excelentíssimo senhor doutor juiz de direito da vara da fazenda

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9ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE CHAPECÓ
EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ DE DIREITO DA VARA DA FAZENDA PÚBLICA
COMARCA DE CHAPECÓ – SANTA CATARINA
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA, por
sua Promotora de Justiça Substituta que ao final subscreve, no uso
de suas atribuições institucionais, vem, com fundamento nos artigos
127 e 129, incisos II e III, da Constituição da República Federativa do
Brasil e no artigo 5º da Lei Federal n. 7.347/95, propor a presente
AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM OBRIGAÇÃO DE FAZER
CUMULADA COM PEDIDO LIMINAR
contra o ESTADO DE SANTA CATARINA, pessoa jurídica de direito
público interno, na pessoa do senhor Procurador-Geral do Estado
com endereço na rua Saldanha Marinho, 189, Florianópolis/SC,
pelas razões de fato e de direito que passa a expor
1. DA LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO
A teor do artigo 127 da Constituição da República Federativa do Brasil, é o
Ministério Público “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, e dos interesses
sociais e individuais indisponíveis”, sendo uma de suas atribuições, conforme o
artigo 129, inciso III, da Lei Maior, “promover a ação civil pública para a proteção do
patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e
coletivos” – grifos não existentes nos originais.
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9ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE CHAPECÓ
Também o artigo 93 da Constituição do Estado de Santa Catarina reserva
ao Ministério Público “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos
interesses sociais e individuais indisponíveis” – grifo não existente no original.
Neste contexto, a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei n.
8.625/93) dispõe em seu artigo 25 ser função do Ministério Público, além de outras
previstas nas Constituições Federal e Estadual e em outras leis, a promoção do
inquérito civil e da ação civil pública para a defesa de direitos de relevância social.
No mesmo diapasão, a Lei Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei
Complementar Estadual n. 197/2000), na alínea c do inciso VI de seu artigo 82,
proclama ser função institucional do Ministério Público, entre outras, promover a ação
civil pública, na forma da lei, para “a proteção dos interesses individuais
indisponíveis, individuais homogêneos, difusos e coletivos relativos à família, à criança
e ao adolescente, ao idoso e às minorias étnicas” – grifo não existente no original.
Disciplinando a ação civil pública, a Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985,
após estabelecer, em seu artigo 1º, ser ela o instrumental adequado para as ações de
responsabilidade, dentre outros, por danos morais e patrimoniais causados a qualquer
interesse difuso ou coletivo, conferindo ao Ministério Público legitimidade ativa para o
seu exercício (artigo 5°, caput).
Com efeito, a atuação do Ministério Público, inegavelmente, intensificou-se
em áreas estrategicamente importantes para a sociedade, notadamente na seara do
meio ambiente, da moralidade administrativa e na defesa dos interesses coletivos,
difusos e individuais indisponíveis.
E, como tal, o direito indeclinável à saúde e à vida, objetos da ação civil em
tela, não poderiam escapar da atuação do Ministério Público.
Na espécie, em se tratando de potencial ofensa ao indisponível direito à
vida, consubstanciada na negativa de fornecimento de medicamento imprescindível ao
bem-estar de pessoa sem recursos para arcar com seus custos, o poder de ação é
exercitado pelo Ministério Público na qualidade de substituto processual de lesado
economicamente hiposuficiente.
A propósito,
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9ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE CHAPECÓ
O Ministério Público está legitimado à defesa de interesses individuais
homogêneos que tenham expressão para a coletividade, como os que digam
respeito à saúde ou à segurança da pessoas, ou o acesso das crianças à
educação. (Enunciado da Súmula n. 7 do Ministério Público de São Paulo).
2. DA COMPETÊNCIA
A Lei n. 7.347/85 estabeleceu como critério para fixação da competência,
em sede de ação civil pública, o foro do local onde ocorrer o dano (artigo 2º).
É de se ter em conta, ainda, que o artigo 21 do mencionado diploma legal,
determina que, na defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais,
aplicam-se os dispositivos do Título III da Lei n. 8.078/90 – Código de Defesa do
Consumidor.
