O MUNDO DO PLEROMA: ELEMENTOS PARA COMPREENSÃO DO GNOSTICISMO CRISTÃO A PARTIR DO EVANGELHO DE JUDAS E DA OBRA “CONTRA AS HERESIAS” DE IRINEU DE LIÃO MATIAS, Carlos Almir1 BUENO, André Da Silva (Orientador) INTRODUÇÃO No século I e II d.C., o Mediterrâneo Oriental e Central era dominado pelo helenismo, judaísmo e pelos diversos cultos vindos do Oriente. Nesse contexto surge uma grande variedade de movimentos de uma nova religião, o cristianismo, cujas orientações eram bastante diversas: Imaginemos diversos grupos de pessoas que tenham ouvido pessoalmente o Mestre na Palestina, ou que ouviram seus ensinamentos por intermédio de seus discípulos ou por meio de outros, cada um desses grupos interpretando de maneira diferente e se indagando o que poderia ser aquela nova religião. (O´GRADY, 1994, 18) A partir dessa pequena citação podemos concluir que nem todos os seguidores dessa nova crença tinham o mesmo nível de entendimento; em segundo lugar, várias dessas pessoas que ouviram esses ensinamentos já tinham um conhecimento, mesmo que mínimo, sobre religião ou filosofia. (O´GRADY, 1994, p.21-22). Dentre eles, buscaremos destacar, neste trabalho, os movimentos gnósticos. Os grupos gnósticos cristãos, ao sincretizar elementos de várias religiões e sistemas filosóficos, tinham por objetivo tornar mais inteligíveis as idéias cristãs, pois consideravam os ensinamentos da proto-ortodoxia errôneos e simplificados (MATOS, 1997). O século II foi um período muito importante para os rumos do cristianismo, pelo fato de que a primeira geração de apóstolos já não vivia, e os Líderes da proto-ortodoxia teriam que decidir, quais seriam os rumos tomados, num período em que, a idéia de parusia já havia sido deixada de 1 Fafiuv 1 lado, e a Igreja teria que se preparar para uma longa marcha. Isso implicava necessariamente organização interna da Igreja, sua hierarquia e ritos, bem como a institucionalização de dogmas e doutrinas a serem seguidos. Mas no século II, a proto-ortodoxia não era a única a pregar a mensagem cristã, no mesmo período surgem as seitas gnósticos cristãs, que ameaçam a unidade e predomínio da Igreja. Esses grupos gnósticos cristãos divergiam da proto-ortodoxia em vários aspectos de práticas e de doutrinas. Segundo Pagels (1979), vários participantes se afastaram da Igreja, e passaram a freqüentar os círculos gnósticos cristãos, por não concordarem com o rumo que a Igreja estava tomando. Que movimento seria esse, portanto? 1. OS GNÓSTICOS A gnose, nome grego que significa conhecimento ou ciência, teve a intenção de se apresentar como uma ciência de Deus, penetrando os mistérios para revelá-los a seus adeptos. Os gnósticos consideravam-se os únicos herdeiros da ciência mística, que seria a base de todas as religiões. Assim, segundo eles, a gnose dá o segredo do universo e o segredo da evolução. (RIBEIRO JUNIOR, 1989, p.25). Os gnósticos tinham duas preocupações centrais; a crença em um mundo duplo do bem e do mal, e a existência de um código de verdade secreto transmitido verbalmente, ou por meio de escritos arcanos. O gnosticismo era uma religião do conhecimento, era esse o significado da palavra que afirmava deter uma explicação interna para a vida. (JOHNSON, 2001, p.60). Sem dúvida os gnósticos foram influenciados pelo contexto religioso e filosófico do Mediterrâneo Oriental e central, uma região de grande sincretismo, mas também de grande instabilidade, por ser muito próxima das fronteiras do Império Romano. Esse fator gerava muita insegurança e incertezas nas pessoas, que buscavam segurança, não apenas física, mas também espiritual. Paul Johnson (2001, p.60) define os gnósticos com parasitas espirituais que se valiam de outras religiões para propagar suas idéias. Segundo esse mesmo autor, o cristianismo prestava-se muito bem a esse papel, pois tinha um fundador misterioso, que desaparecera deixando para trás um conjunto de ditos e seguidores para transmiti-los. 2 Além dos ditos públicos havia também os “secretos”, transmitidos geração a geração pelos membros da seita. Assim, certos grupos gnósticos se aproveitavam de pedacinhos do cristianismo e isolavam-no de suas origens históricas. 