Psicanálise e clínica institucional... Navegar é preciso

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o
Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIV, n 149, 21-31
Psicanálise e clínica institucional...
Navegar é preciso...
Isabel Victoria Marazina
A
bordagem das relações entre os conceitos de Clínica e Instituição, pensadas
desde uma prática de supervisão clínico-institucional em diferentes
estabelecimentos da rede de Saúde Mental pública, nas cidades de Santos
(Programa de Saúde Mental ,anos l989-l994) e São Paulo (Programa de Saúde
Mental l989-l993). Desde uma abordagem psicanalítica, pretende-se levantar
algumas questões sobre o espaço da psicanálise dentro do panorama da clínica
em instituições de saúde mental. Também se pretende avançar na construção de
operadores clínicos eficazes dentro do campo apontado, utilizando a teoria
psicanalítica como referência fundante.
Palavras-chave: Clínica, instituição, clínica psicanalítica, saúde mental
T
his article consists of a discussion on the relationship between concepts of
Clinic and Institution, based on the practice of clinical-institutional
supervision in a number of units of the Public Mental Health Service in the cities
of Santos (Mental Health Program, 1989-1994) and São Paulo (Mental Health
Program, 1989-1993). Certain questions related to psychoanalysis in clinical
practice in mental health institutions are considered. The article also aims at
discussing the creation of effective clinical approaches which can be used in
institutional clinical practice, using psychoanalytic theory as the basic reference.
Key words: Clinical practice, institution, psychoanalytic clinical practice,
mental health.
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ara começar a n o s internar nas
turbulentas marés da clínica institucional parece-me indispensável
munirmo-nos de algumas referências
que nos sirvam como guias dentro de
nosso percurso.
Em primeiro lugar, é importante localizar
a través de quais práticas estas reflexões
puderam ser construídas. Ao longo de
vários anos, desenvolvi uma atuação em
estabelecimentos de tratamento em saúde, predominantemente em saúde mental, outros estabelecimentos ligados ao
cuidado da infância abandonada, e da
educação, assim como diversas organizações não governamentais de diferente
cunho. Geralmente o espaço de trabalho
foi o da supervisão de equipes de trabalho. No caso dos estabelecimentos de
tratamento em Saúde Mental, a supervisão abrangia tanto o processo do grupo
quanto o seu próprio trabalho junto aos
pacientes que tratavam. Esta supervisão
é conhecida como “clínico-institucional”. Em alguns casos, como o Programa de Saúde Mental da cidade de Santos, nos anos 1989-1994, trabalhava-se
dentro de uma equipe de supervisores
que atendia diferentes núcleos do Programa. Em outros, se tratava de intervenções institucionais de breve duração,
onde se formavam equipes específicas
para esse momento de trabalho. Em outras ocasiões, trabalhei com equipes de
agentes de saúde que demandavam supervisões para montagem de equipamentos e projetos dentro da sua área, que implicavam acompanhamentos de longos
processos.
P
Pulsional Revista de Psicanálise
Em todos estes trabalhos me apoiava na
referência psicanalítica, fazendo uma articulação com conceitos da Análise Institucional que se demonstraram potentes
para o entendimento dos elementos do
imaginário social atravessadores das práticas institucionais. Na grande maioria
dos casos, as palavras “clínica” e “instituição” se manejavam como se todos
soubéssemos do que estava se falando.
De fato, a imensa polissemia que se
ocultava por trás do aparente entendimento produzia efeitos constantes no
decorrer dos trabalhos. Situações de enfrentamento, de intenso conflito, de angústias paralisantes, eram analisadores
dos mal-entendidos que se enodavam em
torno de concepções muito diferentes da
clínica e do espaço institucional.
Entendo, por tanto, que é imprescindível
nos determos sobre estes dois termos:
clínica e instituição, tomando como referência o campo da saúde mental.
Não cabe dúvidas em relação ao discurso
social mais pregnante quando se pensa
em clínica: o discurso médico. Ajustado
sobre os ideais científicos, portanto com
marcado viés positivista, fixa o sujeito
em sofrimento a uma posição de objeto:
observável, passível de classificação determinando desde a objetividade de sua
doença uma série de manobras e prescrições que emanam de um saber que pretende abrangê-lo de forma totalizante.
