Da Fábrica do Mundo para a Fábrica da China Nos últimos trinta anos, o modelo de desenvolvimento económico da China tirou este imenso país da Idade Média para o projectar como potência mundial. Que modelo económico é esse? Pode ser replicado? Podemos prever a sua evolução? Não existem muitas respostas para estas perguntas. Não foi teorizado por nenhum economista famoso nem por nenhuma Escola conhecida, tem sido concebido e implementado, passo a passo, pragmaticamente pelo governo chinês e até à crise financeira e económica presente, tem sido olhado com cepticismo pelos ocidentais. Mas não podemos deixar de o tentar compreender e prever a sua evolução futura porque as consequências da sua aplicação vão ter repercussões boas ou más na vida de todos nós. Quando visitei a China pela primeira vez, em 1979, a Política das Quatro Modernizações, do programa de Zhou Enlai redigido em 1975, e adoptado por Deng Xiaoping em 1978, visando modernizar a agricultura, a indústria pesada, a indústria ligeira e a defesa, era mencionada até à exaustão por qualquer funcionário administrativo ou membro do governo. Era apenas o princípio de um longo processo de reformas económicas a que juntou ainda em 1979, a Política de Porta Aberta, com a aprovação da Lei das Joint-Ventures, e o estabelecimento das Zonas Económicas Especiais. A visão de Deng Xiaoping era que a pobreza não devia fazer parte do socialismo, este deveria sim, trazer prosperidade para todos, mesmo que alguns a algumas regiões tivessem que enriquecer primeiro. Em 1984 tive oportunidade de participar em Cantão e Pequim em reuniões dinamizadoras deste modelo, destinadas aos chineses ultramarinos e a alguns amigos estrangeiros, e percebi então o alcance do projecto que estava a dar os primeiros passos, mas que iria proporcionar a primeira fase da entrada da China no mercado mundial, com um ritmo de crescimento médio de 15% ao ano das suas exportações e que foi decisivamente o motor para o crescimento médio anual de 9,9% do seu PIB, ao longo dos últimos trinta anos. Este crescimento permitiu retirar do limiar da pobreza 300 milhões de chineses, contribuindo simultaneamente de uma forma decisiva, para a rápida aceleração do processo de globalização mundial, nomeadamente, a partir de 2001, quando a China foi aceite na Organização Mundial do Comércio (OMC), que a obrigou a abrir-se ao mundo, mas também obrigou a que o mundo se abrisse aos produtos fabricados na China. O modelo de desenvolvimento proposto era o modelo de desenvolvimento económico orientado para a exportação, centrado na indústria ligeira. A China precisava de capital, tecnologia, equipamentos, matérias-primas e componentes necessárias ao desenvolvimento dessas indústrias e contava que os parceiros estrangeiros ou os chineses ultramarinos contribuíssem com esses factores. Pretendia também que esses parceiros se encarregassem de escoar os outputs dessas fábricas nos mercados externos uma vez que apenas uma pequena percentagem dessa produção tinha autorização para ser vendida no mercado interno. Tinha para oferecer mão-de-obra de muito baixo preço, e instalação a custos reduzidos, a entrada de capital do parceiro local era normalmente feita com as instalações fabris e toda a gestão de relacionamentos locais, facilitando o processo de licenciamento e instalação e trazendo os seus networks de fornecedores e em alguns casos os clientes no mercado interno. Note-se que nessa altura o investimento tinha de ser feito em joint-venture com parceiros arranjados pelo governo e no local por este destinado. As empresas estrangeiras a princípio receosas deste negócio foram aos poucos, conhecendo as regras do jogo que a China lhes propunha e reconhecendo as suas virtualidades, desenvolvendo aquilo que foi, até recentemente, o maior negócio que os estrangeiros realizam na China, o processing trade. Ao longo do processo a China foi propondo alterações de conteúdo e de forma a este modelo, abrindo o mercado interno a quem transferisse para a China tecnologia importante, know-how, ou outros activos tangíveis ou intangíveis, abrindo a distribuição no mercado interno às grandes redes de distribuição global que escoassem produtos fabricados na China no exterior, intervindo cada vez menos na localização e na escolha de parceiros, alargando o âmbito dos negócios e os sectores em que os estrangeiros podiam investir, as joint-ventures de obrigatórias passaram a recomendadas, até que em 2006, no fim do calendário do período de liberalização negociado com a OMC, o grau de liberalização existente permite já às empresas com capital estrangeiro (cerca de 685841 em 2010), optarem estrategicamente pela forma de entrarem na China e