Sem título-1 - Editora Escuta

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Vera Alves de Oliveira
A questão da migração e sua relação com a
depressão e a elaboração de um luto
pulsional > revista de psicanálise > artigos > p. 80-92
número especial, maio de 2005
Pretende-se investigar com este trabalho a questão da migração e sua relação com
a depressão e a elaboração de um luto. Objetiva-se compreender o indivíduo tendo
como referência uma experiência de atendimento na clínica-escola. O caso clínico
será articulado com a teoria psicanalítica, norteando estas reflexões a partir do texto
de Freud “Luto e melancolia” (1917 [1915]).
> Palavras-chave: Luto, melancolia, agressividade, depressão
>80
This text’s intent is to investigate through the migration question and its relation with
the depression and a mourning elaboration. The move from one habitat to another
will be observed as an influential factor to physical movements, being the person
affected by losses. The text aims at understand the human being in physical and
psychical suffering, using as reference an attendance experience in the clinic school.
The clinical case will be articulated with the psychoanalytic theory, guiding these
reflections the text of Freud“Mourning and meclancholia” (1917[1915]).
> Key words: Mourning, melancholia, aggressiveness, depression
Introdução
Veio ao meu encontro, para atendimento terapêutico, um homem de meia-idade, de porte
baixo, aparência simples e asseada. Seu rosto demonstrava tristeza, e esfregava as mãos
enquanto falava comigo. Vinha com o “rótulo” do atendimento psiquiátrico: “Depressão
reativa à situação familiar conflituosa”. Havia sido encaminhado para atendimento psicossomático por estar sofrendo de insônia e
de dor de cabeça. Imediatamente pensei:
caso a situação familiar conflituosa não
existisse, como seria o paciente? Dormiria
tranqüilo? Será que estaria isento da depressão ou qualquer outro conflito o levaria a
esse estado? Haveria uma disposição patológica do paciente para a depressão? Estariam as dores de cabeça defendendo-o para
não pensar nas dores da alma?
Meu desejo era conhecê-lo para, por meio
Entendo que o sentido da psicoterapia não
é curar. Minha função era primeiramente
ouvir, observar, ser tolerante e aguardar
para, depois, ir tentando possibilitar ao paciente uma outra percepção de entendimento do que se passava com ele. Muitas sessões se passaram, até que ele começasse a
enxergar, minimamente, que eu estava ali
com ele. Pelo trabalho conjunto, na relação
paciente-terapeuta, é esperado que certas
formas rígidas de pensamento, como aquelas que o paciente apresentava, pudessem
ser repensadas, refletidas, enfim, rompidas
e que ele fosse percebendo mais claramente, de onde vinha sua “depressão” a razão de
sua insônia, e desses sintomas e sofrimentos em sua vida. Se seria possível, como saber? Somente vivendo cada experiência na
relação terapêutica.
Fui me dando conta da importância do distanciamento da história do paciente para
que eu pudesse contribuir com o processo
terapêutico e não ser engolfada pela avalanche dos conteúdos trazidos na sessão. Percebi aí, como era difícil a neutralidade: ambos nos afetávamos. No entanto, houve o
cuidado de me deixar afetar sem me deixar
levar nesse furacão.
Com o desejo de melhor compreender o que
acontecia com o paciente, para poder propiciar a ele um espaço de reflexão durante o
atendimento, recorri à teoria psicanalítica,
norteando este trabalho no texto de Freud
“Luto e melancolia” (1917), e em textos pertinentes ao tema, citados nas referências.
As indagações clínicas, bem como seu processo, serão fundamentadas teoricamente.
Considero ter sido este trabalho, de grande
relevância para minha formação profissional
pela experiência clínica e conhecimentos
adquiridos. Espero estar contribuindo e es-
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número especial, maio de 2005
da nossa relação no setting terapêutico, poder perceber alguns funcionamentos psíquicos na sua forma de relacionar-se com as
pessoas, de entender a si próprio e ao mundo que o cercava.
Ao contar-me sua história de vida, prevalecia o relato de muitas perdas, de forma delirante e frenética. O paciente colocava
aquilo que imaginava ser seu problema: descrevia uma tumultuada separação de sua
mulher, falava das várias dificuldades de relação com o meio (filhos, conhecidos e no
trabalho); e dizia não estar agüentando tantas coisas ruins caindo sobre ele de uma só
vez. Era o que ele fazia comigo nas sessões
e não se dava conta. Parecia não assumir
responsabilidade pelos seus atos. Idealizava
coisas que não conseguia realizar. Exigia perfeição de si próprio e dos outros e, percebendo não atingir esse seu ideal, frustravase, reagindo com agressividade. Sentia-se
injustiçado e perseguido desde criança. Por
volta dos 14 anos de idade, o álcool passara
a fazer parte de todos os acontecimentos
mais dramáticos de sua vida.
O paciente vinha à clínica buscando um lenitivo para sua dor, para esse mal-estar psíquico que passava pelo corpo, não lhe permitindo sequer conciliar o sono. Parecia estar depositando em mim a responsabilidade
por curá-lo em algumas sessões psicoterapêuticas, julgando-me onipotente, como se
eu tivesse o poder de resolver todos os seus
problemas. Percebi, nesse funcionamento, o
processo de transferência, pelo qual o paciente revivia seus desejos inconscientes de
obter no encontro analítico algo que lhe faltava. As sessões eram um transbordamento,
uma falta de continente, um despejar de
mágoas, como se abrissem as comportas de
um açude de águas turbulentas e revoltas.