Estamos, assim, frente ao que Lacan nomeia como Discurso do Mestre, onde o
saber fica todo do lado do médico. Ao
paciente lhe é reservado, então, o lugar
do objeto desse saber. Mais ainda, o seu
Psicanálise e clínica institucional... Navegar é preciso...
objeto é a doença, da qual o paciente é
quase como um suporte particular desse fenômeno geral.
Quando se refere este discurso como
aquele de maior pregnância, isto significa que os efeitos da lógica que ele sustenta, se infiltram e determinam significações em todos os discursos que operam no campo da cura. Assim, vemos
como muitas práticas psi se organizam
segundo critérios que vêm na contramão
dos seus pressupostos explícitos. Particularmente as práticas psicológicas tentam se objetivar e dar consistência científica aos seus resultados através de uma
série de dispositivos, cujo exemplo mais
claro são os famosos testes, destinados
a “medir” diferentes “funções”. Me vem
à memória um filme de um realizador argentino onde o protagonista, nesse momento desempregado, se submete a uma
entrevista para obter o posto de operador
de um guindaste. Esse homem, que em
seu passado tinha sido autor de um sucesso de música popular e cantor de
uma banda de rock, responde, como autômata, a um “teste de personalidade”
onde lhe eram mostradas figuras banais,
na expectativa que lhes desse nome.1
Em momento algum durante esse expediente, aparece qualquer pergunta dirigida a ele. Pareceria um exagero. Mas me
pergunto se não podemos reconhecer
algo dessa lógica quando se observa o
interminável manuseio que se faz dos
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pacientes na rede pública sem levar em
conta minimamente, dentro de uma entrevista, quanto custou para o paciente
chegar até o local da consulta, ou se interpreta como desinteresse a fragilidade
da função paterna, a negativa de um trabalhador em sair de seu emprego para
assistir a uma consulta sobre as dificuldades do filho. Consulta que, vale a pena
ressaltar, se realiza dentro dos horários
de trabalho dos profissionais da rede pública, que, salvo raras exceções, jamais
se estende – como sói acontecer na prática privada – fora do horário de trabalho comum. O que, em princípio, poderia parecer uma reclamação sobre as
condições de acesso dos cidadãos aos
bens da comunidade, aponta também à
exclusão das condições subjetivas daquele que, à medida que solicita um
atendimento, entra numa lógica discursiva que o fixa ao lugar objetivado de paciente que anteriormente citamos. Para
não falar da codificação diagnóstica que
faz do paciente – “esse PMD” ou “aquela
histérica” – fechando qualquer possibilidade de entendimento da singularidade
ali presente.
Acredito, então, que o espaço de atenção
público está fortemente modalizado segundo o discurso médico, mesmo nos
espaços onde a tarefa seja explicitamente
dirigida a tratar da subjetividade. Mas por
que escolher um analista como supervisor? Que tipo de demanda se organiza
1. O filme é Mundo Grúa. Realizador: Pablo Trapero. Argentina. Mostra Internacional de Cinema de
São Paulo, 1999.
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ali? Uma frase sempre repetida “você é
uma analista que entende de instituição”
pode nos dar algumas entradas. Para
isso, é importante pensar na forma que
toma neste país a distribuição de riquezas de todo tipo: econômicas, sociais e
culturais. O aprofundamento do modelo
capitalista no Brasil faz com que uma
distribuição já historicamente deficitária,
cubra proporções inusitadas. As instituições públicas de atenção à saúde, salvo
ilhotas de excelência, são territórios cuidadosamente evitados por qualquer um
que possa garantir um atendimento privado. Dentro do modelo, o sofrimento
psíquico acompanha essa distribuição:
para quem pode, o consultório privado,
com profissionais qualificados em diversas linhas teóricas. Para o resto, atenção
psiquiátrica e internação quando os remédios se demonstram pouco eficazes
para controlar o sintoma.
Na população em geral, o atendimento
esperado se modaliza segundo a consulta
médica: atendimento individual, poucos
contatos, resolução rápida das questões
– melhor ainda se acompanha medicação
– e quase nenhuma implicação subjetiva:
“o doutor é quem sabe”.
