LINGÜÍSTICA NOSSA QUE SE PRETENDE SER DE CADA DIA Jornal Imagem (Nova Andradina-MS), 09/08/2008, p. 02. QUEM TEM MEDO DO PROFESSOR PASQUALE? A primeira resposta a esta questão provavelmente seria: “todo professor de português”. Não se trata, todavia, de medo. Nós temos é muito respeito por um profissional cuja imagem é a de um monstro sagrado no âmbito do ensino de língua portuguesa. Mas eu precisava de um título para meu texto. Mais que isso: eu precisava de um título que chamasse a atenção. Então escolhi o caminho da intertextualidade e, como não poderia deixar de ser, um título que “entrelaçasse todas as significações do texto” (esta frase também não é totalmente minha, mas eu tenho o argumento de autoridade: Bakhtin terá escrito que “todo discurso verbal, toda enunciação, é sempre iluminado pelo discurso de outrem”), incluindo-se as minhas intenções, é claro... Há anos tenho lido (e arquivado, em pastas e na memória) – como milhares de brasileiros –, os textos (artigos, livros, gramáticas) desse que, mesmo intitulando-se “professor”, conseguiu duas façanhas: a de ser reconhecido como autoridade em todo o Brasil e a de transformar-se em ídolo. Eu, por exemplo, gostaria de publicar um livro, uma gramática, um artigo, um folheto, ou até uma receita de bolo (com dizem por aí...) em co-autoria, com ele (a vírgula é para enfatizar e para suavizar a redundância); ou então (a pretensão faz parte do ser humano...) ter um livro prefaciado ou apresentado por ele. Desconhecida (e nem posso aplicar ao termo o tão desejado adjetivo “ilustre”) no mundo editorial, professora de instituição pública, fã incondicional dele, como atingir pelo menos uma dessas metas? Programa do Jô? Só para celebridades... Muito difícil... Então, cérebro à obra. Quem sabe, subtraio o prefixo “des-” da minha história, mesmo que não consiga adicionar o “ilustre”... Foi “re-relendo” o Pasquale na Cult que encontrei um caminho: questionar verdades de meu “herói”. A primeira contestação – objeto deste breve ensaio – diz respeito à classificação das orações adjetivas contidas no poema “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade: “João amava Teresa que amava Raimundo[...]”. Na Cult 26, de setembro de 1999, p. 25, na coluna “Na ponta da língua”, lê-se “No meio do caminho tinha uma pedra”, em que o autor, Pasquale Cipro Neto, afirma: “Os professores de português devem se perguntar até hoje se as orações introduzidas pelos vários ‘quês’ do célebre ‘Quadrilha’ são restritivas ou explicativas”. Ocorre, porém, que a pedra continua, até hoje (maio de 2001), no meio do caminho, pois, embora ele insinue serem restritivas (na construção intercalada, destacada entre travessões duplos – “O ‘que’, que retoma o antecedente e – sem vírgula – projeta-o rapidamente na oração seguinte [...]” (grifo meu), ele não responde ao questionamento, que também já não havia sido respondido por Fiorin e Savioli, em Para entender o texto (p.342-3), obra editada em 1993. Mas eu ouso responder – e contestar. Na primeira estrofe do poema de Drummond, o texto organiza-se por subordinação (relação de dependência sintático-semântica): 5 orações subordinadas adjetivas formalmente (ou aparentemente) dispostas como restritivas (as orações introduzidas por “que” apresentam-se sem as vírgulas, e a ausência desses sinais, na escrita, cria a impressão – falsa – da existência da idéia de restrição), precedidas da assim chamada oração principal, sem conector e sem forma nominal de verbo. A opção pelo não-emprego das vírgulas parece revelar a intenção do artista: representar a existência de uma restrição ao amar de cada um dos “personagens”. Na verdade, a idéia subjacente é a de oposição (...mas Teresa amava Raimundo; ...mas Raimundo amava Maria etc.), todavia a construção com conectores de disjunção (adversativos ou concessivos) não produziria os mesmos efeitos de sentido que a transgressão às regras gramaticais provoca. Por que transgressão? Porque a relação que se estabelece entre as orações é, semanticamente, de explicação, o que exigiria, segundo a tradição gramatical, a presença das vírgulas, mas esse sentido não é pertinente no poema e, pois, não interessa ao poeta. Ademais, a construção sintática é gerada pela pontuação, e não o contrário, como bem observou DAHLET (1998): é a pontuação que define a natureza da relação entre os sintagmas (as unidades sintático-semânticas). Em outras palavras: não é porque há uma oração subordinada adjetiva restritiva ou uma adjetiva explicativa que se empregam as vírgulas na segunda e não se as empregam na primeira. Esta classificação nasce exatamente do fato de que os pressupostos do locutor são diferentes no primeiro e no segundo caso. O produtor constrói o enunciado restritivo com base na pressuposição de que há um conjunto de seres e, no interior deste, um subconjunto com características diferentes daquelas que qualificam o todo; ou um ser que tem um traço ou traços que o diferenciam dos demais. Já o enunciado explicativo nasce da pressuposição de que o conjunto é homogêneo, de que não há diferenças entre as unidades do conjunto, ou, quando se trata de um único elemento desse todo, que esse tem características que somente a ele pertencem, sem compará-lo a qualquer outro, sem que isso o diferencie do todo. Ninguém perguntará “qual Teresa?” “Qual Raimundo?” Não há mais de uma Teresa ou mais de um Raimundo na história; portanto não há a intenção de diferenciar seres (a Teresa amada por João é a mesma que ama Raimundo), mas sim de acrescentar uma informação sobre eles. Além disso, a presença das vírgulas concorreria, também, para a configuração da existência, entre os processos descritos/narrados, de um lapso de tempo ou de uma relação de seqüência; no entanto o sentido do todo, ancorado no emprego do imperfeito do indicativo, com valor aspectual de duração, e no conjunto das relações sintagmáticas, é de simultaneidade temporal (e não de seqüência). Assim, o valor semântico do todo é de coordenação por disjunção (adversidade), camuflado por uma construção que não pode ser restritiva, apesar da ausência das vírgulas. Por enquanto, é isso... Profa.Dra. Marlene Durigan Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Câmpus de Três Lagoas Núcleo de Estudos em Análise do Discurso