A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos Hamilton Botelho Malhano Professor no Departamento de História e Teoria da Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutor em História Social - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em História e Crítica da Arte Antropologia - Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Arquiteto - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Etnólogo - Instituto de Ciências Sociais, História e Filosofia da Universidade Federal Fluminense. Museógrafo - Deliberação COREM 275 IV Resumo O altoxinguano procede à distribuição de objetos e eventos no contínuo espaço-tempo dispondo, de um lado, os elementos sensitivos, e de outro, os naturais e sobrenaturais; traduz o mito por discurso e o realiza no ritual. Os altoxinguanos, isto é, a humanidade atual é descrita no mito como aquela criada pelos gêmeos astrais antropomorfos Sol e Lua. Supomos que a grande maioria dos conceitos de espaço e tempo seja determinada pelo ambiente físico. A noção quantitativa de tempo baseada nas mudanças e nas constantes respostas do altoxinguano, a elas, limita-se a um ciclo anual. Não deve e não pode ser empregada para diferenciar períodos mais longos que, por exemplo, as estações do ano. Este ciclo ecológico de um ano se configura, grosso modo, na região dos formadores do rio Xingu, em duas estações: chuva e estiagem. O valor atribuído às relações ecológicas é fundamental para entender este sistema social inserido no interior do sistema ecológico. A articulação das esferas natureza e cultura nas dimensões espaço-tempo promove a união entre a ordem temporal e a ordem moral. O mito surge Hamilton Botelho Malhano como mensagem e modelo didáticos para prevenir contra aquilo que é considerado desmedido. O tempo histórico não é objeto de elaboração entre eles. O espaço real-atual é superposto ao espaço mítico. A grande questão no mundo altoxinguano parece ser a do ser. Os permeios ou dobras do espaço-tempo difundem esse problema através da história. A noção de criação tem o ser como um dado. Os sistemas espaciotemporais revelam considerável grau de elaboração. Espaço e tempo são pensados como abstrações que permitem formar a imagem de um cosmos unificado, e conceber a idéia de um universo único e coerente. Espaço e tempo estão ligados aos fenômenos que se desenrolam na consciência mitológica. Nestas condições, a estrutura do espaço-tempo corresponde aos conceitos fundamentais da sociedade. Ao conceito de tempo mitológico se liga a idéia de que todos os modos do tempo: passado, presente e futuro estão dispostos de certa maneira, num único plano. São, em certo sentido, simultâneos. Este é o fenômeno da espacialização. O tempo é vivido da mesma maneira que o espaço. A observação das tradições mantém o passado materializado e perenizado, dominando o presente. O futuro é observado pelo presente, através da pajelança e da feitiçaria. É neste contexto de espaço-tempo, tão real quanto resto do mundo, que os mitos dialogam e se atualizam. Palavras-chaves Índios altoxinguanos falantes de línguas tupi - aruaque e caribe. Relação - idéias - eventos e categorias: espaço e tempo - estrutura e ecologia - mito e história - cosmologia e cronologia - origem e evolução matéria e energia - forma e conteúdo - natureza e cultura - modelo e cópia - arte e técnica - homem e animal demiurgo e herói. 46 R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos Introdução Diante da proposta compete-nos descobrir como o indivíduo e/ou grupo local, e/ou coletividade altoxinguana, arranja ou ordena a distribuição de objetos e eventos e coisas no contínuo espaço-tempo. Consideramos esta maneira supostamente metódica do índio dispor no mundo elementos sensitivos, de um lado (tais como sonoros, visuais, olfativos, gustativos e táteis), bem como os naturais e sobrenaturais de outro. Procuramos, principalmente, entender a situação destes elementos ponderáveis nas categorias de tempo estrutural e tempo ecológico, propostas por Edward Evan Evans-Pritchard 2 . O tempo estrutural é visto como reflexo das relações mútuas dentro da estrutura social; e o tempo ecológico, das relações com o meio ambiente. O tempo estrutural parece-nos progressivo, à primeira vista, sugerindo linearidade para o indivíduo, mas pode ser ilusão. O tempo ecológico parece ser, realmente, cíclico, no sentido helicoidal. Cada passo se não retoma aspectos semelhantes a situações anteriores, pelo menos, encontra-se no mesmo alinhamento paralelo ao eixo 3 . Consideramos ambas as categorias, tempo estrutural e tempo ecológico, contidas no tempo histórico, que é o tempo vivido pela humanidade atual. A humanidade atual é descrita no mito como aquela criada pelos gêmeos astrais antropomorfos Sol e Lua para combater animais também antropomorfos liderados pela Onça. A ele se opõe o tempo mítico, que Eduardo Batalha Viveiros de Castro4 classifica como um espaço localizável na duração. Liga-se ao presente, através de uma relação, à semelhança daquela entre arquétipo e atualidade. O tempo mítico interpreta o tempo histórico. Nessas condições o altoxinguano traduz o mito por discurso (produz o verbo) e o realiza no ritual (pratica a ação). Supomos que a grande maioria dos conceitos de espaço e tempo seja determinada pelo ambiente físico. A noção quantitativa de tempo baseada nas mudanças e nas constantes respostas do altoxinguano, a R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 47 Hamilton Botelho Malhano elas, limita-se a um ciclo anual. Não deve e não pode ser empregada para diferenciar períodos mais longos que, por exemplo, as estações do ano. Este ciclo ecológico de um ano se configura, grosso modo, na região dos formadores do rio Xingu, em duas estações: chuva e estiagem. Entretanto, como veremos adiante, existem nuanças que devem ser levadas em conta. As limitações ecológicas e outras limitações influenciam as relações sociais entre os altoxinguanos. O valor atribuído às relações ecológicas é fundamental para entender este sistema social inserido no interior do sistema ecológico. Resumindo, nosso objetivo é olhar, do presente, o desempenho deste modelo altoxinguano de articulação das esferas natureza e cultura nas dimensões espaço-tempo. Contextualização Frans Boas5 enfatizou uma relação existente entre língua e cultura: analisou o léxico de duas línguas e revelou as distinções estabelecidas por pessoas de culturas diferentes. Desde então as análises do léxico têm sido associadas aos estudos das chamadas culturas arcaicas. Ocorrem freqüentes estudos das concepções do tempo e da história através das configurações da linguagem. Alguns autores insistem, inclusive, na “aderência” de tais concepções às respectivas configurações. A maneira como o altoxinguano sente as condições e exigências de sua vida diária é revelada na maneira de falar. É revelada na linguagem verbal e na gestual, bem como nas formas de comportamento. Paul Ricoeur6 entende a diversidade das culturas proveniente das diversidades das linguagens, num sentido mais amplo. Talvez mais profundo que a simples diversidade de vocábulos e sintaxes. Mais até que a própria diversidade literária das formas de discurso formal. Edward T. Hall7 supõe que a arte de outras culturas, particularmente aquelas que diferem da nossa, ofereça informações significativas sobre os mundos perceptivos de ambas. 