CONVÊNIOS CNPq/UFU & FAPEMIG/UFU Universidade Federal de Uberlândia Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação DIRETORIA DE PESQUISA COMISSÃO INSTITUCIONAL DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA 2008 – UFU 30 anos O PROBLEMA MENTE-CORPO E A NATURALIZAÇÃO DA PSICOLOGIA (COGNITIVA): CONSIDERAÇÕES EPISTEMOLÓGICAS Carolina de Resende Damas Cardoso1 Universidade Federal de Uberlândia; Av. Maranhão, s/n, Bloco 2C, CEP: 38405-318, Uberlândia, MG. E-mail: [email protected] Ederaldo José Lopes 2 Universidade Federal de Uberlândia; Av. Maranhão, s/n, Bloco 2C, CEP: 38405-318, Uberlândia, MG. E-mail: [email protected] Resumo: Propôs-se neste trabalho, uma reflexão a respeito das vicissitudes por que passou e passa o problema mente-corpo dentro dos principais sistemas teóricos que constituíram a psicologia ao longo de sua história. Para tanto, retomou-se a questão mente-corpo abordada na psicologia pré-científica e as implicações de seus resquícios (dualismo) na psicologia moderna. Discutiu-se, por fim, sobre as concordâncias e discordâncias dos psicólogos mais proeminentes no campo da teorização científica a respeito de qual deveria ser, por excelência, o objeto dessa ciência, assim como quais deveriam ser os métodos utilizados para se chegar a ele, com base em conceitos extraídos das obras de Wilhelm Wundt e William James, John B. Watson, Sigmund Freud, B. F. Skinner e teóricos cognitivistas atuais. Dessa forma, concluiu-se que a psicologia pode tirar da multiplicidade teórica, o reconhecimento de seu caráter maleável, que possibilita o seu diálogo com as demais áreas do saber. Palavras-chave: problema mente-corpo; ciência; psicologia. 1. INTRODUÇÃO Com pouco mais de um século de existência como uma ciência independente, a psicologia atual ainda encontra problemas na definição de seu objeto e, por conseguinte, na busca da sua cientificidade. A partir da psicologia cognitiva moderna (processamento de informação), a psicologia pode ser conceituada como o estudo da mente. Todavia, desde o início dessa ciência, houve uma discordância teórica profunda, uma vez que, além do fato de o conceito de mente ainda não ser bem definido (TEIXEIRA, 2000), cada sistema dentro da psicologia priorizou diferentes objetos de estudo dessa jovem ciência, tais como estados da consciência, comportamento observável, mente, entre outros. Paralelamente à criação da psicologia científica, o século XX assistiu ao debate do problema mente-corpo a partir das tendências da filosofia da mente. Tal problema é fundamental para a psicologia cuja existência está calcada sobretudo numa visão dualista. O problema mente-corpo e a constituição da psicologia científica foram discutidos aqui com base em conceitos extraídos das obras de Wilhelm Wundt, William James, John B. Watson, Sigmund Freud, B. F. Skinner e teóricos cognitivistas atuais. ________________ 1 Acadêmica do Curso de Psicologia 2Orientador 1 Propôs-se, neste trabalho uma reflexão a respeito das vicissitudes por que passou e passa o problema mente-corpo dentro dos principais sistemas teóricos que constituíram a psicologia ao longo de sua história. Para tanto, retomou-se a questão mente-corpo abordada na psicologia pré-científica e as implicações de seus resquícios (dualismo) na psicologia moderna. Discutiu-se, por fim, sobre as convergências e divergências dos psicólogos no campo da teorização científica a respeito de qual deveria ser, por excelência, o objeto dessa ciência, assim como quais deveriam ser os métodos utilizados para se chegar a ele. 2. MATERIAIS E MÉTODO Foi realizada uma pesquisa bibliográfica e buscas de referências em portais eletrônicos, tais como os textos presentes em sites acadêmicos. 3. RESULTADOS 3.1. A questão mente-corpo na psicologia pré-científica A questão mente-corpo teve origem na filosofia de Platão, uma vez que foi ele o primeiro a propor o mundo como sendo composto por duas substâncias distintas, a matéria de um lado e as idéias de outro. Dessa concepção da existência de um mundo sensível e outro inteligível surgiu o dualismo ontológico, referente à existência dessas duas substâncias (TEIXEIRA, 2000). Foi a partir de Platão, portanto, que monistas e dualistas nunca mais, na história da filosofia, chegaram a um consenso para a solução desse problema ontológico. A questão mente-corpo tornou-se uma problemática apenas no século XVII, com a inauguração da filosofia moderna de René Descartes (cartesianismo). De acordo com Teixeira (2000), o filósofo sugeriu que, por meio da