2. FUNDAMENTOS DO GNOSTICISMO Deveria ser normal, nos primórdios do cristianismo surgirem perguntas do tipo; Cristo é Deus ou o Filho Dele? Cristo pré- existiu com Deus ou foi criado apenas para vir ao mundo? Cristo foi um ser humano ou um espírito? Cristo pecou? Os mais entendidos de filosofia e metafísica iam além, buscavam respostas para o eterno problema de como o Mal entrou num mundo que, em teoria deveria ser perfeito, pois foi criado por um Deus perfeito e Todo poderoso, ou será que este Deus não era tão poderoso assim? Uma coisa é certa; eram perguntas que os padres da igreja não estavam dando conta de responder, não por incapacidade, mas talvez por pensarem que ninguém tivesse ousadia de fazê-las. O que ocorria, segundo Johnson (2001, p.24), era que não havia uma cosmologia adequada no Antigo Testamento, não estava de todo claro para os judeus onde exatamente Deus se encontrava com relação ao homem, fosse no tempo ou no espaço. Satanás raramente aparecia, de modo que não podia ser o causador do pecado, e apenas alguns judeus aceitavam a explicação oriental de mundos gêmeos do bem e do mal em eterna batalha. Deus fazia coisas: criou o mundo, guiava-os, escolheu Israel, institui a lei; no entanto, não estava claro por que ele existia ou qual seriam suas ambições finais. Essas lacunas herdadas da cosmologia do Antigo Testamento abriam possibilidades de especulação e de debates, por parte dos grupos gnósticos cristãos. Por exemplo, segundo Ehrman (2008, p.85), os gnósticos não consideravam o Deus criador do material, o único Deus. Para os gnósticos, ele era uma divindade muito mais baixa, inferior, e geralmente ignorante, por ter criado um mundo material, em que predominava a dor, sofrimento, angústia e miséria. Os gnósticos buscavam resolver essa lacuna da relação entre Deus e o mundo material. 3 Havia lacunas, mas também não faltavam pessoas para preenchê-las, segundo Matos (1997, p.04), todos os sistemas gnósticos tinham em comum a opinião de que o cristianismo ortodoxo, com seu credo claro e objetivo, era demasiado simples. Segundo Junior (1989, p.25), as doutrinas gnósticas consistiam numa rebelião contra Javé, o deus de Israel, e contra a criação, que é sua obra, e a lei, que é seu mandato. Sustentavam os gnósticos que Javé era um Demiurgo inferior, o criador de um mundo que era um fracasso. Gnose era, para os gnósticos, a revelação do Deus autêntico e a possibilidade de um retorno a ele por meio de uma ruptura com o mundo e com a lei divina. As tentativas de explicar como o mal entrou num mundo sempre recebiam a forma de mito, mas nos sistemas gnósticos a queda ocorre antes da criação. O grande refutador desses movimentos foi o bispo Irineu de Lião, que viveu no século II, um momento de muitas dúvidas para os cristãos ameaçados por perseguições e heresias, período em que nenhum dos apóstolos vivia para guiá-los e reconfortá-los. Nesse contexto, Irineu escreve sua mais famosa obra, “Adversus Hairesis” (Contra as Heresias). Essa obra teve com objetivo apresentar as doutrinas gnósticas para depois refutá-las, por meio das Escrituras. Essa obra foi dedicada a um amigo que se ignora o nome, mas é muito provável que esse amigo fosse um líder de alguma igreja que estivesse numa região muito influenciada pelos gnósticos, e então se sentiu a necessidade de combater esses movimentos que cresciam com grande rapidez. No prefácio de sua, obra Irineu mostra seus objetivos, apresentar a doutrina dos gnósticos de maneira clara e os meios para refutá-las. (...) A medida de nossas capacidades mostrar-te-mos, com poucas e claras palavras, a doutrina dos que, neste momento ensinam de maneira diferente da nossa, quero dizer de Ptolomeu e dos que estão a sua volta, cuja doutrina é como que a flor da escola de Valentim. Com nossas medíocres