Ética Racional

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Ética Racional
Mário Porto
Tenho sido diversas vezes solicitado a apresentar uma definição da ética racional.
Este texto não pretende ser um tratado sobre Ética e obviamente jamais imagino que esgote o assunto que é bastante
rico e comporta muitas outras nuanças. Espero que seja lido com atenção e sem preconceitos. Você crente de qualquer
corrente religiosa, procure esvaziar a mente de idéias preconcebidas e deixe estas explicações entrarem livremente para
que você possa, posteriormente, analisá-las sem o prejuízo de amarras previamente estabelecidas.
Entre os vários mitos associados com as religiões, nenhum é mais difundido e mais desastroso em seus efeitos do que
o mito que os valores morais não podem se divorciar da crença em um deus.
A identificação da ética com a religião não se sustenta e de fato poucos teólogos defendem, explicitamente, esta posição.
Não somente a ética e a religião são esferas distintas como uma abordagem teológica para a ética, ou uma teoria moral
baseada em desígnios divinos, será inimiga da vida e felicidade humanas.
Mas ao invés de dizer o que penso sobre a moral cristã, que considero basear-se primordialmente em um código de
morte do que em um código de vida, prefiro discutir minha própria abordagem para a ética, de maneira que minhas
objeções para com a moral religiosa possam ser expostas no seu contexto próprio.
Primeiramente vamos situar os termos ética e moral.
Observe-se a origem das palavras. "Ética" vem do grego "ethos", e significa hábito.
"Moral" vem do latim "mores" e significa "hábito, costumes".
Ou seja, do ponto de vista puramente filológico não haveria motivo para se distinguir as duas expressões (a não ser, é
claro, que se faça estudos filológicos muito precisos e se estude a diferença entre o significado de "ethos" para gregos e
"morus" para os latinos). Fato é que mesmo no mundo filosófico existe um certo caos terminológico neste respeito.
Especialmente na tradição teológica: o que os protestantes chamam de ética, os católicos chamam de moral.
Em geral, procura-se seguir a seguinte distinção: enquanto a moral é uma ciência descritiva, normativa e de caráter
obrigatório, descrevendo como os seres humanos de uma determinada cultura de fato agem e regulam o seu
comportamento, a ética é teórica, ligada a princípios formando um conjunto de valores que orienta o comportamento
humano buscando encontrar esses valores humanos, clarificá-los e integrá-los num sistema coerente de princípios a
ser usado pelo homem nas suas escolhas e ações.
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Tendo isso como base elas são diferenciadas de várias maneiras:
- Ética é princípio, Moral são aspectos de condutas específicas;
- Ética é permanente, Moral é temporal;
- Ética é universal, Moral é cultural;
- Ética é regra, Moral é conduta da regra;
- Ética é teoria, Moral é prática.
A primeira pergunta que deveria ser respondida como precondição para qualquer tentativa de se definir, julgar ou aceitar
qualquer sistema específico de ética é:
Por que o homem precisa de um código de valores?
Quais são os aspectos relevantes da natureza humana que geram a necessidade de uma disciplina ou até, como
dependo, de uma ciência como a ética?
O primeiro aspecto relevante da natureza humana é obviamente especial: o homem é um ente vivo, um organismo
biológico que enfrenta a alternativa da vida ou da morte. É a natureza condicional da vida, a alternativa entre vida e morte
que gera o conceito de "Valor". É unicamente o conceito da "Vida" que faz com que o conceito de "Valor" seja possível. É
apenas para um ser vivo que os fatos podem ser bons ou maus.
O conceito de valor expressa para um organismo vivo a relação benéfica ou prejudicial de algum aspecto da realidade.
Dizer que algo tem valor para um organismo é dizer que é condutivo para a vida daquele organismo. O juízo de valor
expressa um fato é uma estimativa da relação e esta estimativa é precisa ou imprecisa, falsa ou verdadeira.
Qualquer tentativa de separar o domínio dos valores do domínio dos fatos é fundamentalmente equivocada no
nascedouro. É um erro falar-se dos fatos da física, da biologia, da psicologia, etc, em contraste ao domínio dos valores; ao
invés devemos falar dos fatos da física, dos fatos da biologia dos fatos da psicologia, etc. e dos fatos de valor. A alegação
de que a esfera dos valores não pode ser baseada ou derivada dos fatos é análogo a dizer-se que a esfera da física ou
da biologia não pode ser baseada ou derivada de fatos.