Assim, da conjugação do artigo 2º da Lei de Ação Civil Pública com o artigo
93 do Código de Defesa do Consumidor, extrai-se que a competência para a
propositura da ação se define pelo local e pela extensão do dano.
Destarte, ressalvada a competência da Justiça Federal, na hipótese de
existir interesse da União, entidade autárquica ou empresa pública federal, tratando se
de dano de âmbito local, será competente o foro onde ele ocorreu ou deveria ter
ocorrido, reservando-se o foro da Capital do Estado ou do Distrito Federal apenas para
os danos de âmbito nacional ou regional (CDC, artigo 93, incisos I e II).
Paralelamente, o Código de Processo Civil dispõe que "é competente o foro
do lugar onde a obrigação deve ser satisfeita para a ação em que se lhe exigir o
cumprimento" (artigo 100, inciso IV, alínea d).
Neste contexto, cuidando-se de dano à direito individual indisponível, no
caso, à saúde de Lizete Luzia Agostini, ocorrido neste município, onde ela deixou de
receber o medicamento que necessita para o tratamento de grave doença, a
competência para o processo e julgamento da presente ação civil pública é mesmo do
Juízo da Fazenda da Comarca de Chapecó.
3. DOS FATOS
Em 12 de maio de 2004, Lizete Luzia Agostini procurou o Ministério Público
informando ser portadora de leucemia mielóide aguda, conforme atestam o mielograma
e o hemograma anexos.
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9ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE CHAPECÓ
A leucemia é uma doença maligna dos glóbulos brancos (leucócitos) de
causa não conhecida, cuja principal característica é o acúmulo de células na medula
óssea (local de formação das células sangüíneas), prejudicando ou impedindo a
produção dos glóbulos vermelhos (causando anemias), glóbulos brancos (causando
infecções) e plaquetas (causando hemorragias e manchas roxas). Depois de instalada,
a doença avança rapidamente, exigindo início de tratamento em curto espaço de tempo.
Não são necessárias maiores considerações sobre a gravidade do mal que
acomete a senhora Lizete Luzia Agostini, pois é de todos conhecidos os efeitos
nefastos e devastadores da leucemia.
No caso, o diagnóstico inicial da leucemia se deu em 11 de julho de 1999,
quando Lizete Luzia Agostini submeteu-se a sessões de quimioterapia durante três
meses e fez uso de ácido retinóico por mais um ano, acarretando o processo de
remissão da doença, isto é, sua estabilização, prosseguindo com acompanhamento
periódico junto ao Centro de Hematologia e Hemoterapia de Santa Catarina.
Entretanto, em 1º de abril de 2004 foi diagnosticada a recidiva da doença,
novamente passando Lizete Luzia Agostini por tratamento medicamentoso e sessões de
quimioterapia, não tendo obtido, infelizmente, resposta satisfatória ao tratamento.
Neste contexto, foi-lhe receitado o uso de Trióxido de Arsênico 10 mg,
medicamento importado dos Estados Unidos e cujo nome comercial é Trisenox, sendo
que as 60 (sessenta) ampolas de que necessita, segundo informações que obteve,
custariam em torno de R$ 40.000,00 (quarenta mil reais), valor de que não tem
condições de dispor.
Atualmente, Lizete Luzia Agostini vem buscando impedir o progresso da
doença mediante o uso de ácido retinóico, contudo, a eficácia desse tratamento é de
curto prazo,
sendo possível que o avanço seja obstado apenas por
alguns dias.
De ressaltar, ainda, que há possibilidade de ser realizado transplante de
medula óssea em Lizete Luzia Agostini, sendo que ela, inclusive, já encontrou doador
compatível na pessoa de seu irmão Evandro Luiz Agostini. Contudo, antes do
transplante, faz-se necessário “limpar” as células doentes de seu organismo, o que
somente será possível mediante o uso do Trióxido de Arsênico.
Tudo isso está relatado no termo de declarações anexo.
