Recursos vegetais usados na medicina tradicional do Cerrado

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Recursos vegetais usados na medicina tradicional do Cerrado (comunidade de Baús,
Acorizal, MT, Brasil)
SOUZA, L.F.
Departamento de Ciências Biológicas, Campus de Jataí, Universidade Federal de Goiás-UFG. Caixa Postal 03,
Jataí, Go, 75.800-020. [email protected]
RESUMO: Este trabalho objetivou quantificar os recursos vegetais usados na medicina caseira
de Baús, comunidade tradicional do Cerrado mato-grossense, identificando os taxa utilizados,
habitats, partes das plantas, remédios e aplicações. Utilizando a técnica de entrevista semi
estruturada, entrevistou-se 72 moradores da área urbana, resultando 1.705 citações etnobotânicas.
Foram identificadas 63 famílias botânicas, 161 gêneros e 191 espécies, 60% das quais eram
nativas, a maioria coletada no Cerrado (l.s). Fabaceae destacou-se com relação à citação de uso
(192) seguida de Loganiaceae (124) e Lamiaceae (112). Vinte espécies obtiveram mais de 40%
das citações, destacando-se Strychnos pseudoquina A.St. Hil.(124 citações). O uso de folhas foi
mais freqüente, o modo mais comum de preparo dos remédios foram chás e inflamações
representaram as aplicações mais freqüentes. Foi possível notar que as espécies mais usadas
se encontram em grupos filogenéticos evoluídos e que o Cerrado representa importante fonte de
recursos vegetais para a comunidade estudada.
Palavras-chave: Cerrado, medicina tradicional, recursos vegetais, etnobotânica
ABSTRACT: Vegetable resources used in the traditional medicine in the Cerrado region
(Community of Baús, Acorizal, Mato Grosso State, Brazil). This work aims at surveying the
vegetable resources used in the traditional medicine of communities of Baús, with the purpose of
identifying the plants used. Seventy-two locals were interviewed resulting in 1,705 ethnobotanic
citations. Sixty families, 161 genera and 191 species were identified, 60% native, mostly collected
in the Cerrado (s.l) Among the families, the Fabaceae obtained 192 mentions, Loganiaceae(124
mentions), Asteraceae(122) and Lamiaceae(112) were the families most referred and 40% of the
total mentions referred to twenty species, with special regard to Strychnos pseudoquina A.St.
Hil.(124 mentions). The use of leaves was more usual, the most usual recipe of preparation of
these remedies was the tea and inflammations represented the most frequently treat disease with
the use of vegetables. It was possible to notice that the most used plants belong to more evolutionary
phylogeny groups and that the Cerrado stands for an important source of medicinal plants in the
community.
Key words: Cerrado, home-made medicine, vegetable resources, ethnobotanic
INTRODUÇÃO
O Brasil possui biomas de grande diversidade
genética, entre eles o Cerrado, o segundo maior do
país (23%) ocupando dois milhões de km2, com área
core no Centro-oeste. Representa um complexo
vegetacional rico em heterogeneidade de habitat e
diversidade vegetal. O mais brasileiro dos biomas sulamericanos possuem 6.671 espécies vegetais nativas,
distribuídas em 170 famílias e 1.140 gêneros
(Mendonça et al., 1998). Porém, a diversidade alfa
no Cerrado é freqüentemente alta, isto é, muitas
espécies raras ocorrem em uma única localidade
(Ratter et al., 2003) e a rapidez e continuidade do
desaparecimento deste ecossistema tornam urgente
a inclusão de áreas protegidas que resguardem esta
diversidade. É necessária a implantação de projetos
de manejo em áreas nativas do Cerrado para que a
Recebido para publicação em 31/03/2006
Aceito para publicação em 04/08/2006
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própria sociedade e não apenas o poder público seja
responsável pela conservação dos recursos. A
etnobotânica vem realizando pesquisas em diversas
comunidades, desenvolvendo instrumentos para
avaliar os recursos vegetais utilizados nessas áreas
e apontando propostas de uso sustentável dos
mesmos, como forma de conservação.
