ARTIGO ORIGINAL Leitos hospitalares – algumas considerações DR. IVOMAR GOMES DUARTE Médico Sanitarista e Mestre em Administração de Empresas – EAESP-FGV e-mail: [email protected] I - QUANTOS LEITOS SÃO NECESSÁRIOS PARA DETERMINADA COMUNIDADE? No pós-guerra, um dos primeiros países a desativar leitos hospitalares, chegando até a fechar hospitais, de modo planejado e organizado, foi a Inglaterra, em 1960. Nessa ocasião o país dispunha, em média, de 7 leitos para cada 1.000 habitantes, enquanto estudo governamental sobre oferta de leitos hospitalares para o atendimento das necessidades de toda população estimava que cinco leitos por mil habitantes seriam o suficiente. FORSYTH (1960)(1), em estudo sobre a demanda de serviços de saúde na Inglaterra, concluiu, entre outras coisas, que “o número de leitos ofertados será o número de leitos utilizados”. Isso significa que, se tivermos quem pague pela utilização de dez leitos hospitalares por mil habitantes, esses leitos serão utilizados, pois a oferta de leitos (com o devido financiamento de sua ocupação) criará inexoravelmente a demanda pela utilização desses serviços. Conforme MENDES(2), o Consórcio Intermunicipal de Saúde de Penápolis, em seu primeiro ano de funcionamento, dadas as disponibilidades financeiras, internou aproximadamente 16% da população de referência. Segundo PAGANINI e NOVAES(3), desde 1960 vem-se observando na América do Sul uma diminuição progressiva de número de leitos por mil habitantes em todos os países, exceto no Brasil, que no período de 1960 a 1990 passou de 3,0 para 3,6 leitos por mil habitantes. A mesma tendência foi observada no Caribe Latino, onde apenas Cuba aumentou a oferta de leitos hospitalares nesse mesmo período. RODRIGUES FILHO (1983)(4), estudando a oferta e procura dos serviços médico-hospitalares no Estado da PaRAS _ Vol. 2, Nº 5 – Dez, 1999 raíba, nas 11 regiões de saúde do Estado, segundo a regionalização utilizada pelo extinto INAMPS, concluiu que a demanda observada não poderia servir como base no planejamento das necessidades assistenciais, uma vez que essa demanda apenas refletia os efeitos da disponibilidade dos recursos, além do que, o sistema de informações do INAMPS estava longe de oferecer dados necessários, confiáveis e indispensáveis para um bom planejamento de saúde. Em nosso meio, as primeiras tentativas de padronização da oferta de atendimento hospitalar remontam o início da década de 80. Os parâmetros de internação, fixados pela Portaria INAMPS 3.046/82 abrangiam internações de Clínica Médica, Clínica Cirúrgica, Obstetrícia, Psiquiatria, Pediatria, Oncologia e as internações crônicas agrupadas na categoria de “Pacientes Fora de Possibilidades Terapêuticas”, estabelecendo como teto 10 internações por ano para cada 100 beneficiários. Nos anos 60 e 70, tinha-se como paradigma: a internação compulsória em hanseníase; o modelo hospitalocêntrico em tisiologia (principalmente para os pacientes bacilíferos), o modelo manicomial ainda vigente em psiquiatria, internações asilares para os pacientes ditos fora de possibilidade terapêutica. Acrescente-se que, nessa ocasião, muitos dos eventos hospitalares demandavam maior tempo de permanência, em relação ao observado atualmente. Nos anos 80, vários fatores contribuíram para uma mudança no perfil epidemiológico da população brasileira, os quais alteraram significativamente a demanda por leitos hospitalares. Apresentam-se, a seguir, alguns desses fatores: • Aumento da população atendida por água potável e saneamento básico; • Aumento da renda per capita e de alunos matriculados em escolas; 5 • Redução da taxa de natalidade; Auto-Gestão, foi de 10,24% em 1995. É importante res• Ambulatorização de parcela importante do atendimensaltar que os Planos de Auto-Gestão, com ou sem fator to anteriormente feito em regime de internação hosmoderador, apresentam ainda algumas exclusões no atenpitalar (tisiologia, hanseníase, psiquiatria, etc.); dimento, principalmente na área de pacientes crônicos • Consolidação do Programa Nacional de Imunizações, terminais e fora de possibilidades terapêuticas, e ofereaumentando a cobertura vacinal de toda a população, cendo atendimento hospitalar em psiquiatria apenas para principalmente entre os menores de 14 anos, com a os casos agudos. certificação pela OMS, nos inicio dos anos 90, da erradicação da poliomielite; II. PRODUTIVIDADE • Iniciativas de