As décadas de 1970 e 1980 no Brasil são
palco para o surgimento e conscientização, dentro do campo da saúde mental,
de novas ideologias de tratamento que
intentam evitar a internação, que reivindicam os direitos do paciente psiquiatrizado, que levantam as bandeiras da luta
antimanicomial. Os ventos europeus provêm da Psiquiatria de Setor francesa, o
movimento de desinstitucionalização de
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Trieste – com Franco Basaglia – a
antipsiquiatria e as comunidades terapêuticas na Inglaterra.
Estes exigem novos modelos de tratamento que acompanhem os paradigmas
em formação. Assim, vemos surgir trabalhos donde se criam dispositivos de
tratamento coletivos, equipes de trabalho
formadas por profissionais de formação
diversificada (psiquiatras, psicólogos,
assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, artistas). Os esforços se dirigem
principalmente àqueles pacientes que
constituem a clientela tradicional das internações: os psicóticos, os quadros-limite e, por que não, àqueles que um empobrecimento diagnóstico refere como psicóticos, e trata como tais, interditando
quaisquer possibilidade de outra circulação. Dentro dessa categoria, podemos
lembrar quantas histerias são até hoje
diagnosticadas como psicoses, e como
tais permanecem, até pela própria posição do sujeito histérico na sua relação ao
olhar do Outro.
Entre os recursos para construir uma
clínica da subjetivação, a psicanálise
ocupa um lugar paradoxal. A história da
psicanálise no Brasil nos fala de uma
prática elitizada, sustentada pelas instituições ligadas à I.P.A. (International
Psychanalitical Association). Essa referência institucional traz uma concepção
da prática psicanalítica – entendendo
como tal o campo que abrange as práticas teóricas, formativas e terapêuticas –
que inviabilizava sua circulação por espaços mais amplos. Esse modo de praticar a psicanálise sedimenta uma ima-
Psicanálise e clínica institucional... Navegar é preciso...
gem no social: psicanálise é cara, com
muitas sessões semanais, de longa duração, terapia para quem pode pagar, não
para quem precisa.
Mas, ao mesmo tempo, também existe
uma contrapartida nessa imagem (isto é
muito forte ente os profissionais da área):
psicanálise é uma terapia em profundidade, ela serve de verdade. Será possível pensar que através dessa idealização
eram veiculadas aspirações de cuidado e
tratamento que se sabiam difíceis de
achar nos espaços públicos mas que circulavam como ideal social?
Os espaços públicos, sob o signo da
massificação: as filas de espera, os retornos marcados de mês em mês, as consultas apressadas pela pressão da produtividade. O outro, o semelhante posto na
posição de quem tira, divide o exíguo
espaço disponível... em contraste, no
espaço do privado, sob o signo do dinheiro e do poder, alguém disponível
para escutar sem pressa os desdobramentos singulares de um sujeito ad
infinitum. Muitas vezes, fui surpreendida pela resistência de profissionais que,
atuantes no serviço público em programas onde eles realizavam trabalhos com
grupos terapêuticos, se negavam a realizar uma experiência terapêutica em grupo. O implícito nessa resistência: grupo
é para quem não pode pagar. Terapia
de pobre. De mais um na fila. Quando
se trata de mim, escolho individual.
Não creio ser necessário apontar quais
podem ser os efeitos de uma transferência semelhante com o trabalho, mas levanto a questão da massificação não só
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na vivência do paciente, senão dos próprios profissionais, esmagados pela pressão da demanda, com escassos recursos
para pensar sua clínica. Quando se toca
esta questão dos recursos, imediatamente se pensa nos baixos salários, mas foi
no trabalho de supervisão que entendi
que o que se demandava era um espaço
de singularização, onde pudessem aparecer os efeitos nocivos do atendimento
maciço, da gravidade dos casos, da miséria psíquica que enfrentavam. Ou seja,
do que um modelo medicalizado reprime, e que retorna com plena intensidade fazendo sintoma dentro e fora dos
atendimentos.
Parece-me que é nessa articulação que se
constrói a demanda de supervisão feita
para um analista. Quase sistematicamente, a primeira fantasmática que surge –
sem esquecer os ensinamentos do velho
Pichón Rivière, na linha da resistência –
é a de um grupo terapêutico. Mas também é necessário prestar atenção ao que
segue na frase: uma psicanalista que entende de instituições. O que significa
isso? Os desdobramentos do trabalho me
ajudaram a pensar que além do saber suposto, ou junto com ele, se supunha
uma escuta que apostava numa clínica
possível dentro do espaço institucional.
