A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos

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A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos
Hamilton Botelho Malhano
Professor no Departamento de História
e Teoria da Arquitetura da Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de
Janeiro.
Doutor em História Social - Instituto de
Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
Mestre em História e Crítica da Arte Antropologia - Escola de Belas Artes da Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
Arquiteto - Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de
Janeiro.
Etnólogo - Instituto de Ciências
Sociais, História e Filosofia da Universidade Federal
Fluminense.
Museógrafo - Deliberação COREM 275
IV
Resumo
O altoxinguano procede à distribuição de
objetos e eventos no contínuo espaço-tempo dispondo, de
um lado, os elementos sensitivos, e de outro, os naturais
e sobrenaturais; traduz o mito por discurso e o realiza no
ritual. Os altoxinguanos, isto é, a humanidade atual é
descrita no mito como aquela criada pelos gêmeos astrais
antropomorfos Sol e Lua. Supomos que a grande maioria
dos conceitos de espaço e tempo seja determinada pelo
ambiente físico. A noção quantitativa de tempo baseada
nas mudanças e nas constantes respostas do altoxinguano,
a elas, limita-se a um ciclo anual. Não deve e não pode ser
empregada para diferenciar períodos mais longos que, por
exemplo, as estações do ano. Este ciclo ecológico de um
ano se configura, grosso modo, na região dos formadores
do rio Xingu, em duas estações: chuva e estiagem. O
valor atribuído às relações ecológicas é fundamental
para entender este sistema social inserido no interior do
sistema ecológico. A articulação das esferas natureza e
cultura nas dimensões espaço-tempo promove a união
entre a ordem temporal e a ordem moral. O mito surge
Hamilton Botelho Malhano
como mensagem e modelo didáticos para prevenir contra
aquilo que é considerado desmedido. O tempo histórico
não é objeto de elaboração entre eles. O espaço real-atual é
superposto ao espaço mítico. A grande questão no mundo
altoxinguano parece ser a do ser. Os permeios ou dobras
do espaço-tempo difundem esse problema através da
história. A noção de criação tem o ser como um dado. Os
sistemas espaciotemporais revelam considerável grau de
elaboração. Espaço e tempo são pensados como abstrações
que permitem formar a imagem de um cosmos unificado, e
conceber a idéia de um universo único e coerente. Espaço
e tempo estão ligados aos fenômenos que se desenrolam
na consciência mitológica. Nestas condições, a estrutura
do espaço-tempo corresponde aos conceitos fundamentais
da sociedade. Ao conceito de tempo mitológico se liga a
idéia de que todos os modos do tempo: passado, presente e
futuro estão dispostos de certa maneira, num único plano.
São, em certo sentido, simultâneos. Este é o fenômeno da
espacialização. O tempo é vivido da mesma maneira que
o espaço. A observação das tradições mantém o passado
materializado e perenizado, dominando o presente. O
futuro é observado pelo presente, através da pajelança
e da feitiçaria. É neste contexto de espaço-tempo, tão
real quanto resto do mundo, que os mitos dialogam e se
atualizam.
Palavras-chaves
Índios altoxinguanos falantes de línguas
tupi - aruaque e caribe. Relação - idéias - eventos e
categorias: espaço e tempo - estrutura e ecologia - mito e
história - cosmologia e cronologia - origem e evolução matéria e energia - forma e conteúdo - natureza e cultura
- modelo e cópia - arte e técnica - homem e animal demiurgo e herói.
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R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002
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Introdução
Diante da proposta compete-nos descobrir como o indivíduo e/ou
grupo local, e/ou coletividade altoxinguana, arranja ou ordena a distribuição
de objetos e eventos e coisas no contínuo espaço-tempo. Consideramos
esta maneira supostamente metódica do índio dispor no mundo elementos
sensitivos, de um lado (tais como sonoros, visuais, olfativos, gustativos e táteis),
bem como os naturais e sobrenaturais de outro. Procuramos, principalmente,
entender a situação destes elementos ponderáveis nas categorias de tempo
estrutural e tempo ecológico, propostas por Edward Evan Evans-Pritchard
2 . O tempo estrutural é visto como reflexo das relações mútuas dentro da
estrutura social; e o tempo ecológico, das relações com o meio ambiente.
O tempo estrutural parece-nos progressivo, à primeira vista, sugerindo
linearidade para o indivíduo, mas pode ser ilusão. O tempo ecológico parece
ser, realmente, cíclico, no sentido helicoidal. Cada passo se não retoma
aspectos semelhantes a situações anteriores, pelo menos, encontra-se no
mesmo alinhamento paralelo ao eixo 3 .
Consideramos ambas as categorias, tempo estrutural e tempo
ecológico, contidas no tempo histórico, que é o tempo vivido pela
humanidade atual. A humanidade atual é descrita no mito como aquela criada
pelos gêmeos astrais antropomorfos Sol e Lua para combater animais também
antropomorfos liderados pela Onça. A ele se opõe o tempo mítico, que
Eduardo Batalha Viveiros de Castro4 classifica como um espaço localizável
na duração. Liga-se ao presente, através de uma relação, à semelhança
daquela entre arquétipo e atualidade. O tempo mítico interpreta o tempo
histórico. Nessas condições o altoxinguano traduz o mito por discurso
(produz o verbo) e o realiza no ritual (pratica a ação).
Supomos que a grande maioria dos conceitos de espaço
e tempo seja determinada pelo ambiente físico. A noção quantitativa de
tempo baseada nas mudanças e nas constantes respostas do altoxinguano, a
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elas, limita-se a um ciclo anual. Não deve e não pode ser empregada para
diferenciar períodos mais longos que, por exemplo, as estações do ano.
Este ciclo ecológico de um ano se configura, grosso modo, na região dos
formadores do rio Xingu, em duas estações: chuva e estiagem. Entretanto,
como veremos adiante, existem nuanças que devem ser levadas em conta.
As limitações ecológicas e outras limitações influenciam
as relações sociais entre os altoxinguanos. O valor atribuído às relações
ecológicas é fundamental para entender este sistema social inserido no interior
do sistema ecológico. Resumindo, nosso objetivo é olhar, do presente, o
desempenho deste modelo altoxinguano de articulação das esferas natureza
e cultura nas dimensões espaço-tempo.
Contextualização
Frans Boas5 enfatizou uma relação existente entre língua e
cultura: analisou o léxico de duas línguas e revelou as distinções estabelecidas
por pessoas de culturas diferentes. Desde então as análises do léxico têm sido
associadas aos estudos das chamadas culturas arcaicas. Ocorrem freqüentes
estudos das concepções do tempo e da história através das configurações
da linguagem.
Alguns autores insistem, inclusive, na “aderência” de tais
concepções às respectivas configurações. A maneira como o altoxinguano
sente as condições e exigências de sua vida diária é revelada na maneira de
falar. É revelada na linguagem verbal e na gestual, bem como nas formas
de comportamento. Paul Ricoeur6 entende a diversidade das culturas
proveniente das diversidades das linguagens, num sentido mais amplo.
Talvez mais profundo que a simples diversidade de vocábulos e sintaxes.
Mais até que a própria diversidade literária das formas de discurso formal.
Edward T. Hall7 supõe que a arte de outras culturas, particularmente aquelas
que diferem da nossa, ofereça informações significativas sobre os mundos
perceptivos de ambas.
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Provavelmente foi este o caminho de Frans Boas, ao utilizar-se do
léxico de ambas as culturas para efetuar sua análise. Na verdade dissecamos
a natureza segundo a orientação classificatória oferecida por nossa língua.
As categorias e os tipos isolados de fenômenos não existem na natureza. O
mundo nos é apresentado como se fosse uma sucessão de imagens e impressões
que devem ser organizadas pela nossa mente. Grande parte delas é expressa
através de sistemas lingüísticos. Subdividimos a natureza para organizá-la em
conceitos. Atribuímos significado às coisas devido ao fato de participarmos de
um consenso para assim agirmos. Tal consenso, como atesta Eduardo B. V.
de Castro8 , encontra-se embutido no processo de socialização. Tal verificamos
entre os índios altoxinguanos. É praticado por todos os grupos étnicos de
línguas Tupi, Karib e Aruak, faladas na região. Não pudemos, no entanto,
observar entre os Trumai, devido à reduzida população falante desta língua
isolada. Notamos que os termos de tal acordo sugerem consenso. As falas
dos integrantes dos referidos grupos legitima a organização dos dados que
o citado acordo determina. Parece ser, também, coercitivo.