48 R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos Provavelmente foi este o caminho de Frans Boas, ao utilizar-se do léxico de ambas as culturas para efetuar sua análise. Na verdade dissecamos a natureza segundo a orientação classificatória oferecida por nossa língua. As categorias e os tipos isolados de fenômenos não existem na natureza. O mundo nos é apresentado como se fosse uma sucessão de imagens e impressões que devem ser organizadas pela nossa mente. Grande parte delas é expressa através de sistemas lingüísticos. Subdividimos a natureza para organizá-la em conceitos. Atribuímos significado às coisas devido ao fato de participarmos de um consenso para assim agirmos. Tal consenso, como atesta Eduardo B. V. de Castro8 , encontra-se embutido no processo de socialização. Tal verificamos entre os índios altoxinguanos. É praticado por todos os grupos étnicos de línguas Tupi, Karib e Aruak, faladas na região. Não pudemos, no entanto, observar entre os Trumai, devido à reduzida população falante desta língua isolada. Notamos que os termos de tal acordo sugerem consenso. As falas dos integrantes dos referidos grupos legitima a organização dos dados que o citado acordo determina. Parece ser, também, coercitivo. Várias culturas têm concepções implícitas e/ou explícitas do tempo, ligadas a um surgimento da palavra (ou do verbo). Tal situação cria, em benefício de um evento de discurso fundador, um conjunto das experiências, dos comportamentos e das interpretações. Este conjunto constitui a experiência de vida, própria e característica dessa cultura. Se a linguagem diversifica as concepções é, fundamentalmente, nesse sentido que tais concepções são singularizadas pelo evento do discurso que as fundamenta. As coisas ditas são aquelas que se inserem no mito. Uma singularidade é, portanto, uma diversidade. Desta forma, um novo gênero se revela. Tal singularidade parece resultar da maneira como a dimensão histórica ocorreu na linguagem. Ocorre ser essencial captar o sentido que nos levam os informantes a atribuir durante a exegese de uma narrativa. R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 49 Hamilton Botelho Malhano O mito da criação, por exemplo, inclui dois nascimentos que são o do espaço, cosmos e o do tempo, cronos. A noção da criação também concentra em si todos os problemas de espaço e tempo. Desta maneira todos os assuntos são resolvidos de uma só vez. No entanto, temos observado que grande parte das expressões lingüísticas designativas de tempo entre os altoxinguanos são seguidas de gestual carcterístico, pleno de significado adicional, indicativo da situação específica. Tal ocorre, sistematicamente, com relação às horas do dia. Para o altoxinguano o dia possui a qualidade dos acontecimentos que nele se enquadram. A ordem temporal e a ordem moral se encontram bastante unidas. O mito surge como mensagem e modelo didáticos para prevenir contra aquilo que é considerado desmedido. Medo e respeito, se ligam, em parte, à ordem temporal da vida humana. Medo e respeito são aspectos básicos da noção de justiça. Entendemos por justiça, a ordem das relações humanas ou a conduta de quem se adapta a esta ordem. Tempo é um aspecto da ordenação moral do universo. A ruptura da ordem temporal da vida humana pode acarretar consequências tendenciosas e assumir caráter de catástrofe. Entretanto, entre os altoxinguanos, tais ações se esclarecem de maneira satisfatória e se estabelece o equilíbrio moral9 Bruna Franchetto e Márcio d’Olne Campos1 0 comentam alguns aspectos da caracterização de determinados relógios naturais feita pelos índios Kuikúro1 1 em um processo de integração e complementaridade entre os relógios celestes e terrestres por eles adotados. Justificam a importância na percepção de sua presença na vida diária do assentamento em questão, nos fenômenos estacionais ligados à pesca e à agricultura, assim como nos rituais e na mitologia. A relação do homem com o meio ambiente através dos fenômenos cíclicos tem presente a curiosidade da compreensão. Presente também está a necessidade de tê-los como reguladores temporais das diversas atividades 50 R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos ligadas a determinados hábitos cotidianos, à economia e aos rituais. Tais reguladores são os referidos relógios naturais. Configuram-se, em geral, através de suas representações espaciais. São manifestações mediadas pelos movimentos dos astros, pelos acidentes geográficos, pelos aspectos arquitetônicos, pelos esquemas e pela percepção das trocas que ocorrem no meio ambiente que envolve o observador. Lógica, origem e evolução de espaço-tempo: A cosmogonia altoxinguana é acompanhada de uma espécie de teologia. Entendemos por teologia um estudo das questões referentes ao(s) herói(s) mítico(s) - ao demiurgo, no caso altoxinguano -, de seus atributos e relações com o mundo e com os homens à luz (verdade) da crença. A explicação da origem do mundo chama atenção para a reciprocidade de duas forças: matéria e energia; forma e conteúdo. Num princípio, o tempo se pôs em movimento. Daí em diante a história prossegue sem opor resistência. O evento que libera os caminhos se prolonga e se espelha nas narrativas que relatam a vida de seres cuja tarefa especial consiste em manter esse caminho aberto. Entretanto o tempo histórico não é objeto de elaboração entre os altoxinguanos. Organizam-no através de eventos significativos. Não percebemos marcas relevantes de um tempo histórico coletivo. Confirmamos que os eventos comemorados em algumas cerimônias referemse a ocorrências dentro do tempo mítico. Outras vezes são lembrados por intermédio de nomes próprios de assentamentos, lugares ou acidentes geográficos, isto é, do espaço real-atual, que é superposto ao espaço mítico. As origens dos povos altoxinguanos foram reproduzidas em textos por Harald Schultz, por Pedro Agostinho e pelos irmãos VillasBoas1 2. Outros estudiosos recolheram passagens e relatos, no entanto descontínuos. R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 51 Hamilton Botelho Malhano Nessas condições obtivemos algumas informações, as quais complementamos com dados que coletamos entre 1978 e 1991, quando lá estivemos, por algumas vezes. Assim, efetuamos uma síntese do mito, a seguir: No começo só existia animal noturno e vegetais. Era noite e tudo era escuro e cheirava a podridão. Os animais voadores defecavam sobre os terrestres e aquáticos. Passeando pela noite Morcego viu a filha de Jatobá reclusa em sua casa. Entrou subrepticiamente e possuiu-a. Partiu em seguida, deixando-a grávida. Jatobá precisou organizar festa e convidar Paus e Bichos para descobrir o pai de seu neto, o Ancestral dos atuais altoxinguanos. A esse tempo a terra era vermelha e não prestava para cultura. Foi Ancestral quem a cobriu parcialmente com terra preta, permitindo a Bichos e Paus abrirem roças. Até o Morená, local escolhido por Ancestral para edificar sua aldeia, foi por ele modificado Adulto, Ancestral copulou algumas vezes com um ninho de cupim e engendrou duas filhas. Como se fossem esculturas, libertou-as da matéria original através de golpes de machado de pedra. Em seguida mandou-as para casa trabalhar. De outra feita, Ancestral copulou com uma concha bivalve e ela gerou um filho. Ancestral levou para sua casa no Morená. Ancestral vivia a praticar o ato da criação com toda a matéria que encontrava no escuro. Seu processo favorito era a cópula. Certa vez, procurando imbira para fazer corda de arco, penetrou o território de Onça. Esta exigiu em troca do produto da coleta, as filhas de Ancestral por esposas. Como as moças se recusassem, Ancestral cortou oito toras de Paus diferentes. Duas delas eram da madeira humiria balsamnifera variegata floribunda /Martius/ 1 3. Através de cópula e/ou pajelança transformou as oito toras em moças, cada par representando uma etilnia diferente, cada par falando língua diferente, corespondentes às quatro línguas faladas no Alto Xingu: Tupi, Aruak, Karib, Trumai. 52 R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos Indagadas a respeiro de suas vontades em se tornarem esposas de Onça, cinco delas aceitaram. Dentre elas estavam as duas originárias da madeira supra referida. Elas saíram do Morená e se dirigiram para as cabeceiras dos formadores do rio Xingu, território onde se localizava o estabelecimento do grupo local de Onça. Durante o percurso, as moças praticaram algumas feitiçarias e encantamentos, punindo a uns tantos Bichos e Paus encontrados pelo caminho, e premiando a outros. Resultou que apenas duas moças chegaram ao destino. As duas mais fortes, aquelas originárias da referida madeira especial. Após esclarecerem-se os desecontros iniciais, por desconhecerem o pretendido, as moças finalmente se casaram com Onça. Passado algum tempo, a mais velha, originária da base do tronco, engravidou. Entretanto, a sogra, mãe de Onça, por ciúmes, matou-a. Onça tentou revivê-la em vão. Com auxílio de Insetos, descobriu que a gravidez era de gêmeos, e conseguiu salvá-los. Após algumas tentativas os gêmeos revelaram ser meninos e aceitaram chamar-se, respectivamente, Sol, o “mais velho”, e Lua, o ”mais novo”. Buscando descanso, os gêmeos foram até o Morená, visitar o avô Ancestral. Este os aconselhou a organizar uma festa para comemorar o ano que passou após a morte da mãe. Deviam retornar à aldeia de Onça, onde a mãe estava enterrada, para realizar um tal Kwarìp. Ao final, retornariam ao Morená. Desentendimentos familiares levaram os gêmeos astrais a criar um exército de humanóides para se defenderem dos comparsas de Onça, instigados pelas intrigas da avó,mãe de Onça. Nessa ocasião procederam à separação definitiva entre seres