A Rainha no Palácio das Correntes de Ar

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Stieg Larsson
A Rainha no Palácio das
Correntes de Ar
9.a edição
Tradução de
Mário Dias Correia
1.a PARTE
ENCONTRO NUM CORREDOR
8 a 12 de Abril
ESTIMA-SE EM SEISCENTAS O NÚMERO DE MULHERES QUE COMBATERAM
NA GUERRA DA SECESSÃO. ALISTAVAM-SE DISFARÇADAS DE HOMENS.
TERÁ HOLLYWOOD DEIXADO ESCAPAR UMA GRANDE PARTE DA HISTÓRIA
CULTURAL, OU SERÁ QUE ERA UMA MATÉRIA IDEOLOGICAMENTE INCÓMODA?
OS LIVROS DE HISTÓRIA DIFICILMENTE FAZEM REFERÊNCIA A MULHERES QUE NÃO
SE ENQUADRAM NO ESTEREÓTIPO DOS SEXOS, E NUNCA ISSO É TÃO EVIDENTE
COMO NO QUE SE REFERE À GUERRA E AO USO DE ARMAS.
E NO ENTANTO, DA ANTIGUIDADE AOS TEMPOS MODERNOS, NÃO FALTAM RELATOS
QUE PÕEM EM CENA GUERREIRAS – AS CHAMADAS AMAZONAS. ENCONTRAMOS OS
EXEMPLOS MAIS CONHECIDOS NOS EPISÓDIOS HISTÓRICOS EM QUE TAIS
MULHERES FIGURAM COMO «RAINHAS», OU SEJA, REPRESENTANTES DA CLASSE
NO PODER. PORQUE, EMBORA SEJA UMA VERDADE DESAGRADÁVEL DE OUVIR,
AS CONTINGÊNCIAS DA SUCESSÃO POLÍTICA COLOCAM REGULARMENTE UMA
MULHER NO TRONO. SENDO AS GUERRAS INDIFERENTES A QUESTÕES DE GÉNERO
E DADO QUE TEIMAM EM ACONTECER MESMO QUANDO É UMA MULHER QUE
GOVERNA, OS LIVROS DE HISTÓRIA VÊEM-SE NA OBRIGAÇÃO DE REPERTORIAR
UM CERTO NÚMERO DE RAINHAS GUERREIRAS, LEVADAS PELAS CIRCUNSTÂNCIAS
A COMPORTAREM-SE COMO UM QUALQUER CHURCHILL, ESTALINE OU ROOSEVELT.
SEMIRAMIS DE NÍNIVE, FUNDADORA DO IMPÉRIO ASSÍRIO, E BOADICEIA,
QUE ENCABEÇOU UMA DAS REVOLTAS MAIS SANGRENTAS CONTRA OS ROMANOS,
SÃO APENAS DOIS EXEMPLOS. A ÚLTIMA TEM, ALIÁS, UMA ESTÁTUA À BEIRA
DO TAMISA, EM FRENTE DO BIG BEN. NÃO DEIXAREMOS DE A SAUDAR SE
POR LÁ PASSARMOS.
EM CONTRAPARTIDA, OS LIVROS DE HISTÓRIA SÃO, NO SEU TODO, BASTANTE
DISCRETOS NO QUE SE REFERE ÀS MULHERES QUE SERVIAM COMO SIMPLES
SOLDADOS, SE ADESTRAVAM NO MANEJO DE ARMAS, FAZIAM PARTE
DE REGIMENTOS E PARTICIPAVAM EM BATALHAS CONTRA EXÉRCITOS INIMIGOS
NAS MESMAS CONDIÇÕES QUE OS HOMENS.
MAS ELAS SEMPRE EXISTIRAM. NÃO HOUVE PRATICAMENTE GUERRA
QUE NÃO CONTASSE COM UMA PARTICIPAÇÃO FEMININA.
CAPÍTULO 1
SEXTA-FEIRA, 8 DE ABRIL
FALTAVA POUCO PARA A UMA E MEIA quando Hanna Nicander, uma
das enfermeiras, acordou o Dr. Anders Jonasson.
– Que se passa? – perguntou ele, ainda meio atordoado.