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9ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE CHAPECÓ
Quanto ao diagnóstico da doença e a necessidade do uso do Trióxido de
Arsêncio, tem-se a declaração e a receita firmadas pela médica oncohematologista que
vem atendendo a Lizete Luzia Agostini, bem como a solicitação de medicamento
dirigida à Chefe do setor de Oncohematologia do Centro de Hematologia e Hemoterapia
de Santa Catarina (documentos anexos).
A propósito, das declarações da médica Lygia G. B. Peters colhe-se:
A paciente acima é portadora de leucemia mielóide aguda, subtipo M3 (Cid
C92.4), recidivada agora em abril de 2004.
Realizou quimioterapia de reindução com ATRA + DAUNORRUBINA +
ARACYTIN de 5.4 a 11.04.04. Em 28.04.04 – 17 dias após término da
quimioterapia – realizou mielograma que revelou a presença de blastos, ou
seja ausência de resposta.
Nestes casos, a literatura tem preconizado uso de TRIÓXIDO DE ARSÊNICO,
com chances de remissão em torno de 80%. Nesta situação de 2ª remissão
completa, o paciente é submetido a transplante autólapo de medula óssea,
como consolidação.
Portanto tal medicação, não disponível em nossa instituição, seria de
fundamental importância para esta paciente. (sic) – grifos não existentes no
original.
Não há como negar, portanto, a premente necessidade de Lizete Luzia
Agostini fazer uso do medicamento Trióxido de Arsênico, única chance de sobreviver à
leucemia e poder realizar um transplante de medula óssea, valendo ressaltar que, no
seu caso, as chances de sucesso do tratamento são de aproximadamente 80% (oitenta
por cento).
Neste passo, cumpre observar que o trióxido de arsênico age mediante a
indução da morte das células doentes. Ministrado em pequenas doses, esse poderoso
poluente ajuda no tratamento de um tipo raro de leucemia.
Sobre a eficácia do medicamento em tela, veja-se trecho do artigo entitulado
“Trióxido de Arsênico em Leucemia Promielocítica: Cada Vez Mais Próximo da Cura”,
de Bernardo Garicochea, publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Cancerologia
(documento anexo).
Em 1997, Shen et al., de Xangai, demonstraram que o uso do trióxido de
arsênico (As2O3) era capaz de induzir remissão completa em pacientes com
leucemia promielocítica em recaída, após resposta inicial com ATRA. Neste
estudo, 14 de 15 pacientes em recaída retornaram ao estado de remissão
completa com doses de 10 mg/dia e sem qualquer efeito tóxico. A
remoção do arsênico da circulação era extremamente rápida e o conteúdo
acumulado em unhas e cabelo declinava rapidamente após a suspensão da
droga. A equipe do Memorial-Sloan Kettering Cancer Center, utilizando-se de
doses de 0.06 a 0.2 mg/Kg/dia de As2O3 em um grupo de 12 pacientes em
recaída pós ATRA, obteve remissão hematológica completa em 11 casos, com
remissão molecular (RT-PCR negativo para o transcrito PML-RARA) em 8
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9ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE CHAPECÓ
destes. Os efeitos adversos foram mínimos, incluindo rash cutâneo, fadiga,
dores ósseas e musculares, que responderam a analgésicos comuns. (texto
capturado
em
12
de
maio
de
2004,
em
http://www.rsbcancer.com.br/rsbc/5mperspectiva.asp?nrev=Nº5) – grifo não
existente no original
Em resposta ao pedido de fornecimento de Trióxido de Arsênico
encaminhado ao Centro de Hematologia e Hemoterapia de Santa Catarina, a médica
hematologista Ana Carolina Ribas declarou:
Em resposta à solicitação de trióxido de arsênico para paciente Lizete Agostini
portadora de LMA M3 recidivada, sem resposta após primeira tentativa com
ATRA e qumioterapia.
Apesar de realmente existir indicação de arsênico neste caso, o CEPON neste
momento não possui teto financeiro para a aquisição deste medicamento que é
importado, não disponível no mercado nacional. (sic) – documento anexo.
Cumpre esclarecer, ainda, que o fornecimento gratuito de medicamentos
pelo Sistema Único de Saúde – SUS está disciplinado pela Portaria n. 3.916/98, que
estabelece a Política Nacional de Medicamentos, determinando a formulação da
Relação Nacional de Medicamentos – RENAME, os quais serão distribuídos
gratuitamente para as populações necessitadas.
