texto anpocs cynthia de lima campos

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33º ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS
GT 09: CULTURA BRASILEIRA: MODOS E ESTILOS DE VIDA
OÊ, OÊ, EU SOU MAIS INDIE QUE VOCÊ:
O gosto e o estilo dos fãs de rock independente como elemento de distinção
Cynthia de Lima Campos1
1
Doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Bolsista do CNPq.
Introdução
Este trabalho é resultado de uma pesquisa de campo exploratória, que é parte
integrante do projeto de tese de doutorado em Sociologia pela Universidade Federal de
Pernambuco. Nossa preocupação inicial seria mapear pelo método etnográfico o
comportamento de indivíduos que freqüentam eventos que em certa medida se encaixam
no rótulo de indie. O que se percebeu é que não existe uma homogeneidade de
comportamento, sobretudo porque a maior parte dos dados foram coletados na cidade do
Recife, apenas um evento na cidade de São Paulo, mesmo assim se mostrou problemático
porque foi um evento de grande porte e que contou com a adesão de várias tribos.
Assim, tal mapeamento constitui o ponto de partida para futuras pesquisas de
campo, no sentido de contribuição para a tese de doutorado. Por enquanto, dispomo-nos a
apresentar alguns marcos importantes na história do rock, tentando mesclar com a
discussão do status artístico que o gênero pode assumir. Em um segundo momento,
apresentamos uma descrição/definição do que chamamos de indie rock. Posteriormente,
detemo-nos em algumas teorias sobre o consumo, uma vez que consideramos a prática de
consumo cultural fundamental para pensar algumas estratégias de distinção, seguidas por
algumas teorias sobre gosto e distinção, a saber, Bourdieu, a teoria do onívoro/unívoro e
a teoria da mobilidade social. Finalmente, traçamos duas linhas de discussão no sentido
de apresentar algumas conclusões preliminares sobre o que encontramos no campo: a
discussão entre arte e mercadoria e a do mito de superioridade social e intelectual.
Gostaríamos de lembrar que não é possível chegar a tipo-ideal de consumidor de
indie rock no Brasil, dadas as proporções geográficas e culturais do país, o que, inclusive,
torna a produção indie brasileira bem peculiar, justamente por conta das misturas da
música pop com elementos inusitados e populares.
Rock and roll, muito prazer
O surgimento do rock and roll, nos Estados Unidos em meados dos anos 50, é
resultado não somente da evolução e da mistura de uma série de ritmos afro-americanos,
tais como o rhythm and blues (R&B), o jazz e o blues. Envolve muito mais elementos
técnicos e sociais que os restritos ao campo da arte e da música.
Havia uma América pós-guerra conservadora – bem representada pelo cidadão
médio americano (morador de subúrbios, possuidor de um emprego estável, apto para ser
incluído na sociedade do consumo) – cujos valores encontravam-se fortemente ligados ao
McCarthismo e ao anti-Comunismo, como também a uma rigidez social e a um
comportamento conformista (WICKE, 1995, p. 29).
Havia também todo um panorama tecnológico que proporcionou as condições
básicas para o surgimento e desenvolvimento do rock and roll. A difusão dos meios de
comunicação de massa como a televisão, o cinema, as gravadoras, e o rádio, muniram o
rock and roll de condições para sua divulgação e aceitação social. Aliás, arrisco-me a
afirmar que sem um casamento entre a música e a tecnologia não haveria rock and roll.
Como afirma Wicke “o rock’n’roll foi a primeira forma de música a ser distribuída em
massa pelo rádio, filme e televisão” (1995, p. 4, tradução nossa). Além disso, as
alterações no processo de gravação musical2 transformaram consideravelmente as
relações tradicionais de produção e distribuição da música popular.
Outro fator não menos importante que as mudanças estéticas na música e as
mudanças tecnológicas na sua produção refere-se às transformações nas condições de
vida e trabalho nos países de capitalismo avançado, “que resultaram da intensificação
técnica e científica dos processos de produção” e que possibilitaram o surgimento de
tempo livre para o lazer (WICKE, 1999, p. 9-10, tradução nossa).
“O trabalho degenerou completamente de uma mera atividade de
aquisição de renda para uma ocupação intercambiável, tendo sido
encorajado pelas tendências em torno de uma mão-de-obra móvel e
flexível neste tipo de produção. Desse modo, todos os ideais de vida
foram transferidos para o lazer, uma transferência que gradualmente
tomou lugar em todas as classes sociais e que foi acompanhada por
uma extensiva expansão do setor de bens de consumo dentro de uma
lógica de produção capitalista” (WICKE, 1999, p. 10, tradução
nossa).
2
Wicke (1995, p. 5, tradução nossa) cita como tais mudanças a introdução em 1948 pela Columbia
Broadcasting System (CBS) do long playing record que, além de ser produzido em vinil, possibilitou a
redução da velocidade de execução de um disco de 78 para 33 ½ revoluções por minuto. Concorrendo com
a CBS, a Radio Corporation of America (RCA) produziu o single de 45 revoluções por minuto, que se
baseou na mesma tecnologia. Entretanto, segundo o autor, o que revolucionou mesmo a indústria
fonográfica foi a fita magnética para gravação (magnectic tape recording music). A fita magnética
possibilitou a gravação musical som-sobre-som, que permitia a sobreposição de sons gravados
separadamente.
O surgimento de uma sociedade ávida por consumo aliada a uma nova
centralidade dada à categoria lazer na vida pessoal criou uma demanda por bens culturais
que tornou possível o envolvimento dos meios de comunicação de massa com a arte, que,
por sua vez, foi reduzida a vários tipos de entretenimento (WICKE, 1999, p. 10-11). Por
outro lado, a apropriação de novos valores pelo cidadão americano abriu espaço para a
oferta maciça de produtos que pudessem incluí-lo no universo de espetáculo que então se
formava. Friedlander revela que “reconhecendo a existência de um novo grupo de
consumo, empresários americanos correram para preencher este filão, provendo-o de
itens ‘essenciais’ como roupas, cosméticos, fast food, carros – e música” (2006, p. 38).