Escutava o pedido de construção de uma
clínica em sério, que sustentasse um lugar de valor imprescindível para fazer
crescer o projeto fora do imaginário
empobrecido do “funcionalismo público”.
Talvez este percurso um tanto errático
nos ajude no esforço de demonstrar que
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em se falando de clínica, a univocidade
é impossível. E não somente porque
existem diferentes linhas teóricas que
sustentam práticas clínicas distintas, senão porque a clínica também é uma
questão política. É no campo da clínica
em instituições que esta dimensão se ilumina com toda força.
Para pensar mais claramente a questão
da Instituição, a análise institucional nos
empresta o conceito. No campo que nos
interessa, o discurso médico organiza o
sentido. Ele institui práticas, separa territórios, nomeia lugares específicos, realiza construções e desconstruções no
imaginário social. Isto é uma Instituição.
Todas essas operações se plasmam em
entidades diversas: desde produções literárias, estéticas específicas, os estabelecimentos onde as práticas médicas se desenvolvem e expressam. Assim, o que
chamamos de instituições, são, para a
Análise Institucional, estabelecimentos.
Um hospital é um estabelecimento. O
discurso médico é a instituição. E uma
instituição sempre é produto de uma circunstância histórica, portanto, suscetível
de movimentos, de transformações.
Em relação ao tema que nos ocupa: foi
necessário um corte epistemológico importante para poder separar a idéia da
loucura do conceito de doença mental.
Quando se efetiva essa separação, e
através de um percurso histórico, se percebe que a loucura foi tratada em outras
épocas, em outras culturas, como possessão divina, aproximação aos deuses,
etc., e é possível pensar que os atributos da “doença” são frutos de um deter-
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minado olhar para a loucura, jamais o
único e “natural”. Ali, através das produções de numerosos autores, é possível,
também, pensar em dispositivos que, a
partir de outro lugar, trabalhem com um
“louco” que traz um sentido próprio, e
não um sem-sentido, que pode não ser
perigoso, que é passível de compreender
em sua lógica particular, enfim, que faz
parte do humano.
A história da psicanálise não é alheia a
essa desconstrução. Não há dúvida que
a potência do texto freudiano sobre
Schreber se desdobra nas produções de
importantes cabeças de escolas psicanalíticas: tanto Melanie Klein quanto Jacques Lacan incluem decididamente a psicose no campo psicanalítico, e trazem
influência decisiva para o pensamento
renovador da ordem psiquiátrica, mesmo
que em muitos casos não se lhes outorguem merecidos créditos.
Mas essa potência não se reflete na prática de uma Internacional Psicanalítica
que se limita a trabalhar os “núcleos psicóticos” em neuróticos que devem ser
normativizados para chegar a ser cidadãos razoáveis – ou analistas-didatas. As
instituições onde a psicose habita são
entregues à normativização psiquiátrica.
É importante destacar e apreciar os esforços de pioneiros que tentaram subverter, no Brasil, essa cisão. Nise da Silveira – leitora de Freud – brilha como uma
luz solitária no Rio de Janeiro da primeira
metade do século XX.
Os efeitos dessa cisão começam a ser
quebrados com a introdução das novas
formas de pensamento vindas da Euro-
Psicanálise e clínica institucional... Navegar é preciso...
pa, e também com a chegada de analistas vindos de outros países onde a ruptura com essa psicanálise institucionalizada havia dado espaço para práticas
psicanalíticas em instituições, assim
como para uma formação psicanalítica
realizada no seio das instituições de tratamento. A década de 1980 é testemunha de uma explosão de trabalhos e de
experiências formativas: no Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo, abre-se o
primeiro Curso de Formação Psicanalítica fora da IPA; no Rio de Janeiro, o
IBRAPSI oferece formação psicanalítica e
institucional. As cidades de Bauru, Santos, São Paulo, entre outras, foram
abrindo espaço de invenção de novas
práticas, que se potencializam a partir
de apoios políticos municipais progressistas.