dedução, poder-se-ia chegar à conclusão de que alma/mente e corpo seriam duas substâncias distintas, com propriedades incompatíveis. Dessa forma, o problema mente-corpo resulta em saber o modo como duas substâncias com propriedades distintas, uma imaterial e outra física, podem estar relacionadas e até mesmo influenciar uma a outra, apesar da diferença entre ambas (TEIXEIRA, 2000). Com o advento e a concretização dos postulados científicos modernos, foram desenvolvidas tentativas monistas materialistas para a resolução do problema mente-corpo (JAMES, 1904; BARRET, P.; GRUBER, H., 1974, apud. TEIXEIRA, 2000). Atualmente, a filosofia da mente vem tentando conciliar as reflexões filosóficas a respeito do tema com os as teorias científicas, os postulados das neurociências e as demais ciências que se propõem ao estudo da mente. 3.2. O problema mente-corpo na psicologia científica A psicologia científica surgiu no final do século XIX, rompendo com a filosofia, porém herdando o problema milenar mente-corpo. 3.2.1. Wilhelm Wundt Wundt, ao definir a psicologia como ciência, propôs ser seu objeto de investigação a consciência e, para se chegar a ela, utilizava o método da introspecção com a finalidade de investigar a experiência imediata – que, indiretamente, levaria à consciência. Para tanto, utilizou, juntamente com o método introspectivo, aparelhos dos laboratórios de fisiologia, pois considerava a necessidade de conhecer os processos fisiológicos que determinavam os elementos da vida mental (RIBEIRO, 2003). A psicologia proposta por Wundt caracterizava-se como estruturalista, uma vez que objetivava detectar os componentes mais elementares da consciência, a partir das sensações (FIGUEIREDO; SANTI, 2004). É possível observar, a partir dessa teoria, a concepção mentalista do teórico em sua tentativa de compreender a estrutura da consciência por meio da experimentação. Wundt considerava o ser humano como uma unidade psicofísica, ou seja, haveria uma ligação entre o corpo e a mente, no entanto, não haveria uma redução da última ao primeiro (RIBEIRO, 2003). 2 Segundo Abib (2005), é possível encontrar também na teoria wundtiana o conceito de causalidade psíquica, ou seja, uma idéia pode causar outra, assim como também pode ser a causa de uma emoção. Inúmeras críticas foram apontadas a essa colocação de Wundt, referindo-se ao resultado extraído da causalidade psíquica, o conceito de indivíduo psíquico que implica uma agência central – uma espécie de homúnculo – responsável pelos fenômenos da experiência imediata (ABIB, 2005). Tais críticas, de acordo com o mesmo autor, refletem discordâncias em relação à filosofia da ciência, uma vez que a psicologia considerada por Wundt seria irredutível à física. Desse fato, depreende-se a concepção de Wundt em relação à dualidade da ciência ou a irredutibilidade dos conceitos das ciências do espírito (Geisteswissenschaften) aos conceitos das ciências da natureza (Naturwissenschaften.) [...] coerente com uma concepção dual da ciência [...] a filosofia wundtiana da ciência é anti-reducionista e antifisicalista. [no sentido da aceitação da causalidade mental e não apenas da causalidade física] (p. 56). 3.2.2. William James Em sua obra Princípios de Psicologia (1890), afirma ser o objeto de estudo da nova ciência a vida mental dos indivíduos, tendo por dados fundamentais os pensamentos e as sensações presentes num mundo físico limitado pelo tempo e pelo espaço, no qual tais processos basilares da mente coexistem e conhecem este mundo (p. 13). James rejeita as teorias associacionistas e espiritualistas, mantendo o aspecto positivista de ciência. Em relação ao problema mente-corpo, ele descarta a teoria associacionista, afirmando considerar as idéias como uma unidade e não como fragmentos remendados que formam pensamentos. No capítulo intitulado The scope of Psychology (JAMES, 1890), o autor posiciona a psicologia como ciência da vida mental, dos fenômenos desta, denominados sensações, sentimentos, desejos, cognição, etc., e das condições em que ocorrem. É introduzido o postulado de ser o cérebro condição imprescindível para as operações mentais e a consciência ocorrerem. Nesse sentido, a primeira conclusão apontada seria o fato de que certa importância da fisiologia cerebral deve, segundo James (1890), ser incluída na psicologia científica. Os fenômenos mentais, mesmo não sendo totalmente causados por processos cerebrais, conduziriam a eles – ocasionariam ações musculares voluntárias, alterariam o calibre dos vasos sanguíneos