Várias culturas têm concepções implícitas e/ou explícitas do
tempo, ligadas a um surgimento da palavra (ou do verbo). Tal situação
cria, em benefício de um evento de discurso fundador, um conjunto das
experiências, dos comportamentos e das interpretações. Este conjunto
constitui a experiência de vida, própria e característica dessa cultura. Se a
linguagem diversifica as concepções é, fundamentalmente, nesse sentido que
tais concepções são singularizadas pelo evento do discurso que as fundamenta.
As coisas ditas são aquelas que se inserem no mito. Uma singularidade é,
portanto, uma diversidade. Desta forma, um novo gênero se revela. Tal
singularidade parece resultar da maneira como a dimensão histórica ocorreu
na linguagem. Ocorre ser essencial captar o sentido que nos levam os
informantes a atribuir durante a exegese de uma narrativa.
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O mito da criação, por exemplo, inclui dois nascimentos que são
o do espaço, cosmos e o do tempo, cronos. A noção da criação também
concentra em si todos os problemas de espaço e tempo. Desta maneira
todos os assuntos são resolvidos de uma só vez.
No entanto, temos observado que grande parte das expressões
lingüísticas designativas de tempo entre os altoxinguanos são seguidas de
gestual carcterístico, pleno de significado adicional, indicativo da situação
específica. Tal ocorre, sistematicamente, com relação às horas do dia. Para
o altoxinguano o dia possui a qualidade dos acontecimentos que nele se
enquadram. A ordem temporal e a ordem moral se encontram bastante
unidas. O mito surge como mensagem e modelo didáticos para prevenir
contra aquilo que é considerado desmedido. Medo e respeito, se ligam, em
parte, à ordem temporal da vida humana. Medo e respeito são aspectos
básicos da noção de justiça. Entendemos por justiça, a ordem das relações
humanas ou a conduta de quem se adapta a esta ordem. Tempo é um
aspecto da ordenação moral do universo. A ruptura da ordem temporal da
vida humana pode acarretar consequências tendenciosas e assumir caráter
de catástrofe. Entretanto, entre os altoxinguanos, tais ações se esclarecem
de maneira satisfatória e se estabelece o equilíbrio moral9 Bruna Franchetto e Márcio d’Olne Campos1 0 comentam alguns
aspectos da caracterização de determinados relógios naturais feita pelos
índios Kuikúro1 1 em um processo de integração e complementaridade entre
os relógios celestes e terrestres por eles adotados. Justificam a importância
na percepção de sua presença na vida diária do assentamento em questão,
nos fenômenos estacionais ligados à pesca e à agricultura, assim como nos
rituais e na mitologia.
A relação do homem com o meio ambiente através dos fenômenos
cíclicos tem presente a curiosidade da compreensão. Presente também está
a necessidade de tê-los como reguladores temporais das diversas atividades
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ligadas a determinados hábitos cotidianos, à economia e aos rituais. Tais
reguladores são os referidos relógios naturais. Configuram-se, em geral,
através de suas representações espaciais. São manifestações mediadas
pelos movimentos dos astros, pelos acidentes geográficos, pelos aspectos
arquitetônicos, pelos esquemas e pela percepção das trocas que ocorrem no
meio ambiente que envolve o observador.
Lógica, origem e evolução de espaço-tempo:
A cosmogonia altoxinguana é acompanhada de uma espécie de
teologia. Entendemos por teologia um estudo das questões referentes ao(s)
herói(s) mítico(s) - ao demiurgo, no caso altoxinguano -, de seus atributos
e relações com o mundo e com os homens à luz (verdade) da crença. A
explicação da origem do mundo chama atenção para a reciprocidade de duas
forças: matéria e energia; forma e conteúdo. Num princípio, o tempo se pôs
em movimento. Daí em diante a história prossegue sem opor resistência.
O evento que libera os caminhos se prolonga e se espelha nas narrativas que
relatam a vida de seres cuja tarefa especial consiste em manter esse caminho
aberto.
Entretanto o tempo histórico não é objeto de elaboração
entre os altoxinguanos. Organizam-no através de eventos significativos.
Não percebemos marcas relevantes de um tempo histórico coletivo.
Confirmamos que os eventos comemorados em algumas cerimônias referemse a ocorrências dentro do tempo mítico. Outras vezes são lembrados
por intermédio de nomes próprios de assentamentos, lugares ou acidentes
geográficos, isto é, do espaço real-atual, que é superposto ao espaço
mítico.
As origens dos povos altoxinguanos foram reproduzidas em
textos por Harald Schultz, por Pedro Agostinho e pelos irmãos VillasBoas1 2. Outros estudiosos recolheram passagens e relatos, no entanto
descontínuos.
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Nessas condições obtivemos algumas informações, as quais
complementamos com dados que coletamos entre 1978 e 1991, quando
lá estivemos, por algumas vezes. Assim, efetuamos uma síntese do mito, a
seguir:
No começo só existia animal noturno e vegetais. Era noite e tudo
era escuro e cheirava a podridão. Os animais voadores defecavam sobre os
terrestres e aquáticos. Passeando pela noite Morcego viu a filha de Jatobá
reclusa em sua casa. Entrou subrepticiamente e possuiu-a. Partiu em seguida,
deixando-a grávida. Jatobá precisou organizar festa e convidar Paus e Bichos
para descobrir o pai de seu neto, o Ancestral dos atuais altoxinguanos.
A esse tempo a terra era vermelha e não prestava para cultura. Foi
Ancestral quem a cobriu parcialmente com terra preta, permitindo a Bichos e
Paus abrirem roças. Até o Morená, local escolhido por Ancestral para edificar
sua aldeia, foi por ele modificado
Adulto, Ancestral copulou algumas vezes com um ninho de
cupim e engendrou duas filhas. Como se fossem esculturas, libertou-as
da matéria original através de golpes de machado de pedra. Em seguida
mandou-as para casa trabalhar. De outra feita, Ancestral copulou com
uma concha bivalve e ela gerou um filho. Ancestral levou para sua casa no
Morená. Ancestral vivia a praticar o ato da criação com toda a matéria que
encontrava no escuro. Seu processo favorito era a cópula.
Certa vez, procurando imbira para fazer corda de arco, penetrou
o território de Onça. Esta exigiu em troca do produto da coleta, as filhas de
Ancestral por esposas. Como as moças se recusassem, Ancestral cortou oito
toras de Paus diferentes. Duas delas eram da madeira humiria balsamnifera
variegata floribunda /Martius/ 1 3. Através de cópula e/ou pajelança
transformou as oito toras em moças, cada par representando uma etilnia
diferente, cada par falando língua diferente, corespondentes às quatro línguas
faladas no Alto Xingu: Tupi, Aruak, Karib, Trumai.
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Indagadas a respeiro de suas vontades em se tornarem esposas
de Onça, cinco delas aceitaram. Dentre elas estavam as duas originárias da
madeira supra referida. Elas saíram do Morená e se dirigiram para as cabeceiras
dos formadores do rio Xingu, território onde se localizava o estabelecimento
do grupo local de Onça. Durante o percurso, as moças praticaram algumas
feitiçarias e encantamentos, punindo a uns tantos Bichos e Paus encontrados
pelo caminho, e premiando a outros. Resultou que apenas duas moças chegaram
ao destino. As duas mais fortes, aquelas originárias da referida madeira especial.
Após esclarecerem-se os desecontros iniciais, por desconhecerem o pretendido,
as moças finalmente se casaram com Onça.
Passado algum tempo, a mais velha, originária da base do tronco,
engravidou. Entretanto, a sogra, mãe de Onça, por ciúmes, matou-a. Onça
tentou revivê-la em vão. Com auxílio de Insetos, descobriu que a gravidez era
de gêmeos, e conseguiu salvá-los. Após algumas tentativas os gêmeos revelaram
ser meninos e aceitaram chamar-se, respectivamente, Sol, o “mais velho”, e
Lua, o ”mais novo”.
