9ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE CHAPECÓ EXCELENTÍSSIMO SENHOR JUIZ DE DIREITO DA VARA DA FAZENDA PÚBLICA COMARCA DE CHAPECÓ – SANTA CATARINA O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA CATARINA, por sua Promotora de Justiça Substituta que ao final subscreve, no uso de suas atribuições institucionais, vem, com fundamento nos artigos 127 e 129, incisos II e III, da Constituição da República Federativa do Brasil e no artigo 5º da Lei Federal n. 7.347/95, propor a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM OBRIGAÇÃO DE FAZER CUMULADA COM PEDIDO LIMINAR contra o ESTADO DE SANTA CATARINA, pessoa jurídica de direito público interno, na pessoa do senhor Procurador-Geral do Estado com endereço na rua Saldanha Marinho, 189, Florianópolis/SC, pelas razões de fato e de direito que passa a expor 1. DA LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO A teor do artigo 127 da Constituição da República Federativa do Brasil, é o Ministério Público “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”, sendo uma de suas atribuições, conforme o artigo 129, inciso III, da Lei Maior, “promover a ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos” – grifos não existentes nos originais. 1 9ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE CHAPECÓ Também o artigo 93 da Constituição do Estado de Santa Catarina reserva ao Ministério Público “a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” – grifo não existente no original. Neste contexto, a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei n. 8.625/93) dispõe em seu artigo 25 ser função do Ministério Público, além de outras previstas nas Constituições Federal e Estadual e em outras leis, a promoção do inquérito civil e da ação civil pública para a defesa de direitos de relevância social. No mesmo diapasão, a Lei Orgânica Estadual do Ministério Público (Lei Complementar Estadual n. 197/2000), na alínea c do inciso VI de seu artigo 82, proclama ser função institucional do Ministério Público, entre outras, promover a ação civil pública, na forma da lei, para “a proteção dos interesses individuais indisponíveis, individuais homogêneos, difusos e coletivos relativos à família, à criança e ao adolescente, ao idoso e às minorias étnicas” – grifo não existente no original. Disciplinando a ação civil pública, a Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985, após estabelecer, em seu artigo 1º, ser ela o instrumental adequado para as ações de responsabilidade, dentre outros, por danos morais e patrimoniais causados a qualquer interesse difuso ou coletivo, conferindo ao Ministério Público legitimidade ativa para o seu exercício (artigo 5°, caput). Com efeito, a atuação do Ministério Público, inegavelmente, intensificou-se em áreas estrategicamente importantes para a sociedade, notadamente na seara do meio ambiente, da moralidade administrativa e na defesa dos interesses coletivos, difusos e individuais indisponíveis. E, como tal, o direito indeclinável à saúde e à vida, objetos da ação civil em tela, não poderiam escapar da atuação do Ministério Público. Na espécie, em se tratando de potencial ofensa ao indisponível direito à vida, consubstanciada na negativa de fornecimento de medicamento imprescindível ao bem-estar de pessoa sem recursos para arcar com seus custos, o poder de ação é exercitado pelo Ministério Público na qualidade de substituto processual de lesado economicamente hiposuficiente. A propósito, 2 9ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE CHAPECÓ O Ministério Público está legitimado à defesa de interesses individuais homogêneos que tenham expressão para a coletividade, como os que digam respeito à saúde ou à segurança da pessoas, ou o acesso das crianças à educação. (Enunciado da Súmula n. 7 do Ministério Público de São Paulo). 2. DA COMPETÊNCIA A Lei n. 7.347/85 estabeleceu como critério para fixação da competência, em sede de ação civil pública, o foro do local onde ocorrer o dano (artigo 2º). É de se ter em conta, ainda, que o artigo 21 do mencionado diploma legal, determina que, na defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, aplicam-se os dispositivos do Título III da Lei n. 