humanos, animais (Bichos) e vegetais (Paus). Preocupados com a desolação da gente que morria de fome na terra escura, Sol e Lua1 usaram de artimanha para roubar a luz do Uruburei, chefe dos pássaros que viviam na aldeia do céu. Urubu-rei não revidou, pelo contrário, ensinou como usufruir da alternância claro-escuro. Exigiu, em R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 53 Hamilton Botelho Malhano troca, apenas, as carcaças dos animais grandes que Sol e Lua matassem. Que ficassem expostos em locais visíveis e de fácil acesso para ele e seu grupo l;ocal se banquetearem. Sol e Lua criaram, assim, o tempo no sentido de duração, alternando dias e noites. O mito faz referência a cinco gerações de ancestrais, quais sejam: Jatobá (fitomorfo), filha de Jatobá (fitomorfo) e Morcego (zoomorfo), gerando Ancestral; Ancestral (zoo-fitomorfo, uma espécie quase humana, embora diferente dos humanoides atuais, que tinha equilibrados os gens vegetais e animais) e Árvore de Kwarìp (fitomorfo), gerando as Primeiras Matrizes Geradoras de Humanos; Primeiras matrizes Geradoras de Humanos (zoo-fitomorfo, com predominância de gens vegetais sobre gens animais) e Onça (zoomorfo), gerando Sol e Lua (gêmeos astrais, novamente zoofitomorfos com equilíbrio de gens, em tudo semelhantes aos humanos atuais. Na realidade, além de suas formas primitivas, eram todos antropomorfos. A questão de assumir forma semelhante aos humanos é vista, entre os altoxinguanos, como uma temporalidade na qual todos desfrutavam de uma vivência comum, gente, pau e bicho, natureza e cultura. Somente após a vinda dos gêmeos astrais o mundo foi povoado com a humanidade atual. Esta surgiu com o propósito de uma luta para defender Sol e Lua dos ataques excessivos liderados pelo ancestral Onça. Apesar disso, as referências mais constantes são limitadas a três gerações: Sol e Lua; Primeiras Matrizes Geradoras de Humanos; Ancestral. Da mesma forma ocorre entre humanos atuais. As genealogias terminam, quase sempre, na terceira geração ascendente. Os nomes se repetem em gerações alternadas. Utilizam-se os altoxinguanos de um termo genérico designativo de categoria ancestral acima de três gerações: avô-grande, avôancestral, avô-sobrenatural ou avô-fora-do-mundo. Sol e Lua costumavam visitar vários assentamentos de pessoal amigo. Saíam do Morená para furar orelha nas aldeias, para participar de 54 R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos tantas outras festas e até mesmo por interesses próprios. Vezes ocorriam em que subiam ao céu e outras vezes desciam. Entretanto não foi possível confirmar em que circunstâncias os gêmeos permaneceram definitivamente no céu. Estas parecem ser atividades características de uma fase heróica, na qual, eventualmente, é possível distinguir grupos locais e seus heróis étnicos. Temos informações de que os gêmeos astrais ancestrais antropomorfos Sol e Lua não são os mesmos sol e lua, astros que iluminam a Terra. Ocorre que o astro sol, símbolo do fogo e da luz fortes, é representado pelo diadema de penas de tucano, recebeu o nome do gêmeo Sol, enquanto o astro lua, símbolo do fogo e da luz frios, é representado mpelo diadema de penas de gavião real, recebeu o nome do gêmeo Lua. Suas respectivas posições no firmamento são resultado da necessidade de alternância entre luz e sombra, promovida pelos próprios gêmeos. Outras informações dizem respeito à formação de algumas constelações e parte da Via Láctea. Lamentavelmente não podemos dizer como surgiram todas as estrelas, apenas algumas, ou como e porque foram estabelecidas suas respectivas posições no firmamento. Parece que cada estrela teve uma origem diferente. Sabemos que para identificar uma constelação os altoxinguanos não lançam mão apenas das estrelas, mas o grande componente é o espaço vazio delas. Sabemos também que os grupos de estrelas visíveis que constituem as constelações identificadas pelos altoxinguanos não coincidem com os grupos identificados pela cultura ocidental dominante. Assim, a constelação Orion é para eles cosntelação Pato, e as Plêiades compõem a Siriema que anuncia o Falcão dono do peixe na beira do rio1 4 . Entretanto uma única estrela é chamada Gaviãozinho, e duas outras Onça caçando Veado. Nestes dois múltimos casos, as estrelas são os olhos dos animais. Parece que Onça é vista de frente, e Gaviãozinho, de perfil. No caso de Onça, as estrelas são Alfa e Beta Centauro1 5. R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 55 Hamilton Botelho Malhano No mundo onde nascem heróis nascem também anti-heróis que, na realidade, têm o mesmo peso. Há sempre um problema de pluralidade divina que multiplica os espaços criados em vez de reduzí-los. Aliás, fazer crescer a Terra para caber os seres resultantes de suas criações foi um dos trabalhos executados por Ancestral antes de produzir as Primeiras Matrizes Geradoras de Humanos. A grande questão no mundo altoxinguano parece ser a do ser. Os permeios ou dobras do espaço-tempo difundem esse problema através da história. A noção de criação tem o ser como um dado. Se ocorre que o caos ou o nada se sujeitou a alguma coisa, esta coisa se sujeitará ao todo. Novamente temos três gerações, ou três etapas. A questão, aquí, já não é mais do ser, mas de ser e do devir do ser. O problema do Kwarìp surgiu duas vezes. A primeira quando Ancestral criou as Primeiras Matrizes Geradoras de Humanos. A segunda quando uma das Matrizes foi homenageada após sua morte. Surgiria uma terceira vez, quando a humanidade começou a morrer e Ancestral, penalizado, tentou ensinar aos homens praticar a resurreição. Praticou-a a partir de troncos semelhantes aos usados na geração das Primeiras Matrizes. A tentativa fracassou diante de um ato de procriação. Um dos interessados havia copulado com sua mulher durante os primeiros sinais de sucesso, competindo com a pajelança e desviando a energia da ressurreição para a procriação. Resultou o evento em completo fracasso, retornando os quase ressurectos para seu caminho espiritual, enquanto a matéria voltou a ser tronco de Kwarìp. Entendemos que existe um caminho aberto para poder ou não efetivar a ressurreição. Tal sentido parece refletir na ética e na estrutura da aliança entre o demiurgo (Ancestral) e os homens. A significação é de parte a parte histórica e não-espacial. A grande narrativa mítica dos primórdios altoxinguanos interpreta no próprio cerne de sua existência histórica. 56 R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos O lugar e a lógica, origem e evolução do espaço Arte e técnica estão, indissoluvelmente, ligados entre si. Na opinião de Pierre Francastel1 7, todo objetivo comporta, necessariamente, aspectos práticos e aspectos estéticos. As artes, grosso modo, resultam do manuseio dos materiais. Existe, para o autor, um período de adaptação do homem à matéria, a cada intervenção que exerce sobre ela. Tal adaptação depende tanto da estética quanto da finalidade a que se destina a obra. A casa do índio, por exemplo, tal qual o cesto cargueiro, é feita para ter um uso específico. Não existe determinismo absoluto entre a necessidade que faz o indivíduo construir a casa ou confeccionar o cesto, ou a forma particular que tais obras assumem. Entretanto, a forma pura, o tipo ideal, só existe em nível de abstração. Concluímos, então, pela intervenção de um outro elemento na definição do modelo de ambos os objetos. Obviamente, além da praticidade e/ou da anatomia. A intensidade de tal elemento intervencional atuaria com maior determinação a nível coletivo (social) que pessoal (individual). Este outro elemento é modo de produção e modo de ação produtiva do índio. É fenômeno social e cultural, foco de valores ideológicos, éticos, sociais e políticos. Estás relacionado com a totalidade da existência. Mantém íntimas ligações com o processo histórico e, no entanto, possui sua própria história1 8. Essa história própria é, entre os altoxinguanos, orientada por tendências nascidas no mito supra descrito. Tais tendências correspondem a espírito e forma definidos segundo esses modelos. Estudar a arte altoxinguana implica apreendê-la em seu contexto geográfico, histórico e sócio-cultural. A arte é o próprio contexto cultural altoxinguano, porque exerce autonomia enquanto forma estética de apreensão e cognição do universo. Dois aspectos importantes da experiência estética altoxinguana foram ressaltados por Eduardo Viveiros de Castro 1 9, em função de seu trabalho: arquétipo, o mundo objetivo das representações; e