possibilidades forneceremos os meios para refutá-las, mostrando que o que dizem é absurdo, inconsistente e oposto a verdade. ( Adv Haer, Pr.; 2, p. 30) E ainda: (...) é assim ao responder ao teu desejo; já antigo de conhecer as doutrinas deles, não somente nos esforcemos para to manifestar, mas também para 4 fornecer-te meios para demonstrar sua falsidade. Assim tu também esforça-te –ás por ajudar os outros conforme a graça que te foi concedida pelo Senhor, de forma que os homens já não se deixem induzir ao erro pela doutrina capciosa deles. ( Adv Haer Pr.; 3, p.31) Irineu de Lião procura explicar a doutrina dos gnósticos em seu I livro, mas é nítido o desprezo e as ironias do autor: Eles dizem que existia, nas alturas, invisíveis e inenarráveis, um eõn perfeito, anterior a tudo que chamam Protoprinicipio, Protopai e Abismo. Incompreensível e invisível, eterno e ingênito que se manteve em profundo silencio e tranqüilidade durante uma infinidade de séculos (...). Ora um dia, este abismo teve o pensamento de emitir, dele mesmo, um Principio de todas as coisas; essa emissão, de que teve o pensamento, depositou-a como semente no seio de sua companheira, o Silencio. Ao receber essa semente, ela engravidou e gerou o Nous, semelhante e igual ao que tinha emitido e que é o único a entender a grandeza do Pai. Este nous também é chamado Unigênito, Pai e Principio de todas as coisas. Juntamente com ele foi gerado a Verdade. (...)O Unigênito tendo aprendido o modo como foi gerado procriou por sua vez , o Logos e Zoé, segundo a sizígia o homem e a igreja.(...) Cada um deles é masculino e feminino, da seguinte forma: inicialmente o Protopai se uniu , segundo a sizígia a Enóia, que eles chamam também Graça e Silencio; depois o Unigênito, também chamado Nous, uniu-se a Verdade, depois o Logos*, a Zoe, por fim, o Homem a Igreja. ( Adv haer I, 1,1, p.31-32). Nota-se uma grande diferença entre o mito gnóstico e o mito da queda de Lúcifer e seus anjos relatada no Antigo Testamento. Essa diferença foi uma das razões do rompimento das escolas gnósticas com a grande igreja entre os anos 80 e 150. Após essa explicação inicial, Irineu continua demonstrando a doutrina dos gnósticos na qual Logos e Zoe geraram mais 10 eõns e o homem e a igreja geraram mais 12 eõns, o último com o nome de Sofia, que seria a causadora da queda.Vejamos como Irineu explica a queda de Sofia: Mas o ultimo e mais novo eõn da Duodecada, gerado pelo homem e pela igreja, isto é, Sofia, excitou-se grandemente e sofreu a paixão mesmo sem o abraço do cônjuge, o Desejado; essa paixão nascida ao redor do Nous e da Verdade propagou-se neste eõn, isto é, Sofia, que foi alterada, com aparência de amor, mas na realidade, de temeraridade , por que não se comunicara com o Pai perfeito da mesma forma que o Nous. A paixão consistia na procura do Pai :queria , dizem, compreender a sua grandeza e como não lhe foi possível pelo fato de prender –se ao invisível, entrou 5 em grande angustia por causa da grandeza do Abismo, impercrutabilidade do Pai e do amor por ele. ( Adv haer, I 2,2, p.34). da No mito de Valentino, mestre gnóstico que ensinou por volta de 137 e estabeleceu escolas no Egito e em Chipre, Sofia em sua angustia, dá a luz a Ildabaoth, aquele que não tem forma, que deu origem ao nosso mundo material, também conhecido como Demiurgo. Os gnósticos quase sempre comparavam o Deus do Antigo Testamento com o criador de nosso mundo material, considerando-o o Pai de toda ignorância. Segundo Valentino, o gerador de tudo não criou o universo a partir do nada, mas conteria tudo de si. Teria produzido emanações, que por sua vez teriam produzidos outras emanações, disseminandose sempre para mais longe de sua fonte e a ignorância dessas emanações é que teria gerado o erro e o nosso mundo material. (O´GRADY, 1994, p.41). Irineu de Lião procura também mostrar como os gnósticos se utilizaram das Escrituras para basear suas teorias, como por exemplo, eles comparavam os 30 eõns com os 30 anos