Menos de 1% da flora brasileira é conhecida
quimicamente (Gottlieb et al., 1996) e a diversidade
taxonômica relativa aos táxons mais elevados no
Cerrado evidencia a importância deste bioma para
pesquisas com plantas medicinais (Gottlieb & Borin,
1994), sendo que, quanto maior for a diversidade
taxonômica em níveis superiores, maior é o
distanciamento filogenético entre as espécies e maior
as diferenças químicas entre elas (Kaplan et al., 1994).
Comunidades tradicionais sejam indígenas, rurais ou
urbanas, trazem no seu bojo grande diversidade
cultural representando o etnoconhecimento sobre o
manejo das espécies nativas como medicinais,
alimentícias, tintoriais, madeireiras, têxteis,
ornamentais, mágicas, entre outras (Almeida et al.,
1998). E, em termos de espécies individualmente
tratadas, o uso de plantas na medicina representa
de longe o maior percentual de uso do mundo natural
(Schippmann et al., 2002). Assim, 70-80% das
pessoas usam plantas medicinais para resolver
problemas de saúde (Farnsworth & Soerjato, 1991;
Pei, 2001) e, certamente o estudo da etnomedicina
entre caboclos e outros grupos com forte integração
com a natureza leva ao descobrimento de novos taxa
vegetais e a possibilidade de novos recursos
genéticos. Os recursos genéticos vegetais são
estratégicos e de segurança nacional e as
informações publicadas sobre eles, essenciais para
o cumprimento da implantação da Convenção sobre
Diversidade Biológica (CDB) e outros acordos
internacionais (Brasil, 1998).
A interação sociedade-natureza no tocante
ao uso medicinal da flora nativa do Cerrado, tem sido
pouco apresentada e discutida (Vieira & Martins,
2000) e poucos relatos para Mato Grosso têm sido
publicados (Van den Berg, 1980, 1984; Guarim Neto,
1984, 1987, 1996; Souza & Guarim Neto, 1999;
Guarim Neto & Morais, 2003), embora haja esforços
na realização destes trabalhos, a maioria conservase sob a forma de monografias, dissertações e teses.
O direito ao acesso aos recursos genéticos está
assegurado na CDB e o ponto central desse direito
está relacionado à noção dos valores econômicos
dos recursos naturais de uma região. Mas, quando
estes recursos naturais não são conhecidos através
de uma ampla divulgação, como estimar o seu valor?
Uma base etnobotânica científica é capaz de
responder este desafio, confrontando o conhecimento
popular aos modelos taxonômicos atuais.
Este trabalho teve como objetivo a
identificação e quantificação dos recursos vegetais
usados na medicina caseira da comunidade de Baús,
buscando responder as seguintes questões: quais
taxa apresentam predominância de uso? Qual é a
proporção entre plantas nativas e exóticas? Qual o
habitat mais freqüente de coleta? Que partes dos
vegetais são mais utilizadas? Quais as formas mais
freqüentes de preparo dos remédios? Para quais
doenças ou sintomas são usados?
MATERIAL E MÉTODO
Área de estudo: A pesquisa etnobotânica
foi conduzida no distrito de Baús, Município de
Acorizal, parte da microrregião de Rosário Oeste, no
Estado de Mato Grosso, tendo como limites ao sul e
leste, o distrito de Nossa Senhora da Guia, ao norte
a cidade de Acorizal e a Sesmaria de Aleixo e a Oeste
o município de Cuiabá. Possui área estimada em
210km2 e, através da visão do próprio bauense, dividese em quatro áreas: o Centro, o Sucuri, Outro lado
do rio e as Roças. Localiza-se a 15º16’ sul e 56º17’
oeste, a 165 metros de altitude (Figura 1). Os pontos
que nortearam a escolha da comunidade foram a sua
idade histórica (cerca de 160 anos), estar inserida no
Cerrado e tratar-se de uma comunidade ribeirinha
devido à sua localização às margens do Rio Cuiabá.