O fornecimento de medicamentos excepcionais ou de alto custo, por sua
vez, deve observar o teor da Portaria n. 1.318/02, do Ministério da Saúde, sendo que
apenas as drogas contempladas em referido diploma é que podem ser fornecidas pelo
gestor estadual do SUS.
A propósito, oficiada à Gerente de Saúde da 4ª Gerência Regional de
Saúde, com sede em Chapecó, a senhora Maria Aparecida Rossi Fagion, ela foi
enfática ao esclarecer que “não há possibilidade da 4ª Gerência de Saúde fornecer
medicamentos excepcionais ou de alto custo que não façam parte dos
medicamentos padronizados pela Secretaria de Estado da Saúde, sem que haja
determinação judicial neste sentido”, acrescentando que “os processos que
preenchem os critérios da Portaria 1318/02 do Ministério da Saúde e que contém
os medicamentos padronizados pela SES/SC são deferidos, caso contrário, serão
indeferidos” (ofício anexo – grifos e sublinhados não existentes no original).
No caso específico de Lizete Luzia Agostini, observando-se a RENAME
(anexa), a Portaria n. 1.318/98 (anexa) e a listagem de medicamentos padronizados
pela Secretaria de Estado de Saúde de Santa Catarina (anexa), verifica-se que o
medicamento Interferon não consta de nenhuma das referidas listagens, razão pela
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9ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE CHAPECÓ
qual o pedido de fornecimento de remédio excepcional ou de auto custo formulado por
ela foi indeferido na via administrativa.
De outra parte, muito embora o acesso à saúde pública seja assegurado a
toda a população (princípio da universalidade), independentemente de situação
econômica ou qualquer outra condicionante (princípio da igualdade), em contato
telefônico com a Medic Vip, importadora sediada em São Paulo (fone 011 5085-5888) que
distribui o Trisenox no Brasil, este Órgão apurou que cada caixa do medicamento,
contendo 10 (dez) ampolas, custa R$ 13.000,00 (treze mil reais), sendo que o tratamento
completo de Lizete Luzia Agostini, isto é, 60 (sessenta) ampolas, atingiria o valor de R$
78.000,00 (setenta e oito mil reais), preço impagável para uma auxiliar de enfermagem,
assim como para a grande maioria de nossa população.
Assim, diante da negativa de prover o medicamento, urge compelir o Estado
de Santa Catarina, por intermédio da Gerência Regional de Saúde local, a providenciar,
imediatamente, o fornecimento de Trisenox a Lizete Luzia Agostini, não restando outra
alternativa senão buscar a tutela jurisdicional, com a finalidade de se fazer valer os
preceitos constitucionais e infraconstitucionais que amparam o cidadão no que
concerne à saúde pública.
4. DO DIREITO
A Constituição da República Federativa do Brasil, após alçar a saúde à
condição de direito social (artigo 6º), estabelece ser ela “direito de todos e dever do
Estado” (artigo 196) – grifo não existente no original.
Em igual sentir, a Constituição do Estado de Santa Catarina, em seu artigo
153, confere à saúde, a um só tempo, o status de direito coletivo e de obrigação estatal,
a ser garantido “mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do
risco de doenças e de outros agravos e ao seu acesso universal igualitário às
ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” – grifo não existente
no original.
Já a Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990, dispondo sobre as condições
para promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento
dos serviços correspondentes, consigna que “a saúde é um direito fundamental do
ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis do seu pleno
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9ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE CHAPECÓ
exercício”, consistindo o dever estatal “[...] na formulação e execução de política
econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e
no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às
ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação” (artigo 2º) –
grifos não existentes no original.
A mesma lei estabelece como um dos objetivos do Sistema Único de Saúde
– SUS “a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e
recuperação da saúde” (artigo 5º, inciso III), acrescentando que as ações públicas
devem observar, entre outros, os princípios da “universalidade de acesso aos serviços
de saúde em todos os níveis de assistência” e da “integralidade de assistência,
entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e
curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de
complexidade do sistema” (artigo 7º, incisos I e II) – grifo não existente no original.
