista a aplicação de Imposto Predial e Territorial Urbano progressivo no tempo, mediante a majoração da alíquota pelo prazo de 5 anos, e a desapropriação com títulos da dívida pública pelo município (Arts. 7º e 8º do Estatuto da Cidade). 12 O Estatuto da Cidade é uma lei federal de desenvolvimento urbano que regulamenta a Constituição Federal. Ela foi aprovada após tramitar 12 anos na Câmara e Senado Federais, mediante a pressão de ONG‘s movimentos nacionais de luta pela moradia e reforma urbana. Lei nº. 10.257 aprovada em 10 de Julho de 2001. 11 Embora o conceito de moradia digna varie de acordo com as especificidades locais e culturais, é possível estabelecer alguns parâmetros mínimos. Entre eles, Morais; Guia; Paula (2006, p. 234) destacam: i) segurança nos direitos de propriedade, que garanta a proteção contra os despejos forçados; ii) disponibilidade de serviços, equipamentos e infraestrutura, tais como água, esgoto, coleta de resíduos sólidos, energia para cocção, iluminação, dentre outros; iii) disponibilidade a preços acessíveis, para que o preço da moradia seja compatível com o nível de renda da população e não comprometa a satisfação de outras necessidades básicas das famílias; iv) habitabilidade, no sentido de fornecer aos seus moradores espaço adequado, protegendo-os de fatores climáticos e garantindo a sua segurança física; v) acessibilidade a todos os grupos sociais, levando em conta as necessidades habitacionais específicas de idosos, crianças, deficientes físicos, moradores de rua, população de baixa renda etc.; vi) localização que possibilite o acesso ao emprego, a serviços de saúde e outros equipamentos sociais; e vii) adequação cultural, de modo a permitir a expressão das identidades culturais. Segundo os referidos autores, para monitorar a promoção do direito à moradia digna recomenda-se, especificamente, indicadores relativos à durabilidade estrutural, à existência de área suficiente para viver, ao preço da moradia em relação ao nível de renda da população ou mais das seguintes condições: i) acesso a água potável; ii) acesso a esgotamento sanitário; iii) segurança da posse; iv) durabilidade da moradia; e v) área suficiente para morar (MORAIS; GUIA; PAULA, 2006). Mattedi (2009) ressalta que, tal como explicitado na legislação existente quanto à definição do que é moradia digna, não basta a posse ou a existência do domicílio. É preciso que tenha determinadas características e cumpra certas funções sociais. Partindo dessa perspectiva, entende-se necessidade habitacional não apenas como a carência numérica de moradias, mas também como: [...] o conjunto formado pelo déficit habitacional propriamente dito, que corresponde à falta de moradias − e, portanto, à necessidade de construção de novas unidades habitacionais em um dado espaço e tempo −, acrescido da inadequação habitacional, que expressa problemas na qualidade das moradias existentes (MATTEDI, 2009, p. 805). Em outros termos, incluem-se no cálculo das necessidades habitacionais aqueles domicílios que não tenham condições de serem caracterizados como moradia digna. 12 A Fundação João Pinheiro (FJP), melhor qualifica a questão, na medida em que considera as necessidades habitacionais como aquelas que envolvem o local de moradia e as condições desejáveis de habitabilidade. Considera-se que os domicílios devem possuir requisitos mínimos de construção e de conservação para serem considerados habitáveis. Acompanhando essa lógica, tal instituição propôs uma metodologia para o cálculo do déficit habitacional na qual são investigadas nas unidades habitacionais, separadamente, aquelas que necessitam de reposição imediata (déficit)13 e as que apresentam deficiência de algum tipo, sobretudo as vinculadas à ausência de um ou mais item de infraestrutura urbana. Desse modo, tem-se que as necessidades habitacionais correspondem ao déficit, de natureza quantitativa, somado à inadequação, de natureza qualitativa, que compreende deficiências urbanísticas como ausência de espaços