atualidade, R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 57 Hamilton Botelho Malhano o mundo subjetivo dessas representações. Em outras palavras, o mundo objetivo é o mundo dos modelos, e o mundo subjetivo, o das reproduções. A relação que o altoxinguano estabelece entre os dois aspectos, é a mesma existente entre o mundo mítico do passado e o mundo concreto do presente. É uma relação de arquétipo e atualidade. Os seres da criação tornaram-se categorias. A ação dos homens reproduz a ação dos modelos. O mito não existe apenas como referência espacio-temporal. O mito existe, principalmente, como referência comportamental. Essa relação é privilegiada no momento atual. As cerimonias atualizam-na. A estética altoxinguana é constituída por categorias classificatórias. As categorias classificatórias são construídas pela anexação de certos modificadores lingüísticos a um conceito base. Logo, a estética altoxinguana se manifesta, na linguagem, através da anexação dos referidos modificadores lingüísticos a um termo correspondente a um conceito básico. O papel fundamental desempenhado por esses modificadores, na função classificatória, é um dos traços mais evidentes das línguas faladas na região. Consideramos relevante a utilidade de uma interpretação do sentido geral dos modificadores. A existência de tal aspecto estrutural em todas as línguas altoxinguanas é um recurso classificatório que nos permite avaliar as diretrizes do pensamento estético e do pensamento ético altoxinguanos. O exame de alguns indicadores entre os grupos Tupi, Karib e Aruak nos leva a perceber a difusão de um certo esquema classificatório, com variações específicas para cada língua. A especificidade o esquema possui certa autonomia, indicando recorrência a uma cultura comum na região. Classificando um fenômeno, o altoxinguano procede a distinções decisivas de grau e, até, de natureza. As línguas altoxinguanas possuem um repertório limitado de conceitos, tipos ideais classificatórios. A adequação de cada referente só é possível através dos modificadores, os quais estabelecem a distância ou a diferença entre o tipo ideal, o modelo mítico, e o fenômeno atual, que pode ser verdadeiro, uma réplica do modelo ou ainda uma manifestação 58 R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos imprestável. Para simplificar o entendimento, escolhemos as seguintes línguas: Kamayurá (Tupi), Kuikuru (Karib) e Yawalapíti (Aruak). A categoria tipo ideal / modelo mítico abrange todas as noções fora da realidade, inclusive superlativos: Kamayurá aruiyap Kuikuru kwérì Yawalapíti kumã Os fenômenos atuais verdadeiros são em tudo semelhantes aos modelos ideais: Kamayurá ité Kuikuru ekuru Yawalapíti ruru As réplicas dos modelos são menos complexas porque incompletas em seus detalhes: Kamayurá awawite Kuikuru hugo Yawalapíti mina As manifestações imprestáveis surgem como arremêdos desprovidos de quaisquer qualidades: Kamayurá n-ité Kuikuru hìgì R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 Yawalapíti malu 59 Hamilton Botelho Malhano Ocorrem especificidades lingüísticas tais como em Kamayurá, em lugar de dizer apenas ité (verdadeiro), dizer ikatu-ité (muito verdadeiro), ou, em vez de dizer apenas n-ité (imprestável, não verdadeiro), dizer n-ikatu-ité (muito imprestável, muito não verdadeiro). Em Yawalapíti podemos ouvir tyumã em lugar de kumã, conforme o termo representante do conceito básico; ambos têm o mesmo significado. O termo representante do conceito básico de casa é: Kamayurá Yawalapíti hók Kuikur u ìné pá Dessa maneira, a classificação estética de casa varia da seguinte maneira: Kamayurá Kuikuru Yawalapíti hók-aruiyap ìné-kwerì pá-kumã hók-ikatu-ité iné-ekureu pá-ruru hók-awaw-ité iné-huge pá-mina hók-n-ikatu-ité iné-hìgì pá-malu As palavras da primeira linha significam casa ideal, casa grande, descomual, casa ancestral, casa sobrenatural ou casa fora-do-mundo. As palavras da segunda linha significam casa verdadeira, casa igual àquela ideal. As palavras da terceira linha, casa parecida com a casa ideal, imitação de casa. As da quarta linha, casa mal-feita, casa estragada, arremêdo de casa. Assim é classificado todo objeto conhecido dos altoxinguanos. Nada escapa, nem mesmo as coisas vivas. Gaston Bachelard2 0 afirma que a imagem ativa dos homens se enriquece de novas imagens, a ponto de transformar-se em 60 R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos um novo ser da nossa linguagem. É a um só tempo devir de expressão e devir do nosso ser. Ao imaginar sua casa o homem dirige seu pensamento para as imagens da casa ideal. Simultaneamente tais imagens estão dispersas e articuladas à semelhança de um caleidoscópio. Reunindo-se os fragmentos conforma-se um corpo de imagens que são seu canto do mundo, seu primeiro universo: um verdadeiro cosmos. Entre os altoxinguanos tais imagens são características de sua organização social fundada nas relações de parentesco. Estas são a base do sistema econômico nativo. Este sistema, sedimentado na organização familial instalada no grupo local, realiza-se na casa que ele imagina, constrói e habita. Imagina a casa ideal e constrói a casa verdadeira, em tudo semelhante à primeira, porém, atual. A casa sobrenatural, descrita no mito, era antropomorfa e antropofágica. Protegia seu grupo doméstico contra inimigos, os quais devorava, caso a penetrassem. Quando necessário, deslocava-se com todos os seus ocupantes. A casa verdadeira é, em tudo, reprodução da casa sobrenatural. Guarda, sobretudo, o aspecto antropomorfo, em detrimento do aspecto antropofágico. Trata-se de uma casa atual, não mais um arquétipo. A casa verdadeira está orientada segundo os pontos cardeais. A cumeeira coincide com o eixo norte-sul. Este é o sentido dos leitos dos rios formadores da bacia do rio Xingu. Todas as águas na região correm de sul para norte. As portas da casa - uma frontal que dá para o centro do assentamento2 1, e outra costal, que dá para a periferia do assentamento alinham-se segundo um eixo perpendicular ao eixo norte-sul. A porta anterior deve permitir a penetração do sol nascente no interior da habitação. Eduardo Viveiros de Castro2 2 considera esta orientação as coordenadas básicas de classificação mais ampla da região. São extraídas aos eventos mitológicos. O espaço mítico, na realidade, se superpõe ao espaço físico-geográfico. A casa é a redução deste espaço às dimensões humanas. A categoria humano é definida com relação à humanidade atual altoxinguana. Conforme características descritas no mito. R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 61 Hamilton Botelho Malhano O extremo norte da região, próximo à confluência dos rios Kuluene-Ronuro, encontra-se o Morená. Os altoxinguanos localizam neste sítio o assentamento de Ancestral. Ancestral foi o criador das Primeiras Matrizes Geradoras de Humanos. O extremo sul compreende as nascentes dos rios formadores da bacia hidrográfica regional. Os altoxinguanos situam lá o assentamento de Onça. Onça é ancestral zoomorfo fecundador da Primeira Matriz Geradora de Humanos. Lá ocorreu o evento que marcou decisivamente a condição humana. Constou da morte irreversível da Primeira Matriz Geradora de Humanos, mãe dos ancestrais gêmeos astrais Sol e Lua. Seguiu-se o estabelecimento da festa característica dos mortos, o Kwarìp. Por fim, a separação definitiva entre humanos, animais e vegetais. O movimento norte-sul/sul-norte foi efetuado por entidades em vários momentos mitológicos. Esta direção reproduz também o movimento migratório dos primeiros altoxinguanos. (Fig. 1) Acrescentamos que norte-sul é a orientação preferencial do eixo maior da elípse base da planta. Coincide com a cumeeira. O sol nascente deve penetrar através da porta que dá acesso ao centro do assentamento do grupo local. Deve iluminar o centro da casa, que corresponde ao cruzamento dos eixos maior e menor da elípse, base da planta baixa. (Fig. 2) Os esteios centrais e principais da casa indicam os respectivos centros dos assentamentos de Ancestral e de Onça. O esteio situado ao lado esquerdo de quem olha para o centro do assentamento do grupo local indica que este é o local do assentamento do grupo social de Ancestral. Estão situados ao norte da construção. É este o lado que deve ser ocupado pelo dono da casa. O esteio situado do lado oposto, isto é, ao lado direito de quem olha para o centro do assentamento do grupo local indica o local do assentamento do grupo social de Onça. Está situada ao sul da construção. Neste lado ficam os parentes afins do dono da casa. São eles cunhados, 62 