em que Jesus não fez nada em publico, os 12 apóstolos com a Duodecada e a paixão do décimo segundo eõn com a traição de Judas. Irineu mostra seu desprezo pelas suas teorias: É então? Tudo isso é grande espetáculo e fantasia daquele que, pomposamente e cada um a sua maneira, explicam de qual paixão e de qual elemento teve origem a substancia. Assim consigo entender por que não querem ensinar essas coisas a todos , em publico, mas somente aqueles que podem dar altas gratificações para conhecer tão grandes mistérios (...) Quem não daria tudo o que possui para aprender que os mares, as fontes, os rios e todas as substancias úmidas se originaram das lagrimas de Entimese do eõn tomado pela paixão, a luz do seu sorriso, os elementos corporais do mundo, do seu temor e inquietação? ( Adv haer I, 4,3, p.41) Percebe-se neste trecho que além de Irineu desprezar todas essas doutrinas, ele acusa os gnósticos de charlatanismo, ou seja, para ele os mestres desses movimentos não passam de golpistas que enganam o povo ingênuo com suas faltas doutrinas e ainda por cima ganham dinheiro com isso. Quem não tivesse dinheiro para pagar pela gnose não teria acesso a esses conhecimentos que estariam limitados apenas aos ´pneumas´. De acordo com O´Grady (1994, p.48) os gnósticos afirmavam que os seres humanos não vinham em condição de igualdade ao mundo, mas que existiam três tipos 6 básicos deles. Em primeiro lugar estariam os “choics” aqueles com mentalidade terrena e carnal ocupados apenas com o mundo material. Depois os “psíquicos”, que viviam pela fé e pelas boas obras, na verdade estes seriam os cristãos comuns, os freqüentadores da igreja e por fim os “pneumos”, derivados de pneuma, os próprios gnósticos que tinham a Centelha divina dentro de si e que poderiam ascender a suas origens divinas, por que segundo o mito gnóstico, algumas sementes da divindade se Sofia, o desejo de sabedoria, haviam sido plantadas no homem gnóstico. Essa divisão resolvia o problema de nível intelectual e espiritual entre os homens, mas cria outros problemas. Só os pneumas, independente de suas atitudes seriam salvos, os outros estariam condenados ou teriam muito poucas chances de se salvarem. (O´GRADY, 1994, p.48). 3. ORIGEM DO HOMEM E CONCEPÇÃO SOBRE CRISTO Como já vimos, os gnósticos diziam que o mundo surgiu do erro de Sofia. No Evangelho da Verdade encontramos o ditado: “A ignorância quanto ao Pai levou ao temor e ao medo, de modo que o erro surgiu e produziu o esquecimento”. (O´GRADY, 1994, p.41). Segundo os gnósticos, um dos eoñs foi excluído do pleroma: o demiurgo, que criou o mundo e o homem da matéria já existente, produziu outros eõns, inimigos de Deus. (JUNIOR, 1989, p.26). Vejamos a concepção dos gnósticos sobre a origem do homem: Segundo eles existiam três elementos: primeiro proviniente da paixão, e era matéria; o segundo da conversão, era o psiquico; enfim o terceiro gerado por Acamot, e era o pneumatico (...) Antes de tudo da substancia psíquica, ela formou o Deus, o Pai e o Salvador e Rei de todos os que lhe eram consubstancias, isto é, os psíquicos, que chamam a direita e depois aqueles que derivam da paixão e da matéria, que chama a esquerda (...) Dizem que o Demiurgo se tornou Pai e Deus dos seres exteriores ao Pleroma, visto que era o Autor de todos os seres psíquicos e hilicos. Com efeito, ele separou uma da outra, estas duas substancias confusas e de incorporais fé-las corporais; fez seres celestes e terrestres e tornou-se demiurgo dos psíquicos e hilicos (...) Asseguram que o demiurgo julgava ter produzido tudo isso de si mas que fora por obra de Acamot que fez o céu sem conhecer o céu, que plasmou o homem sem conhecer o homem, 7 fez aparecer a terra sem conhecer a terra, e assim por todas as coisas, ignorando os modelos dos seres que fazia. (Adv haer I 5,1, 5,2, 5,3). No ensinamento de Valentino, um redentor desceria do reino celestial para iluminar e libertar a parte imortal do homem, e para salva-lo de ser lançado de volta