públicos, equipamentos, serviços coletivos e regularização fundiária. Nesse sentido, as carências habitacionais são de vários tipos: ausência de moradia, deficiências na edificação, reduzido espaço interno, alta densidade de moradores, loteamentos irregulares, falta de serviços públicos (água, esgoto, coleta de lixo, luz, transporte, educação, saúde, etc.). Para criar condições satisfatórias de habitabilidade, uma política habitacional deve abarcar pelo menos 6 áreas: a) apoio e incentivo aos domicílios coletivos; b) legalização e regularização dos terrenos; c) construção de novas unidades habitacionais; d) reparação e reforma de unidades inadequadas e insuficientes; e) incentivo à utilização dos domicílios não ocupados; f) investimentos em infraestrutura urbana e serviços públicos. É importante destacar, ainda, que junto ao conceito de moradia digna aparece o conceito de domicílio proposto pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 2000. O qual se refere a um local estruturalmente independente, que serve de moradia às famílias14, formado por um conjunto de cômodos, ou por um cômodo só, com entrada própria, dando para logradouro ou terreno de uso público ou para local de uso comum a mais de um domicílio. Considerar-se também como domicílio o local que, embora não atendendo àquelas características, sirva de moradia na data do censo15. 13 Sobre o tema é interessante destacar o artigo Panorama sobre o déficit habitacional na Bahia entre 1991 e 2005, de Cerqueira e Rodrigues (2008). Esse se refere à disponibilidade da habitação, com a preocupação de dimensionar a carência de unidades habitacionais no estado. Para alcançar o objetivo, as autoras realizaram um levantamento bibliográfico voltado ao tema e elaboraram um texto, no qual demonstram como esse déficit se alterou no referido período. Para tanto, utilizaram predominantemente os dados e a metodologia da FJP. 14 O IBGE, por exemplo, define família como sendo: a) o conjunto de pessoas ligadas por laços de parentesco ou de dependência doméstica que morem no mesmo domicílio; b) pessoa que more sozinha num domicílio particular; c) conjunto de, no máximo, cinco pessoas que morem em um mesmo domicílio particular, embora não estejam ligadas por laços de parentesco ou de dependência doméstica. 15 Os censos populacionais produzem informações imprescindíveis para a definição de políticas públicas e a tomada de decisões de investimento, sejam eles provenientes da iniciativa privada ou de qualquer nível de 13 Em várias pesquisas e censos, o IBGE classificou os domicílios em duráveis e rústicos. Domicílio durável é aquele situado em prédios em cuja construção predominam: paredes de tijolo, pedra, adobe ou madeira preparada; cobertura de telha (barro, amianto, madeira, zinco, etc.) ou laje de concreto; piso de madeira, cimento, ladrilho ou mosaico. Domicílio rústico é aquele localizado em prédios em cuja construção predominem: paredes e cobertura de taipa, sapé, palha, madeira não aparelhada, material de vasilhame usado e piso de terra batida. Partindo-se dessa perspectiva assim como das concepções postas nos documentos internacionais mencionados anteriormente, o conceito de moradia digna vai além do aspecto construtivo. Compreende também o entorno da unidade habitacional, que deve ser dotado de condições urbanísticas favoráveis ao desenvolvimento da cidadania. Elementos como ―espaço e privacidade‖; terra urbanizada, titulada, saneada e com infraestruturas; trânsito seguro; equipamentos de convivência; lazer; cultura; escola; saúde; trabalho com acesso ―para todos e todas‖ estão entre as condições que caracterizam uma moradia como digna. Observa-se, portanto, que o habitar abrange várias dimensões, Uma relativa à moradia como unidade habitacional, que pressupõe a existência de espaço, a compra de materiais, a construção do imóvel com tecnologias mais ou menos desenvolvidas e sustentáveis, dentre outros aspectos que dizem respeito ao abrigo propriamente dito, inclusive, à sua segurança física. Outra que