Buscando descanso, os gêmeos foram até o Morená, visitar o avô
Ancestral. Este os aconselhou a organizar uma festa para comemorar o ano
que passou após a morte da mãe. Deviam retornar à aldeia de Onça, onde
a mãe estava enterrada, para realizar um tal Kwarìp. Ao final, retornariam
ao Morená.
Desentendimentos familiares levaram os gêmeos astrais a criar um
exército de humanóides para se defenderem dos comparsas de Onça, instigados
pelas intrigas da avó,mãe de Onça. Nessa ocasião procederam à separação
definitiva entre seres humanos, animais (Bichos) e vegetais (Paus).
Preocupados com a desolação da gente que morria de fome na
terra escura, Sol e Lua1 usaram de artimanha para roubar a luz do Uruburei, chefe dos pássaros que viviam na aldeia do céu. Urubu-rei não revidou,
pelo contrário, ensinou como usufruir da alternância claro-escuro. Exigiu, em
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troca, apenas, as carcaças dos animais grandes que Sol e Lua matassem. Que
ficassem expostos em locais visíveis e de fácil acesso para ele e seu grupo l;ocal
se banquetearem. Sol e Lua criaram, assim, o tempo no sentido de duração,
alternando dias e noites.
O mito faz referência a cinco gerações de ancestrais, quais
sejam: Jatobá (fitomorfo), filha de Jatobá (fitomorfo) e Morcego (zoomorfo),
gerando Ancestral; Ancestral (zoo-fitomorfo, uma espécie quase humana,
embora diferente dos humanoides atuais, que tinha equilibrados os gens
vegetais e animais) e Árvore de Kwarìp (fitomorfo), gerando as Primeiras
Matrizes Geradoras de Humanos; Primeiras matrizes Geradoras de Humanos
(zoo-fitomorfo, com predominância de gens vegetais sobre gens animais)
e Onça (zoomorfo), gerando Sol e Lua (gêmeos astrais, novamente zoofitomorfos com equilíbrio de gens, em tudo semelhantes aos humanos atuais.
Na realidade, além de suas formas primitivas, eram todos antropomorfos.
A questão de assumir forma semelhante aos humanos é vista, entre os
altoxinguanos, como uma temporalidade na qual todos desfrutavam de
uma vivência comum, gente, pau e bicho, natureza e cultura. Somente após
a vinda dos gêmeos astrais o mundo foi povoado com a humanidade atual.
Esta surgiu com o propósito de uma luta para defender Sol e Lua dos ataques
excessivos liderados pelo ancestral Onça.
Apesar disso, as referências mais constantes são limitadas a três
gerações: Sol e Lua; Primeiras Matrizes Geradoras de Humanos; Ancestral.
Da mesma forma ocorre entre humanos atuais. As genealogias terminam,
quase sempre, na terceira geração ascendente. Os nomes se repetem em
gerações alternadas. Utilizam-se os altoxinguanos de um termo genérico
designativo de categoria ancestral acima de três gerações: avô-grande, avôancestral, avô-sobrenatural ou avô-fora-do-mundo.
Sol e Lua costumavam visitar vários assentamentos de pessoal
amigo. Saíam do Morená para furar orelha nas aldeias, para participar de
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tantas outras festas e até mesmo por interesses próprios. Vezes ocorriam
em que subiam ao céu e outras vezes desciam. Entretanto não foi possível
confirmar em que circunstâncias os gêmeos permaneceram definitivamente
no céu. Estas parecem ser atividades características de uma fase heróica,
na qual, eventualmente, é possível distinguir grupos locais e seus heróis
étnicos.
Temos informações de que os gêmeos astrais ancestrais
antropomorfos Sol e Lua não são os mesmos sol e lua, astros que iluminam a
Terra. Ocorre que o astro sol, símbolo do fogo e da luz fortes, é representado
pelo diadema de penas de tucano, recebeu o nome do gêmeo Sol, enquanto
o astro lua, símbolo do fogo e da luz frios, é representado mpelo diadema
de penas de gavião real, recebeu o nome do gêmeo Lua. Suas respectivas
posições no firmamento são resultado da necessidade de alternância entre
luz e sombra, promovida pelos próprios gêmeos.
Outras informações dizem respeito à formação de algumas
constelações e parte da Via Láctea. Lamentavelmente não podemos dizer
como surgiram todas as estrelas, apenas algumas, ou como e porque foram
estabelecidas suas respectivas posições no firmamento. Parece que cada estrela
teve uma origem diferente. Sabemos que para identificar uma constelação os
altoxinguanos não lançam mão apenas das estrelas, mas o grande componente
é o espaço vazio delas. Sabemos também que os grupos de estrelas visíveis que
constituem as constelações identificadas pelos altoxinguanos não coincidem
com os grupos identificados pela cultura ocidental dominante. Assim, a
constelação Orion é para eles cosntelação Pato, e as Plêiades compõem a
Siriema que anuncia o Falcão dono do peixe na beira do rio1 4 . Entretanto uma
única estrela é chamada Gaviãozinho, e duas outras Onça caçando Veado.
Nestes dois múltimos casos, as estrelas são os olhos dos animais. Parece que
Onça é vista de frente, e Gaviãozinho, de perfil. No caso de Onça, as estrelas
são Alfa e Beta Centauro1 5.
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No mundo onde nascem heróis nascem também anti-heróis que,
na realidade, têm o mesmo peso. Há sempre um problema de pluralidade
divina que multiplica os espaços criados em vez de reduzí-los. Aliás, fazer
crescer a Terra para caber os seres resultantes de suas criações foi um dos
trabalhos executados por Ancestral antes de produzir as Primeiras Matrizes
Geradoras de Humanos.
A grande questão no mundo altoxinguano parece ser a do ser.
Os permeios ou dobras do espaço-tempo difundem esse problema através
da história. A noção de criação tem o ser como um dado. Se ocorre que
o caos ou o nada se sujeitou a alguma coisa, esta coisa se sujeitará ao todo.
Novamente temos três gerações, ou três etapas. A questão, aquí, já não é
mais do ser, mas de ser e do devir do ser.
O problema do Kwarìp surgiu duas vezes. A primeira quando
Ancestral criou as Primeiras Matrizes Geradoras de Humanos. A segunda
quando uma das Matrizes foi homenageada após sua morte. Surgiria
uma terceira vez, quando a humanidade começou a morrer e Ancestral,
penalizado, tentou ensinar aos homens praticar a resurreição. Praticou-a a
partir de troncos semelhantes aos usados na geração das Primeiras Matrizes.
A tentativa fracassou diante de um ato de procriação. Um dos interessados
havia copulado com sua mulher durante os primeiros sinais de sucesso,
competindo com a pajelança e desviando a energia da ressurreição para a
procriação. Resultou o evento em completo fracasso, retornando os quase
ressurectos para seu caminho espiritual, enquanto a matéria voltou a ser
tronco de Kwarìp.
Entendemos que existe um caminho aberto para poder ou não
efetivar a ressurreição. Tal sentido parece refletir na ética e na estrutura da
aliança entre o demiurgo (Ancestral) e os homens. A significação é de parte
a parte histórica e não-espacial. A grande narrativa mítica dos primórdios
altoxinguanos interpreta no próprio cerne de sua existência histórica.
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O lugar e a lógica, origem e evolução do espaço
Arte e técnica estão, indissoluvelmente, ligados entre si. Na opinião de Pierre
Francastel1 7, todo objetivo comporta, necessariamente, aspectos práticos e
aspectos estéticos. As artes, grosso modo, resultam do manuseio dos materiais.
Existe, para o autor, um período de adaptação do homem à matéria, a cada
intervenção que exerce sobre ela. Tal adaptação depende tanto da estética
quanto da finalidade a que se destina a obra.
A casa do índio, por exemplo, tal qual o cesto cargueiro, é
feita para ter um uso específico. Não existe determinismo absoluto entre a
necessidade que faz o indivíduo construir a casa ou confeccionar o cesto, ou
a forma particular que tais obras assumem. Entretanto, a forma pura, o tipo
ideal, só existe em nível de abstração. Concluímos, então, pela intervenção
de um outro elemento na definição do modelo de ambos os objetos. Obviamente, além da praticidade e/ou da anatomia. A intensidade de tal elemento
intervencional atuaria com maior determinação a nível coletivo (social) que
pessoal (individual).