ao mundo pecaminoso depois da morte do seu corpo, porque, pelo que sabemos a partir dos textos gnósticos, eles pareciam ter acreditado em ciclos de renascimento. Esse libertador era chamado de Jesus, o ponto culminante de todos os perfeitos da Divindade, desceu ao ventre da Virgem, e por esse caminho entrou no corpo do Cristo terreno. Assim Jesus tinha duas pessoas, o espírito Cristo, que aparecia homem, e o Jesus que vivia dentro, conhecido apenas dos verdadeiros gnósticos. Muitas escolas gnósticas acreditavam que o divino Cristo tinha entrado no homem Jesus, no momento de seu batismo por João, tendo-o deixado durante a crucificação, quando Ele retornou ao paraíso de onde viera ou que, quando Ele, durante a crucificação, teria sido um fantasma celestial que aparecia para sofrer e morrer. ( O´GRADY, 1994, p. 42-43). Muitas seitas gnósticas tinham uma tendência docética, ou seja, rejeitavam a encarnação e negavam que Jesus tivesse sido homem, seu corpo seria aparência, ou “dokesis”. (JOHNSON, 2001, p.60). Ou segundo O´Grady (1994, p.21), Cristo seria um símbolo ou uma explicação mitológica da relação do homem com a divindade, ou em resumo, uma espécie de fantasma. 4. EVANGELHO DE JUDAS Essa tendência docética aparece no Evangelho de Judas, escrito no século II, pela seita dos cainitas, uma pequena seita gnóstica que venerava Judas e Caim. A principal afirmação desse evangelho é que Judas foi o melhor amigo de Jesus, e que ele possuía mais conhecimento do que os outros apóstolos. Por isso Jesus teria encarregado Judas de traí-lo por que se não fosse assim Jesus não morreria e portanto não ressuscitaria. (ZILLES, 2006, p. 906). Esse Evangelho é citado na obra de Irineu: Dizem que Judas, sabia exatamente todas estas coisas e por ser o único dos discípulos que conhecia a verdade, cumpriu o mistério da traição e 8 que por meio dele foram destruídas todas as coisas celestes e terrestres. (Adv haer, I, 31,1, p. 122). A tendência docética aparece logo na introdução do Evangelho: Começou a falar com eles sobre os mistérios alem do mundo e do que aconteceria no fim. Muitas vezes apareceu a seus discípulos, não como ele mesmo, mas na forma de uma criança. (Evangelho de Judas, p.908). Essa passagem deve ter deixado muitos Padres da Igreja abismados, pois coloca em dúvida o problema das duas naturezas de Cristo, a humana e a divina. Cristo, aparecendo aos discípulos como uma criança, deixa a entender que seu espírito passa de um corpo para outro. O Evangelho de Judas é uma fonte onde que aparece com bastante nitidez as idéias gnósticas já apresentadas por Irineu, neste evangelho, aparece um eõn perfeito, pois ele tem acesso ao pleroma, ou a outra geração grandiosa: “Fui a outra geração grandiosa e santa”. Seus discípulos disseram-lhe: “Senhor, qual é essa geração grandiosa, que é superior a nós, que é mais santa que nós e que não é deste reino?” Ao ouvir isso, Jesus riu e falou-lhes: “Por que vós pensais em vossos corações sobre aquela geração forte e santa? . Em verdade, eu vos digo que ninguém, que nasce neste mundo, verá aquela geração e nenhum exército de anjos das estrelas reinará sobre aquela geração e nenhum mortal poderá relacionar-se com aquela geração, pois aquela geração não procede de (...) que veio a ser (...).(Evangelho de Judas, p.909). Nesse trecho podemos notar alguns conceitos gnósticos, o pleroma, ou a geração grandiosa, inacessível aos mortais presos na matéria. No trecho “não procede de (...), que veio a ser (...)”, pode estar se referindo que esta geração não procede do demiurgo ou nenhum outro Deus senão do Pai invisível, que veio a ser este mundo material. Esta hipótese foi levantada porque um dos princípios dos gnósticos é que o demiurgo, que foi excluído do pleroma, foi o criador do homem, da matéria já existente e ainda produziu outros eõns, inimigos de Deus. (JUNIOR, 1989, p.26). Esses eõns inimigos de Deus provavelmente aparecem na parte, “eu vos digo que ninguém, que nasce neste mundo, verá aquela geração e nenhum exercito de anjos das estrelas reinara sobre aquela geração”. 