>81
timulando para outras reflexões sobre esse
tema, todos quantos se interessem, para um
futuro aprofundamento nessas questões.
A identidade do paciente foi preservada com
o cognome de Cícero, bem como, todos os
demais nomes são fictícios.
Caso clínico/
Articulação teórica
A vida, tal como a encontramos,
é árdua demais para nós, proporciona-nos muitos
sofrimentos, decepções
e tarefas impossíveis.
Freud, 1929.
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Imigrante nordestino, vivendo em São Paulo há trinta anos, cheio de sonhos e idealizações, o paciente amargurado revela-me
que, quando vivia lá na sua terra, “era feliz
e não sabia”, lamentando que aqui é um lugar grande demais para ele. Seu desejo era
ir para uma cidadezinha do interior, onde
ele conhecesse as pessoas e pudesse dar
“Bom-dia” a todas elas, e me falava: “Viu
como eu sou simples?”
>82
Parte 1
Cícero: “Lamento Sertanejo”1
Por ser de lá do sertão
Lá do serrado
Lá do interior, do mato
Da caatinga, do roçado
Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigo
Eu quase que não consigo
Ficar na cidade sem viver contrariado
Por ser de lá
Na certa, por isso mesmo
Não gosto de cama mole
Não sei comer sem torresmo
Eu quase não falo
Eu quase não sei de nada
Sou como rês desgarrada
Nessa multidão boiada
Caminhando a esmo.
Cícero, 49 anos, separado há um ano, após
um casamento de vinte anos, relatou ser filho de uma família com dez irmãos legítimos
e dois adotados. Ao relembrar sua infância,
fala que, quando pequeno, era o escolhido
de sua mãe para apanhar. Havia dias em que
apanhava quatro vezes e sentia muita raiva,
porque achava não merecer aquele castigo.
Lembra-se também, que o pai era de pouco
falar, mas a mãe, sempre muito brava, exigia total obediência, por isso afirma contrariado: “Fui criadoasempre dizer sim, sim, sim.”
Para a situação que viviam no Nordeste, São
Paulo era um sonho. Cícero relata que tudo
começou quando, aos 16 anos, teve de deixar sua pequena cidade, do dia para a noite, e fugir para São Paulo. Desde criança, a
idéia de vir para esta cidade sempre existira. Cícero colocou para si um ideal, sem pôr
em dúvida se poderia alcançá-lo ou não,
desconhecendo o tamanho de sua ambição
por desconhecer a si mesmo. Sua vida estava projetada no futuro. O paciente lamenta
que sua vinda ocorreu de forma inesperada,
em um momento que ele ainda não estava
preparado. Não tinha feito o exército, nem
possuía carteira de identidade. E para o Sul
ele veio, como canta Caetano Veloso: “caminhando contra o vento, sem lenço, sem documento…”
Assim, sua história foi narrada: em uma tar-
1> Dominguinhos, (Música) e Gilberto Gil , (Letra.) Lamento sertanejo.
bilidade pelos seus atos, quando diz: “Entrei
na briga, meio de gaiato, levei a pior: papagaio come milho, periquito leva a fama. Eu
acho injusto essas coisas”. O alcoolismo e a
agressividade geraram naquela época (há
trinta anos) uma situação que foi determinante para uma mudança radical em sua
vida, persistindo esses mesmos geradores de
conflitos até hoje.
Quando chegou aqui, Cícero foi morar com
seu irmão mais velho, Severino, que considera seu segundo pai. Apanhava dele freqüentemente, por ordem de sua mãe, “porque ele queria seu bem”. Essa é sua crença;
bater é ensinar, atitude que vem a repetir
com seus filhos. Sua história, assim como
seu corpo, seu psiquismo e suas atitudes têm
sido marcados por muitos atos de violência.
Com relação a esse seu irmão, Cícero relatou
que este sempre foi extremamente religioso-fanático, seguindo as crenças e dogmas
do Catolicismo ao pé-da-letra. Severino não
se casou. E, como sexo fora do casamento
era pecado, permaneceu virgem e “isso subiu para a cabeça dele”, afirmou o paciente.
Severino acabou enlouquecendo, dizia ser
santo, recusava-se a comer “porque santos
não comem”. Cícero teve de interná-lo por
um ano em um hospital psiquiátrico, em Itapira. Diz ter sido uma das situações que
mais o fez sofrer, ver o irmão louco, andando de joelhos no pátio do sanatório, dizendo ser santo. Após um ano, Severino teve
alta. Cícero afirmou que o irmão foi curado por milagre, na igreja evangélica “Deus é
Amor” e, após a cura, retornou para sua terra
para a casa dos pais.
Cícero, com vinte anos, conheceu sua ex-esposa aqui em São Paulo, uma bonita nordestina, “opiniosa”. Não tinha intenção de casar-se com ela, porque gostava mais de uma
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de quente de sol, Cícero, com 16 anos, acompanhado de um futuro cunhado, estava indo
tomar banho no rio. O calor era demais. No
caminho mudaram de idéia e resolveram
matar a sede num boteco. Encontrava-se lá
Raimundo, antigo namorado de uma de suas
irmãs. Bebida vai, bebida vem, os ânimos se
alteraram. Raimundo teria ofendido a honra de sua mãe e de suas irmãs, chamandoas de “raparigas”, e a pancadaria foi geral.