Este outro elemento é modo de produção e modo de ação produtiva do índio. É fenômeno social e cultural, foco de valores ideológicos,
éticos, sociais e políticos. Estás relacionado com a totalidade da existência.
Mantém íntimas ligações com o processo histórico e, no entanto, possui sua
própria história1 8. Essa história própria é, entre os altoxinguanos, orientada
por tendências nascidas no mito supra descrito. Tais tendências correspondem
a espírito e forma definidos segundo esses modelos. Estudar a arte altoxinguana implica apreendê-la em seu contexto geográfico, histórico e sócio-cultural.
A arte é o próprio contexto cultural altoxinguano, porque exerce autonomia
enquanto forma estética de apreensão e cognição do universo.
Dois aspectos importantes da experiência estética altoxinguana foram ressaltados por Eduardo Viveiros de Castro 1 9, em função de
seu trabalho: arquétipo, o mundo objetivo das representações; e atualidade,
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o mundo subjetivo dessas representações. Em outras palavras, o mundo
objetivo é o mundo dos modelos, e o mundo subjetivo, o das reproduções.
A relação que o altoxinguano estabelece entre os dois aspectos, é a mesma
existente entre o mundo mítico do passado e o mundo concreto do presente.
É uma relação de arquétipo e atualidade. Os seres da criação tornaram-se
categorias. A ação dos homens reproduz a ação dos modelos. O mito não existe
apenas como referência espacio-temporal. O mito existe, principalmente,
como referência comportamental. Essa relação é privilegiada no momento
atual. As cerimonias atualizam-na.
A estética altoxinguana é constituída por categorias
classificatórias. As categorias classificatórias são construídas pela anexação
de certos modificadores lingüísticos a um conceito base. Logo, a estética
altoxinguana se manifesta, na linguagem, através da anexação dos referidos
modificadores lingüísticos a um termo correspondente a um conceito básico.
O papel fundamental desempenhado por esses modificadores, na função
classificatória, é um dos traços mais evidentes das línguas faladas na região.
Consideramos relevante a utilidade de uma interpretação do sentido geral
dos modificadores. A existência de tal aspecto estrutural em todas as línguas
altoxinguanas é um recurso classificatório que nos permite avaliar as diretrizes
do pensamento estético e do pensamento ético altoxinguanos. O exame de
alguns indicadores entre os grupos Tupi, Karib e Aruak nos leva a perceber
a difusão de um certo esquema classificatório, com variações específicas para
cada língua. A especificidade o esquema possui certa autonomia, indicando
recorrência a uma cultura comum na região. Classificando um fenômeno, o
altoxinguano procede a distinções decisivas de grau e, até, de natureza.
As línguas altoxinguanas possuem um repertório limitado de
conceitos, tipos ideais classificatórios. A adequação de cada referente só
é possível através dos modificadores, os quais estabelecem a distância ou
a diferença entre o tipo ideal, o modelo mítico, e o fenômeno atual, que
pode ser verdadeiro, uma réplica do modelo ou ainda uma manifestação
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imprestável. Para simplificar o entendimento, escolhemos as seguintes línguas:
Kamayurá (Tupi), Kuikuru (Karib) e Yawalapíti (Aruak).
A categoria tipo ideal / modelo mítico abrange todas as noções
fora da realidade, inclusive superlativos:
Kamayurá
aruiyap
Kuikuru
kwérì
Yawalapíti
kumã
Os fenômenos atuais verdadeiros são em tudo semelhantes aos
modelos ideais:
Kamayurá
ité
Kuikuru
ekuru
Yawalapíti
ruru
As réplicas dos modelos são menos complexas porque incompletas
em seus detalhes:
Kamayurá
awawite
Kuikuru
hugo
Yawalapíti
mina
As manifestações imprestáveis surgem como arremêdos
desprovidos de quaisquer qualidades:
Kamayurá
n-ité
Kuikuru
hìgì
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Yawalapíti
malu
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Hamilton Botelho Malhano
Ocorrem especificidades lingüísticas tais como em Kamayurá, em
lugar de dizer apenas ité (verdadeiro), dizer ikatu-ité (muito verdadeiro), ou,
em vez de dizer apenas n-ité (imprestável, não verdadeiro), dizer n-ikatu-ité
(muito imprestável, muito não verdadeiro). Em Yawalapíti podemos ouvir
tyumã em lugar de kumã, conforme o termo representante do conceito básico;
ambos têm o mesmo significado.
O termo representante do conceito básico de casa é:
Kamayurá
Yawalapíti
hók
Kuikur u
ìné
pá
Dessa maneira, a classificação estética de casa varia da seguinte
maneira:
Kamayurá
Kuikuru
Yawalapíti
hók-aruiyap
ìné-kwerì
pá-kumã
hók-ikatu-ité
iné-ekureu
pá-ruru
hók-awaw-ité
iné-huge
pá-mina
hók-n-ikatu-ité
iné-hìgì
pá-malu
As palavras da primeira linha significam casa ideal, casa grande,
descomual, casa ancestral, casa sobrenatural ou casa fora-do-mundo. As
palavras da segunda linha significam casa verdadeira, casa igual àquela ideal.
As palavras da terceira linha, casa parecida com a casa ideal, imitação de
casa. As da quarta linha, casa mal-feita, casa estragada, arremêdo de casa.
Assim é classificado todo objeto conhecido dos altoxinguanos. Nada escapa,
nem mesmo as coisas vivas. Gaston Bachelard2 0 afirma que a imagem ativa
dos homens se enriquece de novas imagens, a ponto de transformar-se em
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A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos
um novo ser da nossa linguagem. É a um só tempo devir de expressão e devir
do nosso ser. Ao imaginar sua casa o homem dirige seu pensamento para
as imagens da casa ideal. Simultaneamente tais imagens estão dispersas e
articuladas à semelhança de um caleidoscópio. Reunindo-se os fragmentos
conforma-se um corpo de imagens que são seu canto do mundo, seu primeiro
universo: um verdadeiro cosmos. Entre os altoxinguanos tais imagens são
características de sua organização social fundada nas relações de parentesco.
Estas são a base do sistema econômico nativo. Este sistema, sedimentado
na organização familial instalada no grupo local, realiza-se na casa que ele
imagina, constrói e habita. Imagina a casa ideal e constrói a casa verdadeira,
em tudo semelhante à primeira, porém, atual.
A casa sobrenatural, descrita no mito, era antropomorfa e
antropofágica. Protegia seu grupo doméstico contra inimigos, os quais
devorava, caso a penetrassem. Quando necessário, deslocava-se com todos
os seus ocupantes. A casa verdadeira é, em tudo, reprodução da casa
sobrenatural. Guarda, sobretudo, o aspecto antropomorfo, em detrimento do
aspecto antropofágico. Trata-se de uma casa atual, não mais um arquétipo.
A casa verdadeira está orientada segundo os pontos cardeais.
A cumeeira coincide com o eixo norte-sul. Este é o sentido dos leitos dos
rios formadores da bacia do rio Xingu. Todas as águas na região correm
de sul para norte. As portas da casa - uma frontal que dá para o centro do
assentamento2 1, e outra costal, que dá para a periferia do assentamento alinham-se segundo um eixo perpendicular ao eixo norte-sul. A porta anterior
deve permitir a penetração do sol nascente no interior da habitação. Eduardo
Viveiros de Castro2 2 considera esta orientação as coordenadas básicas de
classificação mais ampla da região. São extraídas aos eventos mitológicos.
O espaço mítico, na realidade, se superpõe ao espaço físico-geográfico.
A casa é a redução deste espaço às dimensões humanas. A categoria
humano é definida com relação à humanidade atual altoxinguana. Conforme
características descritas no mito.
R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002
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Hamilton Botelho Malhano
O extremo norte da região, próximo à confluência dos rios
Kuluene-Ronuro, encontra-se o Morená. Os altoxinguanos localizam neste
sítio o assentamento de Ancestral. Ancestral foi o criador das Primeiras
Matrizes Geradoras de Humanos.