A música em questão, o rock and roll, apresentava um ritmo ousado e vibrante
que atraiu toda uma geração de adolescentes americanos, insatisfeitos com a cultura de
conformismo e conservadorismo americana. Esses adolescentes atribuíram ao rock and
roll um papel central em suas atividades de lazer, “projetando para dentro dele [o rock
and roll] os problemas de sua situação” (WICKE, 1999, p. 11, tradução nossa). Ou ainda
segundo Hibbard e Kaleialoha citados por Friedlander (2006, p. 37) “essencialmente o
rock proporcionava a seu público [os adolescentes], predominantemente de classe média,
uma forma excitante de extravasar a sua insatisfação e um senso de identidade de grupo,
ao mesmo tempo em que perseguia objetivos sociais estabelecidos”.
Uma vez que foi levado para a vida diária dos adolescentes americanos, o rock
and roll adquiriu significados, construindo um leque de valores antes permitido apenas à
arte erudita, o que fez com que as barreiras entre a arte e a vida diária fossem suprimidas
(WICKE, 1999, p. 11).
Até se tornar o que é hoje, subdividido em e misturado a inúmeros subgêneros,
tais como “punk, alternativo, grunge, college rock, emo, gótico, indie pop, lo-fi, dreampop, industrial, pós-rock, ambiente, techno, britpop, hardcore, slowcore (HIBBERT,
2007, p. 55)”, o rock sofreu importantes transformações que o fizeram incorporar novas
formas e novos significados, tanto em termos de estética, quanto em termos de produção,
distribuição e construção de valores sociais, e que poderiam ser consideradas marcos:
1) O Rock Clássico
A primeira faceta do rock and roll, o rockabilly, uma mistura de country, blues e
R&B, surgiu a partir de uma gravação de Elvis Presley, quando este ainda era motorista
de caminhão, feita na Sun Records. O gênero musical caracterizou-se pelo uso apenas de
um violão, uma guitarra e um baixo associados a um vocal “trêmulo” e “abandonado”,
nesse caso pertencente ao próprio Elvis. Posteriormente, a bateria passou a integrar o
conjunto de instrumentos, o que, segundo Friedlander (2006, p. 36), possibilitou ao
rockabilly assumir o papel de gênero de transição e atrair alguns artistas brancos. Embora
o novo ritmo tivesse suas raízes na música negra, à qual muitos atribuíram a influência
do rebolado sensual, representado pela maioria dos músicos do rock and roll clássico,
artistas brancos como o já mencionado Elvis Presley, Bill Haley, Jerry Lee Lewis e
Buddy Holly contribuíram consideravelmente para a divulgação e aceitação da nova
música por parte dos jovens americanos. Por outro lado, Chuck Berry – cuja música Roll
over Beethoven representa uma metáfora de como o rock and roll passou a ocupar um
lugar na vida privada antes ocupado pela arte erudita, Fats Domino e Little Richard
constituem o corpo de cantores negros mais influentes na primeira geração do rock and
roll.
2) A Invação Inglesa
No final dos anos 50, a onda do rock and roll havia esfriado e os principais
artistas do rock clássico já não emplacavam mais tantos sucessos nas paradas da
Billboard, parecia que o rock estava chegando ao seu fim, até que... Quatro rapazes de
Liverpool deram o sopro que o rock and roll precisava. A despeito da qualidade de suas
músicas, tanto em termos de letra como em termos de melodia, e da sua trajetória, foi a
partir dos Beatles que se operou uma revolução na sociedade e na indústria da música.
Nunca nenhuma banda de música popular tinha atingido tantas pessoas de uma só vez,
nem lançado um mesmo álbum simultaneamente em dois países (Estados Unidos e
Inglaterra) e nem se utilizado dos recursos de marketing3 e tecnológicos para se
promover na dimensão utilizada pelos Beatles. Paul Friedlander afirma que a “sua
integridade criativa, idealismo e espontaneidade colocaram o desafio para os principais
críticos – levar a sério a forma e o conteúdo do rock. Os Beatles possibilitaram a
discussão do rock and roll como forma de arte” (2006, p. 149).
3
Em 1965 Brian Epstein, empresário da banda lançou um filme A Hard Days Nigth, em que os próprios
integrantes dos Beatles são os atores e protagonistas. O filme se passava em torno do que seria o cotidiano
de cada um dos integrantes da banda, o que funcionou muito bem como estratégia de marketing
(FRIEDLANDER, 2006).
3) O Punk Rock
Tendo conquistado espaço na indústria fonográfica em proporções significativas,
o gênero havia sido incorporado ao maisntream. Ademais, a cultura de consumo tinha se
apropriado de referências do movimento de contracultura, os antigos membros do
movimento hippie eram agora consumidores, ao mesmo tempo em que “muitos músicos
[do rock and roll] tinham aumentado suas pretensões de gravar ‘operas’ rock e álbuns
conceituais que requeriam meses de estúdio” (MOORE, 2007, p. 446, tradução nossa) e
alto investimento. Contrapondo-se a esse cenário, surge em Nova York um movimento
ligado diretamente à Pop Arte de Andy Warhol, composto por estudantes de arte e de
teatro, artistas plásticos, video makers e músicos (MCCAIN e MACNEIL, 1997). Para
esses artistas, “o que era geralmente sem valor banal e trivial era o ponto de partida de
uma prática artística que tirava seus materiais dos objetos de consumo do cotidiano da
burguesia” (WICKE, 1999, p. 138, tradução nossa).
Havia todo um contexto de sub-cultura e bandas como The Velvet Underground,
Talking Heads, Blondie, New York Dolls e Stooges trouxeram para o rock o conceito de
punk art. Em termos estéticos, a música era mais crua, mais tosca, tocada em dois ou três
minutos, com letras simples. Embora a cena fosse totalmente subversiva, havia uma
tendência dos músicos se apresentarem com roupas coloridas e cheias de brilho4, o que
incutia certo glamour à cena5. Do outro lado do Atlântico, e alguns anos depois, na
Londres de 1975, Malcom MacLaren, que já tinha conhecido a cena underground
novairoquina, encorajou um de seus funcionários e um cliente de sua loja a montar uma
banda com proposta semelhante. Estava formada a Sex Pistols, a banda que se tornou o
ícone da cultura punk inglesa. O que se seguiu foi uma efervescência do que se chamou a
cultura punk. Jovens, oriundos da classe trabalhadora, passaram a usar cabelos espetados
e coloridos no estilo moicano, roupas pretas e rasgadas, alfinetes e correntes
desempenhavam o papel de acessórios, coturnos e atitudes que expressavam violência e
indignação. Nos shows, a música era celebrada através do pogo, uma dança em que o
4
Os integrantes do New York Dolls, por exemplo, vestiam-se todos de mulher, com poás, plataformas e
maquiagem carregada.