Ora, sendo a saúde direito indisponível do ser humano, incumbe ao Estado,
por força de mandamento constitucional, prestá-la a todos quantos dela necessitem,
notadamente à população menos favorecida economicamente, sujeita a toda sorte de
intempéries burocráticas para assegurar seu direito básico à saúde e à vida, sendo alvo,
não raras vezes, de injustiças e humilhações.
De mencionar, ainda, que apesar dos costumeiros entraves opostos pelo
Poder Público na consecução das políticas de saúde, é com alento e regozijo que se
observa o Judiciário agindo em prol da sociedade, em sintonia com a Constituição da
República Federativa do Brasil, no que toca ao chamamento do Estado para o
cumprimento da sua função social, especialmente no que se refere à obrigação de
tornar efetiva a prestação dos serviços de saúde.
Veja-se:
[...]
O
DIREITO
À
SAÚDE
REPRESENTA
CONSEQÜÊNCIA
CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA. - O direito público
subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à
generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196).
Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve
velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e
implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos
cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e
igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar.
O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste
a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do
direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua
atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se
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9ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE CHAPECÓ
indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que
por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional.
A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE
TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem
por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional,
a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em
promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público,
fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de
maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto
irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria
Lei Fundamental do Estado.
[...]. (Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário
n. 271.286, do Rio Grande do Sul, relator Ministro Celso de Mello, julgado 2m
12 de setembro de 2000)
Mais recentemente, nosso Tribunal de Justiça decidiu:
Sendo a saúde direito de todos e dever do Estado, não pode o Poder Público
eximir-se de prestar a integral e universal assistência à manutenção da vida e
integridade psíquica de seus cidadãos. Comprovando-se a doença e a
impossibilidade financeira de o requerente arcar com os custos dos
medicamentos que necessita, não pode o Estado negar-se a fornecê-los.
(Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação Cível n. 2002.006747-0, da
Capital, relator Desembargador Luiz César Medeiros, julgada em 11 de
novembro de 2002.)
E tratando de caso semelhante ao presente:
O Sistema Único de Saúde, por imperativo legal, deve incluir no seu campo de
atuação a execução de ações direcionadas à assistência terapêutica integral,
inclusive farmacêutica (Lei n. 8.080/90, art. 6º, inc. I, alínea "d").
O medicamento, ainda que não padronizado, deve ser fornecido gratuitamente pelo
Estado se comprovada a necessidade. (Tribunal de Justiça de Santa Catarina.
Apelação Cível n. 2003.011879-9, de Criciúma, relator Desembargador Luiz César
Medeiros, julgada em 22 de setembro de 2003.)
Oportuno registrar, ainda, que esse Juízo, em atitude corajosa e voltada ao
resguardo do direito básico à vida e à saúde da população chapecoense, nos autos das
Ações Civis Públicas n. 018.04.004785-4, n. 018.04.004835-4, n. 018.04.005824-4 e n.
018.04.006259-4, garantiu a outros hipossuficientes substituídos pelo Ministério Público
a obtenção de medicamentos excepcionais ou de alto custo não contemplados pela
RENAME, pela Portaria n. 1.318/98, ou pela listagem padronizada pela Secretaria de
Estado de Saúde de Santa Catarina.
Impossível, portanto, não se concluir que é obrigação do Estado de Santa
Catarina, por intermédio da Gerência Regional de Saúde local, providenciar,
imediatamente, o fornecimento de Trisenox, prescrito a Lizete Luzia Agostini em caráter
imprescindível, a despeito de referido medicamento não constar nas listagens
padronizadas dos programas de assistência farmacêutica do Estado.
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9ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE CHAPECÓ
Cumpre observar, ainda, que relativamente a supostas dificuldades
orçamentárias e financeiras ao cumprimento do dever estatal de prestar saúde a todos,
o Supremo Tribunal Federal já pacificou:
Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica como direito
subjetivo inalienável assegurado pela própria Constituição da República (art.