No momento da briga, Raimundo levou a
pior. Tendo chegado em sua casa todo machucado, sua esposa teria dito a ele que, se
ele fosse “um cabra-macho”, deveria ir atrás
de Cícero e vingar-se dele; caso contrário,
ela não o receberia mais em casa. Armado
de uma peixeira, Raimundo foi até o sítio
onde Cícero morava e ficou atocaiado, aguardando o momento para matá-lo. Percebendo que iria acontecer uma desgraça, à noite, o pai de Cícero tirou-o dali às escondidas
e, naquela mesma madrugada, mandou-o
para São Paulo.
Não lhe foi permitido enfrentar o inimigo.
Correndo o risco de morrer ou matar, seu pai
decidiu por ele que deveria fugir. Do dia para
a noite, perdeu sua cidade, perdeu sua família, seus pais, sua namorada, perdeu o direito de ser aquele “adolescente despreparado” nordestino. Não lhe foi permitido mostrar sua “coragem” de ser um “cabra-macho”.
O sonho idealizado de vir para São Paulo, de
uma hora para outra tornou-se um grande
pesadelo. Literalmente sem seu chão, por
um bom tempo, sentiu-se perdido nesta cidade grande. Cícero só nunca perdeu o que
idealizou desde a adolescência: o desejo de
voltar “bem de vida” para sua cidade.
O paciente relembra que, no dia da briga,
estava alcoolizado. Reagiu agredindo o outro, mas demonstra não assumir responsa-
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artigos
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outra moça que havia deixado na sua terra.
Mas, após um longo namoro de nove anos,
ela ficou grávida e acabaram se casando.
Relata que sua vida conjugal, ao longo desses vinte anos, foi marcada por muitas brigas, porém enquanto havia dinheiro, tudo
caminhava melhor. “Dinheiro não é tudo,
mas em um casamento é 100%”. O paciente
colocava toda a responsabilidade da perda
de seus bens, na sua ex-esposa, por ela têlo induzido a fazer uma dívida que ele não
queria. Questionado se só ela teria culpa, o
paciente diz que, na verdade, ele foi o principal culpado por não saber dizer não e querer ser bom para os outros. Cícero parecia
contrariar sua lógica de pensamento, contradizendo-se, quando culpava a esposa e, logo
após, culpava a si, porém narcisicamente,
vitimizando-se. Culpava-se por ser “bom” e
o ruim era o outro: “Com toda boa intenção,
sem maldade no coração, fui parar na rua”.
Entretanto, admitira ter traído sua ex-mulher
e ela, ao saber, teria jurado vingança contra
ele. Muitas vezes chegava em casa nervoso,
alcoolizado, xingava a esposa, ameaçando
separar-se dela. Apesar disso, culpava-a pela
separação, denominando de massacre e covardia o que ela fez, tendo-o caluniado ao
juiz, de espancar seus filhos, e a ela própria.
Em todas as sessões, assumia não ter paciência com nada. Mas, ali no encontro terapêutico era isso que eu precisava ter, toda
paciência para ouvi-lo contar e recontar
melancolicamente a mesma história.
Apesar das acusações e desqualificações que
fazia da ex-esposa, inclusive de que ela era
meio louca, ou deveria “estar tomada pelo
diabo”, afirmava não estar disposto a assinar o divórcio. Isso representava para ele
mais uma perda definitiva. Da mesma forma
que lamentava ter perdido o trabalho que
dizia gostar, classificava aquele local como
um antro de “171” (malandros, desonestos).
Quando desqualificava, parecia aliviar-se,
sofrer menos pela perda de algo não tão bom.
Cintra (2004) diz o seguinte:
Penar é sofrer pelo objeto amado; isso pressupõe que se dê a ele muita importância, muito
valor. É por essa razão que as defesas maníacas, existentes para diminuir esse penar (anseios), envolvem sempre algo como depreciação, retirada de valor do objeto desejado. São
estratégias de menosprezo que visam exercer
controle sobre a excessiva importância e os
sentimentos de pesar, penar e preocupação
pelo objeto amado. (p.97)
O paciente dizia não conseguir conformar-se
com tantas perdas: os dois bares, a oportunidade de ser seu próprio patrão, o carro, o
apartamento, dinheiro de reserva, a esposa,
os filhos, amigos (da época em que ele tinha
dinheiro), o emprego, o plano médico, a saúde... Freud (1914) nos afirma que, na melancolia, o paciente sabe que perdeu os objetos,
mas ignora o que perdeu nesses objetos ou
nessas pessoas. Na melancolia, a energia
investida no outro se volta para o eu, seria
como incorporar o outro, uma forma arcaica
de identificação.
Cícero deseja voltar para sua terra, mas agora, sem nada, isso dói e essa dor chama-se
frustração. Às vezes, descrevia-se como trabalhador, batalhador, incansável, outras,
profundamente desanimado. Esse é um dos
traços principais da melancolia, que leva o
paciente a ter diminuído seus sentimentos
de auto-estima e empobrecimento do ego,
mostrando-se desprovido de valor. O paciente não sabia o que ele era; às vezes, era
Cícero, outras era um “Zé Mané”; não conseguia integrar esses dois aspectos psíquicos
como sendo ele, um só. Sua vida estava
Quero chorar, não tenho lágrimas
Que me rolem na face para me socorrer
Se eu chorasse, talvez desabafasse
O que sinto no peito e não posso dizer
Só porque não sei chorar, eu vivo triste a sofrer
Estou certo que o riso não tem nenhum valor
A lágrima sentida é o retrato de uma dor
O destino assim quis de mim te separar
Eu quero chorar não posso vivo a implorar
O paciente assustava-se com essa sua perda da capacidade de amar, esse desinteresse pelo mundo externo. Cícero parecia ter
retirado da irmã, do sobrinho, dos filhos, os
investimentos libidinais que até então havia
dirigido a eles. Passou a não sentir mais
nada por eles, como se fossem estranhos. Aí
aparecia a perturbação da libido do objeto
com reflexo na relação com as pessoas e
com o mundo externo, um processo de cisão
no ego arcaico. O paciente perguntava-me
angustiado: “Será que meu amor secou?” Eu
respondia que talvez seu amor pudesse estar hibernando como uma semente na terra e assim que fosse aguado por chuvas de
tolerância, de compreensão, de entendimento, poderia voltar a crescer. Cícero sorri aliviado.