– Helicóptero a chegar. Dois pacientes. Um homem já de idade
e uma rapariga; ela com ferimentos de bala.
– Já vou, já vou – resmungou Jonasson, cansado.
Sentia-se sonolento apesar de não ter verdadeiramente dormido,
tinha apenas dormitado uma escassa meia hora. Estava de serviço no
Hospital Sahlgrenska, em Gotemburgo. A noite fora esgotante. Logo
às seis, quando entrara de turno, tinham recebido quatro vítimas de
uma colisão frontal perto de Lindome. Uma delas em estado grave e
outra declarada morta pouco depois da chegada. Também tratara da
criada de um restaurante da Avenyn que escaldara as pernas na cozinha e logo a seguir salvara a vida a um garoto de quatro anos em paragem respiratória depois de ter engolido uma roda de um carrinho
de brincar. Além disso, ainda tivera tempo de remendar uma adolescente que caíra num buraco com a bicicleta. A engenharia civil
tinha, ardilosamente, colocado o dito buraco à saída de uma pista
para ciclistas, e alguém tivera o cuidado de atirar lá para dentro as
barreiras de protecção. A rapariga tivera direito a 14 pontos na cara
e precisara de dois incisivos novos. Ah, e também cosera a ponta do
polegar que um marceneiro de fim-de-semana com mais entusiasmo
do que habilidade aplainara por engano.
Por volta das onze da noite, o número de pacientes nas urgências
tinha diminuído. Fizera a ronda e controlara o estado dos hospitalizados,
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após o que se retirara para uma sala de repouso com a intenção de relaxar um pouco. O turno só acabaria às seis da manhã. Era raro dormir
quando estava de serviço, mesmo que não houvesse admissões, mas,
precisamente naquela noite, caíra num ensonado torpor mal se instalara no cadeirão.
Hanna Nicander estendeu-lhe uma caneca de chá. Ainda não tinha pormenores sobre os recém-chegados.
Anders Jonasson olhou pela janela e viu os raios riscarem o céu por
cima do mar. Ia ser mesmo no limite, para o helicóptero. De repente,
começou a chover furiosamente. A tempestade tinha-se abatido sobre
Gotemburgo.
Ainda estava à janela quando ouviu o barulho dos rotores e viu
o helicóptero, açoitado pelas rajadas de vento, fazer-se à área de aterragem. Reteve a respiração por um instante, quando lhe pareceu que
o piloto estava com dificuldade em controlar a aproximação. Depois,
o aparelho saiu do seu campo de visão e o uivo da turbina desceu vários decibéis. Bebeu um golo de chá e pousou a caneca.
O Dr. Anders Jonasson foi receber os maqueiros à entrada das
urgências. A colega de turno, a Dra. Katarina Holm, tomou conta
do primeiro paciente a chegar, um homem já de idade, com um grave
ferimento no rosto. Coube ao Dr. Jonasson ocupar-se da outra paciente, a mulher com ferimentos de bala. Um primeiro e rápido exame
permitiu-lhe verificar que se tratava de uma adolescente, gravemente
ferida e coberta de sangue e de terra. Levantou a manta em que os
serviços de emergência a tinham embrulhado e descobriu que alguém
tinha vedado os ferimentos na coxa e no ombro com tiras de fita adesiva prateada. Uma iniciativa que considerou particularmente inteligente: a fita impedia a entrada de bactérias e a saída do sangue. Uma
das balas atingira-a no lado externo da anca e atravessara o músculo
de um lado ao outro. Levantou o camisolão e localizou o orifício de
entrada da segunda bala, nas costas. Não havia orifício de saída, o que
significava que o projéctil continuava algures no ombro. Havia o perigo de ter perfurado o pulmão, mas como não viu sangue na boca da
rapariga, concluiu que não.
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– Raio X – disse à enfermeira que o assistia, e foi o bastante
como indicação.
Para terminar, desenrolou a ligadura que os socorristas tinham
atado à volta da cabeça da jovem ferida. Estremeceu quando tacteou
com as pontas dos dedos o orifício de entrada e compreendeu que tinha sido atingida por uma terceira bala, desta vez na cabeça. Como
no caso do ombro, não havia orifício de saída.