5º, caput), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um
interesse financeiro e secundário do Estado, entendo - uma vez configurado
esse dilema - que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e
possível opção: o respeito indeclinável à vida. (Supremo Tribunal Federal.
Decisão monocrática proferida nos autos da Medida Cautelar n. 1.246, de
Santa Catarina, relator Ministro Celso de Mello, proferida em 31 de janeiro de
1997.)
5. DA NECESSIDADE DA CONCESSÃO DE LIMINAR.
Conforme o artigo 12 da lei n. 7.347/85, "poderá o juiz conceder mandado
liminar com ou sem justificação prévia, em decisão sujeita a agravo”. – grifo não
existente no original.
Inicialmente, diante do que dispõe a Lei n. 8.437, de 30 de junho de 1992,
vedando a concessão de medidas cautelares contra atos do Poder Público sem prévia
audiência do representante judicial da pessoa jurídica de direito público ré (artigo 2º),
necessário ressaltar que, na espécie, mostra-se perfeitamente cabível esse tipo de
provimento.
Veja-se o que se decidiu em nosso Tribunal de Justiça:
Justifica-se a concessão da medida liminar sem audiência da parte contrária
sempre que, a par de prova inequívoca, aliada à plausibilidade jurídica do
alegado na inicial, houver perigo de dano irreversível para o requerente caso a
medida não seja deferida de imediato.
As restrições legais ao poder cautelar do Juiz, dentre as quais sobreleva a
vedação de liminares contra atos do Poder Público (art. 1º da Lei n. 8.437/92),
consoante orientação do STF (RTJ — 132/571), devem ser interpretadas
mediante um controle de razoabilidade da proibição imposta, a ser efetuado
em cada caso concreto, evitando-se o abuso das limitações e a conseqüente
afronta à plenitude da jurisdição do Poder Judiciário. (Tribunal de Justiça de
Santa Catarina. Agravo de Instrumento n. 97.002945-4, relator Desembargador
Eder Graf.)
Na hipótese dos autos, os pressupostos jurídicos para a concessão da
medida liminar initio litis, isto é, o fumus boni juris e o periculum in mora, encontram-se
plenamente demonstrados.
Quanto á plausibilidade do direito invocado, o que se pretende resguardar é
a prerrogativa constitucional conferida a Lizete Luzia Agostini, e ao restante da
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9ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE CHAPECÓ
população, de ter assegurado o acesso à saúde pública, cuja responsabilidade do
Estado de Santa Catarina, no sentido de promover sua efetividade, é inegável.
É de se ter em conta, neste passo, que o direito à saúde compreende o
fornecimento de medicamentos, quando indispensáveis, nos exatos termos do artigo 6º
da Lei n. 8.080/90. (“Art. 6º - Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde
(SUS): I – a execução de ações: [...] d) de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica [...].”)
Já no que se refere ao perigo na demora, a necessidade extrema de Lizete
Luzia Agostini receber rapidamente o medicamento que lhe foi prescrito, caracteriza a
“urgência/urgentíssima” da concessão da medida liminar inaudita altera parte, sob pena
de resultar inócuo e absolutamente estéril o provimento a ser proferido ao final da
presente ação civil pública, tanto mais quando considerado o rápido avanço da leucemia
e seus efeitos devastadores, podendo gerar conseqüências até fatais, caso ela não tome
regularmente o medicamento que lhe foi prescrito.
De lembrar o que foi dito pela própria Lizete Luzia Agostini:
Atualmente vem procurando controlar a doença mediante o uso de ácido
retinóico, contudo, a resposta do emprego desse medicamento é de curto
prazo, podendo ser que o avanço, com essa técnica, seja obstado por
apenas alguns dias, não sendo possível um prognóstico seguro.
É da jurisprudência:
Assegurar-se o direito à vida a uma pessoa, propiciando-lhe medicação
específica que lhe alivia até mesmo sofrimentos e a dor de uma moléstia ou
enfermidade irreversível, não é antecipar a tutela jurisdicional através de medida
cautelar, mas garantir-lhe o direito de sobrevivência. (Superior Tribunal de
Justiça. In RSTJ 106/109-113.)