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor. Assim, da conjugação do artigo 2º da Lei de Ação Civil Pública com o artigo 93 do Código de Defesa do Consumidor, extrai-se que a competência para a propositura da ação se define pelo local e pela extensão do dano. Destarte, ressalvada a competência da Justiça Federal, na hipótese de existir interesse da União, entidade autárquica ou empresa pública federal, tratando se de dano de âmbito local, será competente o foro onde ele ocorreu ou deveria ter ocorrido, reservando-se o foro da Capital do Estado ou do Distrito Federal apenas para os danos de âmbito nacional ou regional (CDC, artigo 93, incisos I e II). Paralelamente, o Código de Processo Civil dispõe que "é competente o foro do lugar onde a obrigação deve ser satisfeita para a ação em que se lhe exigir o cumprimento" (artigo 100, inciso IV, alínea d). Neste contexto, cuidando-se de dano à direito individual indisponível, no caso, à saúde de Lizete Luzia Agostini, ocorrido neste município, onde ela deixou de receber o medicamento que necessita para o tratamento de grave doença, a competência para o processo e julgamento da presente ação civil pública é mesmo do Juízo da Fazenda da Comarca de Chapecó. 3. DOS FATOS Em 12 de maio de 2004, Lizete Luzia Agostini procurou o Ministério Público informando ser portadora de leucemia mielóide aguda, conforme atestam o mielograma e o hemograma anexos. 3 9ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE CHAPECÓ A leucemia é uma doença maligna dos glóbulos brancos (leucócitos) de causa não conhecida, cuja principal característica é o acúmulo de células na medula óssea (local de formação das células sangüíneas), prejudicando ou impedindo a produção dos glóbulos vermelhos (causando anemias), glóbulos brancos (causando infecções) e plaquetas (causando hemorragias e manchas roxas). Depois de instalada, a doença avança rapidamente, exigindo início de tratamento em curto espaço de tempo. Não são necessárias maiores considerações sobre a gravidade do mal que acomete a senhora Lizete Luzia Agostini, pois é de todos conhecidos os efeitos nefastos e devastadores da leucemia. No caso, o diagnóstico inicial da leucemia se deu em 11 de julho de 1999, quando Lizete Luzia Agostini submeteu-se a sessões de quimioterapia durante três meses e fez uso de ácido retinóico por mais um ano, acarretando o processo de remissão da doença, isto é, sua estabilização, prosseguindo com acompanhamento periódico junto ao Centro de Hematologia e Hemoterapia de Santa Catarina. Entretanto, em 1º de abril de 2004 foi diagnosticada a recidiva da doença, novamente passando Lizete Luzia Agostini por tratamento medicamentoso e sessões de quimioterapia, não tendo obtido, infelizmente, resposta satisfatória ao tratamento. Neste contexto, foi-lhe receitado o uso de Trióxido de Arsênico 10 mg, medicamento importado dos Estados Unidos e cujo nome comercial é Trisenox, sendo que as 60 (sessenta) ampolas de que necessita, segundo informações que obteve, custariam em torno de R$ 40.000,00 (quarenta mil reais), valor de que não tem condições de dispor. Atualmente, Lizete Luzia Agostini vem buscando impedir o progresso da doença mediante o uso de ácido retinóico, contudo, a eficácia desse tratamento é de curto prazo, sendo possível que o avanço seja obstado apenas por alguns dias. De ressaltar, ainda, que há possibilidade de ser realizado transplante de medula óssea em Lizete Luzia Agostini, sendo que ela, inclusive, já encontrou doador compatível na pessoa de seu irmão Evandro Luiz Agostini. Contudo, antes do transplante, faz-se necessário “limpar” as células doentes de seu organismo, o que somente será possível mediante o uso do Trióxido de Arsênico. Tudo isso está relatado no termo de declarações anexo. 4 9ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE CHAPECÓ Quanto ao diagnóstico da doença e a necessidade do uso do Trióxido de Arsêncio, tem-se a declaração e a receita firmadas pela médica oncohematologista que vem atendendo a Lizete Luzia Agostini, bem como a solicitação de medicamento dirigida à Chefe do setor de Oncohematologia do Centro de Hematologia e Hemoterapia de Santa Catarina (documentos anexos). A propósito, das declarações da médica Lygia G. B. Peters colhe-se: A paciente acima é portadora de leucemia mielóide aguda, subtipo M3 (Cid C92.4), recidivada agora em abril de 2004. Realizou quimioterapia de reindução com ATRA + DAUNORRUBINA + ARACYTIN de 5.4 a 11.04.04. Em 28.04.04 – 17 dias após término da quimioterapia – realizou mielograma que revelou a presença de blastos, ou seja ausência de resposta. Nestes casos, a literatura tem preconizado uso de TRIÓXIDO DE ARSÊNICO, com chances de remissão em torno de 80%. Nesta situação de 2ª remissão completa, o paciente é submetido a transplante autólapo de medula óssea, como consolidação. Portanto tal medicação, não disponível em nossa instituição, seria de fundamental importância para esta paciente. (sic) – grifos não existentes no original. Não há como negar, portanto, a premente necessidade de Lizete Luzia Agostini