Os solos são do tipo concrecionário
distrófico, litólico álico a podzólico vermelho amarelo
álico, de textura média, cascalhenta a muito
cascalhenta, argiloso de baixa atividade. O relevo
possui formas aguçadas, de topo contínuo com
diferentes ordens de grandeza e de aprofundamento
de drenagem, separadas por vales; o clima é do tipo
AW da classificação de Köpen, quente e semi- úmido,
com duas estações bem definidas: uma seca (maio
a setembro) e a outra chuvosa (outubro a abril), com
precipitações entre 1.000 e 1.800 mm/ano. Apresenta
temperatura média em torno de 25ºC (Radam Brasil,
1982). O distrito é banhado pelo Rio Cuiabá e seu
afluente, o córrego Baús, sendo que as terras
marginais do rio Cuiabá, na altura de Baús formam
uma planície onde o rio transborda sazonalmente e,
embora esteja fora das áreas inundáveis do Pantanal,
na área estudada encontram-se locais alagáveis
periodicamente. Na área ocorrem formações florestais,
savanóides e campestres sensu Ribeiro & Walter
(2001), áreas antrópicas representadas pelas roças,
capoeiras, terrenos baldios e os quintais.
Aspectos históricos e sociais: O Distrito
Paroquial de Nossa Senhora das Brotas, antigo nome
do Município de Acorizal, foi criado em 1833,
subordinado à Freguesia de Nossa Senhora do
Livramento e suas origens estão ligadas à descoberta
do ouro em Mato Grosso. Relatos contam que duas
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famílias de portugueses fugiam às perseguições
políticas cuiabanas em 1817 e se arrancharam onde
hoje está assentada a igreja de Nossa Senhora das
Brotas, a padroeira do lugar. O garimpo, atividades
ribeirinhas e as plantações de canaviais foram as
forças formadoras do município de Acorizal. A área
da comunidade em estudo foi doada a três famílias
paulistas, sob a forma de sesmaria, para o plantio de
cana-de-açúcar. Com o declínio das atividades
canavieiras, devido à falta da mão-de-obra escrava
no final do século XIX, introduziu-se a pecuária,
atividade desenvolvida com o auxílio dos familiares.
Com o advento da borracha, Baús representou durante
longo período um ponto de pouso àqueles que
adentravam ao norte do Estado em busca dos
seringais. Após o declínio dos seringais, os caboclos
da Sesmaria de Baús passaram a sobreviver apenas
da agricultura, sendo que farinha de mandioca e
rapadura de cana de açúcar são seus produtos
principais.
Quando se trata de biodiversidade, inclui-se,
necessariamente, a diversidade cultural que se
manifesta através das práticas de manejo do solo,
do extrativismo, artesanato, linguagem, alimentação
e na estrutura social. Na agricultura praticada pelo
bauense, predomina o sistema itinerante tradicional,
denominado roça de toco (sistema de limpeza dos
solos em que as árvores são cortadas e queimadas,
porém o que resta de seus troncos, os tocos, não
são arrancados do solo), herdada da cultura indígena
Essa forma de manejo facilita a recuperação da área
e sua transformação mais rápida em capoeiras
(Gutberlet, 1994). As principais culturas locais são:
mandioca, milho, arroz, banana, melancia, abóbora,
maxixe e quiabo. A farinha de mandioca e a rapadura
de cana de açúcar fazem parte do comércio local,
sendo que não raro encontra-se no quintal o rancho
com os apetrechos de fabricar estes produtos.
Esforço de campo: As pesquisas foram
conduzidas durante sete meses, com duas visitas
mensais, duração média de dois dias cada,
totalizando cerca de 220 horas de trabalho. Como
todos os moradores trabalham nas roças ou tem
alguma relação direta com elas, optou-se por
entrevistar os moradores da área urbana da
comunidade que estivessem na residência no
momento da visita, possuíssem idade igual ou maior
que 18 anos e se disponibilizassem a participar da
pesquisa. Os dados levantados sobre os informantes
foram: sexo, idade, renda familiar, grau de instrução,
origem e tempo de residência no local. Sobre as
plantas foi pesquisado o nome regional, locais de
coleta, hábito, parte usada, modo de preparo, doença
ou sintoma e forma de uso. Foi utilizado o método de
observação participante e entrevistas semiestruturadas, usando a seguinte pergunta como eixo
central: o senhor (a senhora) conhece alguma planta
usada para tratar alguma doença? A partir desse
questionamento inicial eram criados novos
questionamentos considerando as variáveis da
pesquisa (nome regional da planta, local de coleta,
parte usada, forma de preparo do remédio, doença
ou sintoma), deixando liberdade ao entrevistado para
as respostas (Etkin, 1993; Martin, 1995; Alexiades,
1996). As entrevistas foram gravadas com a
permissão dos entrevistados e, durante a organização
dos dados, foi criada uma tabela com as variáveis no
Programa Epi Info, para facilitar a análise. No sentido
de delimitar a amostra populacional com dados
significativos e otimizar custos, optou-se por construir
uma curva indicando o número de espécies novas /
número de informantes.