Anders Jonasson deteve-se por um instante e olhou para a jovem. Subitamente, sentiu-se invadir por uma vaga de pessimismo.
Comparava muitas vezes o seu trabalho ao de um guarda-redes. Todos os dias chegavam às suas mãos pessoas nos mais variados e diversos estados, mas todas com uma única intenção: obter ajuda. Como a
senhora de 74 anos que fizera uma paragem cardíaca no centro comercial de Nordstan e caíra redonda no chão, ou o rapaz de 14 anos que
perfurara o pulmão esquerdo com uma chave de parafusos, ou a rapariga de 16 que se empanturrara de ecstasy e dançara durante 18 horas
seguidas até cair para o lado com a cara azulada. Havia vítimas de
acidentes de trabalho e vítimas de maus-tratos. Havia crianças atacadas na Praça Vasa por cães de luta e homens com jeito para a bricolage
cuja intenção fora apenas cortar algumas tábuas com a serra eléctrica
e que tinham acabado por cortar o pulso até ao osso.
Anders Jonasson era o guarda-redes entre os pacientes e o cangalheiro. O seu trabalho consistia em decidir que medidas eram apropriadas. Se tomasse a decisão errada, o paciente morria, ou talvez
acordasse com uma invalidez permanente. A maior parte das vezes
decidia correctamente, e isto porque a maioria dos pacientes tinha
um problema específico e compreensível. Uma facada num pulmão
ou um traumatismo decorrente de um acidente de viação eram ferimentos inteligíveis e claros. A sobrevivência do paciente dependia
da natureza do ferimento e da habilidade dele.
Havia dois tipos de ferimentos que Anders Jonasson detestava
acima de todos os outros. Certas queimaduras que, na maior parte
dos casos, independentemente dos meios que utilizasse, conduziam
a uma vida de sofrimento. E os ferimentos na cabeça.
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Aquela rapariga que tinha à sua frente poderia viver com uma
bala na anca e outra bala no ombro. Mas uma bala algures no cérebro
era um problema de uma gravidade completamente diferente. Apercebeu-se subitamente de que a enfermeira dizia qualquer coisa.
– Perdão?
– É ela.
– Ela quem?
– A Lisbeth Salander. A rapariga que eles procuram há semanas
por causa do triplo homicídio em Estocolmo.
Anders Jonasson examinou o rosto da paciente. Hanna tinha razão. Era a fotografia de passaporte daquela rapariga que, desde a Páscoa, ele e praticamente todos os suecos viam pespegada na montra de
todos os quiosques de jornais. E agora a assassina tinha sido ferida,
o que constituía sem dúvida uma forma de justiça imanente.
Era, porém, um problema que não lhe dizia respeito. O seu trabalho consistia em salvar a vida da paciente, fosse ela tripla homicida ou laureada com o Nobel da Paz. Ou as duas coisas ao mesmo
tempo.
Depois, foi essa espécie de caos controlado que caracteriza um
Serviço de Urgências. O pessoal que trabalhava com Jonasson era experiente e sabia o que tinha de fazer. As roupas que Lisbeth Salander
ainda vestia foram cortadas. Uma enfermeira mediu-lhe a pressão arterial – 100/70 – enquanto ele encostava o estetoscópio ao peito da
paciente e auscultava o bater do coração, que parecia bastante regular,
e a respiração, não tanto.
O Dr. Jonasson não hesitou em classificar imediatamente o estado de Lisbeth Salander como crítico. As feridas no ombro e na anca
podiam esperar, de momento, aplicando compressas ou até deixando
onde estavam as tiras de fita adesiva, que uma alma inspirada tinha
aplicado. O principal era a cabeça. Mandou que a passassem pelo
scanner em que o hospital investira o dinheiro dos contribuintes.
Anders Jonasson era um homem loiro de olhos azuis, originário
do Norte da Suécia, mais precisamente de Umeå, e havia mais de
vinte anos que trabalhava nos hospitais Sahlgrenska/Östra, alternando
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as especialidades de investigador, patologista e médico das Urgências.