gerirem as suas operações ali. Com este modelo, a China tornou-se no 2º maior produtor industrial do mundo tendo uma participação no valor acrescentado mundial de 15,6% do total, logo a seguir aos EUA com 19% desse valor, conforme relatório da Unido de 2010, e á frente do Japão com 15,4%, embora este país seja o maior produtor por habitante do mundo, com uma produtividade de US$9000 per capita enquanto a da China se limita a US$700, o que nos indica um elevado potencial de crescimento industrial da China à medida que a formação dos trabalhadores e a tecnologia evoluem. Este modelo transformou a China na principal economia exportadora do mundo contribuindo com 10% das exportações mundiais. A fábrica do mundo deslocalizou-se para a China, que é líder mundial, no fornecimento de vários produtos da indústria ligeira e começa também a mostrar o seu peso na oferta global de vários produtos da indústria pesada. As quotas de mercado mundial detidas pelas fábricas da China ascendem a cerca de 75% dos fornecimentos de brinquedos, 60% de bicicletas, 50% de sapatos, 50% de microondas, 30,6% de confecções, 25% de máquinas de lavar, 70% dos componentes para computadores, 72%, das baterias para telemóveis mas a China também fornece 28% da construção naval, 26% dos motociclos, 22% das gruas, 17% das escavadoras, 17% dos perfis e barras de alumínio, etc. Das 200 maiores empresas exportadoras da China cerca de 153 são empresas com investimento estrangeiro, este tipo de empresas é responsável presentemente por 56% das exportações chinesas, o que demonstra que o negócio da China não é só de chineses. Este crescimento económico ocasionou o aparecimento de uma classe média que se estima presentemente em cerca de 200 milhões de pessoas, o que é já um número muito atractivo para um mercado. Em 2006 existiam na China 100 milhões de pessoas pertencendo à classe média baixa e média e cerca de 10 milhões à classe média alta e afluente e as previsões da InterChina Consulting são que em 2020 essas classes deverão ter entre 500 a 600 milhões e 70 a 100 milhões de consumidores respectivamente. Mas a economia chinesa é muito complexa e para a compreender convém olhar para além destes atractivos números de sucesso que fascinam os estrangeiros. O governo chinês está atento e sabe o enorme desfio que é garantir a sustentabilidade deste crescimento, uma vez que o modelo descrito não vai permitir alcançar no futuro os mesmos níveis de crescimento do passado e sem esse crescimento a paz social pode estar altamente ameaçada, a história da China justifica os seus receios. De facto, o crescimento económico conseguido nos últimos 30 anos e os impressionantes números que o mundo conhece e, que têm permitido à China posicionar-se já como uma potência económica mundial, são em grande parte resultantes da sua enorme dimensão, quando se fala num PIB de US$ 5,7 triliões, já com um valor superior ao alemão e ao japonês, ficamos deslumbrados com esse valor fantástico, mas se analisarmos o PIB per capita ele é ainda muito baixo, cerca de US$ 4283 em valores monetários e US$ 7600 em termos de paridade do poder de compra, e mesmo neste indicador o rendimento chinês é ainda apenas 11,9% do alemão e 12,5% do japonês. Além disso este rendimento é muito desigualmente distribuído, as províncias do interior recebem apenas 50% do rendimento distribuído nas províncias da costa e a população não urbana, cerca de 53% do total da população, vive com 30% do rendimento disponível na população urbana. E se a pobreza absoluta diminuiu, sendo presentemente de 2,8% da população, a pobreza relativa (pessoas a viver com 50% ou menos do rendimento médio) cresceu, abrangendo presentemente cerca de 14,6% da população. Assim redução da pobreza continua a ser um desafio fundamental do governo chinês, bem evidente na passagem do 11º Plano Quinquenal que terminou em 2011 para o 12º Plano que enquadrará a economia chinesa até 2015, onde o objectivo central deixou de ser o crescimento do PIB e passou a ser o crescimento do PIB per capita que deverá aumentar a uma média anual de 7%. A mensagem mudou de “Estado Forte, População Mais Rica” guoqiang minfu para “População Mais Rica, Estado Forte” minfu quoqiang, implicando que o aumento de rendimento da população é agora a prioridade, e para diminuir a desigualdade na repartição dos rendimentos, o salário mínimo deverá aumentar 13% ao ano. Uma das medidas deste plano já em fase de implementação, consiste em aumentar de US$309/mês para US$541/mês a isenção de imposto de rendimento e em diminuir o número de escalões, com o duplo objectivo de aumentar o consumo e diminuir as desigualdades. Não é portanto de estranhar que o All- China