assistência domiciliar aos idosos, conSegundo BITTAR(7), “nos hospitais em que ocorrem valescentes, seqüelados e fora de possibilidade teramaiores investimentos e diversificação na atuação das pêutica; áreas de infra-estrutura, diagnóstico e terapêutica e • Assistência ventilatória (oxigenioterapia domiciliar), ambulatório, consegue-se obter maior produtividade, patrocinada por alguns municípios; além de proporcionar uma dinamização em todo seu sis• Incorporação de novas tecnologias terapêuticas, que tema de atendimento”. encurtam os períodos de internação hospitalar (angioO aumento da produtividade dos plastia, cirurgia videolaparoscópihospitais observado em nosso meio ca, litotripsia extracorpórea, etc.). está ligado principalmente a três faRevisão bibliográfica realizada por A competição pelos tores: BITTAR(5) em 1990 apontou a possiescassos recursos n Treinamento intensivo e capacitabilidade de realização em regime ampúblicos e privados ção de gerentes tanto nas áreas púbulatorial de mais de 20% das cirurblicas, como no setor privado; gias e de vários exames diagnósticos aponta para a necessidade n Incorporação de novas tecnologias; e terapias, na ocasião realizados em de controlar custos, n Mudanças de paradigmas no atenregime de internação hospitalar. Cabe reduzir desperdícios e dimento aos pacientes, principalmenaqui ressaltar que as novas tecnolote dos crônicos. gias, tanto diagnósticas como terapêuaumentar a Salários e benefícios representam, ticas, permitiram a realização em amprodutividade em média, 65% do total dos custos bulatório de uma série de procedimenhospitalares, levando os hospitais a tos clínicos e cirúrgicos antes realizaconcentrarem seus esforços no dimendos em regime de internação hospitasionamento quantitativo e qualitativo da mão de obra. lar; do mesmo modo, essas novas tecnologias aplicadas O gerenciamento eficaz da mão de obra constitui, hoje, no ambiente hospitalar permitiram a redução do tempo a chave da qualidade e produtividade dos hospitais. Semédio de permanência de muitos dos pacientes que negundo MATOS(8), “os hospitais administrados de forma cessitam internação. amadora não mais terão espaço e alguns podem fechar”. Em 1995, o Ministério da Saúde, revendo a utilização A competição pelos escassos recursos públicos e privade leitos hospitalares no país, diante dessas novas tendos aponta para a necessidade de controlar custos, redências e do aumento da resolutividade do atendimenduzir desperdícios e aumentar a produtividade. É preto ambulatorial, fixou como limite 9 internações por ano ciso investir na gestão do negócio, acrescenta o consulpara cada 100 habitantes (9%), bem como revisou sua tor em administração hospitalar. tabela de médias de permanência para fins de faturaO impacto das novas tecnologias médicas, tanto diagmento das AIHs (Autorização de Internação Hospitanósticas como terapêuticas, bem como dos novos prolar). dutos farmacêuticos, alteraram profundamente as nePesquisa realizada pela Associação Brasileira dos Ser(6) cessidades de utilização de leitos hospitalares, bem como viços Assistenciais Próprios de Empresas (ABRASPE) apurou que o índice de internações-ano da população o perfil dos mesmos. Hoje as úlceras gástricas e duodecoberta pelos planos de saúde, caracterizados como nais tratadas por cirurgia correspondem a menos de 10% 6 RAS _ Vol. 2, Nº 5 – Dez, 1999 desses procedimentos há 20 anos antes da nova geração de fármacos antiúlceras. A litotripsia extracorpórea reduziu significativamente os procedimentos cirúrgicos nos casos de calculose das vias urinárias. Por outro lado, a oferta tecnológica gerou novas demandas na área de medicina intensiva, de tal sorte que atualmente sobram leitos de clínica médica em São Paulo, na mesma proporção da carência de leitos de UTI, UTI neonatal e UTI pediátrica, principalmente destinados à população SUS-dependente. Mudanças no paradigma de atendimento ao paciente crônico, tais como hospital-dia, atendimento domiciliar, entre outros, também contribuem para a redução da demanda relativa de leitos hospitalares. III. MELHORANDO A SAÚDE FECHANDO HOSPITAIS Em 1977, o Hospital Geral da Filadélfia, a maior e a mais antiga instituição filantrópica de atendimento médico-hospitalar dos EUA, utilizado por cinco escolas de medicina situadas na cidade e região e destinado ao atendimento de pacientes carentes de seguros públicos ou privados, foi