9 Mais a frente outra parte torna essa hipótese mais plausível sobre a geração que não procede do criador, demiurgo deste mundo material: “É impossível semear sementes sobre uma rocha e colher seus frutos. Este é também o caminho (...) as gerações maculadas (...) e a sofia corruptível (...) a mão, que criou homens mortais de modo que suas alma subam aos reinos eternos. Em verdade, eu vos digo (...) anjos (...) o poder verá isso (...) aqueles a quem (...) gerações santas (...)”. Depois de dito isso, Jesus retirou-se daí. (Evangelho de Judas, p.911) A rocha poderia ser nosso mundo material, os frutos, a luz divina, a busca dessa luz seria o caminho para que as almas subissem ao reino eterno. Outro trecho resume todo o sistema gnóstico da seita dos cainitas e sua cosmologia sobre a criação do pleroma e de nosso mundo material: Jesus disse: “Vem, para que eu te possa ensinar mistérios que antes nenhum homem alguma vez viu. Pois existe um reino grande, infinito, cuja extensão nenhuma geração de anjos já viu, no qual há um espírito grande e invisível, aquele nenhum olho de anjo jamais viu, nenhum pensamento do coração jamais o pôde compreender e nunca se o chamou por algum nome”. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como vimos, o Evangelho de Judas apresenta vários traços do gnosticismo, tais como a queda cósmica, a tendência docética de Cristo e a idéia de conhecimentos secretos repassados somente a alguns privilegiados, no caso deste evangelho, cujo único privilegiado foi Judas Iscariotes. Um dos pontos que chamam a atenção neste evangelho, além das divergências teológicas, é o fato de que, o Evangelho de Judas, é um dos únicos, senão o único dos Evangelhos apócrifos, a divergir das narrativas sinópticas, num fato tão importante como a traição de Judas, e a subseqüente morte de Jesus Cristo. Outros evangelhos apócrifos, questionam o significado da morte de Cristo, discutem questões sobre o corpo e o espírito, mas não se propõem a formular uma nova narrativa deste evento. Enquanto isso, o Evangelho de Judas apresenta uma versão totalmente diferente, no qual Judas era o único que realmente conhecia Jesus, e sabia de seus propósitos, por isso o 10 traiu. O que podemos perceber é que, o Evangelho de Judas utiliza-se de uma nova versão da narrativa da Paixão de Cristo, pois só assim as suas idéias teriam sentido teológico para a seita dos cainitas. Mas mesmo o Evangelho de Judas, tendo apresentado uma narrativa alternativa da Paixão de Cristo, Irineu apenas menciona este evangelho em sua obra, e o refuta rapidamente. É difícil explicar o por que deste desprezo, talvez seja pelo fato de Irineu conhecer pouco a seita dos cainitas, e conhecer o Evangelho de Judas só de ouvir falar, por exemplo, ou talvez, esta seita já estivesse em decadência, e não representava uma ameaça em potencial para a proto-ortodoxia. O fato é que, o Evangelho de Judas, apesar de suas idéias e sua narrativa alternativa da Paixão de Cristo, e apesar de ter sido mencionado por Irineu de Lião em sua obra, foi deixado de lado. REFERÊNCIAS: EHRMAN D. Bart. O cristianismo de ponta cabeça: a visão alternativa do Evangelho de Judas. In: O Evangelho de Judas: do Códice Thacos/ editado por Rodolphe Kasser, Marwin Mayer e Gregor Wust, com a colaboração de Francis Guaudard, tradução Ana Ban. São Paulo, 2006. JOHNSON. Paul. História do Cristianismo. São Paulo: Imago, 2001. MATOS, Alderi Souza de. A Divina Tríade: Irineu de Lião e a Doutrina de Deus. Fides Reformata 2/1 1997. O’ GRADY, Joan, Heresias. São Paulo: Mercúryo, 1994. PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. São Paulo: Cultrix, 1979. RIBEIRO JUNIOR, João. Pequena História das Heresias. Campinas: Papirus, 1989. FONTES LIÃO, Irineu de. Contra as Heresias. São Paulo: Editora Paulus, 2005. 11 ZILLES, Urbano. Evangelho de Judas. Rev.Trim. Porto Alegre. v.36. Nº 154, dezembro, 2006, p. 905-916. 12