5
Algumas das bandas que compunham a cena referida enquadravam-se numa categoria de denominada
glam rock ou glitter rock, cujo conceito era tanto determinado pela indumentária dos músicos quanto pela
estética musical.
público pulava exageradamente em torno de um círculo, causando a impressão de que
uma luta estava sendo travada.
A contribuição social do punk foi a possibilidade de expor a complexidade que
havia na indústria musical com relação ao rock. Através de sua música suja e tosca, o
gênero negou a necessidade de grandes e eficientes aparelhagens técnicas para a
produção de um álbum. Os músicos eram em sua maioria amadores, mas produziam
música por paixão e motivados por suas próprias trajetórias pessoais. O fato de não
precisarem estar no mainstream para serem ouvidos e para produzirem e lançarem seus
álbuns e, sobretudo, por terem desafiado o mainstream e suas gravadoras, possibilitou o
surgimento do comportamento do-it-yourself (DIY).
A abordagem do-it-yoursel para a produção cultural tem permitido
pessoas [...] serem participantes e performers muito mais que apenas
consumidores e espectadores, a despeito de sua habilidade, experiência
ou viabilidade comercial. Tem permitido àqueles com poucas
possibilidades de comunicação com o público a expressar suas idéias
através da música (MOORE, 2007, p. 448, tradução nossa).
O DIY foi a base para o surgimento de novos músicos, que optaram por uma produção
independente, mas criativa, carregada de elementos inovadores e experimentais, que
posteriormente evoluiu, ou recebeu a denominação de cultura indie (independent).
Senhoras e Senhores, o indie rock
Como apontado anteriormente, o DIY, surgido a partir do movimento punk,
constituiu o ponto de partida para a produção da música independente: selos mantidos
pelos próprios músicos, divulgação fora dos circuitos do mainstream e, principalmente,
liberdade para criar e experimentar. A união desses três elementos resultou no indie rock,
uma categoria do rock, que, em princípio reivindicou apenas a liberdade de criação e a
democracia na divulgação de suas músicas, mas que devido ao surgimento de novas
tecnologias de comunicação e à adesão de fãs com hábitos de consumo socialmente
diferenciados, adquiriu outras proporções que ultrapassaram as questões estéticas da
música.
Definir o indie rock implica numa diferenciação entre comercial e criativo, assim
como numa distinção entre arte erudita e popular. Em primeiro lugar, a música comercial
pode ser definida como aquela produzida para um consumo em massa, deve, portanto,
atender aos padrões (gostos, preferências, formas de divulgação e preço) de consumo do
público para o qual está destinada. É, por isso, na maioria das vezes limitada em termos
de criação e de inovação, já que é produzida com vistas a uma máxima aceitação
possível. Em segundo lugar, os apreciadores da arte erudita incluem o rock and roll na
categoria de música popular, aquela produzida sem requintes estéticos, cuja única função
é o entretenimento. Nesse sentido, como subcategoria do rock, o indie rock estaria
inserido na categoria de arte popular.
Entretanto, se analisarmos o desenvolvimento dessa categoria e observarmos os
elementos estéticos e experimentais, os locais onde a música é executada, assim como a
comunidade de seus seguidores, concluiremos que o indie rock tanto apresenta elementos
que lhe dão atribuição de arte erudita, como também possui elementos que o colocam na
condição de arte popular.
Assim como a arte erudita está em relação à cultura popular, o indie
rock é parte de uma estrutura de poder dicotômica em que dois campos
– um (A) tem uma larga audiência e produz uma abundância em
termos de capital econômico, o outro (B) tem uma audiência muito
menor e produz pouco capital econômico – opera em uma relação
discordante, mas simbiótica: enquanto resiste às convenções de A, B
adquire valor em ser reconhecido como ‘não A’”(HIBBETT, 2005,
p. 57, tradução nossa).
O que então coloca o indie rock na categoria de arte superior? Apenas a
resistência às convenções do maisntream? Hibbett aponta muito mais elementos que
caracaterizariam o indie rock como arte superior. O primeiro deles é a criação de códigos
“usados para gerar e manter mitos de superioridade social ou intelectual” (2005, p. 57). A
obscuridade também aparece como elemento de diferenciação social e intelectual e
constitui um fator importante, assim como a exclusão de indivíduos que não possuem o
mesmo “gosto” musical e estético. Hibbett sugere ainda que os entusiastas do indie rock
aproximam-se ou podem ser igualmente comparados em termos de formação social aos
intelectuais da vanguarda da alta cultura (2005, p. 57).
A expressão indie rock tem um alcance muito maior que o termo rock ou
música alternativa, uma vez que esta figura como uma alternativa, uma opção fora do
sistema hegemônico de produção musical, ao passo que o indie reclama o status de
independente do sistema. “Indie rock reivindica para si mesmo uma espécie de vácuo de
existência, independente das forças políticas e econômicas, assim como do sistema de
valores e critérios estéticos da produção de larga escala” (HIBBETT, 2005, p. 58,
tradução nossa). Músicos, produtores, donos de gravadoras, fãs, críticos e entusiastas da
cena, desenvolvem para si códigos, valores e práticas que nem sempre são fáceis de
apreensão por quem não pertence à cena. Geralmente esses códigos e práticas são
gerados dentro de um campo discursivo de poder, e cujos significados encontram-se
diretamente ligados aos diversos objetivos dos seus agentes (HIBBETT, 2005).