fechado. Nessa ocasião possuía 1.800 leitos desativados, 400 leitos ocupados com casos crônicos e apenas 250 destinados a atenção de pacientes agudos. Entretanto, esse fechamento não causou grandes problemas, pois sua demanda foi redistribuída em pouco tempo, entre os vários hospitais das proximidades. Estudo realizado pela consultoria norte-americana THE SACHS GROUP em 1994(9) e publicado pela Hospitals & Health Networks em 1996, sobre a oferta e necessidade de leitos hospitalares nos EUA, apontou para as principais cidades uma oferta excessiva de leitos, conforme reproduzimos na tabela abaixo. Esse declínio na demanda por internações hospitalares nos EUA, apontado em decrescentes taxas de ocupação hospitalar, vem ocorrendo devido às alterações no perfil demográfico da população, das novas tecnologias, dos novos modelos gerenciais em saúde (MANAGED CARE, principalmente) e ainda pela oferta de serviços tais como NURSING HOME, HOME CARE e outros, que reduzem a necessidade de internações hospitalares. O episódio Jacqueline Kennedy, que, próxima da morte, optou pelo acompanhamento domiciliar, preferindo o convívio derradeiro com familiares à impessoalidade do ambiente hospitalar, difundiu o HOME CARE de forma significativa junto à opinião pública. Tendência semelhante é observada na província de QUEBEC - CANADÁ, onde atualmente são ofertados cerca de 2,5 leitos por mil habitantes(10). O Governo local, dentro de um plano de melhoria de atenção à saúde, baseado, entre outros fatores, na ampliação do atendimento domiciliar, no aumento da resolutividade do atendimento ambulatorial especializado, hospital-dia, entre outras medidas, pretende num prazo de dez anos chegar próximo a dois leitos por mil habitantes. Em nosso meio, dadas as disparidades regionais, o índice de 3,6 leitos por mil habitantes apurados no Censo do IBGE de 1990, não mostra a real situação do setor. Ao contrario, parece esconder a ruim distribuição geográfica desses leitos, bem como a inadequada distribuição com relação às especialidades médicas mais necessárias à população. Na Região Metropolitana de São Paulo, desde o final dos anos 80, alguns hospitais vêm sendo desativados. O fechamento do Sanatório Anhembi, em Carapicuíba, e do Hospital Psiquiátrico Palmares, na região do ABC, constituíram momentos importantes na melhoria do aten- Cidade Oferta de leitos/1.000 hab Necessidade/1.000 hab Atlanta Boston Cleveland Chicago Dallas Houston New York Pittsburg Philadelphia 3,5 6,1 5,4 4,3 3,6 4,3 5,5 6,0 5,0 2,1 3,2 2,5 2,2 2,0 2,0 3,3 3,8 3,2 Fonte: Hospitals & Health Network – 1996 RAS _ Vol. 2, Nº 5 – Dez, 1999 7 dimento psiquiátrico no sentido da desinstitucionalização e do acompanhamento ambulatorial dessa clientela. Ainda nos anos 80, deu-se a desativação do Hospital Infantil da Cruz Vermelha Brasileira, situado no bairro do Aeroporto, em São Paulo, com 200 leitos pediátricos e programa reconhecido de residência médica, referência em pediatria de vários bairros da região sul da capital, atendendo à época clientela do INAMPS. Outros hospitais, como o Hospital Geral da Lapa e o Hospital de Fraturas da Lapa, ambos na capital, foram descredenciados pelo INAMPS e posteriormente demolidos, dando lugar a novos empreendimentos imobiliários. Seguindo a mesma tendência, na cidade de São Paulo desde o início dos anos 90, continuamos a assistir à desativação de alguns hospitais, cujo mais significativo foi o fechamento do Hospital Umberto I, com 320 leitos, próximo à Avenida Paulista, conveniado com o SUS, hoje transformado em habitação coletiva. De mesmo nível de importância é o descredenciamento de leitos SUS por parte de vários hospitais privados, que se observa desde o inicio dos anos 90, reduzindo as possibilidades de acesso dessa clientela e obrigando o Governo do Estado de São Paulo a investir na conclusão de 12 hospitais, cujas obras estavam paralisadas há quase 10 anos, visando atender exclusivamente essa população. A tabela abaixo mostra a oferta de leitos hospitalares gerais (exclui leitos psiquiátricos: de dermatologia sanitária; de tisiologia; e leitos de UTI adulto, pediátrica e neonatal) no período de 1985 a 1994. Interessante notar que apesar do aumento populacional e da melhoria dos principais indicadores de saúde no período, observados no Estado de São Paulo, o número de leitos disponíveis em 1994 é menor que o ofertado em 1985. Essa