A década neoliberal no Brasil: mercado de trabalho e relações trabalhistas na Era FHC Michelangelo Marques Torres | Tucanos: […] alimentam-se de pequenos frutos, e não raro pilham ninhos de outras aves. São sociais, vivendo em pequenos bandos. (Novo Dicionário Aurélio). Ao assumir seu primeiro mandato na Presidência da República, FHC anunciava seu plano de classe: “modernizar o Brasil” (com a proposta de um novo Renascimento[1]) a partir da integração da economia nacional aos ditames da globalização financeira internacional. Para tanto, incentivava a equiparação da moeda nacional ao dólar (com elevação dos juros) e o incentivo do investimento aos mercados financeiros. Se o governo anterior de Collor-Itamar, apesar de ter iniciado o desmonte neoliberal, havia se caracterizado pela aventura bonapartista[2], sua gestão deveria ser marcada pela racionalidade exacerbada de um Estado gerencial que ajustasse os movimentos sociais na defensiva – foi o caso emblemático do enfrentamento violento a greve geral dos petroleiros[3] – e aprofundasse os interesses do imperialismo no país. O príncipe dos sociólogos e da burguesia, como ficaria conhecido posteriormente FHC, consolidou o que se entende por neoliberalismo no Brasil. As mutações do mundo do trabalho em escala internacional processadas nas últimas décadas têm sido imensas e desafiadoras. O objetivo desse artigo é realizar um balanço da dinâmica do mercado de trabalho e das relações trabalhistas no Brasil durante a passagem da década de 1990 para os primeiros anos da década de 2000. A década neoliberal O símbolo apologético do ideário dominante na década de 1990 pode ser expresso no polêmico e ideológico Fim da História[4], seguido pelo “fim do socialismo real” e “fim das ideologias”. Com o desmoronamento do Leste europeu e o fim dos ex-estados operários burocratizados, a ofensiva neoliberal se instaurou e se apresentou como portadora de um caráter vitalício. Se, por um lado, as revoluções políticas e democráticas de 1989-1991, com ampla mobilização popular, derrubaram regimes stalinistas burocratizados de partido-único (elemento progressivo), por outro, não foram capazes de reverter a restauração do capitalismo que já havia se iniciado nesses países (elemento regressivo). O abalo na esquerda mundial e na luta pelo socialismo foi monumental. Assim, o neoliberalismo que se iniciara na década anterior encontrou terreno subjetivo para se consolidar em inúmeros países. Trata-se de um fenômeno mundialmente articulado. No Brasil, o neoliberalismo iniciou-se tardiamente, nos anos 1990[5], combinado com a crise dos sindicatos a partir das transformações no mundo do trabalho[6]. No campo da classe trabalhadora e em seus organismos de representação, o sindicalismo transitou para uma fase regressiva em relação a década de 1980, absorvendo o chamado sindicalismo negocial. O avanço dos monopólios privados sobre a esfera estatal reduziu o poder público e impôs uma nova dinâmica na relação sindicato de trabalhadores, empresa e Estado (ARAÚJO 2002). Na mesma década surgiu a Força Sindical, adepta em grande medida a plataforma neoliberal e próxima aos interesses patronais. O sindicalismo enveredou-se pelos meandros da acumulação do capital e no abandono de uma política classista, sendo emblemático o papel regressivo da CUT nessa década (WELMOWICKI 2004), cuja oscilação e estratégia sindical adotada passa a ser a do “sindicalismo propositivo”, valorizando as negociações com o governo e com os empresários – acomodação à ordem neoliberal (BOITO JR 2002). Marcada pela desertificação neoliberal (ANTUNES 2005) e pela financeirização e mundialização do capital, responsáveis por impor a lógica do mercado, a década de 1990 no Brasil teve um impacto negativo na estrutura do mercado de trabalho (POCHMANN 2001) com avanço da informalidade, corrosão dos salários, contínua concentração da renda, índices recordes de desemprego e ofensiva de desmonte na legislação trabalhista. Com a abertura do mercado (economia integrada a mundialização do capital)[7] e medidas de flexibilização do trabalho, sob a égide do Consenso de Washington, o país se viu disputando recorde mundial em desregulamentação neoliberal, como demonstra