Resumo expandido

Questões de gênero revisitadas: divisão sexual do trabalho em um hipermercado
Naira Pinheiro dos Santos1
Palavras-chave: Gênero, Divisão sexual do trabalho, Trabalho em serviços
INTRODUÇÃO
O trabalho é histórica e culturalmente situado, é perpassado por representações sociais as
mais diversas, as quais conferem e encontram sentido nas formas dominantes de divisão
social num determinado contexto. Ele remete à dupla transformação de ser humano e
natureza, que é tanto de ordem material quanto simbólica. Quer se aborde o trabalho do ponto
de vista do que representa o ato de trabalhar, do sentido, da forma e conteúdo específicos por
meio dos quais ele se realiza, ou do ponto de vista do estatuto que tanto trabalho quanto
trabalhador/a ocupam numa determinada sociedade, este sempre engaja relações sociais – ele
constitui “uma categoria pertinente de ordenamento e hierarquização” (LALLEMENT, 2007,
p.28). Nesse sentido, tanto o lugar que o trabalho ocupa quanto o perfil dos sujeitos que a ele
têm acesso ou são submetidos e as condições sob as quais ele se realiza nos falam de
hierarquias socialmente estabelecidas, é atravessado, mas também pode definir o jogo de
relações sociais conflituosas, nas quais se inserem as relações de gênero.
O gênero é entendido aqui também como uma categoria relacional. Ou seja, não como um
conceito inerte ou isolado de ‘feminino’ e ‘masculino’, ‘homem’ e ‘mulher’ com
características inerentes ou naturais, mas como construção social de relações de dominação a
partir das diferenças percebidas entre os corpos (SCOTT, 1990). Estabelecidas
arbitrariamente, na medida em que não podem ser deduzidas da ‘natureza das coisas’, sejam
estas de ordem física, biológica ou espiritual, as representações de gênero constituem, assim,
um modo de significar e legitimar a diferenciação enquanto relações de poder, as relações
sociais de sexo. Estas não são imutáveis, mas mudam de acordo com as transformações da
estrutura material e das relações sociais ou que se impõem a partir da capacidade de
reinterpretação, resistência e negação dos sujeitos e/ou grupos sociais.
A naturalização das diferenças sexuais oculta o aspecto arbitrário dos princípios de divisão do
mundo social e de divisão social do trabalho, os quais são constitutivos das relações de
gênero ou relações sociais de sexo em determinado contexto. Estas, por sua vez, são
estruturantes e transversais ao conjunto do campo social (KERGOAT, 2009). Significa dizer
que as relações de gênero estruturam e atravessam também o mundo do trabalho, constituindo
o que se convencionou chamar de divisão sexual do trabalho. No contexto moderno esta é
caracterizada pelo estabelecimento de esferas separadas de trabalho de acordo com os sexos,
sendo que, num primeiro momento, o trabalho produtivo, remunerado, é atribuído
prioritariamente aos homens e o trabalho doméstico, gratuito, é destinado às mulheres. A
partir de meados do século XX, diversos fatores, dentre os quais a intensificação das lutas
feministas pela igualdade de direitos e o desenvolvimento de técnicas de controle reprodutivo
contribuíram para a crescente inserção das mulheres no mercado de trabalho. Não obstante os
ganhos daí decorrentes a divisão sexual do trabalho não pode ser considerada superada. O
trabalho reprodutivo segue sendo de responsabilidade predominante das mulheres,
conformando tanto as subjetividades das/os trabalhadoras/es quanto o tempo, tipo de
ocupações e valor material e simbólico do trabalho assalariado de acordo com o sexo. Por
outro lado, tanto trabalhadores/as quanto organizações empresariais se apropriam e/ou
instrumentalizam habilidades adquiridas por meio da socialização de gênero, de modo que, se
o gênero é estruturante do mundo do trabalho, este também é constituinte do gênero, das
1
Doutora em Ciências da Religião, Professora do curso de Administração de Empresas da Escola Paulista de Direito (EPD).
hierarquias sexuais: ele tanto discrimina “a mão de obra ideal” quanto sexualiza ou generifica
as próprias ocupações, que reforçam assim a diferenciação e a hierarquização das diferenças.