fazer uso do medicamento Trióxido de Arsênico, única chance de sobreviver à leucemia e poder realizar um transplante de medula óssea, valendo ressaltar que, no seu caso, as chances de sucesso do tratamento são de aproximadamente 80% (oitenta por cento). Neste passo, cumpre observar que o trióxido de arsênico age mediante a indução da morte das células doentes. Ministrado em pequenas doses, esse poderoso poluente ajuda no tratamento de um tipo raro de leucemia. Sobre a eficácia do medicamento em tela, veja-se trecho do artigo entitulado “Trióxido de Arsênico em Leucemia Promielocítica: Cada Vez Mais Próximo da Cura”, de Bernardo Garicochea, publicado na Revista da Sociedade Brasileira de Cancerologia (documento anexo). Em 1997, Shen et al., de Xangai, demonstraram que o uso do trióxido de arsênico (As2O3) era capaz de induzir remissão completa em pacientes com leucemia promielocítica em recaída, após resposta inicial com ATRA. Neste estudo, 14 de 15 pacientes em recaída retornaram ao estado de remissão completa com doses de 10 mg/dia e sem qualquer efeito tóxico. A remoção do arsênico da circulação era extremamente rápida e o conteúdo acumulado em unhas e cabelo declinava rapidamente após a suspensão da droga. A equipe do Memorial-Sloan Kettering Cancer Center, utilizando-se de doses de 0.06 a 0.2 mg/Kg/dia de As2O3 em um grupo de 12 pacientes em recaída pós ATRA, obteve remissão hematológica completa em 11 casos, com remissão molecular (RT-PCR negativo para o transcrito PML-RARA) em 8 5 9ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE CHAPECÓ destes. Os efeitos adversos foram mínimos, incluindo rash cutâneo, fadiga, dores ósseas e musculares, que responderam a analgésicos comuns. (texto capturado em 12 de maio de 2004, em http://www.rsbcancer.com.br/rsbc/5mperspectiva.asp?nrev=Nº5) – grifo não existente no original Em resposta ao pedido de fornecimento de Trióxido de Arsênico encaminhado ao Centro de Hematologia e Hemoterapia de Santa Catarina, a médica hematologista Ana Carolina Ribas declarou: Em resposta à solicitação de trióxido de arsênico para paciente Lizete Agostini portadora de LMA M3 recidivada, sem resposta após primeira tentativa com ATRA e qumioterapia. Apesar de realmente existir indicação de arsênico neste caso, o CEPON neste momento não possui teto financeiro para a aquisição deste medicamento que é importado, não disponível no mercado nacional. (sic) – documento anexo. Cumpre esclarecer, ainda, que o fornecimento gratuito de medicamentos pelo Sistema Único de Saúde – SUS está disciplinado pela Portaria n. 3.916/98, que estabelece a Política Nacional de Medicamentos, determinando a formulação da Relação Nacional de Medicamentos – RENAME, os quais serão distribuídos gratuitamente para as populações necessitadas. O fornecimento de medicamentos excepcionais ou de alto custo, por sua vez, deve observar o teor da Portaria n. 1.318/02, do Ministério da Saúde, sendo que apenas as drogas contempladas em referido diploma é que podem ser fornecidas pelo gestor estadual do SUS. A propósito, oficiada à Gerente de Saúde da 4ª Gerência Regional de Saúde, com sede em Chapecó, a senhora Maria Aparecida Rossi Fagion, ela foi enfática ao esclarecer que “não há possibilidade da 4ª Gerência de Saúde fornecer medicamentos excepcionais ou de alto custo que não façam parte dos medicamentos padronizados pela Secretaria de Estado da Saúde, sem que haja determinação judicial neste sentido”, acrescentando que “os processos que preenchem os critérios da Portaria 1318/02 do Ministério da Saúde e que contém os medicamentos padronizados pela SES/SC são deferidos, caso contrário, serão indeferidos” (ofício anexo – grifos e sublinhados não existentes no original). No caso específico de Lizete Luzia Agostini, observando-se a RENAME (anexa), a Portaria n. 1.318/98 (anexa) e a listagem de medicamentos padronizados pela Secretaria de Estado de Saúde de Santa Catarina (anexa), verifica-se que o medicamento Interferon não consta de nenhuma das referidas listagens, razão pela 6 9ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE CHAPECÓ qual o pedido de fornecimento de remédio excepcional ou de auto custo formulado por ela foi indeferido na via administrativa. De outra parte, muito embora o acesso à saúde pública seja assegurado a toda a população (princípio da universalidade), independentemente de situação econômica ou qualquer outra condicionante (princípio da igualdade), em contato telefônico com a Medic Vip, importadora sediada em São Paulo (fone 011 5085-5888) que distribui o Trisenox no Brasil, este Órgão apurou que cada caixa do medicamento, contendo 10 (dez) ampolas, custa R$ 13.000,00 (treze mil reais), sendo que o tratamento completo de Lizete Luzia Agostini, isto é, 60 (sessenta) ampolas, atingiria o valor de R$ 78.000,00 (setenta e oito mil reais), preço impagável para uma auxiliar de enfermagem, assim como para a grande maioria de nossa população. Assim, diante da negativa de prover o medicamento, urge compelir o Estado de Santa Catarina, por intermédio da Gerência Regional de Saúde local, a providenciar, imediatamente, o fornecimento de Trisenox a Lizete Luzia Agostini, não restando outra alternativa senão buscar a tutela jurisdicional, com a finalidade de se fazer valer os preceitos constitucionais e infraconstitucionais que amparam o cidadão no que concerne à saúde pública. 4. DO DIREITO A Constituição da República Federativa do Brasil, após alçar a saúde à condição de direito social (artigo 6º), estabelece ser ela “direito de todos e dever do Estado” (artigo 196) – grifo não existente no original. Em igual sentir, a Constituição do Estado de Santa Catarina, em seu artigo 153, confere à saúde, a um só tempo, o status de direito coletivo e de obrigação estatal, a ser garantido “mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doenças e de outros agravos e ao seu acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” – grifo não existente no original. Já a Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990, dispondo sobre as condições para promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes, consigna que “a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis do seu pleno 7 9ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE CHAPECÓ exercício”, consistindo o dever estatal “[...] na formulação e execução de política econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação” (artigo 2º) – grifos não existentes no original. A mesma lei estabelece como um dos objetivos do Sistema Único de Saúde – SUS “a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde” (artigo 5º, inciso III), acrescentando que as ações públicas devem observar, entre outros, os princípios da “universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência” e da “integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema” (artigo 7º, incisos I e II) – grifo não existente no original. Ora, sendo a saúde direito indisponível do ser humano, incumbe ao Estado, por força de mandamento constitucional, prestá-la a todos quantos dela necessitem, notadamente à população menos favorecida economicamente, sujeita a toda sorte de intempéries burocráticas para assegurar seu direito básico à saúde e à vida, sendo alvo, não raras vezes, de injustiças e humilhações. De mencionar, ainda, que apesar dos costumeiros entraves opostos pelo Poder Público na consecução das políticas de saúde, é com alento e regozijo que se observa o Judiciário agindo em prol da sociedade, em sintonia com a Constituição da República Federativa do Brasil, no que toca ao chamamento do Estado para o cumprimento da sua função social, especialmente no que se refere à obrigação de tornar efetiva a prestação dos serviços de saúde. Veja-se: [...] O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA. - O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se 8 9ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE CHAPECÓ indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. [...]. (Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário n. 271.286, do Rio Grande do Sul, relator Ministro Celso de Mello, julgado 2m 12 de setembro de 2000) Mais recentemente, nosso Tribunal de Justiça decidiu: Sendo a saúde direito de todos e dever do Estado, não pode o Poder Público eximir-se de prestar a integral e universal assistência à manutenção da vida e integridade psíquica de seus cidadãos. Comprovando-se a doença e a impossibilidade financeira de o requerente arcar com os custos dos medicamentos que necessita, não pode o Estado negar-se a fornecê-los. (Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação Cível n. 2002.006747-0, da Capital, relator Desembargador Luiz César Medeiros, julgada em 11 de novembro de 2002.) E tratando de caso semelhante ao presente: O Sistema Único de Saúde, por imperativo legal, deve incluir no seu campo de atuação a execução de ações direcionadas à assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica (Lei n. 8.080/90, art. 6º, inc. I, alínea "d"). O medicamento, ainda que não padronizado, deve ser fornecido gratuitamente pelo Estado se comprovada a necessidade. (Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação Cível n. 2003.011879-9, de Criciúma, relator Desembargador Luiz César Medeiros, julgada