Como todas as coisas animadas e inanimadas o homem tem uma natureza específica e como todo organismo vivo sua
natureza requer meios específicos para a sobrevivência. Entretanto, diferentemente, de outras formas de vida o homem
tem a capacidade de escolha. Enquanto as outras formas de vida respondem ao meio ambiente segundo seu nível
automático de sensações ou percepções, o poder humano de distinção e conceituação permite que ele delibere antes de agir.
Em outras palavras, o homem tem a capacidade de avaliar as alternativas que se lhe apresentam e suas ações
orientadas volitivamente são motivadas por suas avaliações. Os valores constituem o elo motivacional do homem para
com a realidade.
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No entanto, a natureza não proveu o homem com um meio automático de sobrevivência, o homem pode perpetrar ações
de curso auto-destrutivo, ou seja, pode alcançar objetivos que sejam deletérios para o seu bem-estar.
Quais são então os objetivos corretos a serem perseguidos pelo homem? Quais são os valores que sua sobrevivência
requer? Esta é a questão a ser respondida pela ciência da ética e é por isto que o homem precisa de um código de
ética.
Se o homem quer sobreviver ele deve ter conhecimento dos princípios de ação que conduzem à sobrevivência. E além do
nível da mera sobrevivência se o homem deseja alcançar a felicidade ele deve ter conhecimento daqueles princípios que
conduzem á felicidade. O homem precisa descobrir através de um processo racional os valores necessários para sua
sobrevivência e bem-estar.
Portanto, a Ética é uma necessidade objetiva da sobrevivência humana.
A moral racional é baseada em padrões; a moral religiosa é baseada em regras. Moral religiosa e moral racional são no
âmago diferentes como a vida e a morte, uma analogia que neste contexto é particularmente apropriada.
A moral racional em essência é um código de valores necessários para a sobrevivência, bem-estar e felicidade do
homem. O termo "racional" é aqui utilizado porque um código desta natureza precisa ser baseado nos fatos de valor
humano e somente a razão pode determinar o que é e o que não é de valor para o homem. A moral racionalista é
universal e o mesmo não se pode afirmar da moral bíblica.
A moderna moralidade ateísta começa com princípios, paradigmas, virtude e valores positivos do humanismo secular. A
ética racional quando aplicada de forma ampla resulta numa cultura muito mais pacífica e feliz. A moralidade é tanto
natural como funcional.
Então, de onde tiramos os valores ateístas?
Vamos listar algumas das fontes: Liberdade. Tolerância, Compaixão, Generosidade, Caridade, Compartilhamento,
Lealdade, Honestidade, Educação, Utilitarismo e valoração das pessoas propriamente ditas, isto é humanismo. A lista
pode ser praticamente infindável.
Os Cristãos freqüentemente perguntam:
"Aonde os ateístas obtém sua moralidade?"
A resposta é: Da Razão.
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A esta pergunta pode-se contrapor:
Terão os cristãos alguma fonte de moralidade qualquer que seja? Existe na Bíblia algum aspecto de moralidade
verificável que não seja acompanhado de alguma contradição dentro da própria Bíblia?
A moralidade ateísta penetra profundamente dentro de sua identidade pessoal. Meu raciocínio ético define meu caráter,
meu mais íntimo conteúdo pessoal e guia todas as minhas ações sem receio de enfrentar as questões. Eu sou uma boa
pessoa, até mesmo uma excelente pessoa pelo conteúdo do meu caráter e minhas ações subseqüentes. Quero ser
julgado por isso e por nenhum outro critério.
Kant em sua investigação sobre a moral nos diz:
"- Age de modo que a máxima da tua vontade possa sempre valer como princípio da legislação universal"
Esta fórmula constitui a lei moral, valendo para todos os seres racionais. A relação de uma vontade com esta lei é uma
relação de dependência que se exprime numa obrigação - em obrigar a uma ação conforme com a lei. Esta ação denominase dever, sendo, desta forma, a lei moral a origem e o fundamento do dever no homem. Kant distingue legalidade de
moralidade: a legalidade é a conformidade com a lei, efetuada com um motivo de natureza sensível, como por exemplo
para obter qualquer vantagem ou evitar qualquer dano; a moralidade é, pelo contrário, a conformidade imediata da
vontade com a lei, sem o recurso dos impulsos sensíveis.
Quando os criacionistas avocam a seleção natural como argumento para determinar a não existência de uma moral
racionalista, eu classifico o argumento como absurdo e vazio, porque modernamente a sociobiologia estabelece que os
seres humanos e todos os seus órgãos internos, incluindo o cérebro, evoluíram a partir de processos de seleção natural.