O setor terciário, bastante heterogêneo em termos de atividades e composto por comércio e
serviços, é o que tem absorvido o maior contingente de mão de obra feminina. A passagem
do modelo fordista ao toyotista com aumento da automação, terceirização, flexibilização da
produção e precarização do emprego figuram entre os fatores que promoveram forte
expansão do setor, principalmente a partir da década de 1990. Dentre os segmentos que o
compõem, o grupamento de comércio, reparação de veículos automotores e de objetos
pessoais e domésticos e comércio a varejo de combustíveis era o que, de acordo com os
indicadores do IBGE de 2011, apresentava a maior proporção de pessoas ocupadas no Brasil
(18,7%, absorvendo 17,5% das mulheres ocupadas). Uma vez que o contato ou o atendimento
a clientes constitui o núcleo central das suas atividades, a habilidade interpessoal figura entre
as competências requeridas dos/as trabalhadores/as nesse setor. Assim, tal qual na indústria, o
trabalho em serviços possui uma dimensão física e cognitiva. Porém este agrega outras
dimensões, a sexual e a relacional (SOARES, 2002), envolvendo, para além de qualificações
mais formais, competências adquiridas no processo de socialização e/ou atributos tidos como
subjetivos. Tais dimensões do trabalho em serviços também estão submetidas à divisão
sexual, denotando certas peculiaridades das relações sociais de sexo.
Para Kergoat, falar em termos de divisão sexual do trabalho “é articular a descrição do real
com uma reflexão sobre os processos pelos quais a sociedade utiliza a diferenciação para
hierarquizar essas atividades” (2009:72). É dessa interação que procuraremos tratar aqui,
refletindo sobre formas e implicações da instrumentalização de atributos e competências
‘sexuadas’ pelas organizações empresariais, particularmente no âmbito do setor de serviços,
com base em pesquisa de campo empreendida em 2009/2010, no Brasil e na França. Ambas
as empresas pesquisadas, Hypermarché e Textile2, são de origem francesa com atuação
também no Brasil. O Hypermarché atua no segmento de hipermercados e a unidade
pesquisada do grupo Textile atua na indústria têxtil.
METODOLOGIA
A nossa metodologia contemplou a realização de entrevistas junto a trabalhadores/as de
diversos níveis funcionais das empresas em questão, bem como o recurso a fontes primárias,
tais como dados relativos ao quadro de funcionários e aqueles divulgados no site institucional
das empresas. No caso do Hypermarché nos utilizamos também de exemplares da revista de
circulação interna da empresa tanto no Brasil quanto na França, além de termos tido a
oportunidade de observar murais e cartazes afixados nas áreas internas, destinadas a
funcionários/as, das lojas pesquisadas no Brasil. Abordaremos aqui aqueles aspectos mais
diretamente relacionados ao trabalho no setor terciário, de modo que nos referiremos
principalmente ao Hypermarché, embora eventualmente possamos nos referir também a
observados junto à Textile. Da mesma maneira, embora no contexto da pesquisa a nossa
análise tenha contemplado relações sociais de classe, raça/etnia, religiosas, nosso foco aqui
repousará principalmente sobre as relações de gênero.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A naturalização de certas habilidades geralmente associados ao papel doméstico e de mãe
como essencialmente femininas, horários e condições de trabalho consideradas incompatíveis
com o seu papel na família, pressupostos sociais acerca do “corpo feminino” e da sua
capacidade de sedução compõem a lista de fatores em torno dos quais os/as entrevistados/as
2
Com o objetivo de preservar a identidade das empresas nos utilizamos de nomes fictícios. Adotamos o mesmo
procedimento em relação aos nomes dos sujeitos entrevistados.