Identificação dos taxa: Amostras férteis
das plantas indicadas foram coletadas de modo usual,
com o auxílio dos informantes, herborizadas para
posterior identificação no laboratório. Como a maioria
das espécies indicadas foi de plantas comuns de
quintais, ruderais e nativa do Cerrado e Pantanal, os
taxa foram identificados pelo Dr. Germano Guarim
Neto, pelo Técnico do Laboratório de Botânica (IB/
UFMT) Sr. Libério Amorim Neto e por esta
pesquisadora, sensu Cronquist (1988), através de
comparação com exsicatas depositadas no Herbário
Central de Mato Grosso e consultando bibliografias
técnicas como Argoviensis, 1868, 1874, 1888;
Bentham, 1862, 1876; Barroso et al., 1984, 1986,
2002; Lorenzi, 1991a, 1991b, 1992 e Joly, 1993.
Para a verificação da validade dos nomes foi
consultado o Index Kewensis (www.ipni.org.br) e os
nomes dos autores foram padronizados de acordo
com Brummit & Powell (1992). As amostras foram
encaminhadas ao Herbário Central de Mato Grosso
(HC), para incorporação ao acervo. Os dados foram
organizados no Programa Epi-Info, versão 6 (Dean et
al., 1994) para a organização de tabelas e gráficos.
RESULTADO E DISCUSSÃO
Número e características dos informantes:
A curva número de espécies novas / informantes
estabilizou-se com 191 espécies e 72 informantes;
81,1% das espécies citadas ocorreram nas 30
entrevistas iniciais. Da 31a até a 60a entrevista, houve
um acréscimo de 13,8%; a partir da 68a entrevista
não foi verificado o relato de uso medicinal de novas
plantas, tendo sido considerado o esforço de campo
suficiente para o trabalho. Outros trabalhos de
etnobotânica elegem diversos números de
entrevistados para diferentes tamanhos das
comunidades estudadas, não tendo sido observado
um padrão (Shanley & Rosa, 2004; Fonseca-Kruel &
Peixoto, 2004; Medeiros et al., 2004).
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FIGURA 1. Localização da área de estudo.
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A idade dos informantes variou entre 19 e 84
anos, 75% com origem e residência na comunidade,
o restante com origem em locais vizinhos, mas
residindo em Baús; 50% do total de entrevistados
residem em Baús entre 31 a 84 anos. 93% dos
entrevistados eram analfabetos ou semi-analfabetos
e 60% do sexo feminino.
Taxa utilizada: Nesta pesquisa foram
identificadas 65 famílias botânicas compostas por 160
gêneros e 191 espécies (Tabela 1), distribuídas em
duas divisões de plantas vasculares sensu Cronquist
(1988). Pteridophyta, com a família Polypodiacae e a
espécie Polypodium leucatomus Poir obteve apenas
uma citação de uso, enquanto que a Divisão
Magnoliophyta com 64 famílias e 190 espécies
representou 99,94% das citações de uso na medicina
caseira local. Dentro desta divisão, Magnoliopsida e
Liliopsida foram citadas à razão de 21,4:1, com 57 e
sete famílias, respectivamente. Nesta classe apenas
Colônia (Alpinia speciosa K.Schum.), Capim santo
(Cimbopogon citratus (DC) Stapf.) e Salsa (Smilax
benthamiana A. Dc.) obtiveram mais de 10 citações
de uso cada uma. (Tabela 1). Resultados similares
foram encontrados em trabalhos que comparam o uso
das duas classes e, provavelmente, a pequena
importância medicinal das Liliopsida pode ser devido
à morfologia inconspícua dessas plantas (Leonti et
al., 2003; Silva & Andrade, 2005).