Os psicanalistas que participam dessas
experiências, quase sem exceção, estão
“fora” das instituições psicanalíticas, seja
porque sua filiação à psicanálise não se
realizou por caminhos oficiais, seja porque, se pertencentes a elas, não encontram inscrição nas mesmas para essas
práticas “que não são psicanálise”.
Essa conjuntura trazia variados efeitos
no trabalho de supervisão. Durante alguns anos, compartilhei o trabalho de
supervisão com dois psicodramatistas,
O Dr. Antonio Cesarino e o Dr. Pedro
Mascarenhas. Cada um de nós trabalhava com um equipamento da rede, que
contava com cinco Núcleos de Assistência Psicossocial, os NAPS, onde se realizavam seguimentos em pacientes muito graves, geralmente psicóticos, que
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iam desde a internação em momentos de
crise, até tratamento de hospital-dia e
ambulatorial, com a mesma equipe de
agentes de saúde mental. Durante dois
anos, me encarreguei da supervisão de
dois equipamentos: o NAPS 2 e o NAPS
4. O primeiro, localizado perto do cais,
atendia uma população em situação de
extrema pobreza e precariedade. Pela
história do Projeto, este equipamento
concentrava muitos dos “fundadores”,
profissionais e técnicos que tinham feito sua formação em Trieste, dentro do
ideário basagliano, e nutriam profunda
desconfiança pela psicanálise. No Projeto inteiro, a relação com a psicanálise se
confundia com a relação com quem participava da instituição psicanalítica oficial.
Minha participação foi requisitada com
base na confiança ideológica. Ao longo
de mais de um ano, foi sendo possível
construir um território de entendimento
a partir do trabalho caso por caso. Mesmo assim, houve momentos onde os
nós cegos do Projeto faziam sintoma, e
qualquer apontamento meu nesse sentido era respondido sintomaticamente
com um: Mas você é muito psicanalítica. Para o caso, qualquer conteúdo
seria válido, é verdade, mas o que retornava era a filiação psicanalítica: reflexão demais impede a ação – coisa de
burguês etc.
O segundo equipamento, o NAPS 4, um
dos últimos a ser criado, operava numa
região mais favorecida, e com uma equipe menos comprometida com o momento mítico da fundação. Apesar das mesmas prevenções de parte da equipe téc-
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nica, foi o interesse dos atendentes, que
pouco entendiam de diferenças clínicas,
que decidiu a transferência. O espaço de
supervisão era oferecido para toda a
equipe, entendendo por equipe todas as
pessoas que trabalhavam com os pacientes, desde a diretora até o porteiro.
Apesar das “boas intenções”, somente
alguns dos atendentes e do pessoal administrativo ousava participar. E enfatizo
“ousava” porque era muito difícil vencer
as barreiras que o imaginário social colocava, no sentido de territórios fortemente demarcados entre os que sabiam
e os que não sabiam. E não podemos esquecer que se tratava do saber sobre a
loucura – um dos maiores fantasmas do
humano. Era constante escutar dos atendentes frases tais como: “e que é que eu
vou falar ali, se eu não estudei” ou de
parte das secretárias “meu trabalho é
administrativo, de paciente não entendo”.
Cabe um esclarecimento: os atendentes
eram pessoas com curso primário, algumas com segundo grau ou curso de enfermagem, que se ocupavam do contato constante com os pacientes, já que
estavam no dia-a-dia, a diferença dos
técnicos, que trabalhavam quarenta horas semanais, e no caso dos médicos psiquiatras, cumpriam plantões. Os atendentes se revezavam em turnos de oito
horas já que o NAPS funcionava segundo esquema de hospital-dia, com alguns
leitos para internação temporária caso o
estado do paciente impossibilitasse o
convívio com a família.