A definição de indie rock ultrapassa as questões de produção musical. Estende-se
para além desse campo. Perpassa as questões estéticas da música como a criatividade, a
inovação e a experimentação, como também a postura dos músicos com relação à
indumentária, atitudes, performance e estilo de vida. E vai ainda mais além encerrando
todo os códigos, valores e significados a serem absorvidos pelos fãs e que serão
impressos no seu cotidiano, nas suas práticas e, conseqüentemente na suas preferências e
estilos de vida. Ademais, as canções de indie rock and roll são definidas muito mais
como um conjunto de elementos culturais que envolvem desde a mescla de instrumentos
da música erudita com guitarra, baixo e bateria, até o publico ao qual a canção é
destinada e que sensações serão provocadas nesse público, o que faz do indie rock um
complexo cultural que envolve comportamentos, atitudes, vestimentas, leituras,
atividades de lazer, formas de dançar e se expressar, assim como suas formas de
produção e distribuição. Sendo assim, que elemento poderia ser apontado como a
motivação para o pertencimento, tanto na condição de receptor (fã) quanto na condição
de produtor, à cena indie?
Com relação à produção musical, Moore ( 2007, p. 442, tradução nossa) aponta
como motivação principal o desejo de reconhecimento legítimo em termos culturais. A
“expressão de sua visão artística pessoal, a música inspirada pela originalidade e
sinceridade [são fatores] muito mais [relevantes] do que ganho financeiro ou aprovação
da audiência”. Por outra via, o desejo de se diferenciar a partir do compartilhamento de
símbolos e códigos e de pertencer a uma cena que, chame a atenção pelos valores que
passa a reivindicar, constitui o principal fator de motivação para os fãs.
Tanto em um caso como em outro o que prevalece é a autenticidade como
principal elemento de motivação. Para Williams (2006, p. 178), a busca pela
autenticidade manifesta-se tanto em termos sociais quanto em termos pessoais. A
dimensão social da autenticidade surge de cada narrativa que constrói uma coesão dentro
de um grupo e como essa coesão vai constituir o elemento sub-cultural de diferenciação
social. As fronteiras estabelecidas por essa coesão serão determinantes para inclusão ou
exclusão dos indivíduos. Cada vez em que há uma identificação entre um ou mais
indivíduos, se estabelece uma experiência tanto de natureza afetiva, como de natureza
cognitiva. Diz respeito a como as pessoas reivindicam os status de pertencimento a uma
categoria social. Por outro lado, a dimensão individual da autenticidade, alude ao
princípio de originalidade de idéias e comportamento. Corresponde à negação de ser
influenciado por outros, de ser mais um na multidão. É a valorização do individualismo e
a condenação da conformidade (WILLIAMS, 2006, p. 178).
Objetivamente, que elementos de autenticidade caracterizam o fã de indie?
Hibbett, analisando algumas práticas sociais das comunidades indie lança algumas
características em comum encontradas nos membros dessas comunidades. A primeira
delas corresponde ao sentimento de pertencimento a uma espécie de sociedade secreta e
que todos os excluídos dessa sociedade são pobres almas ignorantes. Em seguida, o autor
aponta que na maioria das vezes o contato com a cena independente está diretamente
ligado ao bom convívio social, bom nível de escolaridade, ao “bom” gosto, valores que o
indivíduo adquire ao longo da vida.
Além desses elementos há ainda um desejo de diferenciação dentro do próprio
grupo, em que o domínio do conhecimento sobre as mais desconhecidas bandas e
músicos figura como critério de mensurabilidade de quanto se está inserido na cena.
Assim é que, na cena indie, os atores reivindicam a diferenciação pondo-se em oposição
ao que é comum e hegemonicamente aceito pela indústria musical.
Para cada bem cultural, um padrão de gosto e consumo?
Optamos for fundamentar teoricamente a nossa discussão a partir do consumo dos
bens culturais e de padrões de gosto e estilos de vida, considerando a cena indie fonte de
produção de bens culturais.
Assim, se existe uma produção de bens culturais, deduz-se que existe uma
intermediação entre público e cultura, que surge a partir de uma prática de consumo.
Diversos teóricos têm posicionado o consumo com um dos fatores determinantes das
relações sociais no capitalismo tardio (BAUDRILLARD, 1995; FEATHERSTONE,
1996; JAMESON, 1997). Afirma-se que nos encontramos numa sociedade de consumo,
cujos bens, materiais e imateriais são produzidos não somente para suprir uma
necessidade física ou espiritual, mas também para posicionar os indivíduos socialmente,
conforme os bens por eles consumidos. As mercadorias passam a ser consumidas muito
mais pelo valor simbólico que carregam (fetichismo) do que pelo seu valor de uso
(utilidade). A essas duas dimensões do consumo atribuíram-se as denominações consumo
essencial e consumo conspícuo, que segundo Taschner (1997, p. 29) “uma das
características da cultura do consumo é que ela envolve não só produtos essenciais para a
sobrevivência dos seres humanos como, e principalmente, produtos que se afastam dessa
categoria, ou [...] o consumo conspícuo”.
Muito mais do que uma sociedade de consumo, o que se tem vivenciado
ultimamente é uma cultura de e do consumo (SLATER, 2002). Slater aponta que, numa
sociedade em que as relações são mediadas pelo consumo, a cultura do consumo finda
em cultura de consumo, uma vez que os valores dominantes não só se organizam pelas
práticas de consumo, mas também derivam-se delas (2002, p. 32).
Slater demonstra ainda que “a cultura do consumo é a cultura de uma sociedade
de mercado”, exatamente porque o que consumimos foi produzido com a única finalidade
de ser vendido no mercado a consumidores.
Um elemento fundamental do nosso consumo é o ato de escolher entre
uma gama de mercadorias alternativas produzidas pelas instituições
que não estão interessadas em necessidades ou valores culturais, mas
no lucro e em valores econômicos. O acesso do consumidor ao
consumo é estruturado em sua maior parte pela distribuição de
recursos materiais e culturais (dinheiro e gosto) determinada ela
própria de forma decisiva pelas relações de mercado (SLATER,
2002, P. 33).