O extremo sul compreende as nascentes dos rios formadores da
bacia hidrográfica regional. Os altoxinguanos situam lá o assentamento de
Onça. Onça é ancestral zoomorfo fecundador da Primeira Matriz Geradora
de Humanos. Lá ocorreu o evento que marcou decisivamente a condição
humana. Constou da morte irreversível da Primeira Matriz Geradora
de Humanos, mãe dos ancestrais gêmeos astrais Sol e Lua. Seguiu-se o
estabelecimento da festa característica dos mortos, o Kwarìp. Por fim, a
separação definitiva entre humanos, animais e vegetais.
O movimento norte-sul/sul-norte foi efetuado por entidades em
vários momentos mitológicos. Esta direção reproduz também o movimento
migratório dos primeiros altoxinguanos. (Fig. 1)
Acrescentamos que norte-sul é a orientação preferencial do eixo
maior da elípse base da planta. Coincide com a cumeeira. O sol nascente
deve penetrar através da porta que dá acesso ao centro do assentamento do
grupo local. Deve iluminar o centro da casa, que corresponde ao cruzamento
dos eixos maior e menor da elípse, base da planta baixa. (Fig. 2)
Os esteios centrais e principais da casa indicam os respectivos
centros dos assentamentos de Ancestral e de Onça. O esteio situado ao
lado esquerdo de quem olha para o centro do assentamento do grupo local
indica que este é o local do assentamento do grupo social de Ancestral.
Estão situados ao norte da construção. É este o lado que deve ser ocupado
pelo dono da casa. O esteio situado do lado oposto, isto é, ao lado direito de
quem olha para o centro do assentamento do grupo local indica o local do
assentamento do grupo social de Onça. Está situada ao sul da construção.
Neste lado ficam os parentes afins do dono da casa. São eles cunhados,
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A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos
genros, sogros do filho, etc. Casos muito especiais incluem o filho mais velho
com sua família. (Fig. 3)
O assentamento altoxinguana é visto como uma cratera,
uma superfície côncava. O ponto mais baixo coincide com o centro do
assentamento. É fundo e tem água. Na medida em que o raio de curvatura
aumenta, a superfície vai subindo de nível. É provável que a circunferência
de maior raio seja aquela situada onde a terra encontra o céu. O céu é uma
abóbada de concavidade invertida em relação à da terra. As dimensões são
simétricas. Neste caso, as maiores circunferências de ambas as concavidades
são coindentes. A situação não implica que ambas as calotas conformem
uma esfera perfeita. (Fig. 4)
Terra, água e céu são espaços bem marcados na classificação
desses índios. Elas definem as linhas diretrizes da classificação animal
altoxinguana e recebem atribuição de valores cosmológicos distintos. O
esquema altoxinguano da dimensão vertical alinha água, terra e céu.
As posições são invertidas no assentamento dos mortos, na
medida em que este é antípoda ao assentamento dos vivos. O assentamento
dos mortos é iluminado pelo sol quando afunda, a oeste do assentamento
dos vivos. (Fig. 5)
Quanto à latitude do assentamento, sabemos que o sol, em seu
movimento anual, percorre o horizonte entre os dois solstícios, de inverno e de
verão, em ângulo de 48o, medidos do centro do assentamento, e simétricos com
relação ao eixo leste-oeste. O nascente e o poente se apresentam mais ao norte,
no solstício de inverno, e, mais ao sul, no solstício de verão. Ao observarmos
tal fato, em 1978, calculamos, a olho nu, uma diferença que compunha um
ângulo de 45o , entre a orientação leste-oeste da casa-das-lautas, e a orientação
leste-oeste da casa principal, a verdadeira. Observamos nos assentamentos
Yawalapíti e Mehináku, Aruak, e Kalapalo, Karib. Era inverno, e supomos
que as respectivas casas principais, estivessem orientadas segundo o solstício
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Hamilton Botelho Malhano
de verão, enquanto as respectivas casas-das-flautas seguiam o solstício de
inverno. Estas últimas tinham o sol nascente em seus interiores, através das
respectivas portas, por trás dos tradicionais bancos masculinos e dos túmulos
centrais. Os altoxinguanos parecem ter incorporado tal conhecimento à
arquitetura do assentamento, isto é, à urbanização. Demonstram-no neste
alinhamento dos elementos centrais: casa-das-flautas, banco masculino,
túmulo central e local da luta marcial. Para eles, tal incorporação possibilita
o funcionamento de uma espécie de relógio solar, no qual a casa-das-flautas
funciona como abrigo contra os raios solares, ao projetar sua sombra sobre
a praça central do assentamento. Por volta das três horas da tarde, a praça
do assentamento está ensolarada. Inicia-se o ritual da luta marcial. Quando
a sombra da casa-das-flautas passa por sobre o banco masculino e o túmulo
central, atingindo os lutadores, termina o ritual. (Fig. 6)
Retomemos Gaston Bachelard2 3, para examinar uma realidade
apresentada ao pensamento. Isto significa interpretá-la. Implica em examinar
e definir natureza, origem e funcionamento desta realidade, agora, também,
presente no pensamento. A partir do momento em que o índio apresenta
ao mundo um universo ou uma noção invisível, este mundo começa a
existir socialmente. Mesmo que não corresponda a nenhuma manifestação
existente na realidade representada. A partir destas representações, o
pensamento serve-lhe de armadura interna, sob a forma de regras de
conduta, de princípios de ação, de permissões, ou de interdições. São
várias as finalidades, algumas abstratas. Neste sentido as representações da
realidade se caracterizam por interpretações que legitimam as relações dos
homens entre si e com a natureza. A casa altoxinguana revela o modo como
o índio emprega seus sentidos e comunica suas percepções ao observador.
Lida com níveis relativos de abstração. A produção, no conjunto, depende
do acervo cultural nele inserido. Retrata a visão de mundo traduzida a outros
significados. O mecanismo consiste em fornecer indicadores adequadamente
selecionados em relação aos eventos nela representados, bem como em
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A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos
relação à linguagem visual e à cultura como um todo. Uma das principais
funções da casa altoxinguana é ajudar a ordenar e a preservar a ordenação do
universo cultural. Incluímos nesse universo as relações do índio com a natureza
e a organização dos seus sistemas simbólicos e espectativas. O índio projeta
aí seu mundo visual por intermédio de uma visão ativa e aguçada. Tal visão
representa a relação do homem com o meio ambiente da qual todos participam.
O lugar e a lógica, origem e evolução do tempo
Os altoxinguanos contam o dia desde o momento em que o sol entra
no assentamento, até o momento em que o sol afunda ao longe. Em seguida,
anoitece. O dia é mais discriminado que a noite. A noite é associada ao caos.
Antes não havia dia. A noite existia antes do dia. As aves
defecavam sobre tudo e sobre todos os seres terrestres e aquáticos. Sol
e Lua trouxeram a luz roubada ao Urubu-rei, chefe do assentamento
dos pássaros, em algum lugar no céu. Urubu-rei usava a luz sobre a
cabeça, quando queria iluminar o caminho para procurar alimento.
O dia no Alto-Xingu é, como em qualquer lugar da Terra, dividido
em etapas. As etapas têm como referencial a jornada aparente do sol. Cada
momento do dia é indicado pelo ângulo de distância entre o sol e o horizonte,
tendo como vértice-de-mira, o observador. Este ângulo é resultante do gesto
de estender o braço – a mão com os dedos unidos e o polegar fechando na
palma – na direção do sol. Todo gesto indicativo de hora, isto é, da posição
do sol, é seguido da expressão quando o sol estiver assim. Mesmo que a idéia
da divisão do tempo seja feita pela rotação do braço estirado, assinalando a
direção do sol, do nascente ao poente, tal constatação não nos permite deduzir
a existência da idéia de circularidade completa, que inclua a noite, já que o sol,
simplesmente, vem de algum lugar e vai para outra parte. Entretanto, quando
o sol afunda, se dirige para o assentamento dos mortos, em posição antípoda à
nossa. No momento em que ele sai de nossa presença, entra em presença dos
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Hamilton Botelho Malhano
mortos. Da mesma forma, quando sai do assentamento dos mortos, entra no
ambiente dos vivos. Desta maneira estaria completa a idéia de circularidade,
na qual é possível incluir a noite. Analogamente, aquele que, no ambiente dos
vivos, se dirige para o assentamento dos mortos, deve caminhar na direção
do poente, seguindo a trilha do sol. Quem se dirige para o assentamento dos
heróis e ancestrais, no céu, caminha na direção oposta, isto é, de encontro
ao nascente. Antes deverá enfrentar-se com os pássaros do asentamento de
Urubu-rei, intermediário entre o dos vivos e mortais e o dos imortalizados.