Federation of Trade Unions (controlada pelo governo) acabasse por apoiar, em 2010, as greves dos trabalhadores de fábricas com capital estrangeiro ou de empresas chinesas fornecedoras dessas empresas como a Honda e a Foxconn Technologies, forçando essas empresas a duplicar os salários pagos para US$300/mês. O governo chinês acompanhou estas reivindicações subindo o salário mínimo em cerca de 20%, que passou a ser de US$155 em 11 províncias, sendo US$149,6 em Pequim, de US$174,5 em Xangai e de US$ 202 em Cantão. Esta mensagem também é clara, o governo chinês ao suportar essas greves, está a empurrar muitos exportadores de baixo valor acrescentado para fora do negócio, ou a obrigá-los a deslocarem-se para o interior e para o ocidente da China. Ao não reprimir estas greves Pequim apontou para a nova estratégia económica chinesa que consiste em evoluir das exportações de baixo valor acrescentado para a liderança de alta tecnologia e produção verde. Nas regiões mais desenvolvidas da costa, a China pretende ver instalarem-se indústrias de maior valor acrescentado e novas tecnologias não poluentes, incentivos fiscais e políticas de apoio serão oferecidas a quem desenvolva aquilo que o governo chinês chamou de sete “Indústrias Estratégicas Emergentes”, que deverão vir a ser a espinha dorsal da economia chinesa nas próximas décadas e que deverão ter sucesso à escala global. Estas sete indústrias são a biotecnologia, novas energias (eólica, solar e 3ª geração da nuclear), equipamento topo de gama (aeroespacial e telecomunicações), poupança de energia e protecção ambiental, veículos não poluentes, novos materiais (terras raras e semicondutores última geração) e a próxima geração de TI. A China desencoraja as velhas indústrias e coloca recursos em alta tecnologia, o governo planeia gastar cerca de 2,2% do PIB em Pesquisa e Desenvolvimento e mais de US$ 625 milhões nas indústrias estratégicas nos próximos 5 anos. Aliás essa deslocalização entre províncias contempla o objectivo do governo chinês de reduzir as desigualdades regionais, prevendo o 12º Plano políticas de incentivos a quem se instalar nas regiões mais atrasadas, como terrenos, subsídios e facilidades fiscais. A direcção da reforma proposta por este plano aponta simultaneamente para a modernização e reestruturação da indústria com a subida na cadeia do valor nas regiões mais desenvolvidas e para a deslocalização das operações de trabalho intensivo para o interior. A China “Takes it all”, quer o modelo de capital intensivo, nas regiões mais desenvolvidas da costa, e o modelo de mão-de-obra intensiva nas regiões mais pobres do interior. Para continuar com o ritmo de crescimento proposto neste plano a China tem de garantir mercado para escoar os níveis crescentes da sua produção industrial. A crise financeira de 2008, com a diminuição de cerca de 11% das exportações, a que teria correspondido uma diminuição do crescimento do PIB de 2,2% naquele ano, se não tivesse sido compensado pelo pacote de estímulos que aumentou o consumo interno e o investimento em infra-estruturas, demonstrou que a frágil estrutura económica chinesa, não pode depender tanto das exportações para garantir essas vendas: Analisando a composição do PIB chinês verificamos que o consumo interno privado contribui com apenas 35,4% desse valor enquanto as exportações contribuem com 38,8%, e o investimento com 42,3%. O crescimento económico chinês é portanto principalmente obtido à custa do investimento e das exportações. A contribuição do consumo interno para o crescimento económico chinês é um dos mais baixos no mundo, por exemplo, o peso do consumo no PIB americano é de 71% e no japonês de 56,3%, o governo chinês pretende que em 2015, o contributo do consumo interno para o PIB chinês se situe entre 50 e 55%. Para aumentar o poder de compra e nível de vida população o governo chinês propõe-se para além de aumentar o peso da massa salarial na economia chinesa, implementar um esquema de pensões para todos os trabalhadores rurais e para 357 milhões de trabalhadores urbanos, implementar sistemas de segurança social e saúde, construir cerca de 36 milhões de habitações para famílias de baixos rendimentos, criar 45 milhões de empregos em zonas urbanas, aumentar a taxa de urbanização em 4% até 2015, passando esta a ser de 51,5%. No interessante artigo “The mystery of Chinese consumer” do Economist 9 Julho 2011, prevê-se que a China se transforme no segundo maior mercado do mundo não muito longe dos EUA por volta de 2015. De acordo com o Relatório dos membros do US China-Business Council de 2010, 96% das empresas americanas tem presentemente como 1º objectivo para estar na China, ter acesso ao