Outra característica da cultura do consumo enumerada por Slater é a de que esta é
universal e impessoal. Em princípio, tudo o que é produzido é destinado ao consumo de
qualquer indivíduo, não há uma medida específica para um indivíduo específico, o que
“pressupõe relações de troca impessoais e generalizáveis como base de mediação do
consumo” (SLATER, 2002, p. 34). E, da mesma forma que não há um princípio que
estabeleça quem deve consumir o que, também há não uma lei que determina o que deve
ser consumido. Na sociedade capitalista, objetos, relações sociais, tudo pode ser reduzido
ao valor de mercadoria (SLATER, 2002, p. 34), já que se consome tendo em vista a
eliminação de determinada carência, seja de ordem material ou imaterial. E nesse sentido,
a música, em seus atributos artísticos ou de cultura de massa encaixa-se no conceito de
mercadoria, uma vez que se encontra disponível para o consumo. O ato de consumir se
dá na esfera privada da vida do indivíduo. Assim, consumir torna-se uma ação privada
(SLATER, 2002, p. 35).
A cultura do consumo parte do princípio de que as necessidades do consumidor
são insaciáveis. Numa economia de mercado, “a produção de bens de consumo requer a
venda de quantidades crescentes de produtos sempre diferentes” (SLATER, 2002, p. 36).
Consome-se não o bem material, mas o bem simbólico. Consome-se não a música
independente, mas todo o aparato de códigos, valores e significados que colocarão o
indivíduo em posição diferenciada na sociedade.
As mercadorias passam a ter uma dimensão estética, em que, consoante as
palavras de Slater, “o produtor precisa criar uma imagem de valor de uso onde os
compradores em potencial possam se reconhecer” (2002, p. 38). Ainda, é através do
consumo que os sujeitos se reformulam enquanto identidades sociais e exibem essa
identidade, e, nesse sentido, o valor dos bens encontra-se ligado muito menos ao seu
valor de utilidade (uso) do que ao seu valor cultural (signo) (SLATER, 2002, p. 39).
“Quando selecionamos os bens e nos apropriamos deles, definimos o que consideramos
publicamente valioso, bem como os modos com que nos integramos e nos distinguimos
na sociedade, com que combinamos os pragmática e aprazível” (CANCLINI, 2001, p.
45).
Bourdieu também considera que há uma relação direta entre a produção de bens
culturais e o consumo destes, sobretudo porque, para ele, é através deste ato que os
indivíduos buscam diferenciar-se (BOURDIEU, 2007). Essa relação entre produção e
consumo parte justamente da discussão entre arte e comércio, entre autonomia e
heteronomia dos campos (HESMONDHALGH, 2006, p. 223).
O que está bem presente na discussão sobre consumo cultural é o desejo de
distinção entre as classes sociais. Este desejo representa o principal fator de motivação
para o ato de consumir bens culturais. E, nesse sentido, Bourdieu pontua que
Se, entre todos os universos de possibilidades, o mais disposto a
exprimir as diferenças sociais parece ser o universo dos bens de luxo, e
entre eles, dos bens culturais, é porque a relação de distinção
encontra-se aí inscrita objetivamente e se reativa [...] em cada ato de
consumo, através dos instrumentos econômicos e culturais de
apropriação exigidos por ela (2007, p. 212, grifo do autor).
E completa afirmando que toda ação de apropriação de uma obra de arte constitui uma
relação social, contrária à ilusão do comunismo cultural e, portanto, uma relação de
distinção (BOURDIEU, 2007, p. 213).
Nesse sentido, a obra de arte – ou o bem cultural – adquire valor simbólico tanto
no momento de sua produção quanto no momento de sua apropriação. Ademais o ato de
apropriação das obras culturais supõe a detenção de disposições e competências não
distribuídas universalmente, e por funcionarem como objeto de apropriação exclusiva,
seja material, seja simbólica, essa apropriação funciona não somente como veículo de
ganho de distinção, mas também como veículo de aquisição de legitimidade da obra,
“que consiste no fato de se sentir justificado para existir (tal como existe) e de ser como
deve (ser)” (BOURDIEU, 2007, p. 214).
Quanto maior o poder simbólico vinculado ao bem cultural, maior a capacidade
de distinção proporcionada pela apropriação do bem, o que implica dizer que “o ganho
simbólico proporcionado pela apropriação material ou simbólica de uma obra de arte
avalia-se pelo valor distintivo que esta obra deve à raridade da disposição e da
competência exigida por ela” (BOURDIEU, 2007, p. 214). Assim, o aumento no número
dos indivíduos detentores de tais competências (que seriam códigos e valores específicos
de um determinado grupo ou de uma determinada classe social) de apropriação, ou
detentores do próprio bem cultural implica na diminuição da raridade e do valor
distintivo da obra, ameaçando inclusive as posições de distinção conquistadas pelos seus
antigos detentores (BOURDIEU, 2007, p. 214).
Além da oferta dos bens consumidos, outros dois fatores irão influenciar
consideravelmente a escolha dos bens que pretendemos consumir. O primeiro deles e de
grande relevância é o fator econômico. Numa sociedade cuja economia é construída
sobre um sistema capitalista a aquisição de bens está diretamente ligada ao capital
econômico que os indivíduos possuem. O segundo fator a que me refiro, e é exatamente
para este que quero chamar a atenção refere-se ao gosto, que, nas palavras de Bourdieu
(2007, p. 17) corresponde à “manifestação suprema do discernimento que, pela
reconciliação do entendimento com a sensibilidade – ora, o pedante compreende sem
sentimento profundo, enquanto o mundano usufrui sem compreender – define o homem
na acepção plena do termo”.
Para Bourdieu, as nossas práticas de consumo variam “segundo as categorias de
agentes e segundo os terrenos aos quais elas se aplicam”. Assim, no ato de consumir,
desde os produtos mais simbólicos, como a música, por exemplo, as nossas escolhas
serão determinadas por alguns fatores tais como, “a relação estreita que une as práticas
culturais”, o capital escolar e a origem social (2007, p. 18). O que não significa dizer que
a prática de consumo é determinada exatamente pela ocupação profissional ou pela
renda.
De fato, a renda e a escolaridade vão constituir fatores importantes no julgamento
do gosto, mas o que Bourdieu chama a atenção é para o conjunto de atributos adquiridos
pelo indivíduo a partir de um estilo de vida, um habitus.