Os altoxinguanos distinguem uma noção de tempo com sentido
de duração, e outra com sentido de período. O sentido primeiro se refere
a ontem e amanhã. O segundo é designativo de temporada, de chuva ou
de festa. A noção de duração nos parece dominante, e pode indicar fases
de transição sazonal. Determinados momentos do dia são designados pelas
atividades particulares ou coletivas. As denominações mais corriqueiras são
expressões lingüísticas compostas da palavra sol, um significado temporal e
um designativo demonstrativo. Algumas delas, para nascer e pôr do sol,
foram supra citadas.
Por outro lado, o amanhecer é marcado pela coleta de água, pelo
banho e pela ida para as roças. O período matinal, até por volta do almoço, é
indicado pela permanência nas roças. O retorno é complementado com banho
e pesca ou caça de alimento para a segunda refeição do dia. Em seguida,
todos comem e descansam, alguns minutos, para, novamente, tomar banho.
O período compreendido entre o retornar da roça, até por volta de três horas
da tarde, é ocupado com alimentação, sesta e artesanato. É o tempo dedicado
à família. É comum retornarem às roças, quando a colheita se faz urgente.
Muitas vezes pescam e/ou caçam para o jantar. Enquanto isso, as mulheres
processam a mandioca, à volta da casa, sob jiraus de secar os pães de polvilho.
O entardecer é marcado pelo encerramento das atividades produtivas. Mulheres
fervem caldo de mandioca espremida durante o dia, preparando mingau,
outras fiam algodão e/ou tecem redes, etc. Homens tecem cestos ou reparam
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A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos
a plumária. A última fase do dia é quando o sol afunda. É hora de trazer
lenha para os fogos noturnos, as mulheres se pintam em frente das casas, e
os rapazes na casa-das-flautas cerimoniais, no centro do assentamento. Os
homens casados também se dirigem para lá, para fumar e atualizar a jornada.
É hora da solidariedade masculina. Conversam e fumam até o sol afundar
na direção do assentamento dos mortos. Este grupo é constituído, na maioria,
de pajé e herbolário ou raizeiro. São as últimas atividades do dia. A noite
se faz incógnita. O som das flautas atravessa a noite, enquanto mulheres e
crianças permanecem no interior das habitações.
Os índios astribuem importância especial à segunda metade da
noite, até o momento em que a constelacão Orion se encontrar invertida na
calota celeste. Ocorre por volta das três horas da manhã. É hora de atiçar os
fogos, pois é chegado o mais intenso frio noturno. Daí em diante é o novo, o
alvorecer do novo dia, que determina a retomada do cotidiano. É a hora das
mulheres, da solidariedade feminina. Opõe-se à reunião dos homens no centro
do assentamento. Imediatamente após o retorno das mulheres, os rapazes se
dirigem para o banho matinal. Durante todo o dia as unidades relevantes
são constituídas pelos grupos domésticos, enquanto unidades de trabalho e
cooperação. Durante a noite, a unidade é definida pelas famílias segmentais,
ligadas, interinamente às habitações coletivas, pelos fogos junto às redes.
Da mesma forma que o sol, a lua se apresenta diferentemente,
conforme os intervalos de tempo transcorridos entre suas fases. Estas são
conhecidas por lua de cara tapada, que corresponde à lua nova. Esconde a
cara, como as moças que saem da reclusão. Estas têm as franjas dos cabelos
tão compridas que cobrem grande parte do rosto, deixando aparecer, somente,
a região da boca e do queixo. A parte visível corresponde à parte inferior do
rosto da moça. A lua começa, diz respeito ao início do crescimento da lua,
quando começa a destapar a cara para ficar cheia, grande e redonda. Esta
última é a lua verdadeira, posto que em sua plenitude circular. Aliás, o círculo
é a forma forte por excelência no Alto-Xingu. Ocorre uma designação de lua
R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002
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Hamilton Botelho Malhano
muito grande, que entendemos como qualificação da lua grande, determinada
pela distância ou proximidade em que esta se encontra do assentamento. O
quarto minguante é comparado à vista lateral de alguém que está sentado. É
marcado pela curvatura da coluna vertebral. Por isso, é dito que a lua sentou.
A observação da lua permite a contagem do mês lunar, tempo transcorrido
entre duas fases, iguais e consecutivas.
A repetição de fenômenos como as fases da lua ou as posições
do sol, permitem perceber o aspecto da regularidade em grandes intervalos
de tempo. Grandes o suficiente para percebermos certa compatibilidade com
calendários de curto alcance. Exemplificamos com a contagem de anos, onde
a expressão quatro estiagens surge como limite para que os conjuntos a partir
de cinco elementos, em diante, signifiquem muito tempo. Nesse caso específico,
notamos que fenômenos ocorridos a intervalos muito maiores que quatro
estiagens, quer sejam ou não cíclicos, causam espécie, no mínimo, surpresa.
Os períodos coincidentes com um ciclo completo de fases da lua delimita as
estações. São denunciados pelo ritmo das chuvas, pelo fluxo e refluxo das águas
dos rios e lagunas, pelo amadurecimento dos frutos, pela desova de peixes ,
araras, papagaios e periquitos, e das tatarugas tracajá.
O tempo de chuvas se estende desde fins de outubro até fins de
março. É também o tempo de se efetuarem as trocas cerimoniais entre as
várias aldeias. Coincide com o tempo de roçar mato, logo após a colheita do
pequi. É época e, que os homens estão nas roças e as mulheres organizam as
festas femininas nos assentamentos2 5. A estiagem é anunciada pela vazante.
O período vai de junho a julho. É tempo de muito frio, que só diminui
com a derrubada de mato para as novas roças. As queimadas aquecem o
ambiente, de agosto até setembro. Para descansar desta atividade, os índios
colhem o que restou da mandioca plantada há seis meses, antes das chuvas.
O céu é marcado pela ascensão da constelação Siriema, no horizonte, ao
cair da tarde. É época de preparar o Kwarìp. A constelação Pato, surge
no horizonte matutino, avisando da necessidade de estocar o polvilho, de
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A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos
preparar as pescarias, de treinar a luta. A cerimônia será realizada quando
Orion estiver a 30a no horizonte. A 45o, descerá a água do pato, a pequena
chuva seguida de pequena estiagem. Marca o fim desta água. Orion está no
zênite, ao amanhecer. Daí em diante, o tempo é de chuva, que é marcado
pela presença da constelação trabalhador. Marca, ainda, o começo do roçar
e a entrada de jovens em reclusão.
O lugar e a disjunção do espaço-tempo
Observamos, em ocasião especial, o comportamento de alguns
índios Yawalapíti, Waljrá e Mehináku, (Aruak), Kamaiurá, (Tupi), e
Kuikuru, (Karib), diante da ocorrência de um evento celeste, até então,
desconhecido por nós. A ocasião era especial, por três motivos, quais sejam:
primeiro, retornávamos de uma semana de pescaria em benefício de uma
festa de furação de orelha de alguns rapazes, no assentamento Yawalapíti.
Segundo, estávamos em cinco canoas monóxilas de jatobá, remando rio
Kuluene acima, entrando na boca do Tìwatìwarì, seu afluente pela margem
esquerda. Este local é acidentado com algumas pedras que afloram de seu
leito central. O rio Kuluene é rápido, caldaloso e barrento; o rio Tìwatìwarì
é lento, menos volumoso e cristalino, a ponto de enxergarmos, ao fundo, seu
leito de areia e sua população subaquática. Terceiro, pela própria ocorrência
do inusitado evento celeste. Imaginamos o que poderia estar acontecendo, e,
posteriormente, já em grande centro urbano, confirmamos tartar-se de uma
colisão de asteróides.
Ao se darem conta da grande explosão celeste, os índios, reagiram.