Havia passado três décadas desde que Cícero viera para São Paulo, e ele ainda sentiase sem recursos para enfrentar o que encontrara na vida, com sua “pequena bagagem”.
Ele não conseguia redimensionar seu ideal
para caber na sua vida. Desorientado, solitário, parecia que, nesses movimentos de
idas e vindas, havia perdido sua identidade
pelo caminho. Sentia-se ainda como aquele
“adolescente despreparado”, inseguro, angustiado, sem chão, precisando vencer na
vida, pedindo que alguém o enxergasse, o
ouvisse, acreditasse em sua história, e esse
alguém era eu.
Parte 2
Cícero: “Sangrando”3
Quando eu soltar a minha voz por favor, entenda
Que palavras por palavras
Eis aqui uma pessoa se entregando
Coração na boca, peito aberto, vou sangrando
São as lutas dessa nossa vida que eu estou
cantando.
Quando eu abrir a minha garganta, essa força
tanta
Tudo que você ouvir,
Esteja certa que eu estarei vivendo
Veja o brilho dos meus olhos e o tremor das
minhas mãos
E o meu corpo tão suado, transbordando toda
raça e emoção.
2> Max Bulhões e Milton de Oliveira. Não tenho lágrimas.
3> Gonzaguinha. Sangrando.
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cindida assim como ele próprio.
Numa fala migratória, que ia e voltava no
tempo, na sua história, no seu mundo externo, Cícero sempre voltava a falar das perdas
e afirmava não conformar-se com aquilo:
“Quando eu acordo e vejo a realidade, eu
falo, meu Deus, isso não é verdade, é um
pesadelo, isso não pode estar acontecendo
comigo”.
Assim como, com tristeza, Cícero vira secar
rios e lagoas lá do seu sertão, angustiado sentia
que haviam secado os sentimentos do seu
coração e suas lágrimas. Dizia ele: “Antes eu
chorava até assistindo novela, hoje não consigo chorar, nem pelo meu drama”. Lembreime de uma música antiga2 que dizia:
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artigos
E se eu chorar e o sal molhar o meu sorriso
Não se espante, cante que o teu canto
É minha força para cantar
Quando eu soltar a minha voz por favor entenda
É apenas o meu jeito de viver, o que é amar.
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Aquele mesmo insensível coração que não
sentia mais nada, passara a sentir dor e raiva, como diz o autor: “Coração na boca, peito aberto vou sangrando”.
Desde criança, Cícero sentia-se perseguido,
contava ele, “eu apanhava por culpa dos outros”. Jovemzinho, por ser de estatura baixa,
era alvo de chacotas, sentia-se muito humilhado e profundamente irritado com insinuações que punham em dúvida sua masculinidade. Dizia não aceitar esse tipo de brincadeira.
Nas sessões, ele esperava que eu o ouvisse,
entendesse suas razões, não duvidasse do
seu sofrimento, das suas dores. Eu dizia a
ele que estava ali disposta a ouvi-lo e que
percebia a sua angústia. Ao favorecer a expressão do sentimento, facilitava o contato
com a emoção, o que poderia favorecer a
elaboração.
Nessas ocasiões (confirmando a teoria kleiniana), o paciente desejava encontrar na
relação terapêutica um ambiente bom o suficiente.4 Dizia estar decepcionado por não
ter sido compreendido, nem ajudado no momento em que mais precisava: “Eu sou bonzinho, a pessoa vai me conduzindo, vai me
embrulhando. Mas, pode estar doendo, ardendo, queimando, quando eu tomo uma
decisão eu quero ir até o final, nem que eu
me arrebente… Eu estou decepcionado comigo mesmo”. Eu continuava ali, atenta, mas
ele ainda não me percebia.
No auge do desespero, financeiramente falido, Cícero conta ter dito à sua ex-esposa
que iria se matar e ela lhe teria respondido
friamente: “Pode se matar, mas não deixa as
crianças verem”. Ao relembrar, o paciente
exprimiu indignação e ódio. Em outras situações, Cícero confessara que não sabia
que gostava tanto dela e que, se fosse por
ele, voltaria com ela. Existia na vida de Cícero um grande conflito entre o amor e o
ódio.
O paciente ia trazendo um quadro de melancolia evidente, apresentado na sua fala deprimida e no seu jeito de estar comigo (ou
de não estar comigo). A perda da figura de
vínculo tem um valor de sobrevivência. O
investimento que havia feito nas relações
que perdera (com a mulher, filhos, irmã,
amigos) não conseguia substituir por outras
novas, porque duvidava da sua capacidade
de refazer a vida: “Minha vida acabou ali, eu
morri dentro daquele apartamento”. Em se-
4> O primeiro objeto com o qual o bebê se relaciona é o seio da mãe. Nesse primeiro momento, o bebê
vive o estado de simbiose com a mãe. Ele e a mãe são um só, como um corpo para dois. Quando esse
seio lhe satisfaz as necessidades é o seio bom (gratificador), caso contrário, passa a ser o seio mau (frustrador). O seio bom é amado, o seio mau é odiado. O bebê não tem consciência que ambos os seios fazem
parte da mesma mãe, da mesma pessoa. Ele não se relaciona com a mãe, ele se relaciona com o seio
bom ou com o seio mau. Assim se forma a cisão do objeto, representando o amor e o ódio. A partir daí a
criança vai constituindo seu mundo interno. O bebê tem a experiência cindida de si mesmo e do outro.