O gosto, propensão e aptidão à apropriação (material e/ou simbólica)
de uma determinada categoria de objetos ou práticas classificadas ou
classificadoras, é a fórmula generativa que está no princípio do estilo
de vida. O estilo de vida é um conjunto unitário de preferências
distintivas que exprimem, na lógica específica de cada um dos
subespaços simbólicos, mobília, vestimentas, linguagem ou héxis
corporal, a mesma intenção expressiva [...] (1994, p. 83).
O conceito de estilo de vida direciona-se para o de habitus, ou seja, a ligação
entre os elementos subjetivos e objetivos de uma mesma classe (fatores econômicos e
práticas e valores). O habitus compreende os valores adquiridos por uma determinada
classe social, que, juntamente com o seu posicionamento na estrutura, estabelece
predisposições e tendências para se agir de uma forma ou de outra (BOURDIEU, 2007).
O habitus é algo que é apreendido pelo indivíduo, é através dele que as predisposições se
incorporam ao estilo de vida do indivíduo. “Enquanto produto da história, o habitus
produz práticas individuais e coletivas” (BOURDIEU, 1994, p. 76). Assim, o habitus
define como o indivíduo deve agir ou não diante de alguma situação, o que não significa
dizer que ele não possa agir de outra maneira. E é justamente a posição social do
indivíduo que vai definir o conjunto de predisposições e valores incorporados pelas suas
práticas sociais, o que faz com que o gosto seja uma construção social e não individual
(SEYMOUR, 2005, p. 4).
A segunda forma de capital definida por Bourdieu corresponde ao capital
simbólico, que “é uma forma de capital cultural referente à esfera dos signos”, justamente
porque o comportamento social opera com signos, com os símbolos inerentes à posição
do indivíduo (SEYMOUR, 2005, p. 6).
O seu trabalho mais significativo com relação ao julgamento do gosto foi A
Distinção (1979) em que Bourdieu se propõe a estudar as classes sociais e a relação de
dominação entre elas a partir da constituição do gosto, medido pelo consumo da alta
cultura e da cultura ordinária. Nesse trabalho, Bourdieu, partindo inclusive do conceito
de habitus, demonstra que o julgamento não constitui um dom inato, e sim, uma
habilidade socialmente apreendida utilizada como capital simbólico nas lutas de classe.
Nesse sentido, e como apontam Coulangeon e Lemel (2007, p. 94), a visão de
consumo cultural e de estilo de vida em Bourdieu, encontra-se baseada não somente no
conceito de habitus, mas também no conceito de homologia estrutural, que defende que a
estrutura de classes na sociedade está diretamente ligada à estrutura de preferências
estéticas por meio de uma relação isomórfica. A partir do conceito de homologia, as
dimensões simbólicas das posições de classe serão definidas por meio de sentimentos
positivos e/ou sentimentos e crenças e pela rejeição dos sentimentos e crenças de outra
classe, organizando a esfera do gosto hierarquicamente em uma linha que vai da cultura
ordinária (lowbrow) até à alta cultura (highbrow).
Recentemente, algumas críticas têm sido apontadas à teoria da distinção de
Bourdieu. Não somente porque a sua análise diz respeito a um contexto restritamente
francês, mas também porque as mudanças estruturais que se estabeleceram nas últimas
décadas vêm reconfigurando os padrões de consumo, já que as pessoas têm demonstrado
mais abertura a novos valores. Elementos da cultura popular, antes definida como bruta e
tida como algo a ser suprimido ou evitado, passam a ser incorporados pelos grupos de
alto status sócio-econômico (PETERSON e KERN, 1996 apud WARDE, MARTENS e
OLSEN, 1999, p. 106).
Warde, Martens e Olsen (1999, p. 106) apontam que um fator importante no
consumo cultural contemporâneo compreende a enorme variedade de itens culturais em
circulação, o que dilui a concentração das preferências dentro de um grupo, ou torna até
impossível comunicar refinamento ou distinção, dificultando inclusive o estabelecimento
de um padrão de “bom gosto”.
Seguindo uma outra perspectiva, a tese do onívoro/unívoro, ou onivorização,
proposta por Di Maggio (1987 apud COULANGEON e LEMEL, 2007, p. 95) defende
que a principal distinção social reside na diversidade cultural. As elites tendem a ser mais
democráticas ao consumir bens culturais, ao passo que as classes trabalhadoras tendem a
ser mais unívoras. Além do mais, pode-se identificar duas dimensões no consumo
onívoro. A primeira diz respeito à propriedade cumulativa de consumo cultural, diz
respeito à esfera material do consumo, que se manifesta, por exemplo, no acesso aos mais
variados tipos de bens culturais, a saber, museus, livros, filmes, músicas, e assim por
diante. A segunda dimensão diz respeito às propriedades cognitivas dos indivíduos, e sua
ênfase reside no ecletismo do gosto estético.
O que merece ser destacada na tese onívoro/unívoro é que, embora refute a tese
da distinção de Bourdieu, negando que há uma homologia entre classes sociais e
consumo cultural, a distinção, nesse caso, se manifesta por meio da tolerância a
diferentes padrões estéticos, que Bryson (1996 apud WARDE, MARTENS e OLSEN,
1999, p. 108) definiu como capital multicultural, já que o aumento da tolerância torna as
pessoas detentoras de alto-status social mais abertas às diferenças étnicas, culturais e
raciais, o que pode, todavia, separa-las de outros grupos culturais, porque recria o padrão
de distinção localizado agora num cosmopolitanismo em oposição a um “não-alto-status”
cultural. O que leva Coulangeon e Lemel (2007, p. 108) a afirmar esta interpretação pode
sugerir uma troca na definição de legitimidade cultural do esnobismo para uma tolerância
cosmopolita. Assim, a onivorização corresponderia a um habitus cosmopolita definido e
transmitido socialmente e culturalmente.
Avançando nessa discussão, Emmison (2003) apresenta o conceito de mobilidade
cultural, que ele define como sendo a capacidade que os indivíduos têm de se engajar ou
consumir bens e serviços culturais ao longo de um amplo espectro da vida cultural, a
capacidade para se mover entre uma infinidade de campos culturais, a partir da livre
escolha dos indivíduos sobre os espaços culturais em que pretende se posicionar. O
conceito não pretende erodir ou atenuar, nem a cultura e o gosto tidos popular, nem os
tidos sofisticados, implica muito mais sua articulação e coexistência. Sua essência reside
no movimento e na escolha, em que as pessoas com maior possibilidade de mudarem de
campo cultural são aquelas com maior domínio sobre as suas escolhas.