Tinha uma particularidade que perturbava os colegas e envaidecia o
pessoal que trabalhava com ele: mantinha, como questão de princípio, que nenhum paciente podia morrer durante os seus turnos, e,
como que por milagre, conseguira, até ao momento, manter o seu
score em zero. É certo que alguns tinham morrido, mas isso acontecera sempre no decurso de tratamentos posteriores e por razões que
nada tinham tido que ver com a sua intervenção.
E, além disso, Jonasson tinha também uma visão pouco ortodoxa da medicina. Segundo ele, os médicos tendiam a tirar conclusões
que não podiam justificar e, por isso, a desistir demasiado depressa,
ou então a dedicar demasiado tempo à tentativa de definir exactamente o problema para poderem prescrever o tratamento apropriado.
Era, sem dúvida, o método que os livros preconizavam, sendo o único
óbice o facto de o paciente correr o risco de morrer enquanto o corpo
clínico estava ainda entregue às suas reflexões. No pior dos cenários,
o médico chegava à conclusão de que o caso era desesperado e interrompia o tratamento.
No entanto, nunca acontecera ao Dr. Anders Jonasson ter uma
paciente com uma bala alojada na cabeça. Ia muito provavelmente
ser necessária a intervenção de um neurocirurgião. Sentia-se… impotente, mas ocorreu-lhe, de repente, que talvez tivesse mais sorte do
que merecia. Antes de lavar as mãos e enfiar a bata esterilizada, gritou a Hanna Nicander:
– Há um professor americano chamado Frank Ellis. Trabalha no
Karolinska em Estocolmo, mas de momento encontra-se em Gotemburgo. É um neurologista célebre, e ainda por cima meu amigo. Está
alojado no Hotel Radisson, na Avenyn. Veja se me consegue descobrir o número do telefone.
Enquanto Anders Jonasson aguardava ainda as radiografias, Hanna Nicander voltou com o número de telefone do Hotel Radisson.
Jonasson lançou um olhar ao relógio – quase um quarto para as duas
– e pegou no auscultador. O porteiro da noite do Radisson mostrou-se muito renitente à ideia de passar um telefonema àquela hora
da noite, e o médico teve de recorrer a algumas expressões muito
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veementes para explicar a gravidade da situação antes que a ligação
fosse estabelecida.
– Olá, Frank – disse Jonasson, quando finalmente alguém atendeu. – Sou eu, o Anders. Soube que estás em Gotemburgo. Que dizes a dar um salto aqui ao Sahlgrenska e ajudar-me numa operação
ao cérebro?
– Are you bullshiting me? – respondeu uma voz incrédula, do
outro lado.
Apesar de viver na Suécia havia longos anos e de falar fluentemente sueco – é certo que com sotaque americano –, Frank Ellis continuava a pensar, e a reagir, em inglês. Jonasson falou em sueco, Ellis
respondeu em inglês.
– Frank, tenho muita pena de ter perdido a tua conferência, mas
pensei que podias dar-me umas explicações particulares. Tenho aqui
uma rapariga que levou um tiro na cabeça. Orifício de entrada por
cima da orelha esquerda. Não te teria telefonado se não precisasse de
uma segunda opinião. E não consegui lembrar-me de ninguém mais
competente do que tu para este género de coisa.
– Não estás a brincar? – perguntou Ellis.
– Deve andar pelos vinte e cinco anos, a rapariga.
– E como se apresenta o ferimento?
– Orifício de entrada, nenhum de saída.
– E ela está viva?
– Pulso fraco mas regular, respiração menos regular, tensão
100/70. Tem outra bala alojada no ombro e um ferimento de bala na
anca. Destes dois problemas posso tratar eu sozinho.
– É bom sinal.
– Bom sinal?
– Quando uma pessoa tem uma bala alojada na cabeça e continua viva, a situação tem de ser considerada promissora.
– Podes ajudar-me?
– Tenho de confessar-te que passei a noite com uns amigos. Deitei-me à uma da manhã e muito provavelmente o meu nível de alcoolemia é considerável…
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– Serei eu a tomar as decisões e a operar. Mas preciso de alguém
para me assistir e para me dizer se estou a cometer algum erro. E um
professor Ellis, mesmo completamente bêbedo, está de certeza mais
abalizado do que eu para avaliar os danos causados ao cérebro.
– Tudo bem. Vou para aí. Mas ficas a dever-me uma.