a pesquisa de Pochmann e Borges (2002), adotando jornada, contratação e remuneração flexíveis como eixos centrais. Os trabalhadores viram-se trabalhando mais intensamente e com menos direitos. O governo Collor anunciava um projeto de “modernização”, mas na verdade realizou uma integração subordinada da economia brasileira na nova divisão internacional do trabalho. Desestimulou o parque produtivo do país, congelou preços e salários, levando a profunda crise que viria gerar sua deposição. O programa do governo que o sucedeu, de FHC e de seu partido (que reunira uma parcela significativa do empresariado[8]), já estava, desde o início, alinhado e comprometido com o patronato, a exemplo das recomendações do livro da FIESP Livre para Crescer, o qual sugeria pedagogicamente o predomínio do capital sobre a administração pública, convertendo-a em mera atividade gerencial “de administração de conflitos”[9]. Sua política ancorou-se na abertura econômica e financeira indiscriminada e na sobrevalorização da moeda e nos elevados juros. Logo em seu primeiro mandato (1995-1998), FHC valeu-se de um pacote de reformas orientadas para o mercado, dando solidez ao desmonte social neoliberal em seu mandato seguinte (1999-2002), com desequilíbrio das contas públicas e externas, sob os ditames do FMI (Fundo Monetário Internacional). O processo expansivo de privatizações veio com o discurso de reduzir a dívida pública, no entanto, esta não parou de crescer. No que se refere às relações de trabalho, tanto os direitos trabalhistas quanto a proteção social estiveram cada vez mais subordinados à acumulação flexível de capital a partir do período considerado (KREIN 2007). Se Collor deu início às privatizações na siderurgia, na petroquímica e na indústria de fertilizantes, FHC estendeu a privatização para a telefonia e telecomunicações, transportes, energia elétrica, dentre outros. A desregulamentação do processo de trabalho se intensificou com o advento da terceirização, a qual promoveu a deterioração do mercado de trabalho, com inúmeras irregularidades nos contratos de trabalho e ampla liberdade de ação às empresas. Mudanças pontuais na legislação trabalhista promoveram maior autonomia para os empregadores na contratação e definição da jornada e remuneração de trabalho, com ampliação das possibilidades de contrato temporário, indexação dos salários, criação do contrato por tempo determinado e facilidades para contratação de pessoa jurídica (PJ) – empregados contratados como autônomos ou pessoa jurídica – e da utilização de falsas cooperativas de mão de obra terceirizada (“as coopergatos”). Com a reforma do Estado levada a cabo pelo ministro Bresser Perreira, implantou-se expressivas medidas jurídicas flexibilizantes na respectiva década[10]: Lei n. 8.949, de 9/12/94, que permite a contratação de trabalhadores via cooperativa, legitimando, assim, perda de vínculos trabalhistas; Lei 9.601/1998 que criou o “contrato provisório”; Lei n. 9.608/98 que versa sobre o trabalho voluntário (não remunerado) nas empresas; Medida Provisória 1.952-18/99 que instituiu o contrato por tempo parcial, com salário por hora proporcional à jornada. Na mesma década, flexibilizou-se juridicamente a possibilidade do trabalho aos domingos no comércio e instituiu-se o sistema de banco de horas (Lei n. 9.601/1998) para facilitar a extensão da jornada de trabalho, evitando a gratificação adicional por horas extras trabalhadas. Os efeitos perversos sobre o mundo do trabalho se agravaram a medida em que o país se subordinou à lógica da nova divisão internacional do trabalho, adotando medidas de liberalização comercial desenfreada, desregulamentação financeira, atração de investimento para o capital estrangeiro, privatizações desmedidas, adoção generalizada às terceirizações e expansão da precarização social do trabalho. Em 1999 o Brasil ocupava o terceiro lugar mundial em volume de desemprego aberto (5,61% do total do desemprego mundial), com piora nas condições de vida dos trabalhadores e imensa concentração de renda. Entre 1989 e 1999, junto com a onda de privatizações, o desemprego saltou de 1,8 milhão para 7,6 milhões de pessoas, com elevação da taxa de desemprego aberto de 