Imediatamente, começaram a gritar e a bater com os remos na água, repetidas
vezes, espirrando o líquido em grandes porções. A insistência provocou
marolas no rio, e estas faziam oscilar as embarcações, levando umas a se
chocarem contra outras. Enquanto isso, em meio ao grande clarão, fragmentos
dos asteróides eram lançados a grandes distâncias, no espaço. Pareciam cair
sobre a Terra. Enquanto isso, o pesquisador tentava acompanhar, extasiado,
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Hamilton Botelho Malhano
a explosão celeste, ao mesmo tempo em que, aparvalhado, tentava observar
a encenação terrestre. Na realidade, perdemos parte do evento e parte da
teatralização nativa. Tentávamos não ir à deriva, ou mesmo, naufragar,
com cinco canoas, farnel, mochilas, peixes moqueados, beijus de polvilho
de mandioca, máquina fotográfica, máquina S8, mulheres e crianças-depeito. Pensamos em tudo, exceto registrar os momentos através das lentes
óticas. Apenas percebemos que os gritos eram exclamações que variavam de
articulação vocal, sonoridade e intensidade. E que a cena na Terra, isto é, na
água, parecia espelhar o evento celeste, um anulando o outro. Enquanto o céu
se incendiava, parcialmente, os índios pareciam lançar água para apagá-lo.
Alguns estudiosos têm observado que, certos eventos celestes,
considerados anômalos, devam ser acompanhados de rituais. Tais rituais
devem, de alguma maneira, refletir, na Terra, a natureza do fenômeno
original. Porquanto, seria necessário manter uma relação translúcida, ou
especular, entre Céu e Terra2 6. Os eclípses solares e lunares são vistos como
sangramento do sol, relacionando, tal fato, às escarificações comuns entre
os altoxinguanos. Outros autores, e aqui nos incluímos, preferem o termo
menstruação do sol. De qualquer modo, trata-se de uma perda de sangue
dos astros. Acreditamos haver uma associação entre sangramento e a colisão
de asteróides, supra descrita. Neste caso, a água seria utilizada para laválo. Não são astros, mas são asteróides. Desconhecemos a existência de tais
diferenças entre os índios do Alto-Xingu.
Esta perturbação da periodicidade dia/noite, implica uma
disjunção entre Céu e Terra, que ameaça o retorno da sociedade ao estado de
caos, existente antes da conquista do dia, pelos gêmeos astrais. Os eclípses
abrem uma brecha para o retorno ao Caos Inicial. Ameaçam a paralização
da cultura como um todo. A reação vem na forma de primeiros socorros.
Acendem-se fogueiras e atiram-se flechas incendiárias na direção dos astros,
para reacendê-los. Principalmente o sol. A escuridão eterna, sinal de caos
na Sociedade e na Natureza, pela ameaça dos maus espíritos, é combatida
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A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos
com fogo e vigília. Durante este período produzem muitos ruídos e desempenham curtas representações de toda a gama de cerimôniais característicos
do ciclo do Kwarìp. Parece ser esta a maneira correta de provarem não terem
esquecido os costumes ancestrais ensinados no mito. Os ensinamentos são
armas de defesa, protetoras e reveladoras da condição humana, adquirida por
hereditariedade genética. São signos culturais que se opõem, não à Natureza,
mas ao Caos, ao Primordial; à ausência total do espaço-tempo.
Durante o eclípse, poucos indivíduos se permitem ultrapassar o
perímetro do assentamento. Os espíritos estão soltos e poderiam se aproveitar da situação. Todos se escarificam. Os homens lutam huka-huka. A luta
marcial altoxinguana é atividade freqüente nos assentamentos. Mantém um
caráter ritual e se realiza na praça central, a qual deve estar, em condições
normais, totalmente exposta ao sol.
Os espectadores devem se sentar à sombra. Neste caso, ocorre
uma contradição. Apenas pelo fato de ser necessário desfilar o leque de rituais,
os homens lutam durante os referidos fenômenos. Todos os bens materiais
devem circular de mão em mão, mudando de proprietário, estabelecendose uma troca acelerada. Na realidade, todo o ciclo anual de atividades
econômicas, sociais e ideológico-culturais deve ser contextualizado como arma
de defesa contra as únicas possibilidades cabíveis de retorno da humanidade
atual ao Caos anterior à criação do mundo, isto é, do espaço-tempo.
Isto nos parece constituir uma fase de um movimento cíclico,
que só não é circular, isto é, que não retorna ao ponto de partida, ao caos,
porque existem as armas culturais que permitem, à humanidade atual refazer
as atividades. Talvez possamos falar em um movimento cíclico helicoidal, que
refaz as atividades em um ponto mais adiante na mesma reta do cilindro.
Este é um movimento cíclico perfeito, à semelhança de um ciclo ecológico
anual.
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Hamilton Botelho Malhano
Conclusões
As representações altoxinguanas do espaço-tempo têm caráter
de componentes essenciais da consciência social nativa. A estrutura de tais
representações reflete ritmo e regularidade da excitação social e cultural. O
modo do índio perceber e de se dar conta do espaço-tempo, revela aspectos
e tendências fundamentais desta sociedade e dos indivíduos que a compõem.
O tempo ocupa lugar de relevo no modelo do mundo que caracteriza a
cultura em questão, com outro componente desse modelo, o espaço.
A cada desenvolvimento da produção, da evolução das relações
sociais, bem como do progresso e autonomia do homem em relação ao ambiente natural, corresponde uma maneira de ver o mundo. Neste sentido, as
categorias espaço e tempo, tanto quanto a relação entre mundo natural e
mundo sobrenatural, refletem, qual espelho, a prática social. Contribuem,
ao mesmo tempo, para conformá-la segundo o modelo do mundo existente.
Não compreendemos o modelo historico e particular de estrutura do caráter
altoxinguano, sem desvendar seus modos próprios de sentir o espaçotempo. O sentimento do espaço-tempo é um dos parâmetros essenciais
da personalidade altoxinguana. O espaço-tempo acarreta problemas característicos de história cultural, na medida em que desvela valores distintos
conforme época, lugar e cultura. Precisamos conhecer a atitude diante dele
e a maneira como ele é apreendido e vivido.
Os sistemas espaciotemporais altoxinguanos revelam considerável grau de elaboração. Espaço e tempo são pensados como abstrações que permitem formar a imagem de um cosmos unificado, e conceber
a idéia de um universo único e coerente. Espaço e tempo estão ligados
aos fenômenos que se desenrolam na consciência mitológica. As categorias
não existem isoladamente, sob forma de abstração, na medida em que o
pensamento altoxinguano é, sobretudo, concreto, objetivo e sensível. Um
evento que se realizou em determinado local, ou que ainda se realiza, no
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A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos
momento, pode, em certas condições, ser percebido como fenômeno situado
num mesmo plano. Como se desenrolasse num mesmo espaço de tempo.
Nestas condições, a estrutura do espaço-tempo corresponde aos conceitos
fundamentais da sociedade.
O sentimento do espaço-tempo tende a estender-se, apenas ao
redor do aqui-agora. Oscila entre um futuro mais próximo e um passado
recente. Envolve a atividade indígena em curso e os fenômenos do ambiente
nativo imediato. Para além desses limites, os eventos são percebidos de
modo vago. Não têm coordenadas fixas, isto é, são pouco coordenados no
espaço e no tempo, e pertencem ao domínio do mito. Temos, então que,
na consciência altoxinguana, o espaço-tempo aparece sob aspecto de uma
força sobrenatural no sentido de que rege todas as coisas; a vida dos homens
e dos heróis míticos. Por isso, o sentimento de espaço-tempo, no AltoXingu, surge saturado de valor afetivo. Pode ser bom ou mau, favorável a
certas formas de atividades e nefastas a outras.
Ocorre um tempo onde as consciências estão tomadas pelo
misticismo. É o tempo de festa, de se escarificar e de reproduzir o mito em
ritual. Quando o altoxinguano diz que é tempo de festa, é porque o tempo é
propício e o local, favorável. Não apenas para a representação ou teatralização
do mito. É, principalmente, porque as atividades preparatórias do evento têm
grande chance de se realizar no local indicado. Daí a viabilização do evento. É
um tempo em que se coloca o quotidiano fora decircuito, embora se aproveite
da boa colheita, da boa pesca, e do bom processamento da mandioca e do pequí.