– Tens um táxi à tua espera à porta do hotel.
O professor Frank Ellis empurrou os óculos para a testa e coçou
a nuca. Olhou para o monitor que lhe mostrava todos os cantos e recantos do cérebro de Lisbeth Salander. Ellis tinha 53 anos, cabelos
muito pretos – com uma ou outra branca aqui e além – e um resquício de barba escura que o fazia parecer uma personagem secundária de ER. Via-se, pelo físico, que passava várias horas por semana no
ginásio.
Frank Ellis gostava da Suécia. Chegara no final da década de setenta como jovem investigador no âmbito de um programa de intercâmbio, e ficara dois anos. Posteriormente, voltara várias vezes até
lhe terem oferecido um lugar de professor no Instituto Karolinska.
Nessa altura, já o seu nome era respeitado no mundo inteiro.
Anders Jonasson conhecia Frank Ellis havia 14 anos. Tinham-se
encontrado pela primeira vez aquando de um seminário, em Estocolmo, e descoberto uma paixão comum pela pesca com mosca. Anders
convidara-o para uma pescaria na Noruega. Tinham mantido o contacto ao longo dos anos, e tinha havido outras pescarias. Nunca, no
entanto, tinham trabalhado juntos.
– O cérebro é um mistério – disse o professor Ellis. – Há vinte
anos que o investigo. Mais, até.
– Eu sei. Desculpa ter-te acordado, mas…
– Deixa. – Frank Ellis agitou uma mão, a desdramatizar a questão. – Vai custar-te uma garrafa de Cragganmore da próxima vez que
formos pescar.
– De acordo. Não levas caro.
– O teu caso recorda-me um outro que tive aqui há anos, quando trabalhava em Boston… descrevi-o no New England Journal of Medicine. Era uma rapariga da mesma idade que a tua paciente. Ia a
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caminho da universidade quando alguém lhe acertou um tiro de besta. O dardo entrou por cima do sobrolho esquerdo, atravessou toda
a cabeça e foi sair a meio da nuca.
– E ela sobreviveu? – perguntou Jonasson, espantado.
– Ficámos todos de boca aberta quando chegou às Urgências.
Cortámos a ponta do virote… acho que é assim que chamam às flechas disparadas com as bestas… e enfiámos-lhe a cabeça no scanner.
Atravessava-lhe o cérebro de um lado ao outro. A lógica e o bom senso exigiriam que estivesse morta, ou pelo menos em coma, dada a extensão do traumatismo.
– E como é que estava?
– Manteve-se sempre consciente. Mas não só. Estava cheia de
medo, claro, mas perfeitamente lúcida. O único problema era que tinha um dardo a atravessar-lhe o cérebro.
– E tu, que fizeste?
– Bem, peguei numa pinça, extraí o dardo e apliquei um penso.
Mais coisa menos coisa.
– E ela sobreviveu?
– Mantivemo-la em observação durante bastante tempo antes de
lhe dar alta, mas, para ser franco, podíamos tê-la mandado para casa
logo no dia em que chegou. Nunca tive uma paciente tão cheia de
saúde. – Anders Jonasson perguntou a si mesmo se o professor Ellis
estaria a brincar. – Por outro lado – continuou Ellis –, tive um paciente de quarenta e dois anos, em Estocolmo, há meia dúzia de anos,
que tinha batido com a cabeça no peitoril da janela e feito um golpezinho de nada. Começou a sentir náuseas e levaram-no de ambulância
para as Urgências. Estava inconsciente quando deu entrada. Apresentava um pequeno inchaço e uma hemorragia mínima. Mas nunca
recuperou os sentidos e morreu ao cabo de nove horas de cuidados
intensivos. Ainda hoje não sei por que morreu. No relatório da autópsia escrevemos «hemorragia cerebral em consequência de acidente»,
mas nenhum de nós estava satisfeito com a explicação. A hemorragia era extremamente pequena e situada de tal modo que não deveria ter prejudicado fosse o que fosse. E no entanto o fígado, os rins,
o coração e os pulmões deixaram de funcionar, uns atrás dos outros.
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Quanto mais envelheço, mais me convenço de que isto é como uma
lotaria. Pelo meu lado, acredito que nunca saberemos exactamente
como funciona o cérebro. O que é que tencionas fazer?