Abordou-se o caso de um paciente “difícil”. Everton (nome fictício), atendido
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no NAPS fazia relativamente pouco tempo, tinha ingressado no meio de uma crise psicótica, com fortes componentes
paranóides e uma agressividade que custava pouco a se manifestar. Era um paciente que incomodava; se assemelhava
demais à imagem do louco perigoso que
o Programa tentava combater no imaginário social. Quando proponho refazer
os momentos em que Everton ficava
agressivo – e ele quebrava o que tinha
por perto, mesmo – vamos reconstruindo um quadro interessante: quase sem
exceção, a raiva aparecia como resposta a situações onde lhe era prometido algum cuidado que demorava em chegar
ou era esquecido. Vai surgindo, claramente, uma posição de infantilização do
paciente, onde em muitos momentos,
pelo medo que ele despertava, se tratava de acalmá-lo com falsas promessas,
ao estilo das que se fazem a uma criança, para “distrai-lo”. Tentamos reconstruir algo da sua história, através das entrevistas que se tinham registradas com
a família e os poucos dados do prontuário, e vamos traçando uma estratégia de
abordagem, trabalhando ao mesmo tempo os temores de várias pessoas da equipe, e com que representações estes temores se conectavam. Vamos perfazendo, desse modo, um recorte do imaginário a diferentes níveis, que permite resgatar uma certa alteridade tanto para o
paciente como para os membros da equipe. Nas semanas seguintes, as crises de
raiva de Everton vão diminuindo, e aparece a possibilidade de conversar, que,
no seu caso, era abrir um delírio perse-
Psicanálise e clínica institucional... Navegar é preciso...
cutório onde apareciam recorrentes, as
marcas do abandono e o maltrato.
A frase de uma das atendentes mais
comprometidas: “Se essa forma de trabalhar com os pacientes dá esse resultado, eu quero estar na supervisão e
aprender mais sobre ela” resume o começo de uma confiança. Confiança que
aponta para um lugar de mestre, agora
encarnado pelo supervisor? Sem dúvida.
Mas sabemos que essa suposição ao saber é imprescindível para percorrer o caminho que vá desde a alienação à separação. Diferentes operações podem ser
realizadas nesse caminho, na medida em
que o psicanalista convocado a fazer
semblante de mestre não abandone à sua
posição ética, isto é, que atenda ao surgimento do sujeito do inconsciente tanto em si próprio quanto nas diferentes
instâncias que se enodam no espaço institucional. Não se pretende com isso realizar uma psicanálise aplicada. A meu
ver, a dificuldade dessa proposta radica
em colocar a psicanálise noutro lugar,
ou seja, colocá-la numa relação de exterioridade que a transforma na psicanálise, corpo de teoria desencarnado que reproduz assim o mesmo lugar de mestre
do discurso médico (todos conhecemos
o famoso “Freud explica”).
Pretende-se, sim, colocar os operadores
psicanalíticos a serviço de um descolamento dos efeitos do imaginário de forma a possibilitar uma emergência do registro simbólico, percorrendo o caminho
dessa alienação na relação dos agentes
institucionais com a instituição que os
convoca. No exemplo que propus, pare-
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ce-me claro que a possibilidade de abrir
as questões referidas à alienação dos sujeitos ao discurso institucional (sujeitos,
no sentido psicanalítico do termo) foi
muito maior no caso do segundo equipamento, que ocupava uma posição dentro
do programa de menor implicação imaginária com o mito fundador. De fato,
apareceram a posteriori demandas de
formação que resultaram em um grupo
de estudo sobre questões relativas à diferença entre processos psicóticos e neuróticos e, em alguns casos, a processos
analíticos de alguns integrantes. Pode-se
pensar estes movimentos como um descolamento (parcial, certamente) de um
lugar de gozo dos integrantes das equipes que faziam parte do programa, lugar
assinalado pelo discurso fundador. Através da análise de certas produções discursivas, e também de uma emergência
pulsional que caracterizaria como uma
passagem ao ato, esse enodamento mítico foi sendo recortado e compreendido. Foi a partir deste processo que começaram a emergir as demandas para
outros saberes que, no entendimento da
condução do programa, eram non
sanctos.
Nesse momento, no lugar de supervisor,
era importante evitar cair na armadilha
que a própria maneira de formular a demanda deixava clara: não se tratava de
substituir uma miragem de saber totalitário por outra, senão de sustentar a
abertura de uma hiância que permitisse
uma construção própria dessa equipe,
nas condições em que se encontravam e
com os pacientes que tratavam.
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Creio que talvez essa seja a maior contribuição que uma escuta psicanalítica
pode trazer a um espaço institucional: a
possibilidade de provocar um giro na
posição dos agentes institucionais em
princípio em relação aos efeitos de assujeitamento imaginário que produzem um
plus de gozo, impedindo a produção de
prazer, de transformação, de vida. Em
segundo lugar, esse mesmo giro, inevitavelmente muda também a posição em
relação aos pacientes. Poderíamos dizer
que eles passam a ser vistos, escutados,
a fazer sentido por eles mesmos.