Todas as subclasses de Magnoliopsida estão
representadas e, quando comparadas entre si, as
subclasses filogeneticamente mais evoluídas
(Asteridae, Rosidae e Dillenidae) somaram três, seis
e cinco vezes mais o número de famílias, espécies e
citações, respectivamente, que as outras (Tabela 2).
Rosidae apresentou o maior número de famílias e de
espécies (18 e 74, respectivamente), porém, as
espécies englobadas em Asteridae encontraram mais
usos na medicina local (35% das citações). A família
mais citada foi Fabaceae (12%), mas quando
analisada a relação número de citações / número de
espécies, a família Loganiaceae apresentou 124:1,
enquanto Fabaceae 8:1. O acentuado uso medicinal
da família Fabaceae pode ser explicado pelo grande
número e diversidade de espécies que compõe esta
família, sendo a maior do Cerrado, enquanto que o
uso acentuado de Loganiaceae pode ser explicado
pela escolha de espécies vegetais ricas em
compostos químicos de ação farmacológica, inseridas
em níveis elevados do modelo científico evolutivo.
Strychnos pseudoquina, a espécie com o maior
percentual de citações de uso na medicina caseira
local, pertence à mais evoluída subclasse das
Magnoliophyta sensu Cronquist (Asteridae) dentro da
ordem Gentianales, rica em iridóides, que no gênero
citado possui propriedades relaxantes musculares e
curarizantes (Barroso et al., 1986). Estes resultados
indicando a predominância do uso tradicional de
plantas inseridas nos modelos taxonômicos
concebidos evolutivamente estão de acordo com as
discussões de Gottlieb & Borin (2002). Analisando
outros trabalhos de etnobotânica, por exemplo, aquele
realizado na região de Cabo Frio, Rio de Janeiro
(Fonseca-Kruel & Peixoto, 2004), observa-se que 50%
das famílias usadas na medicina pelos pescadores
artesanais estão englobadas nas subclasses
Asteridae e Rosidae enquanto que, no trabalho de
revisão da flora medicinal de Mato Grosso, baseado
em pesquisas etnobotânicas, Guarim Neto & Morais
(2003) levantaram 96 famílias, das quais cerca de
62% pertencem às subclasses Dillenidae, Rosidae e
Asteridae, contra 20% nas subclasses Magnoliidae,
Caryophyllidae e Hammamelidae e 18% em outros
grupos filogenéticos. Esses resultados são similares
aos achados no presente trabalho e fortalecem a teoria
de Gottlieb & Borin (2002), sobre a conexão entre
etnobotânica e os níveis organísmicos vegetais,
propiciando o desenvolvimento de propostas holísticas
mais reais para a conservação da diversidade de
recursos vegetais.
Relação espécies nativo-exóticas X habitats:
Cerca de 60% das espécies levantadas são nativas,
sendo que 40% foram coletadas no Cerrado (l.s.), e
20% em várzeas e matas; o restante são exóticas,
cultivadas ou ruderais. Dentre as espécies nativas,
Strichnos pseudoquina destacou-se pelo percentual
de citações (7,27), seguida de Dorstenia asaroides
(2,93), Andira humilis (2,64), Lafoensia pacari (2,29)
e Siparuna guianensis (2,23). Esses índices se devem
ao perfil rural da comunidade que permite maior
utilização das espécies nativas, porém observa-se a
influência da cultura européia e africana com o uso
acentuado de plantas ruderais exóticas manejadas
como Chenopodium ambrosioides e Alternanthera
brasiliana. Ao redor das casas foram observados
quintais, com ampla diversidade de espécies exóticas
e algumas nativas como Potomorphe umbelata e
Polypodium leucatomus, usadas para fins medicinais.