envolve as condições ambientais consideradas em sua totalidade, ou seja, o meio físico, biológico e socioeconômico do entorno ou ambiência, fazendo da casa parte de um complexo maior que potencialize as vocações locais e assegure melhores condições de vida aos moradores (MATTEDI, 2009, p. 806). Entende-se, portanto, que o morar vai além da edificação da unidade habitacional, ou seja, incorpora condições que dependem mais de políticas sociais e urbanas de natureza distributiva do que de políticas habitacionais no sentido estrito (MATTEDI, 2009). Assim, a análise das condições de moradia relaciona-se a aspectos de maior relevância no que tange à qualidade de vida16 de um indivíduo ou de toda sociedade. governo, e constituem a única fonte de referência sobre a situação de vida da população nos municípios e em seus recortes internos, como distritos, bairros e localidades, rurais ou urbanas, cujas realidades dependem de seus resultados para serem conhecidas e terem seus dados atualizados. 16 Segundo Dias (2008, p. 56): ―a noção [...] qualidade de vida é algo variável. Como se trata de um juízo de valor, seu estabelecimento pressupõe comparações e visões de mundo. Por isso mesmo, a noção de melhor ou de pior se altera no tempo, no espaço, de acordo com as ideologias preponderantes num dado momento; conforme a idade e a posição socioeconômica daquele que a avalia [...]. Depende de sua subjetividade, em outros termos, de sua história de vida, de suas expectativas frente à sociedade e pela forma como oAconjunto social valora seu lugar‖. 14 Considerações finais A questão da moradia tal como assinalam os estudiosos da questão – a exemplo de Mattedi (2009); Souza (2009); Brandão (1997); Bolaffi, (1981) –, não se resume tão somente a um problema de aumento do número de unidades habitacionais: se constitui em um problema de ordem social. Elevar os padrões de habitabilidade de uma população deve ser o objetivo principal de uma política habitacional. O crescimento acelerado da população urbana no Brasil, decorreu do elevado crescimento demográfico, mais contundente até, de modo geral, 1980. Esse contribuiu para agravar ainda mais a questão das sub-habitações: favelas, mocambos, palafitas, cortiços, etc. Os problemas no provimento de moradias são anteriores a década de 1930, a crise fiscal do Estado que dificulta as intervenções públicas mais efetivas, na década de 1980, agudiza a questão. Acrescente-se que mesmo na ditadura, época de crescimento econômico, não haviam políticas adequadas para resolver os problemas habitacionais. Segundo o IPEA (2005), em que pesem as dificuldades apresentadas em relação ao acesso à habitação, na última década verificou-se uma melhora nas condições de moradia da população brasileira como um todo. Tal situação foi evidenciada pela queda nas densidades por domicílio e por dormitório, pelo aumento da qualidade da construção, do percentual de banheiros de uso exclusivo e do acesso a serviços de eletricidade e telefonia. O principal objetivo das políticas públicas, portanto, deve ser o de permitir o acesso a uma moradia digna para todos, compatível com o tamanho, o nível de renda e as diferentes necessidades habitacionais das famílias brasileiras. Esse é um importante desafio a ser enfrentado pelo Estado nos próximos anos. Assim sendo, as políticas por moradias populares que possam ser qualificadas como dignas são, apenas, algumas possíveis soluções. Afinal, a política habitacional deve ser complementada por outras medidas que incorporem os princípios básicos da inclusão social e o acesso à moradia com condições adequadas de habitabilidade e infraestrutura urbana. Referências ALVES, José Eustáquio Diniz. CAVENAGHI, Cavenaghi, Questões conceituais e metodológicas relativas a domicílio, família e condições habitacionai. Trabalho apresentado no I Congresso da Associação Latino Americana de População, ALAP, realizado em Caxambú- MG – Brasil, de 18 - 20 de Setembro de 2004. 15 BAHIA. 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