Fundamental para trabalhar o conceito de mobilidade social é que Emmison
(2003, p. 212) não abandona totalmente o problema da estrutura de classes, afirmando
que classe ainda importa para os estudos de consumo, porém, em formas mais complexas
que as apresentadas n’A Distinção (1979), por exemplo. O que se nota, nesse sentido, é a
substituição do conceito de classe por estilo de vida.
Reportando-se à tese da onivorização, que, para ele, tem algumas similitudes com
a idéia de mobilidade cultural, Emmison (2003, p. 226) destaca que sua principal
vantagem é que ela coloca a vida cultural como um todo fornecedora de recursos
simbólicos. Entretanto, Emmison (2003, p. 213) afirma que aquela falha em capturar uma
dimensão importante da vida cultural contemporânea referente a seu caráter estratégico,
que é onde reside a diferença entre uma proposta e outra. Mais importante do que a
possibilidade de indivíduos culturalmente móveis se engajarem em formas culturais
variadas, é notar que essas escolhas se dão em contextos específicos.
O centro da idéia de mobilidade cultural seria a escolha, sobretudo o individuo
capaz de fazer a sua escolha, ou como apontam Rose (1992 apud Emmison, 2003, p. 215)
e Cote (1996 apud Emmison, 2003, p. 215), um indivíduo reflexivo, auto-monitorado,
capaz de esculpir a sua própria identidade em contextos desordenados, flexíveis e
incertos. A mobilidade cultural, então, estaria diretamente ligada ao surgimento de
sociedade baseada em padrões “pós-modernos”, sendo apenas uma parte desta
configuração.
Algumas conclusões preliminares
Considerando que a maioria das bandas/músicos de indie rock sendo de origem
européia, pode-se observar, no Brasil, um público que atende totalmente às
características acima descritas, assim como bandas/músicos que produzem música
independente, seja de forma econômica, seja de forma estética, fazendo uma música com
elementos de inovação caracteristicamente nacionais, com referências à música brega,
por exemplo, além de festivais marcadamente de indie rock: No Ar: Coquetel Molotov e
Festival Indie Rock, o que reforça a existência de uma identidade indie entre os
consumidores e freqüentadores deste tipo de música.
Verifica-se também a internet como elemento importante tanto na produção e
divulgação de músicas quanto no consumo destas. O uso da rede como fonte de consumo
musical vai desde o compartilhamento p2p às comunidades virtuais, como o My Space,
passando pelos blogs especializados em música (Glamourous Indie Rock and Roll; Lado
E) e pelas rádios on-line (Woxy) e contribui, justamente, ao facilitar o acesso, para os
próprios membros consumidores do gênero musical procurarem diferenciar-se entre si, a
partir de critérios, tais como: conhecimento de bandas novíssimas, redes sociais, acervo
musical, etc.
Assim é que por meio de pesquisa exploratória no sentido de conhecer o campo a
que nos propomos estudar, em que os dados foram coletados por meio de etnografia e
entrevistas estruturadas, pudemos chegar a algumas conclusões preliminares. Para tanto,
freqüentamos alguns festivais com atrações inseridas no universo do indie rock, assim
como shows de artistas únicos, a saber: Festival no Ar: Coquetel Molotov (Recife, 2008 e
2009), Coletivo Coquetel Molotov com show de Lisa Li Lund (Recife, Bar O Cortiço,
2008), show da Banda Little Joy (Recife, 2009), Festival Just a Fest com shows do
Radiohead, Kraftwerk e Los Hermanos (São Paulo, 2009), e Coletivo Coquetel Molotov /
Invasão Sueca com show de Jens Leckman (Recife, 2009).
Para melhor visualização dos fatos observados, optamos por um diálogo entre tais
fatos e algumas das discussões teóricas observadas anteriormente, a saber:
1) Relação entre arte e mercadoria
O primeiro problema que se coloca quando nos propomos discutir
sociologicamente o indie rock refere-se à sua própria definição: o que é indie, o que é
independente, de que se é independente ou em que sentido se é independente. Mais
problemático ainda é o próprio conceito de rock, uma vez que mais de cinqüenta anos
depois de seu surgimento, o gênero já se desmembrou em tantos outros gêneros (punk,
heavy metal, progressivo, pop, para mencionar os mais óbvios) e já se mesclou a tantos
outros (reaggae, electro, samba).
Se o primeiro problema se constitui em definir o gênero, neste caso, o indie rock,
outro problema que se põe é considerá-lo como obra artística, o que sugere analisá-lo em
termos estéticos, e em relação às suas condições de produção e consumo. Mais ainda
porque o indie rock está sempre em trânsito entre o campo de produção de larga escala e
o campo de produção restrita, para usarmos os termos de Bourdieu, entre o que seria a
produção artística voltada para a comercialização e a produção da arte pura. Ainda
fazendo uso dos termos de Bourdieu, o indie no que diz respeito à produção cultural
sugere estar muito mais relacionado ao princípio da autonomia, porque reivindica para si
o status de alta cultura, obra de arte que para ser apreciada requer o domínio de certos
códigos que somente membros da comunidade detêm. Fato que é devido ao alto grau de
possibilidade de experimentação.
Exemplo de um músico que busca uma aproximação com a música erudita e que
se apresentou na edição do Festival no Ar: Coquetel Molotov em 2008, e que se encontra
ainda em vias de consagração (ou não), Owen Pallet, violonista da Arcade Fire, banda de
indie canadense já consagrada (entenda-se, já aceita no mainstream) desenvolve um
trabalho paralelo a que nomeou de Final Fantasy (em homenagem ao jogo de
computador). O único integrante do Final Fantasy é o próprio Owen Pallet, cujo som é
produzido por um violino e por um sintetizador que cria loops com o som do violino.
Outro exemplo é Lisa Li Lund, cantora francesa, cujo trabalho é pautado por
experimentação, além de fazer uma música minimalista. O show da cantora, que foi
promovido pelo Coletivo Coquetel Molotov quando do lançamento de uma das edições
da revista homônima, foi interrompido pela própria cantora, uma vez que o público do
lugar escolhido estava mais interessado em ‘azaração’.