Outros estudos etnobotânicos evidenciam que a
maioria da população pesquisada mantém o cultivo
de espécies em quintais ao redor das residências,
usadas para diversos fins, principalmente medicinais
(Coe & Anderson, 1999; Medeiros et al., 2004).
Souza & Guarim Neto (1999) estudando duas
comunidades ribeirinhas do Pantanal de Mato Grosso,
relacionaram o uso etnobotânico de 140 espécies
distribuídas em 10 etnocategorias, sendo que a
categoria medicinal alcançou 49%, relacionando
espécies nativas (70,47%) e exóticas manejadas ou
ruderais. Nos trabalhos de síntese realizados por
Vieira & Martins (2000) para o Cerrado e por Guarim
Neto & Morais (2003) para o estado de Mato Grosso
foram relacionadas, respectivamente, 270 e 509
espécies em uso medicinal. Respeitando as devidas
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TABELA 1. Plantas medicinais de Baús com freqüência absoluta de citação (Fac) =10, de acordo com a espécie, família, habitat (Ha), hábito (Hb), sintomas/
doenças, parte usada (PU) e remédio. Legenda:n=nativa; e=exótica; h=herbáceo; ab=arbusto; sb=subarbusto; av=árvore; t=trepadeira; al=alterado; v=várzea;
c=cerrado (senso amplo) m=mata; q=quintal; f=folha;r=raiz; rm=ramos; c=caule; cn=cerne; ct=córtex do caule; tp=toda a
planta;fl=flores;rz=rizoma;s=sementes;cf=casca do fruto; l=látex.
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proporções, uma vez que os primeiros autores
analisaram apenas trabalhos publicados em
periódicos, num total de sete, citando somente plantas
nativas do Bioma, os segundos autores analisaram
50 trabalhos sob a forma de monografias,
dissertações, teses e artigos, citando espécies
nativas e exóticas para o Bioma, observa-se a
diversidade de usos medicinais que a população do
Cerrado encontra para as espécies vegetais. Medeiros
et al. (2004) pesquisaram uma comunidade da Zona
Litorânea, estado do Rio de janeiro e encontraram 36
espécies plantadas ao redor das residências
relacionadas em 28 usos medicinais, sendo
Chenopodium ambrosioides a espécie mais citada;
Fonseca-Kruel & Peixoto (2004) também pesquisando
comunidades de pescadores litorâneos observaram
que 68 espécies vegetais são utilizadas em seis
etnocategorias, sendo que a categoria plantas
medicinais ocupa o segundo lugar, com espécies
nativas do Cerrado, por ex. Achyrocline satureoides
ou manejadas (Chenopodium ambrosioides). Os
resultados do presente trabalho demonstram o uso
medicinal de 191 espécies, 60% das quais nativas,
quando comparados com diversos trabalhos
realizados em outras comunidades, de diferentes
perfis culturais, do Cerrado e outros biomas,
demonstram que a população de Baús conhece uma
grande diversidade de vegetais, usados com fins
medicinais.
Partes dos vegetais usadas e preparo dos
remédios: Os moradores da comunidade de Baús
usam diferenciadamente todas as partes dos vegetais,
dependendo do tipo de remédio que preparam, porém,
folhas, raiz e córtex do caule foram as mais usadas
(31, 23 e 21%, respectivamente). Outras partes foram:
toda a planta, ramos, rizoma, flores, cerne, látex, fruto,
sementes, óleo, estigma e palmito, representando
25% no total. O uso acentuado de remédios
preparados com a raiz de espécies nativas como
Andira humilis, Dorstenia asaroides, Heliotropium sp,
Cordia insignis, Jacaranda decurrens (Tabela 2), ou
da planta toda (Polygonum acre), representa uma
preocupação para a conservação da diversidade dos
recursos genéticos medicinais do Cerrado, porque
ainda não existem tratos silviculturais relacionados a
essas espécies; no entanto, elas são largamente
comercializadas em feiras livres ou casas de comércio
de plantas medicinais em diferentes cidades do Centro
Oeste.