R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos genros, sogros do filho, etc. Casos muito especiais incluem o filho mais velho com sua família. (Fig. 3) O assentamento altoxinguana é visto como uma cratera, uma superfície côncava. O ponto mais baixo coincide com o centro do assentamento. É fundo e tem água. Na medida em que o raio de curvatura aumenta, a superfície vai subindo de nível. É provável que a circunferência de maior raio seja aquela situada onde a terra encontra o céu. O céu é uma abóbada de concavidade invertida em relação à da terra. As dimensões são simétricas. Neste caso, as maiores circunferências de ambas as concavidades são coindentes. A situação não implica que ambas as calotas conformem uma esfera perfeita. (Fig. 4) Terra, água e céu são espaços bem marcados na classificação desses índios. Elas definem as linhas diretrizes da classificação animal altoxinguana e recebem atribuição de valores cosmológicos distintos. O esquema altoxinguano da dimensão vertical alinha água, terra e céu. As posições são invertidas no assentamento dos mortos, na medida em que este é antípoda ao assentamento dos vivos. O assentamento dos mortos é iluminado pelo sol quando afunda, a oeste do assentamento dos vivos. (Fig. 5) Quanto à latitude do assentamento, sabemos que o sol, em seu movimento anual, percorre o horizonte entre os dois solstícios, de inverno e de verão, em ângulo de 48o, medidos do centro do assentamento, e simétricos com relação ao eixo leste-oeste. O nascente e o poente se apresentam mais ao norte, no solstício de inverno, e, mais ao sul, no solstício de verão. Ao observarmos tal fato, em 1978, calculamos, a olho nu, uma diferença que compunha um ângulo de 45o , entre a orientação leste-oeste da casa-das-lautas, e a orientação leste-oeste da casa principal, a verdadeira. Observamos nos assentamentos Yawalapíti e Mehináku, Aruak, e Kalapalo, Karib. Era inverno, e supomos que as respectivas casas principais, estivessem orientadas segundo o solstício R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 63 Hamilton Botelho Malhano de verão, enquanto as respectivas casas-das-flautas seguiam o solstício de inverno. Estas últimas tinham o sol nascente em seus interiores, através das respectivas portas, por trás dos tradicionais bancos masculinos e dos túmulos centrais. Os altoxinguanos parecem ter incorporado tal conhecimento à arquitetura do assentamento, isto é, à urbanização. Demonstram-no neste alinhamento dos elementos centrais: casa-das-flautas, banco masculino, túmulo central e local da luta marcial. Para eles, tal incorporação possibilita o funcionamento de uma espécie de relógio solar, no qual a casa-das-flautas funciona como abrigo contra os raios solares, ao projetar sua sombra sobre a praça central do assentamento. Por volta das três horas da tarde, a praça do assentamento está ensolarada. Inicia-se o ritual da luta marcial. Quando a sombra da casa-das-flautas passa por sobre o banco masculino e o túmulo central, atingindo os lutadores, termina o ritual. (Fig. 6) Retomemos Gaston Bachelard2 3, para examinar uma realidade apresentada ao pensamento. Isto significa interpretá-la. Implica em examinar e definir natureza, origem e funcionamento desta realidade, agora, também, presente no pensamento. A partir do momento em que o índio apresenta ao mundo um universo ou uma noção invisível, este mundo começa a existir socialmente. Mesmo que não corresponda a nenhuma manifestação existente na realidade representada. A partir destas representações, o pensamento serve-lhe de armadura interna, sob a forma de regras de conduta, de princípios de ação, de permissões, ou de interdições. São várias as finalidades, algumas abstratas. Neste sentido as representações da realidade se caracterizam por interpretações que legitimam as relações dos homens entre si e com a natureza. A casa altoxinguana revela o modo como o índio emprega seus sentidos e comunica suas percepções ao observador. Lida com níveis relativos de abstração. A produção, no conjunto, depende do acervo cultural nele inserido. Retrata a visão de mundo traduzida a outros significados. O mecanismo consiste em fornecer indicadores adequadamente selecionados em relação aos eventos nela representados, bem como em 64 R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos relação à linguagem visual e à cultura como um todo. Uma das principais funções da casa altoxinguana é ajudar a ordenar e a preservar a ordenação do universo cultural. Incluímos nesse universo as relações do índio com a natureza e a organização dos seus sistemas simbólicos e espectativas. O índio projeta aí seu mundo visual por intermédio de uma visão ativa e aguçada. Tal visão representa a relação do homem com o meio ambiente da qual todos participam. O lugar e a lógica, origem e evolução do tempo Os altoxinguanos contam o dia desde o momento em que o sol entra no assentamento, até o momento em que o sol afunda ao longe. Em seguida, anoitece. O dia é mais discriminado que a noite. A noite é associada ao caos. Antes não havia dia. A noite existia antes do dia. As aves defecavam sobre tudo e sobre todos os seres terrestres e aquáticos. Sol e Lua trouxeram a luz roubada ao Urubu-rei, chefe do assentamento dos pássaros, em algum lugar no céu. Urubu-rei usava a luz sobre a cabeça, quando queria iluminar o caminho para procurar alimento. O dia no Alto-Xingu é, como em qualquer lugar da Terra, dividido em etapas. As etapas têm como referencial a jornada aparente do sol. Cada momento do dia é indicado pelo ângulo de distância entre o sol e o horizonte, tendo como vértice-de-mira, o observador. Este ângulo é resultante do gesto de estender o braço – a mão com os dedos unidos e o polegar fechando na palma – na direção do sol. Todo gesto indicativo de hora, isto é, da posição do sol, é seguido da expressão quando o sol estiver assim. Mesmo que a idéia da divisão do tempo seja feita pela rotação do braço estirado, assinalando a direção do sol, do nascente ao poente, tal constatação não nos permite deduzir a existência da idéia de circularidade completa, que inclua a noite, já que o sol, simplesmente, vem de algum lugar e vai para outra parte. Entretanto, quando o sol afunda, se dirige para o assentamento dos mortos, em posição antípoda à nossa. No momento em que ele sai de nossa presença, entra em presença dos R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 65 Hamilton Botelho Malhano mortos. Da mesma forma, quando sai do assentamento dos mortos, entra no ambiente dos vivos. Desta maneira estaria completa a idéia de circularidade, na qual é possível incluir a noite. Analogamente, aquele que, no ambiente dos vivos, se dirige para o assentamento dos mortos, deve caminhar na direção do poente, seguindo a trilha do sol. Quem se dirige para o assentamento dos heróis e ancestrais, no céu, caminha na direção oposta, isto é, de encontro ao nascente. Antes deverá enfrentar-se com os pássaros do asentamento de Urubu-rei, intermediário entre o dos vivos e mortais e o dos imortalizados. Os altoxinguanos distinguem uma noção de tempo com sentido de duração, e outra com sentido de período. O sentido primeiro se refere a ontem e amanhã. O segundo é designativo de temporada, de chuva ou de festa. A noção de duração nos parece dominante, e pode indicar fases de transição sazonal. Determinados momentos do dia são designados pelas atividades particulares ou coletivas. As denominações mais corriqueiras são expressões lingüísticas compostas da palavra sol, um significado temporal e um designativo demonstrativo. Algumas delas, para nascer e pôr do sol, foram supra citadas. Por outro lado, o amanhecer é marcado pela coleta de água, pelo banho e pela ida para as roças. O período matinal, até por volta do almoço, é indicado pela permanência nas roças. O retorno é complementado com banho e pesca ou caça de alimento para a segunda refeição do dia. Em seguida, todos comem e descansam, alguns minutos, para, novamente, tomar banho. O período compreendido entre o retornar da roça, até por volta de três horas da tarde, é ocupado com alimentação, sesta e artesanato. É o tempo dedicado à família. É comum retornarem às roças, quando a colheita se faz urgente. Muitas vezes pescam e/ou caçam para o jantar. Enquanto isso, as mulheres processam a mandioca, à volta da casa, sob jiraus de secar os pães de polvilho. O entardecer é marcado pelo encerramento das atividades produtivas. Mulheres fervem caldo de mandioca espremida durante o dia, preparando mingau, outras fiam