O tempo que percebemos se desenrolar neste espaço, de
maneira linear, do passado ao futuro, nos parece, na realidade, ora imóvel,
ora cíclico. Os acontecimentos retornam à atualidade, a intervalos determinados pelo ciclo ecológico. Tal concepção cíclica da assimilação do tempo
encontra-se ligada ao fato de que o altoxinguano jamais se desliga da natureza,
enquanto sua consciência permanece subordinada às estações do ano. O ritmo
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de vida social depende destas alternâncias e dos ciclos de produção a elas
adaptados. Por conseguinte, as interpretações das esferas natural e social,
nos moldes das categorias míticas, produzem, no observador, uma sensação
de crença no eterno retorno. Atos humanos tendem a repetir fatos outrora
realizados pelos heróis culturais. Os antepassados renascem nos descendentes.
Daí o mito ser modelo de comportamento e atualizador da realidade. Pela
mesma razão, os netos têm os nomes dos avós. Parece que a consciência não
se permite ser orientada para perceber as modificações. Permite, no entanto,
ser levada a encontrar o antigo no novo. Por isso, o futuro, nem sempre é
distinto daquilo que foi o passado, ou a realidade atual.
Ao conceito de tempo mitológico se liga a idéia de que todos
os modos do tempo: passado, presente e futuro estão dispostos de certa
maneira, num único plano. São, em certo sentido, simultâneos. Este é o
fenômeno da espacialização. O tempo é vivido da mesma maneira que
o espaço. O presente se encontra no mesmo conjunto temporal formado
pelo passado e pelo futuro. O altoxinguano sente e vê o passado e o presente
estendendo-se ao seu entorno, isto é, em torno de si mesmo, interpenetrandose e explicando-se, um ao outro. O passado sempre perdura. Pela força de
sua realidade, em nada o passado perde para o presente.
Sobre esta representação se fundamenta o culto ao antepassado
durante o primeiro ano após sua morte, o Kwarìp. Sobre esta representação,
todos os arquétipos se renovam, quando realizam o mito e os rituais no período de festas. A observação das tradições mantém o passado materializado
e perenizado, à semelhança de um corte epistemológico no movimento histórico, dominando o presente. O futuro é observado pelo presente, através
da pajelança e da feitiçaria. É neste contexto de espaço-tempo, tão real
quanto resto do mundo, que os mitos dialogam e se atualizam. Espaço e
tempo são dados tão concretos na experiência altoxinguana, que formam
os elementos que a constituem. É impossível separar do tecido vital.
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A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos
No entanto, nada impede a realização de uma atitude inovadora.
Embora, por sua própria essência, a sociedade altoxinguana tem limitadas as
suas possibilidades de modificação. Possivelmente, sua estabilidade só pode
ser garantida mediante um mecanismo rígido e abrangente de controle social.
Acreditamos que a idéia do eterno faça parte deste mecanismo.
Ilustração
Figura 1: Esquema da Região.
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Figura 2: Esquema da Casa.
Figura 3: Esquema de Ocupação da Casa.
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Figura 4: Esquema do Concentrismo.
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Figura 5: Esquema Céus, Terra, Água.
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A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos
Figura 6: Esquema do Assentamento.
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Notas
Texto extraído à Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em
1
História da Arte da Escola de Belas Artes do Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1993.
EVANS-PRITCHARD, E. E., Os Nuer. Um a descrição do modo de subsistência e
2
das instituições políticas de um povo nilota. São Paulo: Perspectiva,1978:107-116.
Definimos helicoide como uma superfície gerada por uma reta horizontal apoiada constantemente
3
distância entre duas sucessivas passagens pela mesma reta do cilindro.
4 CASTRO, E. B. V. de, Indivíduo e sociedade no Alto Xingu. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1977:119.
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13 EMMERICH, M., EMMERICH, C., VALLE, L. de S. , O Kuarupe. Árvore do Sol.
Estudos de Etnobotânica no Parque Indígena do Xingu III. In: Boletim do Herbário Bradeanum v. IV, n.49, 22 out. 11987:388-381.
14CASTRO, E. B. V. de, Indivíduo e sociedade no Alto Xingu. op. cit., 1977:106.
FRANCHETTO, B., CAMPOS, M. d’O., KUIKURU: Integración cielo y tierra en la
15
economia y en el ritual. op. cit., 1985:263.
NEHER, A., Visão do tempo e da história na cultura judaica. In: As culturas e o tempo.
16
Petrópolis: Vozes: São Paulo: EDUSP, 1975:179.
17FRANCASTEL, P.,. São Paulo: Perspectiva, 1973:50-51. (Sociologia Da Arte).
MÜLLER, R. P., Abstracionismo geométrico na pintura corporal Assuriní. In: Arte e corpo,
18
pintura sobre a pele e adornos de povos indígenas brasileiros. Sala especial do 8o Salão
Nacional de Artes Plásticas: A arte e seus materiais. Rio de Janeiro: Funarte, 1984:23.
19 CASTRO, E. V. de, Indivíduo e sociedade no Alto Xingu. op. cit., 1977:50-51.
BACHELARD, G., A poética do espaço. Rio de Janeiro: Eldorado, 1957:10;118-22.
20
Preferimos o termo assentamento em lugar de aldeia, não apenas porque se encontra pleno
21
de idéias européias, conforme nos referimos em a HABITAÇÃO INDÍGENA BRASILEIRA, In: SUMA Etnológica Brasileira, V. 2, Tecnologia Indígena, Petrópolis: Vozes; Rio
de Janeiro: FINEP, 1986:26-92. Preferimos este termo porque nos dá idéia de ilnterferência do
homem, a idéia das coisas nos seus devidos lugares, a idéia de urbanização
CASTRO, E, V, de, Indivíduo e sociedade no Alto Xingu, op. cit., 1977:126.
22
23 BACHELARD, Gaston, op. cit., 1957:10;18-22.
SCHULTZ, Harald, op. cit., 1965
25
AGOSTINHO, Pedro, op. cit., 1970
________________ . op. cit., 1974a
________________ . op. cit., 1974b
VILLAS BOAS, Cláudio, VILLAS BOAS, Orlando, op. cit., 1970.
REICHEL-DOLMATOFF, Gerardo, Amazonian Cosmo; the sexual and religious
26
symbolism of the Tukano indians. Chicago: The University of Chicago Press, 1971.
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Abstract
Highxinguan people conduct arrangement of things and events in the
continuous space-time disposing, at one side, sensitive elements, and at other, natural and
superatural. Suppose that a good majority of concepties of space and time are determined
by physical ambient. The idea of time/weather is based on the changes and on the regular
answers that highxinguan people offer them, it is restrict by a annual cycle.It dutie not
and cannot be employed to different periods more loger then seasons of year. Generally,
in the region of the source of Xingu river, this echological cycle of one year resign itself
in two seasons: raining and stop raining. The valour attributed to echological relations
is fundamental to understand this social system inserted into echological system. The
articulation of these domains nature and culture between space-time dimensions foment
a union between temporal and moral orders. The myth arise as didactic message and
model to prevent against to that that is considered excessive. Historical time is not subject
of elaboration (development) among them. Real-actual space is superposed to mythic
space. The great question in this world appear be that of the being. Midsts or folds of
space-time diffuse this problem through History. The idea of creation has the being as
a data. Space-temporal systems reveal considerable degree of elaboration. Space and
time are thinking as abstractions that permit formming the idea of a unified cosmos, and
conceiving the idea of an universe unic and coherent. Space and time are connected to
phehomenons that came to pass in the mythological conscience. In these conditions, the
structure of space-time correspond to fundamental concepts of society. To the concept of
mythological time associate the idea that every time modes are disposed, of a certain manner, in an unic plan. They are, in a certain sense, simultaneous. This is the phenomenous
of space action. It is in this context of space-time, so real like all the world, that the myths
dialog and actualise themself.
Keywords
Highxinguan indians who speak tupi, aruak and karib languages. Relationship, ideas, events and ategories: space and time; estructure and echologie; myth and
history; cosmologie and chronologie; origim and evolution; matter and energy; form and
content; nature and culture; model (original) and copy (reproduction); art (craft) and
technique; aesthetics and ethics; man and animal; demigod and hero.
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