Vai introjetando para seu ego um objeto bom quando este lhe dá amor, carinho, segurança e, ao mesmo
tempo, quando há vivência oposta, experienciando dor, frustração, introjeta um objeto mau. O bebê se relaciona de forma cindida, ou com o bom, ou com o mau, ignorando que esses dois aspectos fazem parte
da mesma pessoa.
Quando você foi embora, fez-se noite em meu
viver,
forte eu sou, mas não tem jeito, hoje eu tenho
que chorar,
minha casa não é minha e nem é meu este lugar,
sou tão só, mas, não tem jeito, muito tenho
para contar…
Solto a voz nas estradas, já não posso parar,
meu caminho é de pedras, como posso sonhar?
Sonho feito de brisa, vento vem terminar,
vou fechar o meu pranto, vou querer me matar…
Cícero não conseguia reinvestir em outra
coisa, outros interesses. Seus recursos psíquicos naquele momento não lhe permitiam
criar uma nova condição de se enxergar a si
próprio e ao mundo que o rodeava. Confessava estar aprendendo aos poucos, a duras
penas; estava inconformado por estar passando por aquela situação; não perdoava
ninguém, nem a ele mesmo por tudo aquilo.
Eu entendia que vivenciar a dor era uma
condição importante para o início do processo de luto.
O paciente trazia relatos de conteúdos violentos. Chegou a afirmar com muita raiva, já
num final de sessão, que se a ex-esposa levasse um novo marido para dentro do apartamento, que ele deu o sangue para construir: “Mato os dois, hoje penso isso, amanhã
não sei”. Pontuei que a morte estava sempre “rondando” a sua história e pergunto a
ele: “O que será que atrai a morte para a sua
vida? Será que há uma outra forma de matar, sem ‘matar’, sem sangue, a nós mesmos
ou outras pessoas?” Sempre ocorriam os relatos mais pesados no momento em que as
sessões estavam encerrando e eu ficava me
perguntando se, inconscientemente, o paciente não fazia isso como mecanismo de
defesa, não desejando ouvir nenhuma intervenção, ou mesmo porque sempre saía lamentando ter terminado o tempo e ficado
tantas coisas para contar. Para refletir, quase todas...
No período que ocorreram as perdas financeiras, o paciente chegou a sofrer seis acidentes graves de carro, todos de madrugada, estando sempre alcoolizado, sem dormir,
em estado perturbado, com muitos problemas na cabeça para serem resolvidos. Ouvia
uma voz que o levava para a morte, que lhe
falava: “É agora, é agora”. Dormia ao volante e acordava no hospital.
Sintomas psicossomáticos se manifestavam.
Quando algum pensamento precisava ser
elaborado, o paciente tinha dores de cabeça, fisgadas, que não lhe permitiam pensar
(mecanismo de evacuação de qualquer pensamento). Uma espécie de bola de fogo lhe
queimava o estômago, quando nervoso, e
seu coração ficava apertado, doía, quando
triste. Falava também de suas dores morais
de imigrante, de suas desilusões, suas angústias, de quem não consegue ficar nem
aqui nem lá. Freud enfatiza que a perturbação do melancólico está ligada à constituição do ego, quando uma parte do ego se coloca contra a outra. O paciente estava divido: metade dele deseja voltar para sua terra, onde tinha suas raízes, sua família, onde
deixou seus amores, suas ilusões. Mas,
como? Lá ainda permanecia aquele antigo
inimigo. Além do mais, como fracassado,
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guida, demonstrando desamparo, perguntava se eu entendia aquilo. Eu respondia-lhe
que me parecia que aquela dor era doída demais para ele. Cícero retoma: “Pois é, ela riu
na minha cara, debochou de mim, dizendo que
se eu morri, como é que eu estava falando?”.
Isso fez-me lembrar da música, de Milton
Nascimento:
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como um “Zé Mané” não poderia voltar. Seu
desejo oposto era ficar em São Paulo, refazer sua vida, “sair dessa”. Não admitia que
sonhos poderiam não se tornar realidade.
“Se existe uma pessoa que não aceita facilmente as frustrações da vida, infelizmente,
essa pessoa sou eu”, dizia ele. Seu superego
rígido, aliado a um funcionamento narcísico
de ser o “dono da verdade e da moral”, não
lhe permitia aceitar a realidade sem um intenso sofrimento. Com a mesma severidade
que julgava a si próprio, julgava também os
que estavam à sua volta.
Conscientemente sentia-se perseguido por
todos, uma vítima do mundo. Inconscientemente sentia-se importante, achando que
todos estavam preocupados com ele, em
julgá-lo, em prejudicá-lo. Aí residia seu desejo inconsciente de ser pensado, olhado, cuidado, valorizado. A idéia de que ele era inferior, um “Zé Mané”, era a paranóia; ele
desejava ser superior. Cícero parecia não
conseguir conciliar as duas representações
que fazia de si, ou ele era perfeito ou era
um coitado. Tinha uma grande exigência
consigo mesmo e amargurava-se ao ver que
não iria conseguir. Em vez de questionar
seus ideais, ele estava preocupado em como
chegar lá. Não sabia lidar com seus limites.