Entre as formas de preparo dos remédios,
foram citados com mais freqüência os chás (não
houve diferenciação entre infuso ou decocto)
representando juntos 42%, banhos com 16%,
macerado e garrafadas 25%. O macerado pode ser
preparado na água ou no álcool, da seguinte forma:
coloca-se a planta amassada (socada) em água ou
no álcool, de uma a 24 horas, dependendo da
natureza da parte usada. Quando se trata de folhas
ou flores, o remédio está pronto em poucas horas.
Quando se trata de entrecasca, raiz ou caule, demora
até 24 horas o preparo do remédio. A garrafada é
preparada cortando partes de plantas, geralmente
córtex do caule ou raiz, ou todo o caule e/ou raiz,
frutos e sementes, sempre em quantidades indicadas
para a doença considerada e colocando num vidro de
cachaça ou de vinho branco. Foi comum encontrar
garrafadas em “bolichos” (nome regional de pequenos
armazéns), indicadas pelo proprietário como tônicas
e afrodisíacas, usadas em problemas de fraquezas
em geral e rouquidão.
Doenças/sintomas X remédios: o conceito
de doença na comunidade estudada confunde-se com
o conceito de sintomas e pelo fato de ter sido
encontrado no imaginário da comunidade doenças
não descritas pelo conhecimento ocidental (doenças
que médico não conhece) a autora preferiu transcrever
tal e qual os informantes repassaram. Doenças que
médico não conhecem são:
1. Corrução: é uma doença que dá uma dor
danada no corpo, nos ossos, dá febre e muito sono.
Dá dormideira que é quando a pessoa ou criança não
tem ânimo e só quer dormir.
2. Malina: dor de cabeça, bota até sangue
do nariz. Dá porque toma muito sol na cabeça, a
cabeça esquenta e a pessoa fica agitada, ansiosa e
nervosa. Tem que lavar com remédio fresco.
3. Verme no sangue: dá em criança, fica
pálida, não quer comer e dá pra comer terra. Trata
com chá de frade com açúcar torrado, canela e erva
doce. A criança tem que tomar todo dia de manhã e
de noite, até ficar corada e abrir o apetite.
4. Mãe do corpo: é assim um baticum no
estômago e muita dor andando na barriga; é a mãe
do corpo, ela anda na barriga. Mulher apresenta mãe
do corpo porque não se cuida depois que descansa
(dá a luz). Não pode pegar peso, nem se abaixar,
não pode lavar roupa no rio e tem que comer comida
que não é reimosa.
5. Corrução no sangue: essa doença o
médico conhece como leucemia, o sangue fica ralo,
fraco, fica um sangue fino. A pessoa que tem isso
fica pálida, come pouco e tem dor e não sabe onde.
Cai cabelo, vai até morrer. Tem que trocar o sangue.
Genciana é boa, eu já vi gente aprumá.
6. Corrução intestinal: O intestino fica sujo,
com ventosidade, esquenta a barriga, assim como
febre por dentro. É corrução por dentro, no intestino.
Prá sarar, faz o polvilho de Amaro-leite e come na
comida até ter reação; depois toma muito chá de
planta fresca, prá refrescar o intestino. Pessoa que
bebe pinga tem muita corrução no intestino.
7. Frialdade: é uma dor que dá na cadeira e
desce prás pernas, pé da barriga, parece que a mulher
vai ter neném. As cadeira parece que vai abrir, aí tem
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que tomar banho de coisa quente, banho morno, não
por o pé direto no chão, usar meia.
8. Tiriça: Tiriça é o comecinho de hepatite;
se tá com tiriça, tem que tomá chá de Picão. Se virá
hepatite tem que tomá muito refresco de casca de
Cambará, Carvão branco e Acaiá.
9. Incandescência: é um calor nos pés até a
canela. Têm gente que fica até entrevado com
incandescência.
10. Sangue grosso: tem essas grosseiras
no corpo, a pele fica grossa, firidenta, qualquer
machucadinho, fica difícil prá sará. Isso é problema
de sangue grosso. Sai muita espinha, até furúnculo
e a pessoa fica ansiosa, irritada, não dorme direito.
O que eu acho bom é usar planta fresca, assim como
Velame, Carobinha, Salsa. No vinho branco ou faz
só na água mesmo, feito o refresco.