em 22 de setembro de 2003.) Oportuno registrar, ainda, que esse Juízo, em atitude corajosa e voltada ao resguardo do direito básico à vida e à saúde da população chapecoense, nos autos das Ações Civis Públicas n. 018.04.004785-4, n. 018.04.004835-4, n. 018.04.005824-4 e n. 018.04.006259-4, garantiu a outros hipossuficientes substituídos pelo Ministério Público a obtenção de medicamentos excepcionais ou de alto custo não contemplados pela RENAME, pela Portaria n. 1.318/98, ou pela listagem padronizada pela Secretaria de Estado de Saúde de Santa Catarina. Impossível, portanto, não se concluir que é obrigação do Estado de Santa Catarina, por intermédio da Gerência Regional de Saúde local, providenciar, imediatamente, o fornecimento de Trisenox, prescrito a Lizete Luzia Agostini em caráter imprescindível, a despeito de referido medicamento não constar nas listagens padronizadas dos programas de assistência farmacêutica do Estado. 9 9ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE CHAPECÓ Cumpre observar, ainda, que relativamente a supostas dificuldades orçamentárias e financeiras ao cumprimento do dever estatal de prestar saúde a todos, o Supremo Tribunal Federal já pacificou: Entre proteger a inviolabilidade do direito à vida, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado pela própria Constituição da República (art. 5º, caput), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo - uma vez configurado esse dilema - que razões de ordem ético-jurídica impõem ao julgador uma só e possível opção: o respeito indeclinável à vida. (Supremo Tribunal Federal. Decisão monocrática proferida nos autos da Medida Cautelar n. 1.246, de Santa Catarina, relator Ministro Celso de Mello, proferida em 31 de janeiro de 1997.) 5. DA NECESSIDADE DA CONCESSÃO DE LIMINAR. Conforme o artigo 12 da lei n. 7.347/85, "poderá o juiz conceder mandado liminar com ou sem justificação prévia, em decisão sujeita a agravo”. – grifo não existente no original. Inicialmente, diante do que dispõe a Lei n. 8.437, de 30 de junho de 1992, vedando a concessão de medidas cautelares contra atos do Poder Público sem prévia audiência do representante judicial da pessoa jurídica de direito público ré (artigo 2º), necessário ressaltar que, na espécie, mostra-se perfeitamente cabível esse tipo de provimento. Veja-se o que se decidiu em nosso Tribunal de Justiça: Justifica-se a concessão da medida liminar sem audiência da parte contrária sempre que, a par de prova inequívoca, aliada à plausibilidade jurídica do alegado na inicial, houver perigo de dano irreversível para o requerente caso a medida não seja deferida de imediato. As restrições legais ao poder cautelar do Juiz, dentre as quais sobreleva a vedação de liminares contra atos do Poder Público (art. 1º da Lei n. 8.437/92), consoante orientação do STF (RTJ — 132/571), devem ser interpretadas mediante um controle de razoabilidade da proibição imposta, a ser efetuado em cada caso concreto, evitando-se o abuso das limitações e a conseqüente afronta à plenitude da jurisdição do Poder Judiciário. (Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento n. 97.002945-4, relator Desembargador Eder Graf.) Na hipótese dos autos, os pressupostos jurídicos para a concessão da medida liminar initio litis, isto é, o fumus boni juris e o periculum in mora, encontram-se plenamente demonstrados. Quanto á plausibilidade do direito invocado, o que se pretende resguardar é a prerrogativa constitucional conferida a Lizete Luzia Agostini, e ao restante da 10 9ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE CHAPECÓ população, de ter assegurado o acesso à saúde pública, cuja responsabilidade do Estado de Santa Catarina, no sentido de promover sua efetividade, é inegável. É de se ter em conta, neste passo, que o direito à saúde compreende o fornecimento de medicamentos, quando indispensáveis, nos exatos termos do artigo 6º da Lei n. 8.080/90. (“Art. 6º - Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS): I – a execução de ações: [...] d) de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica [...].”) Já no que se refere ao perigo na demora, a necessidade extrema de Lizete Luzia Agostini receber rapidamente o medicamento que lhe foi prescrito, caracteriza a “urgência/urgentíssima” da concessão da medida liminar inaudita altera parte, sob pena de resultar inócuo e absolutamente estéril o provimento a ser proferido ao final da presente ação civil pública, tanto mais quando considerado o rápido avanço da leucemia e seus efeitos devastadores, podendo gerar conseqüências até fatais, caso ela não tome regularmente o medicamento que lhe foi