Tinha uma auto-estima perturbada, parecendo ser uma característica de sua vida
desde criança. Questionar os desejos do paciente era o meu desejo naquele momento
da terapia, mas entendia que meu caminhar
em direção ao objetivo da psicoterapia haveria de ir andando a passos mais lentos.
Quando eu tentava confrontar algum aspecto de sua realidade externa com a realidade íntima, ele “fugia” da reflexão, sobretudo
quando era tocado no seu ponto nevrálgico:
a agressividade. Nas sessões iniciais, no
auge da angústia, quando rememorava um
fato, em que se colocava como vítima, revoltava-se e não permitia minhas intervenções, dizendo em tom imperativo: “Agora eu
vou falar, com licença”. Angustiado, sentiase persecutoriamente aniquilado e sua relação com o objeto era parcial, quando anulava a minha presença e fazia jorrar o afeto
das perdas, que doía muito: “O que está
acontecendo comigo é um massacre”, dizia
ele. Comigo também, mas ele não percebia.
Cícero não encontrava um canto para descansar um pouco sua alma imigrante, que se
balançava em movimentos de lamento,
numa rede tecida com fios de negros pensamentos e sentimentos de mágoa, revolta,
raiva, indignação, frustração, desânimo, daqui para lá, de lá para cá, todo o tempo: “Estou sem achar um rumo para minha vida.
Ainda não caiu a ficha que eu tenho que começar tudo de novo”.
Tentando esclarecer algumas primeiras hipóteses sobre o que ocorria com esse paciente, busquei em Freud (1917), onde o autor faz
uma comparação entre o luto e a melancolia. O luto pode significar aquilo que se exterioriza, ou o afeto da dor. Perdas importantes como de parentes, de algum ideal, da
terra natal e outras, sentidas como graves
afastamentos, podem levar uma pessoa a
sofrer a dor desse luto durante algum tempo. Após, é esperado que esse sofrimento
seja superado naturalmente, não sendo considerado patológico. No caso de Cícero, sua
dor parecia não passar, as feridas não paravam de sangrar. Tanto o luto quanto a melancolia têm como causa influências ambientais. No luto, a auto-estima fica preservada. Arriscava a hipótese de que Cícero era
um paciente melancólico, por possuir baixa
auto-estima, ter um profundo desânimo di-
sessões e depositava em cima da mesa. Esse
saco representava o seu próprio psiquismo.
Ao abri-lo, retirou dali os conteúdos na tentativa de começar a organizá-los. Comentou
que consultou uma pessoa para “prever seu
futuro e resolver todos os problemas de sua
vida”. Relatou sua decepção por ter perdido
tempo e dinheiro. Ria dele próprio ao relembrar ter passado por situações ridículas,
como quando foi enterrar ovos de pata no
jardim do Parque Ibirapuera e, apesar do sacrifício, seu relacionamento com a ex-mulher em vez de melhorar, piorou. No fim, acabou achando que “foi mexer com espíritos e
estes começaram a perturbá-lo”.
Numa associação livre, Cícero disse que iria
me contar duas experiências que ocorreram
com ele há mais de um ano. Relatou que um
dia, quando estava sozinho em casa, resolveu beber um pouco porque sentia fortes
dores no ombro e na coluna. Quase não podia andar por conta de um acidente de carro que havia sofrido. De repente, ele sentiu
“entrar nele” uma criança que rolava no carpete, pulava de um sofá no outro, revirava
o armário, jogava tudo no chão. Falou ter
pensado: “Meu Deus, eu estou todo arrebentado, vou me arrebentar mais ainda”. Conta que ao pular as dores sumiram. “Parecia
que não era eu. Eu estava ‘de fogo’, mas estava consciente”. Relatou que depois de dois
dias, as dores voltaram intensas; ele voltou
a beber para amenizar as dores. Saiu para
andar na rua e olhando para o céu “falava
com Deus” quando bateu o rosto em um
poste, ficando todo ensangüentado. Na noite desse mesmo dia, estava melhor e foi trabalhar. A outra experiência ocorreu no ano
passado, no dia de seu aniversário. Assim
ele contou: “Estava com meus três primos,
havíamos bebido, quando entrou um negó-
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ante da vida, desinteresse pelas coisas do
dia-a-dia, perda da capacidade de amar, inibição das atividades, passando por se autorecriminar (não perdôo nem a mim, dizia
ele), culminando com delírios persecutórios
e de punição.
O paciente tinha uma lógica neurótica. Em
certo momento relatou sentir-se como um
carneirinho, que as pessoas engordam para
depois fatiá-lo. Provavelmente ele associava algo bom com um trauma do passado. Sua
crença era que quando ocorre algo bom, logo
após vem uma dificuldade. “Agora tudo está
caminhando, mas estou esperando a próxima que vão aprontar comigo”. Pensava eu:
o que será que ele pensa que eu vou “aprontar” para ele?
Além da psicoterapia, Cícero fazia tratamento psiquiátrico. Tomava remédios para dormir e para depressão. Era alcoolista e tentava lutar contra essa doença, mas de vez em
quando era vencido. Os remédios e o álcool
na vida de Cícero serviam para alterar sua
percepção da realidade. Era como se sua
vida insuportável, de repente deixasse de
existir. O paciente parecia ter introjetado
um superego severo, fazendo dele um sujeito rígido, que não conseguia ter contato com
sua vida, seus sentimentos. Eu entendia
que o problema não era a bebida, era a
mente que necessitava sair da realidade.