Inevitavelmente, ainda, este processo tão
sintética e linearmente descrito, se atravessa com muita angústia. Quando um
grupo se dispõe a uma travessia semelhante, vai se usando de uma infinidade
de recursos para resistir à emergência
do desejo, da palavra própria, das diferenças que carcomem a “identidade grupal” – entendendo aqui que esse termo
designa uma formação imaginária que
obtura uma função simbólica que abre
passagem para essas diferenças. Se o supervisor não pode se apoiar na experiência de sua própria análise, da travessia
singular que pôde lhe dar uma posição
de sujeito de seu desejo, é muito possível que entre na proposta sedutora de
ocupar o lugar de garantia dessa formação imaginária. Algo semelhante ao que
Pichón Rivière enunciava quando fazia a
distinção entre um coordenador de grupo operativo e um líder grupal.
Muitas e muitas vezes, fiz uso de estratégias próprias da clínica da psicose para
fornecer um plano de consistência onde
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a angústia própria da queda dos imaginários de saber total presentificava um horror sem limite. Era necessário, nesses
momentos, se dispor a produzir algo semelhante a cantigas de ninar, para conseguir um certo apaziguamento necessário à produção de um sentido possível,
assim como, em outros momentos, se
impunham ações concretas, no real, para
conter uma equipe agitada e tomada pela
ansiedade psicótica dos seus pacientes.
Não desejaria encerrar este rápido percurso – retomando a metáfora do início,
esta travessia – sem falar sobre um tema
que foi se impondo através de todos os
trabalhos realizados, que é o da particular transferência com o objeto de trabalho. Isto é, cada instituição vai constituindo, ao longo de sua história, posições
fantasmáticas em relação à população
que atende. Nessa relação, a instituição
se encontra numa tensão permanente
entre a separação e a alienação à imagem que constrói de seus assistidos.
Assim, quando se trabalha com pacientes psicóticos, podemos observar identificações maciças entre partes da equipe e pedaços dos seus pacientes, que
originam verdadeiras atuações na linha da
fusão, de produções psicóticas tanto ao
nível do pensamento quanto do comportamento. Os trabalhos realizados com
equipes que trabalham com menores
abandonados nos ensinaram a prestar
muita atenção ao eixo fantasmático do
desamparo – abandono – maternidade,
que organizava parte expressiva do espaço psíquico dentro das equipes, assim
como nas equipes de trabalho com ado-
Psicanálise e clínica institucional... Navegar é preciso...
lescentes infratores as questões da transferência apontavam ao desafio, à violência e à marginalidade como uma constante da relação entre os próprios agentes institucionais e o espaço da supervisão. Essa imagem, que regula as relações
entre os agentes institucionais e seus clientes, está alicerçada numa construção
social mais ampla, onde encontramos
influências de todo tipo: históricas, políticas, estéticas, midiáticas etc., num verdadeiro bricollage. “O louco”, “O menor infrator”, “O delinqüente”, “O menino de rua”, funcionam como poderosos
obturadores à possibilidade do encontro
singular, à emergência de um sujeito, a
uma lógica discursiva que aponta para a
alteridade, para a produção de diferença.
Talvez, sustentar que essa lógica é possível seja a tarefa primordial de um olhar
psicanalítico dentro da clínica em instituições. „
31
NUNES RAMOS, Liz. Psicanálise nas instituições: ruídos na transmissão. Revista
Correio da APPOA, no 80, junho de
2000. Porto Alegre. Edição da APPOA
(Associação Psicanalítica de Porto
Alegre)
RODRIGUES DA COSTA , Ana Maria et al.
Análise e tratamento psicanalítico de
estruturas discursivas. Revista Estilos
da Clínica. Ano II, no 3. Instituto de
Psicologia da Universidade de São
Paulo.
Artigo recebido em abril/2001
Revisão final recebida em agosto/2001
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MARAZINA, Isabel V. Trabalhador de Saúde
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Saúdeloucura, no 1. São Paulo: Hucitec, 1989.
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