prescrito. De lembrar o que foi dito pela própria Lizete Luzia Agostini: Atualmente vem procurando controlar a doença mediante o uso de ácido retinóico, contudo, a resposta do emprego desse medicamento é de curto prazo, podendo ser que o avanço, com essa técnica, seja obstado por apenas alguns dias, não sendo possível um prognóstico seguro. É da jurisprudência: Assegurar-se o direito à vida a uma pessoa, propiciando-lhe medicação específica que lhe alivia até mesmo sofrimentos e a dor de uma moléstia ou enfermidade irreversível, não é antecipar a tutela jurisdicional através de medida cautelar, mas garantir-lhe o direito de sobrevivência. (Superior Tribunal de Justiça. In RSTJ 106/109-113.) Ainda: O fato de necessitar o agravado, pessoa pobre e doente de AIDS, de tratamento inadiável, disponível no mercado e que se revela essencial à preservação de sua própria vida, aliado ao impostergável dever do Estado de assegurar a todos os cidadãos, indistintamente, o direito à saúde (art. 6º e 196, da CF/88), justifica a concessão de liminar impondo ao Ente Público a obrigação de fornecer os medicamentos capazes de evitar-lhe a morte. (Agravo de Instrumento n. 96.010064-4, de Criciúma, relator Desembargador Eder Graff, julgado em 10 de junho de 1996). Neste contexto, inegável a possibilidade e a necessidade de se conceder a medida liminar, sem prévia audiência do Estado de Santa Catarina, para que Lizete Luzia Agostini receba em tempo hábil a medicação indispensável à sua sobrevivência. Cumpre ressaltar, ainda, que o artigo 11 da Lei n. 7.347, de 24 de julho de 1985 (Lei da Ação Civil Pública) determina que, “na ação que tenha por objeto 11 9ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE CHAPECÓ obrigação de fazer ou não fazer, o juiz determinará o cumprimento da prestação da atividade devida ou a cessação da atividade nociva, sob pena de execução específica ou de cominação de multa diária, se esta for suficiente ou compatível, independentemente de requerimento do autor” – grifo não existente no original. Já o artigo 84, da Lei n. 8.078, de 11 de agosto de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), aplicável, por força do artigo 21 da Lei n. 7.347/85, a toda a ação que tiver por objeto a defesa de interesses difusos, coletivos e individuais, estabelece: Na ação que tenha por objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao adimplemento. [...] § 3º Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação prévia, citado o réu. § 4º O juiz poderá, na hipótese do § 3º ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando prazo razoável para o cumprimento do preceito. Assim, como forma de evitar o descumprimento da limiar eventualmente concedida, bem como para dar efetividade ao provimento jurisdicional, requer o Ministério Público que seja cominada multa diária, para o caso de não ser fornecido o medicamento Trisenox à Lizete Luzia Agostini. 6. DO PEDIDO 6.1. O recebimento da inicial; 6.2. A concessão da medida liminar propugnada inaudita altera parte, determinando que o Estado de Santa Catarina, por intermédio da Gerência Regional de Saúde local, na pessoa de seus representantes, forneça o medicamento Trióxido de Arsênico (Trisenox) à Lizete Luzia Agostini, na quantidade que se fizer necessária, em curto espaço de tempo (a fim de evitar que o medicamento chegue tarde demais), bem como a todos aqueles que, acometidos pelo mesmo mal, necessitem da referida droga; 6.3. Seja cominada, para o caso de descumprimento da liminar, multa diária no valor de R$ 1.000,00 (um mil reais), como forma de se garantir a efetividade do provimento; 12 9ª PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE CHAPECÓ 6.3. A citação do requerido, na pessoa do senhor Procurador-Geral do Estado, para, querendo, contestar a presente ação civil pública; 6.4. A produção de todas as provas em direito admitidas, máxime testemunhal, documental e pericial; 6.5. A procedência integral da presente ação civil pública, inclusive para determinar que o demandado forneça o medicamento Trisenox, em prazo razoável, a todos os usuários que se apresentarem ao Sistema Único de Saúde – SUS, atestando a necessidade do medicamento; 6.6. A dispensa do pagamento de custas, emolumentos e outros encargos, desde logo, a teor do artigo 18 da Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública). 7. DO VALOR DA CAUSA Dá-se à causa, apenas para efeitos fiscais, o valor de R$ 78.000,00 (setenta e oito mil reais), não obstante tratar-se a saúde de bem de importância impossível de se mensurar em pecúnia. Chapecó, 13 de maio de 2004. Ana Cristina Boni Promotora de Justiça Substituta 13