algodão e/ou tecem redes, etc. Homens tecem cestos ou reparam 66 R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos a plumária. A última fase do dia é quando o sol afunda. É hora de trazer lenha para os fogos noturnos, as mulheres se pintam em frente das casas, e os rapazes na casa-das-flautas cerimoniais, no centro do assentamento. Os homens casados também se dirigem para lá, para fumar e atualizar a jornada. É hora da solidariedade masculina. Conversam e fumam até o sol afundar na direção do assentamento dos mortos. Este grupo é constituído, na maioria, de pajé e herbolário ou raizeiro. São as últimas atividades do dia. A noite se faz incógnita. O som das flautas atravessa a noite, enquanto mulheres e crianças permanecem no interior das habitações. Os índios astribuem importância especial à segunda metade da noite, até o momento em que a constelacão Orion se encontrar invertida na calota celeste. Ocorre por volta das três horas da manhã. É hora de atiçar os fogos, pois é chegado o mais intenso frio noturno. Daí em diante é o novo, o alvorecer do novo dia, que determina a retomada do cotidiano. É a hora das mulheres, da solidariedade feminina. Opõe-se à reunião dos homens no centro do assentamento. Imediatamente após o retorno das mulheres, os rapazes se dirigem para o banho matinal. Durante todo o dia as unidades relevantes são constituídas pelos grupos domésticos, enquanto unidades de trabalho e cooperação. Durante a noite, a unidade é definida pelas famílias segmentais, ligadas, interinamente às habitações coletivas, pelos fogos junto às redes. Da mesma forma que o sol, a lua se apresenta diferentemente, conforme os intervalos de tempo transcorridos entre suas fases. Estas são conhecidas por lua de cara tapada, que corresponde à lua nova. Esconde a cara, como as moças que saem da reclusão. Estas têm as franjas dos cabelos tão compridas que cobrem grande parte do rosto, deixando aparecer, somente, a região da boca e do queixo. A parte visível corresponde à parte inferior do rosto da moça. A lua começa, diz respeito ao início do crescimento da lua, quando começa a destapar a cara para ficar cheia, grande e redonda. Esta última é a lua verdadeira, posto que em sua plenitude circular. Aliás, o círculo é a forma forte por excelência no Alto-Xingu. Ocorre uma designação de lua R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 67 Hamilton Botelho Malhano muito grande, que entendemos como qualificação da lua grande, determinada pela distância ou proximidade em que esta se encontra do assentamento. O quarto minguante é comparado à vista lateral de alguém que está sentado. É marcado pela curvatura da coluna vertebral. Por isso, é dito que a lua sentou. A observação da lua permite a contagem do mês lunar, tempo transcorrido entre duas fases, iguais e consecutivas. A repetição de fenômenos como as fases da lua ou as posições do sol, permitem perceber o aspecto da regularidade em grandes intervalos de tempo. Grandes o suficiente para percebermos certa compatibilidade com calendários de curto alcance. Exemplificamos com a contagem de anos, onde a expressão quatro estiagens surge como limite para que os conjuntos a partir de cinco elementos, em diante, signifiquem muito tempo. Nesse caso específico, notamos que fenômenos ocorridos a intervalos muito maiores que quatro estiagens, quer sejam ou não cíclicos, causam espécie, no mínimo, surpresa. Os períodos coincidentes com um ciclo completo de fases da lua delimita as estações. São denunciados pelo ritmo das chuvas, pelo fluxo e refluxo das águas dos rios e lagunas, pelo amadurecimento dos frutos, pela desova de peixes , araras, papagaios e periquitos, e das tatarugas tracajá. O tempo de chuvas se estende desde fins de outubro até fins de março. É também o tempo de se efetuarem as trocas cerimoniais entre as várias aldeias. Coincide com o tempo de roçar mato, logo após a colheita do pequi. É época e, que os homens estão nas roças e as mulheres organizam as festas femininas nos assentamentos2 5. A estiagem é anunciada pela vazante. O período vai de junho a julho. É tempo de muito frio, que só diminui com a derrubada de mato para as novas roças. As queimadas aquecem o ambiente, de agosto até setembro. Para descansar desta atividade, os índios colhem o que restou da mandioca plantada há seis meses, antes das chuvas. O céu é marcado pela ascensão da constelação Siriema, no horizonte, ao cair da tarde. É época de preparar o Kwarìp. A constelação Pato, surge no horizonte matutino, avisando da necessidade de estocar o polvilho, de 68 R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos preparar as pescarias, de treinar a luta. A cerimônia será realizada quando Orion estiver a 30a no horizonte. A 45o, descerá a água do pato, a pequena chuva seguida de pequena estiagem. Marca o fim desta água. Orion está no zênite, ao amanhecer. Daí em diante, o tempo é de chuva, que é marcado pela presença da constelação trabalhador. Marca, ainda, o começo do roçar e a entrada de jovens em reclusão. O lugar e a disjunção do espaço-tempo Observamos, em ocasião especial, o comportamento de alguns índios Yawalapíti, Waljrá e Mehináku, (Aruak), Kamaiurá, (Tupi), e Kuikuru, (Karib), diante da ocorrência de um evento celeste, até então, desconhecido por nós. A ocasião era especial, por três motivos, quais sejam: primeiro, retornávamos de uma semana de pescaria em benefício de uma festa de furação de orelha de alguns rapazes, no assentamento Yawalapíti. Segundo, estávamos em cinco canoas monóxilas de jatobá, remando rio Kuluene acima, entrando na boca do Tìwatìwarì, seu afluente pela margem esquerda. Este local é acidentado com algumas pedras que afloram de seu leito central. O rio Kuluene é rápido, caldaloso e barrento; o rio Tìwatìwarì é lento, menos volumoso e cristalino, a ponto de enxergarmos, ao fundo, seu leito de areia e sua população subaquática. Terceiro, pela própria ocorrência do inusitado evento celeste. Imaginamos o que poderia estar acontecendo, e, posteriormente, já em grande centro urbano, confirmamos tartar-se de uma colisão de asteróides. Ao se darem conta da grande explosão celeste, os índios, reagiram. Imediatamente, começaram a gritar e a bater com os remos na água, repetidas vezes, espirrando o líquido em grandes porções. A insistência provocou marolas no rio, e estas faziam oscilar as embarcações, levando umas a se chocarem contra outras. Enquanto isso, em meio ao grande clarão, fragmentos dos asteróides eram lançados a grandes distâncias, no espaço. Pareciam cair sobre a Terra. Enquanto isso, o pesquisador tentava acompanhar, extasiado, R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 69 Hamilton Botelho Malhano a explosão celeste, ao mesmo tempo em que, aparvalhado, tentava observar a encenação terrestre. Na realidade, perdemos parte do evento e parte da teatralização nativa. Tentávamos não ir à deriva, ou mesmo, naufragar, com cinco canoas, farnel, mochilas, peixes moqueados, beijus de polvilho de mandioca, máquina fotográfica, máquina S8, mulheres e crianças-depeito. Pensamos em tudo, exceto registrar os momentos através das lentes óticas. Apenas percebemos que os gritos eram exclamações que variavam de articulação vocal, sonoridade e intensidade. E que a cena na Terra, isto é, na água, parecia espelhar o evento celeste, um anulando o outro. Enquanto o céu se incendiava, parcialmente, os índios pareciam lançar água para apagá-lo. Alguns estudiosos têm observado que, certos eventos celestes, considerados anômalos, devam ser acompanhados de rituais. Tais rituais devem, de alguma maneira, refletir, na Terra, a natureza do fenômeno original. Porquanto, seria necessário manter uma relação translúcida, ou especular, entre Céu e Terra2 6. Os eclípses solares e lunares são vistos como sangramento do sol, relacionando, tal fato, às escarificações comuns entre os altoxinguanos. Outros autores, e aqui nos incluímos, preferem o termo menstruação do sol. De qualquer modo, trata-se de uma perda de sangue dos astros. Acreditamos haver uma associação entre sangramento e a colisão de asteróides, supra descrita. Neste caso, a água seria utilizada para laválo. Não são astros, mas são asteróides. Desconhecemos a existência de tais diferenças entre os índios do Alto-Xingu. Esta perturbação da periodicidade dia/noite, implica uma disjunção entre Céu e Terra, que ameaça o retorno da sociedade ao estado de caos, existente antes da conquista do dia, pelos gêmeos astrais. Os eclípses abrem uma brecha para o retorno ao Caos Inicial. Ameaçam