Foram indicados 120 tipos diferentes de
doenças ou sintomas, os principais foram inflamações
de mulher (9%), verminoses (5%), inflamações em
geral (4,5%) e sangue grosso (4,3%). Certamente, a
metodologia da pesquisa (entrevista na residência),
deve ter influenciado nestes índices, porém, outros
trabalhos citam plantas usadas regularmente contra
essas doenças (Hilgert, 2001; Fonseca-Kruel &
Peixoto, 2004; Almeida et al., 2005).
Em Baús, foi observada a idéia de que
algumas plantas são frias e outras são quentes e
que as plantas frias, “limpam” o sangue, o fígado, os
intestinos, “acalmam” o coração, os nervos, enquanto
que as plantas quentes “agitam” o sangue, o coração,
os intestinos, o fígado, “esquentam” os pulmões, os
rins. Outros trabalhos com medicina tradicional citam
a diferenciação das plantas em frias e quentes, sendo
que este conceito encontra origens nas teorias grecoromanas e, provavelmente, migrou para o Brasil
colonial, encontrando-se arraigada na cultura
interiorana (Queiroz, 1984; Morán, 1990; Botsaris,
1995).
As funções biológicas das plantas são muito
complexas, reguladas por seu arsenal genético e
químico, em conexão com as flutuações ambientais
(Gottlieb & Borin, 2002). Apenas recentemente o tema
da relação entre a etnobotânica e os níveis
organísmicos, morfologia, metabolismo e biogeografia
tem sido abordado. Os povos, sejam indígenas ou de
comunidades autóctones, têm conseguido selecionar
e agrupar espécies úteis na resolução de diferentes
problemas, principalmente visando melhor qualidade
de vida. Essa relação entre o etnoconhecimento e o
conhecimento ocidental, proporciona uma forma mais
precisa da implantação e desenvolvimento de
instrumentos, apontando propostas de uso
sustentável, com ação direta da comunidade.
Concluindo, é possível observar neste
trabalho que a comunidade usa uma grande
diversidade de recursos vegetais na medicina caseira
local, principalmente espécies inseridas nos grupos
mais evoluídos, de acordo com as classificações
filogenéticas aceitas, provavelmente devido à grande
diversidade de plantas ricas em compostos
medicinais nestes grupos e facilmente encontradas
nos biotas locais. A comunidade faz uso diversificado
dos ambientes, porém, a maior ocorrência das coletas
se dá no Cerrado sentido amplo, por ser esta a
fisionomia mais constante do Bioma Cerrado, possuir
grande diversidade de espécies vasculares e se
encontrar próximo às áreas de vivência. É grande a
importância desta fitofisionomia para a auto
sustentabilidade de populações autóctones do Bioma
Cerrado e a necessidade da implantação de projetos
de tratos silviculturais direcionados às espécies
medicinais nativas. O conhecimento de muitos
remédios caseiros, para diversas doenças/sintomas,
certamente resulta da interação entre os membros
da comunidade e comunidades vizinhas, troca oral
de receitas oriundas da medicina tradicional e das
tentativas de resolução dos próprios problemas de
doenças, face às deficiências do sistema de saúde
vigente e dificuldades que a medicina oficial encontra
para chegar às localidades interioranas.
AGRADECIMENTO
A autora agradece ao Instituto de Saúde
Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso pela
oferta do Programa de Pós Graduação em Saúde e
Ambiente; à CAPES, pela bolsa concedida; ao Dr.
Germano Guarim Neto, Diretor do Instituto de
Biociências, orientador e responsável pela
identificação da maioria das espécies nativas; a Dra
Vera Lúcia dos Santos Guarim, chefe de departamento
de Botânica e Ecologia do IB/UFMT, que gentilmente
disponibilizou o técnico de campo Sr. Libério de
Amorim Neto, a quem agradecemos pela identificação
de muitas espécies; à Dra Mirami Macedo, curadora
do Herbário Central da UFMT, pelo apoio logístico
incondicional. Agradece ainda ao Dr. Nilton César
Fridler, Dr. Ulisses Paulino de Albuquerque, pela leitura
crítica e sugestões e Dr. Marco Antônio Assis, pela
revisão do Abstract.
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