Bateu com a ponta da esferográfica no monitor do TAC.
– Estava à espera de que fosses tu a dizer-me.
– Diz-me primeiro como é que vês a situação.
– Bom, em primeiro lugar, parece tratar-se de uma bala de pequeno calibre. Entrou pela têmpora e penetrou cerca de quatro centímetros
no cérebro. Está encostada ao ventrículo lateral e há uma hemorragia.
– Medidas a tomar?
– Para usar a mesma linguagem que tu, pegar numa pinça e tirar a bala pelo mesmo sítio por onde entrou.
– Excelente proposta. Mas aconselho-te a usar a pinça mais fina
que tiverem.
– Vai ser assim tão simples?
– Num caso destes, que mais se pode fazer? Podemos deixar a
bala onde está, e a rapariga viverá provavelmente até aos cem anos,
mas é uma lotaria. Pode tornar-se epiléptica, ter dores de cabeça terríveis e mais um sem-fim de chatices. E não vamos querer abrir-lhe
a cabeça para a operar daqui a um ano, quando a ferida propriamente
dita estiver cicatrizada. A bala está um pouco afastada das veias principais. O meu conselho é que a retires, mas…
– Mas o quê?
– Não é a bala que me preocupa mais. É o que os traumatismos
cerebrais têm de fascinante: se a paciente sobreviveu à entrada da
bala, é sinal de que sobreviverá também à saída. O problema situa-se mais aqui. – Frank Ellis pousou um dedo no monitor. – Tens uma
porção de lascas de osso à volta do orifício de entrada. Estou a ver
pelo menos uma dúzia de fragmentos com alguns milímetros de
comprimento. Vários estão alojados no tecido cerebral. Se não tiveres
cuidado, são eles que a vão matar.
– Essa parte do cérebro está associada à fala e à aptidão para os
números.
Ellis encolheu os ombros.
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– Conversa fiada. Não faço a mínima ideia de para que serve essa
massa cinzenta. E tudo o que tu podes fazer é dar o teu melhor. Tu
operas. Eu assisto. Arranja-me uma bata e diz-me onde é que posso
lavar as mãos.
Mikael Blomkvist deu uma olhadela ao relógio e verificou que
passava pouco das três da manhã. Tinham-no algemado. Fechou os
olhos por um segundo. Estava exausto, mas a adrenalina dava-lhe forças. Olhou furiosamente para o subcomissário Thomas Paulsson, que
lhe devolveu um olhar enfadado. Estavam sentados à volta de uma
mesa de cozinha numa quinta de uma parvónia qualquer chamada
Gosseberga, algures perto de Nossebro, um sítio de que, até doze horas antes, Mikael nunca ouvira sequer falar em toda a sua vida.
A catástrofe acabava de ser confirmada.
– Imbecil – rosnou Mikael.
– Escute…
– Imbecil! Eu disse-lhe, seu sacana de merda, que o tipo era um
perigo de morte ambulante. Disse-lhe que tinha de lidar com ele como
com uma granada sem cavilha. O estupor assassinou pelo menos três
pessoas, tem a constituição de um carro de combate e mata com as
próprias mãos. E você, seu cretino, manda dois policiazecos buscá-lo,
como se fosse um vulgar bêbedo a causar distúrbios na festa da aldeia.
Voltou a fechar os olhos, perguntou a si mesmo que mais poderia acontecer-lhe naquela noite.
Tinha encontrado Lisbeth Salander pouco depois da meia-noite,
gravemente ferida. Chamara a polícia e conseguira convencer os Serviços de Emergência Médica a enviar um helicóptero que a evacuasse
para Sahlgrenska. Descrevera em pormenor os ferimentos e o buraco
que a bala deixara no crânio de Lisbeth, e tivera a sorte de encontrar
uma pessoa suficientemente inteligente para compreender que eram
necessários cuidados médicos imediatos.
Mesmo assim, o helicóptero tardara meia hora a chegar. Mikael
tirara dois carros do celeiro, que também fazia de garagem, e ligara
os faróis iluminando o terreno em frente da casa para indicar uma
zona de aterragem.
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