a paralização da cultura como um todo. A reação vem na forma de primeiros socorros. Acendem-se fogueiras e atiram-se flechas incendiárias na direção dos astros, para reacendê-los. Principalmente o sol. A escuridão eterna, sinal de caos na Sociedade e na Natureza, pela ameaça dos maus espíritos, é combatida 70 R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos com fogo e vigília. Durante este período produzem muitos ruídos e desempenham curtas representações de toda a gama de cerimôniais característicos do ciclo do Kwarìp. Parece ser esta a maneira correta de provarem não terem esquecido os costumes ancestrais ensinados no mito. Os ensinamentos são armas de defesa, protetoras e reveladoras da condição humana, adquirida por hereditariedade genética. São signos culturais que se opõem, não à Natureza, mas ao Caos, ao Primordial; à ausência total do espaço-tempo. Durante o eclípse, poucos indivíduos se permitem ultrapassar o perímetro do assentamento. Os espíritos estão soltos e poderiam se aproveitar da situação. Todos se escarificam. Os homens lutam huka-huka. A luta marcial altoxinguana é atividade freqüente nos assentamentos. Mantém um caráter ritual e se realiza na praça central, a qual deve estar, em condições normais, totalmente exposta ao sol. Os espectadores devem se sentar à sombra. Neste caso, ocorre uma contradição. Apenas pelo fato de ser necessário desfilar o leque de rituais, os homens lutam durante os referidos fenômenos. Todos os bens materiais devem circular de mão em mão, mudando de proprietário, estabelecendose uma troca acelerada. Na realidade, todo o ciclo anual de atividades econômicas, sociais e ideológico-culturais deve ser contextualizado como arma de defesa contra as únicas possibilidades cabíveis de retorno da humanidade atual ao Caos anterior à criação do mundo, isto é, do espaço-tempo. Isto nos parece constituir uma fase de um movimento cíclico, que só não é circular, isto é, que não retorna ao ponto de partida, ao caos, porque existem as armas culturais que permitem, à humanidade atual refazer as atividades. Talvez possamos falar em um movimento cíclico helicoidal, que refaz as atividades em um ponto mais adiante na mesma reta do cilindro. Este é um movimento cíclico perfeito, à semelhança de um ciclo ecológico anual. R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 71 Hamilton Botelho Malhano Conclusões As representações altoxinguanas do espaço-tempo têm caráter de componentes essenciais da consciência social nativa. A estrutura de tais representações reflete ritmo e regularidade da excitação social e cultural. O modo do índio perceber e de se dar conta do espaço-tempo, revela aspectos e tendências fundamentais desta sociedade e dos indivíduos que a compõem. O tempo ocupa lugar de relevo no modelo do mundo que caracteriza a cultura em questão, com outro componente desse modelo, o espaço. A cada desenvolvimento da produção, da evolução das relações sociais, bem como do progresso e autonomia do homem em relação ao ambiente natural, corresponde uma maneira de ver o mundo. Neste sentido, as categorias espaço e tempo, tanto quanto a relação entre mundo natural e mundo sobrenatural, refletem, qual espelho, a prática social. Contribuem, ao mesmo tempo, para conformá-la segundo o modelo do mundo existente. Não compreendemos o modelo historico e particular de estrutura do caráter altoxinguano, sem desvendar seus modos próprios de sentir o espaçotempo. O sentimento do espaço-tempo é um dos parâmetros essenciais da personalidade altoxinguana. O espaço-tempo acarreta problemas característicos de história cultural, na medida em que desvela valores distintos conforme época, lugar e cultura. Precisamos conhecer a atitude diante dele e a maneira como ele é apreendido e vivido. Os sistemas espaciotemporais altoxinguanos revelam considerável grau de elaboração. Espaço e tempo são pensados como abstrações que permitem formar a imagem de um cosmos unificado, e conceber a idéia de um universo único e coerente. Espaço e tempo estão ligados aos fenômenos que se desenrolam na consciência mitológica. As categorias não existem isoladamente, sob forma de abstração, na medida em que o pensamento altoxinguano é, sobretudo, concreto, objetivo e sensível. Um evento que se realizou em determinado local, ou que ainda se realiza, no 72 R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos momento, pode, em certas condições, ser percebido como fenômeno situado num mesmo plano. Como se desenrolasse num mesmo espaço de tempo. Nestas condições, a estrutura do espaço-tempo corresponde aos conceitos fundamentais da sociedade. O sentimento do espaço-tempo tende a estender-se, apenas ao redor do aqui-agora. Oscila entre um futuro mais próximo e um passado recente. Envolve a atividade indígena em curso e os fenômenos do ambiente nativo imediato. Para além desses limites, os eventos são percebidos de modo vago. Não têm coordenadas fixas, isto é, são pouco coordenados no espaço e no tempo, e pertencem ao domínio do mito. Temos, então que, na consciência altoxinguana, o espaço-tempo aparece sob aspecto de uma força sobrenatural no sentido de que rege todas as coisas; a vida dos homens e dos heróis míticos. Por isso, o sentimento de espaço-tempo, no AltoXingu, surge saturado de valor afetivo. Pode ser bom ou mau, favorável a certas formas de atividades e nefastas a outras. Ocorre um tempo onde as consciências estão tomadas pelo misticismo. É o tempo de festa, de se escarificar e de reproduzir o mito em ritual. Quando o altoxinguano diz que é tempo de festa, é porque o tempo é propício e o local, favorável. Não apenas para a representação ou teatralização do mito. É, principalmente, porque as atividades preparatórias do evento têm grande chance de se realizar no local indicado. Daí a viabilização do evento. É um tempo em que se coloca o quotidiano fora decircuito, embora se aproveite da boa colheita, da boa pesca, e do bom processamento da mandioca e do pequí. O tempo que percebemos se desenrolar neste espaço, de maneira linear, do passado ao futuro, nos parece, na realidade, ora imóvel, ora cíclico. Os acontecimentos retornam à atualidade, a intervalos determinados pelo ciclo ecológico. Tal concepção cíclica da assimilação do tempo encontra-se ligada ao fato de que o altoxinguano jamais se desliga da natureza, enquanto sua consciência permanece subordinada às estações do ano. O ritmo R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 73 Hamilton Botelho Malhano de vida social depende destas alternâncias e dos ciclos de produção a elas adaptados. Por conseguinte, as interpretações das esferas natural e social, nos moldes das categorias míticas, produzem, no observador, uma sensação de crença no eterno retorno. Atos humanos tendem a repetir fatos outrora realizados pelos heróis culturais. Os antepassados renascem nos descendentes. Daí o mito ser modelo de comportamento e atualizador da realidade. Pela mesma razão, os netos têm os nomes dos avós. Parece que a consciência não se permite ser orientada para perceber as modificações. Permite, no entanto, ser levada a encontrar o antigo no novo. Por isso, o futuro, nem sempre é distinto daquilo que foi o passado, ou a realidade atual. Ao conceito de tempo mitológico se liga a idéia de que todos os modos do tempo: passado, presente e futuro estão dispostos de certa maneira, num único plano. São, em certo sentido, simultâneos. Este é o fenômeno da espacialização. O tempo é vivido da mesma maneira que o espaço. O presente se encontra no mesmo conjunto temporal formado pelo passado e pelo futuro. O altoxinguano sente e vê o passado e o presente estendendo-se ao seu entorno, isto é, em torno de si mesmo, interpenetrandose e explicando-se, um ao outro. O passado sempre perdura. Pela força de sua realidade, em nada o passado perde para o presente. Sobre esta representação se fundamenta o culto ao antepassado durante o primeiro ano após sua morte, o Kwarìp. Sobre esta representação, todos os arquétipos se renovam, quando realizam o mito e os rituais no período de festas. A observação das tradições mantém o passado materializado e perenizado, à semelhança de um corte epistemológico no movimento histórico, dominando o presente. O futuro é observado pelo presente, através da pajelança e da feitiçaria. É neste contexto de espaço-tempo, tão real quanto resto do mundo, que os mitos dialogam e se atualizam. Espaço e tempo são dados tão concretos na experiência altoxinguana, que formam os elementos que a constituem. É impossível separar do tecido vital. 