A seleção natural não pode ser reduzida como alguns criacionista classificam como competição entre espertos e astutos,
mas sim uma competição entre os genes, daí o novo darwinista Richard Dawkins cunhar o termo gene egoísta (selfish
gene).
O grande engano nesta apresentação de luta do mais forte contra o mais fraco é que a unidade de seleção não é o
indivíduo, mas o gene. O curioso e que dentro desta perspectiva os genes podem mostrar altruísmo na seleção,
especialmente entre parentes próximos. O altruísmo ou cooperação genética entre espécies pode ser parte de uma
estratégia de evolução de sucesso para um conjunto de genes.
Como se vê, a evolução não é a vitória do mais forte sobre o mais fraco. Esta pode ter sido uma idéia errada passada
nos primórdios da teoria. A questão da seleção é mais um fator de melhor adaptação do que supremacia de fortes sobre
fracos. E isto é um fato, não há o que discutir nem permite inserções de conotações de ordem moral cristã ou qualquer
outra.
Existe sim uma "batalha pela existência" entre os seres humanos como também entre todas as outras espécies. Os
membros de cada população variam hereditariamente em virtualmente todos os traços da anatomia, fisiologia e
comportamento. Indivíduos que possuem certas combinações de traços sobrevivem e se reproduzem melhor do que outros
com outras combinações. Como conseqüência, as unidades que especificam traços físicos, genes e cromossomos,
aumentam com relativa freqüência dentro destas populações de uma geração para a seguinte.
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Existem outras causas para evolução como migrações, mas a Seleção Natural é a força dominante, agindo no nível dos genes
e cromossomos. A missão destes genes é sobrevivência e reprodução. Traços anatômicos, fisiológicos e mesmo
comportamentais variam entre indivíduos com conjuntos de genes, correspondentemente, diferentes.
Os seres humanos são então o produto da seleção natural agindo, negligentemente, por milhões de anos. O cérebro
conforme alegam os sociobiologistas, não é uma exceção. Como todo o resto que compõe o homo sapiens o cérebro
humano, propriamente, evoluiu durante o processo de seleção natural. Isto tem grandes implicações para a explicação do
comportamento social incluindo o comportamento "moral": o cérebro não é uma tabula rasa, mas é formado por
condicionantes genéticas.
Estes condicionantes foram denominadas de "regras epigenéticas".
Estas regras governariam como as informações externas como também os estados internos, tais como as emoções, são
processadas pela mente ao longo ou em acordo com certos padrões ou regras cuja existência e natureza foram
determinadas pela seleção natural. As regras epigenéticas governam a maneira pela qual os humanos processam
informação exterior tais como dados visuais e também nos predispõem a pensar certas ações como "certas" ou "erradas".
Portanto, mesmo que não tenhamos consciência, aquilo que sentimos sinceramente pode ser simplesmente função da
genética.
A veracidade destas afirmações em última análise se apóia em evidências empíricas. Um exemplo disto é a proibição a
respeito de incesto irmão-irmã que suporta uma explicação moral biológica. De acordo com Ruse e Wilson (Michael Ruse
and Edward O. Wilson, "Moral Philosophy as Applied Science") as evidências apontam que a aversão ao incesto é o
resultado de um "período sensível" ocorrido entre o nascimento e até aproximadamente 6 anos. Crianças que
permanecem próximos um dos outros durante este período consideram impossível mesmo na vida adulta posterior se
relacionarem sexualmente. Ruse e Wilson notaram que a inibição persiste mesmo quando o par de crianças não é
geneticamente relacionado e é encorajado a contrair matrimônio (crianças vivendo em kibutz israelitas).
Qual a relação disto com um código moral?
Não vamos detalhar aqui como estas conclusões foram alcançadas. Isto tudo pode ser facilmente consultado na Internet
ou nos livros e trabalho de Edward Osborn Wilson, que publicou em 1975, Sociobiology, the New Synthesis.
Por favor, estou apresentando os resultados de uma experiência de pesquisa genética, não é ético, a partir disto,
colocar que estou defendendo o incesto entre irmãos. Faço questão de frisar este ponto porque esta atitude é muito
comum em debates aonde a paixão toma conta da razão.
Para ilustrar o que estou dizendo lembro-me, apenas para descontrair, um fato acontecido há muitos anos na Marinha.