Aos poucos, pudemos ir conversando sobre
a razão dele precisar da bebida na sua vida
e que benefícios ela lhe trazia. Conscientemente ele dizia: “Sou do tipo que não sabe
beber”, reconhecia não ter limites. Mas, e o
por quê?
As sessões que vinham repetitivas passaram
a ter um movimento diferente quando o paciente resolveu abrir um saquinho de supermercado que, de vez em quando, trazia nas
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cio em mim. Eu escutava, mas não era eu
que falava. Eu abraçava e beijava meus primos. Estava lúcido, enxergava tudo claro e
sentia o maior amor do mundo”. Relatou que
ao voltar da experiência estava “de fogo” e
machucado. Nossa sessão estava no final,
disse a ele que precisávamos conversar sobre o que o álcool vinha causando na sua
vida. O paciente responde: “Hoje tomo remédios, não misturo com o álcool”. Ele foi embora e fiquei me perguntando: talvez estivesse me dizendo que não precisaríamos
mais conversar sobre o assunto, será?
Ao longo dos atendimentos, Cícero relatava
que antes batia nos filhos para educá-los,
assim como apanhara para educar-se. Conversar com ele sobre agressividade,5 nesse
momento, ele ainda não permitia. Envolvera-se durante toda sua vida, em discussões
e brigas, batendo, mas também apanhando
muito. Seu extravasamento agressivo alcançava a ele próprio. Contou que quando era
jogador, batia nele mesmo. Dava-se socos
de revolta de não saber jogar. Estava sempre machucado. Nas sessões, tinha necessidade de me dizer que era de paz, bonzinho,
não era o monstro que sua ex-mulher havia
pintado, porque, se ele fosse esse monstro,
ela teria medo dele e não teria falado tantas mentiras. Eu pensava: ele quer me convencer que o leão é manso, por quê? De for-
ma contraditória, dizia querer viver em paz,
num lugar que ninguém o provocasse ou
perturbasse, enfatizando: “não se cutuca
leão com vara curta”. Pontuei que, infelizmente, não vivemos isolados, estamos sempre nos relacionando com as pessoas, inevitavelmente pessoas mexem com pessoas,
mas o que teríamos que pensar era o quanto o mexer dos outros mexia com ele.
Parte 3
Cícero: “Começar de Novo” 6
Começar de novo e contar comigo,
Vai valer a pena ter amanhecido
Ter me rebelado, ter me debatido.
Ter me machucado, ter sobrevivido.
Ter virado a mesa, ter me conhecido.
Ter virado o barco, ter me socorrido.
Começar de novo e contar comigo,
Vai valer a pena ter amanhecido.
Sem as suas garras, sempre tão seguras.
Sem o teu fantasma, sem tua moldura.
Sem suas escoras, sem o teu domínio.
Sem tuas esporas, sem o teu fascínio
Começar de novo e contar comigo,
Vai valer a pena já ter te esquecido.
Começar de novo...
Quando estávamos quase no final do período em que havíamos estabelecido para o
tratamento terapêutico, permitimo-nos parar
um pouco e olharmos juntos para trás, para
5> Laplanche e Pontalis esclarecem: Agressividade – tendência ou conjunto de tendências que se atualizam em comportamentos reais ou fantasísticos que visam prejudicar o outro, destruí-lo, constrangê-lo,
humilhá-lo etc. A agressão conhece outras modalidades além da ação motora violenta e destruidora...
Alarga-se o campo em que se reconhece a agressividade em ação. Por um lado, a concepção de uma
pulsão destrutiva suscetível de se voltar para o exterior, de retornar para o interior, faz dos avatares do sadomasoquismo uma realidade muito complexa... A agressividade já não se aplica apenas às relações
com o objeto ou consigo mesmo, mas às relações entre as diferentes instâncias (conflito entre o superego
e o ego). Localizando a origem da pulsão de morte na própria pessoa, fazendo da auto-agressão o próprio
princípio da agressividade.
6> Ivan Lins e Victor Martins. Começar de Novo
artigos
que ele iria acabar morrendo como o seu irmão, bêbado na sarjeta. Perguntei a ele, o
que achava disso, ele respondeu enfaticamente: “Não, de jeito nenhum, porque eu
não quero. Quando a pessoa não quer, Deus
vai lhe ajudar e livrá-la de tudo”.
A bebida abaixa as amarras da severidade
superegóica. Esse seria o trabalho do paciente alcoólatra: trabalhar para constituir sua
questão egóica. Cícero afirmava que o tratamento psicoterapêutico estava ajudando-o
muito. Dizia sair das sessões com a maior
alegria do mundo, embora depois de algum
tempo esse bem-estar ia diminuindo e suas
ansiedades voltavam. Quando isso ocorria,
em vez de sair, isolava-se. Parecia estar me
dizendo que procurava recolher-se por medo
dele mesmo, de não conseguir conter o “leão
que estava dentro dele”, que ele dizia ser
bonzinho, porém, sem ter certeza.
Ao término do período estabelecido para a
terapia pude perceber que aquele imigrante
sem rumo, o “Zé Mané”, havia ficado no
passado. Cícero o havia ultrapassado e caminhava bem à frente. Isso não quer dizer que
esquecera do “pobre coitado”, às vezes parava, olhava para trás e lhe acenava, mas já
não se detinha, prosseguia com a intenção
de fazer incursões por outros caminhos.