3% para 9,6% da PEA (População Economicamente Ativa)[11]. Esse foi o impacto da reestruturação produtiva e das medidas de um Estado gerencial adotadas pelos governos Collor e intensificadas por FHC, no ímpeto de potencializar a acumulação de capital financeiro. O ciclo de privatizações do período – como a Telebrás – foi financiado por verbas públicas, conforme lembra Braga (2012): um dos grandes paradoxos desse processo, para além dos escândalos associados ao favorecimento de grupos empresariais vinculados ao governo, é que o ciclo de privatização do setor de telecomunicações – que, a um só tempo, precarizou e eliminou direitos dos trabalhadores, fragilizou os sindicatos e aumentou o desemprego no setor – foi em grande parte financiado por recursos do Fundo Amparo ao Trabalhador (FAT). Em síntese, a década de 1990 foi marcada pelo desemprego, atingindo a marca de 13% em 2000 (aumento exponencial em relação a década de 1980, que vivenciou taxas de 4,5 e 5%), assim como pela redução do poder sindical e a repressão aos movimentos sociais. De 1995-1998 a redução do emprego formal foi evidente, atingindo a marca de eliminação de cerca de 900 mil empregos formais logo no final do primeiro mandato de FHC[12]. Na agropecuária o emprego também diminuiu ao longo da década, ainda que o setor tenha se expandido em termos produtivos. “Foi notável a redução do emprego nas grandes empresas, especialmente as da indústria de transformação, construção civil, serviços de utilidade pública, finanças e transporte” (KREIN e BALTAR 2013, p.281). Assim, entre 1995 e 2004, ocorreu perda de 9% do peso relativo da renda do trabalho em relação a renda nacional, enquanto a renda oriunda da propriedade cresceu 12,3% (POCHMANN 2012). Em 1990, no contexto de reestruturação produtiva, a incorporação de novas tecnologias em substituição de uma parcela significativa de trabalhadores nas empresas competitivas – mudanças tecnológicas em todos os setores da economia ocasionaram ganhos de produtividade às empresas – provocaram demissões massivas de trabalhadores. A fim de ilustrarmos esse argumento, em 1980, segundo a ANFAVEA (Associação da Indústria automobilística), a produção de veículos foi da ordem de 1.165.174 unidades, com emprego de 133.683 trabalhadores (uma média de 8,7 veículos por trabalhador); em 1996, 1.813.881 de automóveis foram produzidos por 102.072 trabalhadores (uma média de 17,8 carros por trabalhador). Ou seja, alta produtividade e eliminação de postos de trabalho, o que acarreta maior intensificação do ritmo de trabalho para os que permanecem ocupados. Da mesma forma ocorreu no setor bancário da década de 1990 a metade de 2000, que segundo a FEBRABAN (Federação Brasileira de Bancos), foram eliminados, aproximadamente, 250 mil postos de trabalho, ao mesmo tempo em que a reestruturação produtiva nos bancos, no mesmo período, elevou de maneira exorbitante a taxa de lucro dos bancos privados e a intensificação do ritmo de trabalho. Importante mencionar, ainda, a privatização de importantes serviços públicos que geraram enorme quadro de desemprego na segunda metade da década. Objetivando minimizar o papel regulador do Estado no mercado e flexibilizar a frágil legislação trabalhista erguida a partir de Vargas com sua “promessa integradora”, as relações de trabalho e emprego estiveram profundamente ameaçadas na década de 1990 sob o fenômeno da flexibilização. Desestruturação do mercado de trabalho, elevação do desemprego (recorde), avanço da informalidade, medidas de flexibilização e adesão as privatizações, terceirização da força de trabalho e redução dos gastos sociais do Estado. Essas foram as transformações do capitalismo no Brasil sob o receituário neoliberal. Sem contar o ataque brutal promovido ao sindicalismo brasileiro. O Brasil, conduzido pelo príncipe dos sociólogos, se viu afundado em berço esplêndido dos interesses do capital financeiro internacional. Esse parece ter sido o resultado do (ir)racionalismo na década de 1990 e o legado para a década seguinte, cujo mercado e relações trabalhistas analisaremos em outra oportunidade. — Referências: ANTUNES, Ricardo. A desertificação neoliberal no Brasil (Collor, FHC, Lula). Campinas, SP: Editores Associados, 2005 ARAÚJO, Angela (org.). Do corporativismo ao neoliberalismo: Estado e trabalhadores no Brasil e na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2002. BOITO JR, Armando. “Neoliberalismo e corporativismo de Estado no Brasil”. In: ARAÚJO, Angela (org.). Do corporativismo ao neoliberalismo: Estado e trabalhadores no Brasil e na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2002. BRAGA, Ruy. A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. São Paulo: Boitempo, 2012. CARDOSO, F.H. Entrevista. Esquerda 21. 