Por outro lado, bandas como Those Dancing Days, formada por cinco suecas
recém-saídas da adolescência, que fazem um som bem dançante, no melhor estilo
Blondie; Beirut, que apesar de ser fortemente marcado pelo uso de trompetes e de meclar
o pop com a música folk dos Bálcãs; e Little Joy, banda formada por Rodrigo Amarante
(Los Hermanos) e Fabrizio Moretti (The Strokes) e Binki Shapiro, foram ovacionadas no
melhor estilo ‘concerto para multidões’ pelo público recifense. Those Dancing Days,
embora pouco conhecida, conseguiu arrancar coro da platéia; Beirut esgotou os ingressos
com cinco dias de antecedência e Little Joy conseguiu levar literalmente a platéia ao
palco. E assim entre uma vivência e outra, torna-se cada vez mais difícil situar o indie em
um outro pólo cultural.
No caso de artistas nacionais, o rótulo indie contempla artistas prodígios como
Mallu Magalhães, uma garota que emplacou sucesso no My Space e se tornou fenômeno,
exatamente por ser ela mesma a responsável pelas composições, passando por CSS, uma
banda predominantemente feminina – com exceção do baixista, que se consagrou porque
“mal conseguia tirar som de seus instrumentos e por isso sua sonoridade se aproximava
ao punk, mas pavimentada pelo sintético caminho do electro” (CAFFARENA, 2008).
Embora alvo de críticas no Brasil, foi ovacionado (e consagrado) no Reino Unido e
Estado Unidos. Chama a atenção ainda Catarina Dee Jah, pernambucana, que faz as
vezes de DJ e cantora e prima pela mescla entre o pop e o brega (cafona).
Entretanto tal impossibilidade deixa-nos atentos ao fato de que realmente pode
não existir mais uma necessidade de afirmar um consumo cultural highbrow como
elemento de distinção, aproximando-se do conceito de mobilidade cultural proposto por
Emmison.
É possível, a partir desta discussão, questionar se o indie é mesmo independente
do sistema. Ao que parece, nem tanto. Talvez a forma de produção e divulgação não
envolva grandes selos e gravadoras, mas o flerte com o pop torna impossível a tarefa de
se livrar totalmente do sistema, até mesmo porque o propósito de todo artista é mesmo
divulgar seu trabalho.
2) O mito da superioridade intelectual e social
Quais seriam os códigos criados para gerar tal mito, que características teriam a
‘marca invisível’ que torna o indivíduo dotado de tal superioridade, reivindicando,
inclusive o status de vanguarda?
Ao longo dos registros etnográficos realizados nos shows acima citados, alguns
fatos nos chamaram a atenção:
- o local escolhido para o show de Jens Leckman. Aliás, o próprio fato de
conhecer Jens Leckman e seu trabalho já é algo bastante inusitado, justamente
porque o artista é bem pouco conhecido aqui no Brasil. Mas, voltando ao local
escolhido, chamou-nos a atenção, além do ambiente extremamente sofisticado,
com climatização, o fato de que o cardápio marcava o preço em libras. Uma skol
long neck, a bebida mais barata do cardápio, custava £1,50 (uma libra esterlina e
cinqüenta pence), algo equivalente a R$ 6,00 (seis reais). Ademais, a proximidade
e o diálogo com os músicos podem ser considerados outra característica que
imprime a marca da distinção aos sujeitos em questão (ver figura 1);
Figura 1: Show de Jens Leckman. A foto foi tirada da platéia.
- domínio de um idioma estrangeiro, especialmente o inglês: na maior parte das
vezes os artistas, mesmo os suecos e franceses, que são as nacionalidades mais
presentes entre os músicos que se apresentam no Brasil, interagem com o público
em inglês. Foi assim com Jens Leckman (Suécia), Radiohead (Reino Unido), Lisa
Li Lund (França), Those Dancing Days (Suécia), Peter, Bjorn and John (Suécia),
para citar algumas das atrações;
- domínio das letras das músicas: a impressão que dá é que o público dos shows
passa o período que vai do momento em que o show é divulgado até o dia do
show pesquisando e gravando as letras das músicas. Geralmente, o público canta
todas as músicas, mesmo as que nunca foram executadas em rádio (que é o caso
da maioria), demonstrando total intimidade. Considerando que os músicos não
são tão conhecidos do grande público, isto pode ser apropriado como uma marca
invisível;
- o complexo cultural formado em torno do rótulo indie envolve indumentária,
comportamentos, atividades de lazer. Com relação à indumentária, observa-se
entre as mulheres preferência por roupas e acessórios ‘estilosos’ (vestidos,
sapatos bonecas, bolinhas, cores cítricas, cortes de cabelo inusitados (ver Figuras
2, 3 e 4). No quesito comportamento, não foi possível perceber tanta diferença
entre os freqüentadores dos festivais e shows selecionados e outros eventos
alternativos. Geralmente a bebida mais consumida é a cerveja, talvez porque seja
a de mais fácil acesso. Quanto às atividades de lazer, a preferência, por exemplo,
por cinema de autor foi predominante entre os interpelados na pesquisa,
sobretudo entre os que se encontram numa faixa etária acima dos 25 anos (64%) o
que demonstra uma prática cultural mais seletiva, mas existe uma boa parcela de
adolescentes que freqüentam, sobretudos os eventos de maior porte. A ocupação e
profissão dos interpelados também constitui um dado curioso. Em torno de 60%
desenvolvem atividades ligadas à cultura (designers, jornalistas, músicos, etc.).
Figura 2: Distinção por meio de acessórios
Figura 3: Indumentária como Distinção
Figura 4: Detalhe do corte de cabelo e do acessório
- Dentro da própria cena percebe-se o desejo de diferenciação individual, de ‘não
ser mais um na multidão’, tome-se como exemplo uma comunidade no orkut
denominada: eu sou mais indie que você, que propõe uma brincadeira com o fato
da reivindicação de status por meio do pertencimento ao grupo, em que muitas
vezes as formas de distinção são muito mais racionalizadas do que incoporadas.
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