mercado interno chinês. O mercado de retalho chinês é já considerado a maior oportunidade emergente do mundo, com taxas de crescimento anual em média de 16% no período 2004-2010. Apesar disso para atingir os objectivos propostos, o governo chinês tem vários desafios pela frente, por um lado convencer os consumidores a gastarem mais e a poupar menos (a taxa de poupança das famílias é de cerca de 24% do seu rendimento), por outro aproximar os níveis de consumo rural do urbano e o aumento da população urbana (a população urbana deverá aumentar de 200 milhões até 2020), e finalmente conseguir que esse aumento de consumo recaia preferencialmente em produtos fabricados na China. A elevada taxa de poupança da população chinesa é um problema cultural, dizia-se me Hong Kong que os chineses só confiavam verdadeiramente na sua conta bancária, ancestralmente sempre se prepararam para enfrentar problemas internos, fomes, calamidades naturais, guerras, perseguições politicas, o pé-de-meia permitia-lhes emigrar e sobreviver noutro local, hoje poupa sobretudo para fazer face a algum problema de saúde, à reforma ou para colocar os filhos numa boa escola ou universidade. A geração da longa marcha e seus filhos habituaram-se a anos de frugalidade, a cultura confuciana, que a doutrina maoista muito bem soube interiorizar, e regras autoritárias, moldaram os seus hábitos de consumo no quadro mental, compra o que é possível, quando podes, o mais barato possível. O governo chinês não poderá contar muito com essa geração para aumentar significativamente o consumo na China, já os seus netos e bisnetos, a geração dos filhos únicos ou como são chamados “Pequenos Imperadores” concentraram em si os mimos emocionais e financeiros dos pais e avós e habituaram-se a um consumismo diferente. Muitos estudaram no estrangeiro, viajaram, falam outra língua além do chinês, estão abertos à publicidade, ao branding, ao multiculturalismo, ao rock and -roll, ao hip-hop, aos vídeos, e a tudo o que é inovação e moda, estão interconectados e ambicionam tudo o que o mundo tem de melhor. Não é por acaso que o mercado chinês conta já com 12% das vendas globais de bens de luxo, com mais de €20 biliões (mil milhões) de vendas anuais, de acordo com os estudos da Bain & Company e as previsões do CLSA Asia-Pacific Markets são que em 2020 essa percentagem seja de 44%. A expectativa do aumento de consumo na China recai portanto no segmento mais jovem a seguir tipificado. Segmentos Classe Média Baixa Ex: Wang Fudong Classe Média Ex: Maggie Li Classe Média Alta Ex: Cathy Liu Classe Afluente Ex: Zhang Lidong Perfil Idade: 25 Emp: Engº TI Residência: Chengdu Rendimento 4053 US$ Idade: 25 Emp: Assessora do Director Geral Residência: Pequim 12150 US$/ Idade: 31 Emp: Directora Marketing Residência: Xangai 32735 US$ Idade: 37 Emp: Vice Director Geral Residência: Shenzhen 109119 US$ Frequenta Pequenas lojas e department stores Cyber cafés, salas de jogos Department stores e pequenas lojas com produtos piratados Lojas de marcas de luxo Clubes de golf Clubes privados para network de negócios Lojas de vinho Possui Telefone celular TV Cartão ginásio Cartão de crédito Uma mala LV Transporte e Transportes públicos, Bicicleta Viaja pouco foi a Pequim uma vez Transportes públicos Viaja uma vez por ano na China Shopping malls de qualidade Centros deYoga Salões de beleza. Teatros. Bares ocidentais. Cartão CentroYoga Cartão Salão beleza Perfume marca 5 vestidos design Transportes públicos Taxi Viaja uma vez por ano para HK e Sudeste Asiático Tipo Anual viagens Moradia de qualidade Muitos fatos de design Um carro Audi Viaja uma vez por ano para Europa e EUA. Fonte: InterChina Como irá o governo conseguir que o esforço de aumento do consumo recaia sobre produtos fabricados na China? Utilizando as técnicas de marketing para estimular um alto espírito nacionalista. A European Union Chamber of Commerce em Pequim vem desde 2008, a alertar os seus membros, para o crescente nacionalismo económico na China. Algumas empresas estrangeiras estão já adaptar-se à nova mensagem “Fabricado por Chineses para Chineses”, por exemplo a Casa Hermès, lançou em parceria com Jiang Qiong, designer de Xangai, treinado em França, a marca Shang Xia, e abriu a 1ª loja naquela cidade, que vai comercializar confecções, jóias, mobiliário, serviços de chá, criados e fabricados na China. A fábrica da China para a China é o novo passo no modelo de desenvolvimento da China e a mensagem que as empresas estrangeiras devem interiorizar para compreender a forma de beneficiarem da revolução de consumo que o 12ª Plano Quinquenal faz prever e que milhões de consumidores chineses vão proporcionar à economia global.