1/2, Brasília, 1996. CARDOSO, Adalberto Moreira. A década neoliberal e a crise dos sindicatos no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2003. DÓRIA, Palmério. O Príncipe da Privataria: a história secreta de como o Brasil perdeu seu patrimônio e Fernando Henrique Cardoso ganhou sua reeleição. São Paulo: Geração Editorial, 2013. FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992. KREIN, J.D; BALTAR, P.E.A. A retomada do desenvolvimento e a regulação do mercado de trabalho no Brasil. Caderno CRH, Salvador, vol. 26, n.68, maio/ago.2013. KREIN, José Dari. As tendências recentes nas relações de emprego: 1990-2005. 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O discurso era que a modernidade tinha uma meta (conforme o dicionário do capital) claramente definida: minimizar o papel regulador do Estado no mercado e flexibilizar a legislação trabalhista no Brasil. [2] Referência ao segundo Bonaparte, o sobrinho, cujo governo golpista, na França, Marx caracterizou como “tragédia”. [3] Em medida similar ao caso brasileiro, para instalar o governo neoliberal na Inglaterra, Margaret Thatcher, a Dama de Ferro, teve que vilipendiar a histórica greve dos mineiros de 1983/84. [4] Alusão a obra de Fukuyama (1992). [5] Fernando Collor de Mello foi eleito presidente em 1989 (pelo então PRN – Partido da Reconstrução Nacional). Ao sofrer processo de impeachment em 1992 foi substituído pelo vice, Itamar Franco, cujo curto mandato se findou em 1994. Neste ano, foi eleito o presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira), o qual obteve reeleição em 1998, em segundo mandato que se encerrou no ano 2002. Há inúmeras denúncias, inclusive de ex-parlamentares, que indicam suposta compra de votos do presidente para sua reeleição e alteração constitucional. A formalização das denúncias pode ser verificada em Dória (2013). [6] Importante observar que a década de 1980 sinalizou o crescimento do sindicalismo no Brasil, diferentemente da dinâmica dos países centrais no capitalismo. De seu renascimento na década de 1970 até 1989, o número de sindicatos cresceu 50% (CARDOSO 2003), junto com o número de greves. Por outras palavras, o advento neoliberal se consolidou tardiamente no Brasil. [7] Entre 1994 e 1998, o Investimento Direto do Exterior (IDE) duplicou de US$ 1.971 milhões para US$ 26.110 milhões, conforme Mattoso (1999, p.119). [8] Para ver o vínculo do partido de FHC com as entidades patronais mais organizadas do país, conferir o sugestivo título de Guiot (2006): Um moderno Príncipe para a burguesia brasileira: o PSDB. [9] Os interesses de tal administração “gerencial de conflitos” podem ser identificados na repressão aos movimentos sociais, como o MST, ao longo de seus dois mandatos (1995-2002), ou, ainda, o exemplo dos dois principais massacres de trabalhadores rurais no país, em Corumbiara (1995) e Eldorado de Carajás (1996), e da repressão à histórica greve dos petroleiros (1995), dentre outros. [10] Em 2001, FHC enviou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 5.483, que pretendia extinguir a CLT (alteração do art. 618) a fim de desmontar a legislação trabalhista. O PL aprovado em regime de urgência seguiu para o Senado, mas perdeu força política no ano seguinte. [11] Dada a dependência do mercado internacional, com a fuga de capitais em decorrência da crise da Ásia e da Rússia em 1997 e 1998, elevou-se no país a taxa de desemprego e a queda do poder de compra da renda do trabalho de 1998 a 2003 (KREIN e BALTAR 2013). Houve, ainda, declínio na taxa de crescimento do PIB e aumento da inflação no período considerado. [12] Dados do CAGEDD-Lei 4923, do Ministério do Trabalho.