tendência de redução da demanda por leitos hospitalares tem sido observada também pelo Programa CQH (Programa de Qualidade Hospitalar, mantido pela Associação Paulista de Medicina e pelo CREMESP), o qual nos seus 8 anos de funcionamento vem monitorando vários indicadores hospitalares. Dentre esses indicadores, apuração de relevante importância tem sido a taxa média de ocupação de leitos hospitalares no Estado de São Paulo, cujos valores têm oscilado em torno de 65%, o que indica a existência de leitos ociosos(11). O Programa tem observado também que hospitais que possuem atividades estruturadas voltadas à gestão da qualidade conseguem obter maior produtividade, o que reflete, entre outras coisas, em menores tempos médios de permanência e maiores taxas de ocupação. IV. CONCLUSÕES A redução na demanda por leitos hospitalares observada nos últimos anos pode ser atribuída aos vários fatores apontados anteriormente. As inovações tecnológicas introduzidas na área da saúde e o aumento da resolutividade ambulatorial alteraram profundamente a demanda por leitos hospitalares. Os tempos médios de permanência hospitalar para os principais eventos (partos, cirurgias, etc.) declinaram nos últimos anos. Paralelamente, as mudanças de paradigmas no atendimento a determinadas patologias, como tuberculose e hanseníase, bem como os novos modelos de atenção à saúde mental e ao idoso, reduziram as necessidades de leitos para pacientes crônicos. Além dos aspectos sociais, culturais e demográficos da população demandatária, a utilização de leitos hospitalares está diretamente ligada ao financiamento do atendimento, ao modelo ambulatorial ofertado à comunidade, ao modelo de assistência à saúde mental vigente, da existência ou não de programas de atenção domiciliar, bem como da proximidade ou não de pólos de atendimento regional. De tal modo que, para cada comunidade, de acordo com suas características sociodemográficas e o modelo assistencial praticado, existirá Leitos hospitalares gerais Ano 1985 1990 1991 1992 1993 1994 Total do Estado de S. Paulo 89.581 93.780 96.056 95.972 96.778 86.986 Cidade de São Paulo 30.587 28.388 29.557 29.778 30.957 25.007 Fonte: Centro de Informações de Saúde-CIS/SES e SEADE (www.seade.gov.br) 8 RAS _ Vol. 2, Nº 5 – Dez, 1999 número suficiente de leitos hospitalares, não havendo número ideal de leitos a ser ofertado. Por mais paradoxal que pareça, pode-se afirmar que faltam hospitais e que existem muitos leitos hospitalares ociosos no Estado de São Paulo. Observa-se uma oferta inadequada de leitos hospitalares, principalmente sob os aspectos de distribuição geográfica e de clientela beneficiária(12). Faltam leitos SUS principalmente especializados, enquanto sobram leitos destinados às segura- doras e planos de saúde em São Paulo. Por outro lado, a quantidade de leitos hospitalares ociosos, observados principalmente pelas baixas taxas de ocupação, e de hospitais desativados, também apontam no sentido da falta de financiamento para a utilização desses leitos. Por tudo isso, pode-se afirmar que a oferta de leitos hospitalares por mil habitantes não pode ser um valor mágico, sacado conforme as conveniências e o calendário eleitoral. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Forsyth G e Logan RFL – The demand for medical care, London, Oxford University Press, 1960. 2. Mendes EV – Uma agenda para a saúde, São Paulo, Hucitec, 1996. 3. Paganini JM e Novaes HM – El hospital público: tendencias y perspectivas. Washington, DC, OPAS - HSS/SILOS, 1994. 4. Rodrigues Filho J – A oferta e a procura dos serviços médico-hospitalares no Brasil. Rev Adm Publ Rio de Janeiro, out/dez 1983. 5. Bittar OJNV – Ambulatório: da simplicidade à complexidade, é uma solução. Rev Paul Hosp 37 (1/4), 1990. 6. Pesquisa Abraspe 1995 (mimeo), 11 de março de 1996 São Paulo, SP. 7. Bittar OJNV – Produtividade em hospitais, tese para obtenção de livredocência apresentada na Faculdade de Saúde Pública-USP, São Paulo, 1994 (mimeo). 8. Matos AJ – Saúde hoje, Confederação Nacional de Saúde, Ano IX, nº 93, nov, 1998. 9. Hospitals & Health Network – pg. 45 jan, 5, 1996. 10. Sistema de Saúde Canadense. Abraspress - Ano III, nº 17, set/out., 1998. 11. Boletim Proahsa de Indicadores – Ano I nº 1, abril de 1997. 12. O Estado de São Paulo. Bebês morreram por falta de UTIs em SP, A25, 21/ 11/1999. EXIJA QUALIDADE NA SAÚDE RAS _ Vol. 2, Nº 5 – Dez, 1999 9