Em muitas sessões, Cícero chegava ofegante e dizia: “Vim a pé. A condução não passou, decidi não esperar mais”. Já se movimentava em todos os sentidos. Voltara até
a dançar e afirmava: “Eu não sou mal- humorado, eu sou alto astral”. Começava a se divertir sem culpa. Aos poucos, distanciava-se
daquele superego rígido e primitivo que antes, para se satisfazer, movimentava-se em
direção a uma necessidade de castigo. Parecia lentamente ir migrando para outras situações, a caminho de novas possibilidades.
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uma breve avaliação desde o início das sessões até aquele momento. Entendemos que
com o passado não havia mais o que poderia ser feito (somente pensar, e talvez elaborar), o que poderia se trabalhar seriam as
condições presentes.
O paciente nesse ponto dava sinais de estar um pouco menos angustiado. Sua fala,
suas atitudes mostravam isso (não esfregava tanto as mãos como fazia antes). Sorria
mais nos nossos encontros. Em certos momentos, trazia um discurso mais lógico e já
pensava em planos para o futuro, quando
dizia: “Estou tentando levar a minha vida
para sair dessa situação, porque nem tudo
está perdido. Para mim, esse momento é
tudo”. Cícero não “trazia” mais às sessões,
com tanta freqüência, sua ex-esposa como
um fantasma colado ao seu lado. Parecia
lentamente começar a “separar-se” dela,
ocupando-se em comentar e pensar também
sobre outros assuntos. Cícero dizia entender
agora que ela não era “doida” nem estava
com as “sete pombas-giras” como a cartomante lhe falara, o que ela queria era independência, livrar-se dele. Eu e ele também
estávamos em processo de separação, nos
aproximando do fim do período da terapia.
Perguntei-lhe, se achava que eu também
queria me livrar dele e respondeu que não,
que entendia que eram as normas da clínica. E eu fiquei conjeturando, sem entender
por que ele faltou nas últimas três sessões.
Nós não nos despedimos. Teria preferido
não ter que sofrer mais uma perda, uma separação ou um abandono?
Ao ser perguntado como estava o álcool na
sua vida, ele respondeu: “Eu estou tranqüilo, tranqüilo”. Numa associação livre, revela não estar tão tranqüilo, pois lembrou-se
imediatamente de sua ex-esposa ter lhe dito
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Impressões finais
A princípio a sessão psicanalítica era utilizada pelo paciente para amenizar sua angústia, não parecendo ter condições de pensar
nas questões que o faziam sofrer, que saíam
aos borbotões, com muitos conteúdos de
violência.
Por volta da metade do tratamento terapêutico, o paciente, que inicialmente não permitia intervenções, começava a me dizer
que os remédios o estavam ajudando muito,
mas que nas sessões havia aprendido coisas
para melhor conduzir sua vida, as quais esperava não esquecer nunca mais. Dizia ele:
“Eu devo administrar melhor minha vida, tomar mais cuidado com as pessoas, observar
melhor em quem confiar. Quando assinei os
talões de cheque em branco e dei para meu
irmão, foi uma irresponsabilidade minha, ele
não cuidava nem da vida dele, como ele ia
cuidar da minha?” Mostrava-se interessado
em continuar os atendimentos: “O que
aconteceu comigo, tem pessoas que ‘tiram
de letra’, mas eu sinto que sou do tipo que
tem mais dificuldade”. Cícero admitia que
havia feito loucuras e que se pudesse voltar
atrás, não erraria tanto. Dizia entender que
o grande problema de sua vida era a bebida,
o resto era conseqüência e que sem ela sua
vida teria sido outra.
No seu ritmo, às vezes ligeiro como um serelepe da caatinga, fugindo de um perigo
eminente, outras vezes na sua cadência do
“dois passos para frente e um para trás”,
movimentava-se conforme podia. Ia seguindo sua vida, regredindo, avançando, indo,
voltando, sem se deter na caminhada em
busca da sua felicidade.
Cícero parecia mais livre internamente, através da relação estabelecida comigo nas sessões. Isto passara a se refletir nas suas re-
lações, consigo mesmo e com as pessoas
com quem convivia. No entanto, o medo do
futuro ainda o levava a estados ansiosos,
deixando de existir a sensação de repouso
e conforto tão desejada.
O tempo passara e o seu maior sonho de homem-menino era voltar para sua terra, como
um pássaro para o ninho. Ele não sabia que
nunca mais voltaria de onde saiu, assim
como um bebê não retorna mais ao útero
materno. Ele crescera e já caminhava longe.
Migrava para outras situações levando
idéias como sementes; se germinarão, crescerão, quem saberá?
Referências
CINTRA, E. M. de Ulhoa e FIGUEIREDO, L. C. Pequena reconstituição da história dos sistemas kleinianos. In: Melanie Klein. Estilo e pensamento. São Paulo: Escuta, 2004. p. 102-24.
FREUD, S. (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago,
1996. v. XIV. p. 81-108.
_____ (1917[1915]). Luto e melancolia. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XIV.
p. 249-63.
_____ (1930). O mal-estar na civilização. In:
Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1990.
KLEIN, M. Notas sobre alguns mecanismos esquizóides (1946). In: Inveja e gratidão . Rio de
Janeiro: Imago, 1991. p. 20-43.
LAPLANCHE, J. E PONTALIS, J.-B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
Artigo recebido em novembro de 2004
Aprovado para publicação em março de 2005
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