Ainda:
O fato de necessitar o agravado, pessoa pobre e doente de AIDS, de
tratamento inadiável, disponível no mercado e que se revela essencial à
preservação de sua própria vida, aliado ao impostergável dever do Estado de
assegurar a todos os cidadãos, indistintamente, o direito à saúde (art. 6º e 196,
da CF/88), justifica a concessão de liminar impondo ao Ente Público a
obrigação de fornecer os medicamentos capazes de evitar-lhe a morte. (Agravo
de Instrumento n. 96.010064-4, de Criciúma, relator Desembargador Eder
Graff, julgado em 10 de junho de 1996).
Neste contexto, inegável a possibilidade e a necessidade de se conceder a
medida liminar, sem prévia audiência do Estado de Santa Catarina, para que Lizete
Luzia Agostini receba em tempo hábil a medicação indispensável à sua sobrevivência.
Cumpre ressaltar, ainda, que o artigo 11 da Lei n. 7.347, de 24 de julho de
1985 (Lei da Ação Civil Pública) determina que, “na ação que tenha por objeto
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9ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE CHAPECÓ
obrigação de fazer ou não fazer, o juiz determinará o cumprimento da prestação da
atividade devida ou a cessação da atividade nociva, sob pena de execução específica
ou de cominação de multa diária, se esta for suficiente ou compatível,
independentemente de requerimento do autor” – grifo não existente no original.
Já o artigo 84, da Lei n. 8.078, de 11 de agosto de 1990 (Código de Defesa
do Consumidor), aplicável, por força do artigo 21 da Lei n. 7.347/85, a toda a ação que
tiver por objeto a defesa de interesses difusos, coletivos e individuais, estabelece:
Na ação que tenha por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou não
fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará
providências que assegurem o resultado prático equivalente ao adimplemento.
[...]
§ 3º Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio
de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente
ou após justificação prévia, citado o réu.
§ 4º O juiz poderá, na hipótese do § 3º ou na sentença, impor multa diária ao
réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível
com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito.
Assim, como forma de evitar o descumprimento da limiar eventualmente
concedida, bem como para dar efetividade ao provimento jurisdicional, requer o
Ministério Público que seja cominada multa diária, para o caso de não ser fornecido o
medicamento Trisenox à Lizete Luzia Agostini.
6. DO PEDIDO
6.1. O recebimento da inicial;
6.2. A concessão da medida liminar propugnada inaudita altera parte,
determinando que o Estado de Santa Catarina, por intermédio da Gerência Regional de
Saúde local, na pessoa de seus representantes, forneça o medicamento Trióxido de
Arsênico (Trisenox) à Lizete Luzia Agostini, na quantidade que se fizer necessária, em
curto espaço de tempo (a fim de evitar que o medicamento chegue tarde demais),
bem como a todos aqueles que, acometidos pelo mesmo mal, necessitem da referida
droga;
6.3. Seja cominada, para o caso de descumprimento da liminar, multa diária
no valor de R$ 1.000,00 (um mil reais), como forma de se garantir a efetividade do
provimento;
12
9ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE CHAPECÓ
6.3. A citação do requerido, na pessoa do senhor Procurador-Geral do
Estado, para, querendo, contestar a presente ação civil pública;
6.4. A produção de todas as provas em direito admitidas, máxime
testemunhal, documental e pericial;
6.5. A procedência integral da presente ação civil pública, inclusive para
determinar que o demandado forneça o medicamento Trisenox, em prazo razoável, a
todos os usuários que se apresentarem ao Sistema Único de Saúde – SUS, atestando a
necessidade do medicamento;
6.6. A dispensa do pagamento de custas, emolumentos e outros encargos,
desde logo, a teor do artigo 18 da Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública).
7. DO VALOR DA CAUSA
Dá-se à causa, apenas para efeitos fiscais, o valor de R$ 78.000,00 (setenta
e oito mil reais), não obstante tratar-se a saúde de bem de importância impossível de se
mensurar em pecúnia.
Chapecó, 13 de maio de 2004.
Ana Cristina Boni
Promotora de Justiça Substituta
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