74 R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos No entanto, nada impede a realização de uma atitude inovadora. Embora, por sua própria essência, a sociedade altoxinguana tem limitadas as suas possibilidades de modificação. Possivelmente, sua estabilidade só pode ser garantida mediante um mecanismo rígido e abrangente de controle social. Acreditamos que a idéia do eterno faça parte deste mecanismo. Ilustração Figura 1: Esquema da Região. R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 75 Hamilton Botelho Malhano Figura 2: Esquema da Casa. Figura 3: Esquema de Ocupação da Casa. 76 R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos Figura 4: Esquema do Concentrismo. R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 77 Hamilton Botelho Malhano Figura 5: Esquema Céus, Terra, Água. 78 R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos Figura 6: Esquema do Assentamento. Referências AGOSTINHO, P., Estudo preliminar sobre o mito de origens xinguano. Comentário a uma variante Aweti. In: Universitas n.6/7, Salvador, separata maio/dezembro 1970. __________.Kwarìp mito e ritual no Alto Xingu. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1974 (a). R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 79 Hamilton Botelho Malhano __________,.Mitos e outras narrativas Kamayurá. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1974 (b). (Ciência e Homem). BACHELARD, G., A poética do espaço. Rio de Janeiro: Eldorado, 1957:10;118-22. BOAS, F.,Introduction. In: The Handbook of American Indian Languages, Bureau of American Ethnology Bulletin 40. Washington: Smithsonian Institution, 1911. __________,.The mind of primitive man. 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Definimos helicoide como uma superfície gerada por uma reta horizontal apoiada constantemente 3 distância entre duas sucessivas passagens pela mesma reta do cilindro. 4 CASTRO, E. B. V. de, Indivíduo e sociedade no Alto Xingu. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1977:119. BOAS, F.,Introduction. In: The Handbook of American Indian Languages, Bureau 5 of American Ethnology Bulletin 40. Washington: Smithsonian Institution, 1911. ______. The mind of primitive man. New York: Macmillan, 1938. RICOEUR, P.,Introdução. In: As culturas e o tempo, P. Ricoeur... (et alii). Petrópolis: 6 Vozes: São Paulo: EDUSP, 1975:21-22. HALL, E. T., A dimensão oculta. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977:76. 7 CASTRO, E. B. V. de, A fabricação do corpo na sociedade xinguana. In: Boletim do Museu 8 Nacional, s. Antropologia n. 32, maio 1979:40-49. GREGOR, T. Mehináku, o drama da vida diária em uma aldeia do Alto-Xingu. São Paulo: 9 Cia. Editora Nacional, 1987: 234-250. FRANCHETTO, B., CAMPOS, M. d’O. Kuikuro: integración cielo y tierra en la economía 10 y en el ritual. In: Etnoastronomias Americanas 45, Bogotá: Centro Editorial Universidad de Colombia, 1985:255. (Congresso de Americanistas). 11 12 Os Kuikúru constituem um grupo étnico altoxinguano falante de língua Karib. SCHULTZ, H., Lendas Waurá. In: Revista do Museu Paulista, n.s. v.XVI, São Paulo, 1965-66. AGOSTINHO, P., Estudo preliminar sobre o mito de origens xinguano. Comentário a uma variante Aweti. In: Universitas n.6/7, Salvador, separata maio/dezembro 1970. _____________ ., Kwarìp mito e ritual no Alto Xingu. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1974 (a). _____________ ., Mitos e outras narrativas Kamayurá. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1974 (b). (Ciência e Homem). VILLAS-BOAS, C., VILLAS-BOAS, O., Xingu, seus índios, seus mitos. Rio de Janeiro: Zahar, 1972 EMMERICH, M., EMMERICH, C., VALLE, L. de S. , O Kuarupe. Árvore do Sol. Estudos de Etnobotânica no Parque Indígena do Xingu III. In: Boletim do Herbário Bradeanum 13 82 R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 A Noção Espaço-Tempo entre os Altoxinguanos v. IV, n.49, 22 out. 11987:388-381. 13 EMMERICH, M., EMMERICH, C., VALLE, L. de S. , O Kuarupe. Árvore do Sol. Estudos de Etnobotânica no Parque Indígena do Xingu III. In: Boletim do Herbário Bradeanum v. IV, n.49, 22 out. 11987:388-381. 14CASTRO, E. B. V. de, Indivíduo e sociedade no Alto Xingu. op. cit., 1977:106. FRANCHETTO, B., CAMPOS, M. d’O., KUIKURU: Integración cielo y tierra en la 15 economia y en el ritual. op. cit., 1985:263. NEHER, A., Visão do tempo e da história na cultura judaica. In: As culturas e o tempo. 16 Petrópolis: Vozes: São Paulo: EDUSP, 1975:179. 17FRANCASTEL, P.,. São Paulo: Perspectiva, 1973:50-51. (Sociologia Da Arte). MÜLLER, R. P., Abstracionismo geométrico na pintura corporal Assuriní. In: Arte e corpo, 18 pintura sobre a pele e adornos de povos indígenas brasileiros. Sala especial do 8o Salão Nacional de Artes Plásticas: A arte e seus materiais. Rio de Janeiro: Funarte, 1984:23. 19 CASTRO, E. V. de, Indivíduo e sociedade no Alto Xingu. op. cit., 1977:50-51. BACHELARD, G., A poética do espaço. Rio de Janeiro: Eldorado, 1957:10;118-22. 20 Preferimos o termo assentamento em lugar de aldeia, não apenas porque se encontra pleno 21 de idéias européias, conforme nos referimos em a HABITAÇÃO INDÍGENA BRASILEIRA, In: SUMA Etnológica Brasileira, V. 2, Tecnologia Indígena, Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: FINEP, 1986:26-92. Preferimos este termo porque nos dá idéia de ilnterferência do homem, a idéia das coisas nos seus devidos lugares, a idéia de urbanização CASTRO, E, V, de, Indivíduo e sociedade no Alto Xingu, op. cit., 1977:126. 22 23 BACHELARD, Gaston, op. cit., 1957:10;18-22. SCHULTZ, Harald, op. cit., 1965 25 AGOSTINHO, Pedro, op. cit., 1970 ________________ . op. cit., 1974a ________________ . op. cit., 1974b VILLAS BOAS, Cláudio, VILLAS BOAS, Orlando, op. cit., 1970. REICHEL-DOLMATOFF, Gerardo, Amazonian Cosmo; the sexual and religious 26 symbolism of the Tukano indians. Chicago: The University of Chicago Press, 1971. R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002 83 Hamilton Botelho Malhano Abstract Highxinguan people conduct arrangement of things and events in the continuous space-time disposing, at one side, sensitive elements, and at other, natural and superatural. Suppose that a good majority of concepties of space and time are determined by physical ambient. The idea of time/weather is based on the changes and on the regular answers that highxinguan people offer them, it is restrict by a annual cycle.It dutie not and cannot be employed to different periods more loger then seasons of year. Generally, in the region of the source of Xingu river, this echological cycle of one year resign itself in two seasons: raining and stop raining. The valour attributed to echological relations is fundamental to understand this social system inserted into echological system. The articulation of these domains nature and culture between space-time dimensions foment a union between temporal and moral orders. The myth arise as didactic message and model to prevent against to that that is considered excessive. Historical time is not subject of elaboration (development) among them. Real-actual space is superposed to mythic space. The great question in this world appear be that of the being. Midsts or folds of space-time diffuse this problem through History. The idea of creation has the being as a data. Space-temporal systems reveal considerable degree of elaboration. Space and time are thinking as abstractions that permit formming the idea of a unified cosmos, and conceiving the idea of an universe unic and coherent. Space and time are connected to phehomenons that came to pass in the mythological conscience. In these conditions, the structure of space-time correspond to fundamental concepts of society. To the concept of mythological time associate the idea that every time modes are disposed, of a certain manner, in an unic plan. They are, in a certain sense, simultaneous. This is the phenomenous of space action. It is in this context of space-time, so real like all the world, that the myths dialog and actualise themself. Keywords Highxinguan indians who speak tupi, aruak and karib languages. Relationship, ideas, events and ategories: space and time; estructure and echologie; myth and history; cosmologie and chronologie; origim and evolution; matter and energy; form and content; nature and culture; model (original) and copy (reproduction); art (craft) and technique; aesthetics and ethics; man and animal; demigod and hero. 84 R. Mestr., Vassouras, v. 4, Ed. Especial, p. 45-84, 2002