Esta força sempre foi muito conservadora com relação a casos de homossexualismo em suas tropas. Numa ocasião, um
determinado tenente foi encarregado de um Inquérito Policial Militar (IPM) sobre um caso de homossexualismo entre
praças em um navio da Marinha de Guerra. A gíria naval denominava isso como "Bolo de Japona". Muitos anos mais
tarde, já como oficial superior, este oficial entrou em uma lista para apreciação de sua entrada no almirantado naval. Um
dos almirantes que fazia parte do Conselho de Promoções perguntou aos demais: este fulano não esteve envolvido em
um "Bolo de Japona" em 19xx? E assim, confundido com os indiciados, o encarregado do inquérito deixou de de somar
como mais um almirante nas hostes da Marinha.
Não sei se o caso acima é folclore ou real, mas ilustra bem o que eu quis dizer.
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Eu espero que os debatedores honestos reconheçam que a argumentação usual criacionista sobre ética racional e seleção
natural é extremamente equivocada além de enfocar apenas um aspecto dentre vários outros contidos dentro do que
chamamos de Ética Racional, mas acredito que é possível reconhecer isto não deixando qualquer orgulho toldar a razão.
Apesar dos cristãos, em geral, não gostarem de fazer prevalecer a razão sobre a fé, o meu conselho é que
experimentem (está na moda).
O termo "absurdo", que utilizei para qualificar o argumento criacionista pode também ser traduzido como bizarro e
logicamente indefensável; existem muitas coisas na natureza que são brutais e que podem nos tocar como imorais mas
isto não muda o fato de que elas existem!
E discorrendo um pouco ainda sobre preconceitos:
Teísmo é definido como a crença em deus ou deuses. O prefixo "a" significa "sem", desta forma o termo a-teísmo significa
literalmente "sem teísmo" ou em outras palavras sem crença em deus ou deuses. Ateísmo portanto é a ausência de
crença teísta. Apesar disto muitos dicionários no Brasil e no mundo desfilam seus preconceitos quando definem o
verbete. Muitos deles incluem o termo ímpio ou impiedade para definir ateu ou ateísmo. Nada demais se definíssem o
termo ímpio apenas como aquele que não tem fé, mas muitos o definem como desumano. Nos E.U.A, país mais
dominado por uma cultura religiosa, o preconceito ainda é maior, a Terceira Edição do The American Heritage Dictionary
(copyright 1992,1996 by Houghton Mifflin Company ) ainda mantém uma definição antiga que é bem conveniente para os
odiosos monges fundamentalistas:
Ateísmo = imoralidade
Para terminar gostaria de transcrever um pequeno trecho do texto "O Que O Ateísmo É O Que O Ateísmo Não É", que
preparei em 1997 e está em outra página deste site no artigo sobre ateísmo .
"A religião teve o desastroso efeito de colocar conceitos vitalmente importantes, tais como moralidade, felicidade e amor,
em um reino sobrenatural inacessível à mente humana e ao conhecimento. Moralidade e religião ficaram tão intimamente
conectados que muitas pessoas não podem aceitar a ética divorciada de um deus, mesmo em princípio, o que conduz à
suposição de que o ateísmo veio para destruir valores.
Ateísmo entretanto não é a destruição da moralidade; é a destruição da moralidade sobrenatural, assim como o ateísmo não
é a destruição da felicidade e do amor; é a destruição da noção segundo a qual felicidade e amor só podem ser obtidas em
outro mundo. O ateísmo traz essas idéias ao nível da terra, dentro do alcance da mente do homem. O que ele faz com
elas após esse ponto é uma questão de escolha. Se ele as utiliza em favor do pessimismo e da nulidade, a
responsabilidade recai sobre ele, não sobre o ateísmo.
Se o ateísmo está correto, o homem está sozinho. Não há um deus na forma antropomórfica de pai para pensar por
ele, olhar por ele, garantir sua felicidade. Estas são responsabilidades unicamente do próprio homem. Se o homem quer o
conhecimento, ele precisa pensar por si só. Se o homem deseja o sucesso ele precisa trabalhar. Se o homem precisa de
felicidade ele precisa buscar por ela. Como um homem reage ao ateísmo depende, unicamente, dele mesmo e do
quanto ele está pronto para assumir responsabilidades por suas próprias escolhas e ações. A existência de uma
inteligência superior, não antropomórfica, não exclui as responsabilidades do homem no caminho de sua evolução."
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Ref: Smith, H, George, The Case Against God, Prometheus Book, NY.
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