procuram evidenciar a adequação/presença e/ou ausência/inadequação das mulheres em
determinados postos. Embora possa haver alguma variação entre esses padrões e atributos – e
embora os femininos possam ser considerados às vezes inferiores e às vezes superiores aos
masculinos (SOARES, 2002) – eles têm por efeito justificar a segmentação e a hierarquização
de ocupações por sexo. Do mesmo modo, a norma social que atribui às mulheres a
responsabilidade pela conciliação entre trabalho profissional e afazeres domésticos, mas
exclui os homens dessa problemática (KERGOAT e HIRATA, 2008) norteia as prescrições e
práticas organizacionais quanto a rotinas, horários, critérios de dedicação, padrões de
mobilidade e outros critérios determinantes da ascensão profissional. Camufladas sob o
critério de competência, mas moldadas a partir de referenciais masculinos, horários tardios e
a exigência de mobilidade impõem obstáculos à inserção e ascensão profissional das
mulheres em condições de igualdade com os homens. Assim, enquanto os postos nos caixas–
de baixa remuneração e prestígio social - são ocupados por mulheres, os postos executivos no
Hypermarché são ocupados predominantemente por homens. A ligeira predominância de
mulheres no quadro funcional do Hypermarché pode ser atribuída em grande parte à sua
presença quase absoluta na função de caixa (95% no Brasil) a qual corresponde a uma parcela
considerável dos postos de trabalho na empresa. Atributos considerados femininos, como
paciência, gentileza, polidez no trato, hospitalidade (ou habilidade de fazer o/a cliente
“estrangeiro/a” se sentir “em casa”), além da boa apresentação física e o sorriso permanente
nos lábios, são considerados requisitos necessários à “sedução” e fidelização dos/as clientes.
CONCLUSÕES
Contemplando boa dose de trabalho relacional/emocional e sexual, verifica-se que a divisão
sexual do trabalho, atinge também essas dimensões do trabalho em serviços.
Embora componham os critérios de admissão e permanência no posto de caixa e sejam alvo
de estratégias organizacionais visando a sua otimização, tanto no Brasil quanto na França, as
competências engajadas pelas trabalhadoras no Hypermarché não são reconhecidas como tal.
Por um lado elas são vistas como atributos ‘naturais’ das mulheres, contribuindo para a
feminização da função. Por outro lado, as estratégias organizacionais de instrumentalização e
otimização de tais atributos concorrem para a reprodução dos estereótipos de gênero. Apesar
do efeito de ocultamento que as representações que encontra êxito no fato de que “a
diferenciação de indivíduos é interiorizada” (HIRATA, 2002, p.241), isso não significa que
as lógicas de dominação sejam completamente desconhecidas das mulheres, que buscam
estratégias de resistência.
BIBLIOGRAFIA
HIRATA, Helena, KERGOAT, Danièle. Divisão sexual do trabalho profissional e doméstico:
Brasil, França, Japão. In: COSTA, Albertina de Oliveira et al. (orgs.). Mercado de Trabalho e
Gênero: comparações internacionais. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008, p. 263-278.
HIRATA, Helena. Nova divisão sexual do trabalho? Um olhar voltado para a empresa e a
sociedade. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.
KERGOAT, Danièle. Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo In: HIRATA,
Helena, LABORIE, Françoise, LE DOARÉ, Hélène, SENOTIER, Danièle (org.). Dicionário
Crítico do Feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 67-75.
LALLEMENT, Michel. Le travail. Une sociologie contemporaine. Paris: Gallimard, 2007.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica In : Educação e Realidade,
vol.16, nº 2, Porto Alegre, 1990, p. 5-22.
SOARES, Ângelo. Le prix d’un sourire. Travail émotion et santé dans les services. In:
HARRISSON, Denis e LEGENDRE, Camille (org.). Santé, sécurité & transformation du
travail: réflexions et recherches sur le risque professionel. Québec: Presses de l’Université du
Québec, 2002, p. 229-250.