e os batimentos cardíacos, etc. – de modo que é necessário ao psicólogo o conhecimento a respeito da neurofisiologia, dos antecedentes e resultados ou conseqüências dos estados mentais. Desse modo, o estudo da vida mental deve considerar a mente inserida num determinado ambiente que age sobre ela e, por sua vez, recebe a ação dela. Deste postulado, apreende-se a orientação funcionalista da teoria de James (FIGUEIREDO; SANTI, 2004), na qual a mente teria a função de adaptar o indivíduo ao meio em que é inserido. James também acreditava ser possível o estudo empírico da consciência, levando-se em consideração a questão de sua eficácia causal sobre os processos fisiológicos (KINOUCHI, 2006). Em relação à conexão mente-cérebro, o autor afirmava ser a consciência correspondente à atividade do cérebro inteiro. No entanto, apontou a dificuldade de aspectos tão díspares serem, de algum modo, atrelados. Pode-se dizer que é possível observar dois momentos ao longo da trajetória das obras de William James, um mais psicológico, quando da elaboração de Princípios de Psicologia e outro mais filosófico – no qual ele apresenta teorias de caráter pragmático e acerca do empirismo radical. De acordo com Trapicchio (2007), o aspecto a ser apontado nesta primeira fase do pensamento de James é o surgimento de um dualismo “mascarado”, a despeito de uma tentativa de constituição de um monismo fisicalista, uma vez que o autor propôs uma naturalização não reducionista da atividade mental. No entanto, no segundo momento de suas formulações, especificamente em seu texto “Does Consciousness exist?”, James (1904, p. 477) diz que durante muitos anos desconfiara da existência da consciência como uma entidade ou substância supranatural, transcendental, ou seja, como entidade ou substância sui generis, o que o levou à conclusão de que ela não existia. Entretanto, com esse artigo, ele desejou negar apenas que a palavra “consciência” nomearia uma entidade, porém insistiu enfaticamente que a palavra definiria uma função cognitiva. 3 3.2.3. Sigmund Freud Em sua obra Projeto para uma Psicologia Científica (1895), Freud buscou compreender os processos psicológicos em termos do funcionamento biológico do cérebro. Seu objetivo foi fornecer subsídios para o desenvolvimento da psicologia como ciência natural. Freud (1895) concebe sistemas diferentes de neurônios que desempenhariam funções distintas, porém, seriam idênticos morfologicamente, Φ e ψ. A primeira classe de neurônios (Φ) seriam destinados à percepção, devido ao fato de estarem em maior contato com o mundo externo por se localizarem na periferia do sistema nervoso. Os neurônios da segunda classe (ψ), por sua vez, seriam caracterizados por sua impermeabilidade, resistentes e retentivos da energia proveniente dos sinais enviados pelos órgãos internos (vísceras) dos indivíduos, denominada Qη’. Devido à natureza impermeável, tais neurônios obteriam o acúmulo dessa energia (catexia), de modo a constituírem o local da memória e dos demais processos psíquicos. Tais neurônios manteriam comunicação com os neurônios Φ, ou seja, receberiam catexias provenientes deles (FREUD, 1895, p. 323). O autor afirma ser necessário encontrar um local para o conteúdo da consciência, por ser ela distinta das demais funções desempenhadas pelas duas classes de neurônios apresentadas (FREUD, 1895, p. 327). A consciência não seria produto de processos quantitativos, mas ofereceria ao indivíduo o que se convencionou chamar de qualidades, que são sensações conscientes ocorridas de modo particular ao organismo, e são referentes ao mundo externo. Elas não possuem características quantitativas, pois não se originam no meio externo, apesar de se referirem a ele. Freud tenta correlacionar a consciência aos processos cerebrais, estando ela localizada nos níveis mais altos do sistema nervoso, distinta de Φ e ψ. Por esta razão, presume-se a existência de um terceiro sistema de neurônios, ω (FREUD, 1895, p. 327). Freud propõe que os processos psíquicos inconscientes são processos nervosos, resultados das catexias de ψ e que, por isso, eles devem ser abordados em uma perspectiva científico-naturalista. No entanto, o consciente psíquico estaria excluído desse campo (SIMANKE; CAROPRESO, 2005). Infere-se, no entanto, que seria necessário haver uma abordagem metafísica da consciência, ou uma abordagem que contemplasse a interdisciplinaridade entre as ciências e a filosofia. Segundo Cândido (2003, p. 131), Freud contribuiu para esclarecer qual é a natureza da relação entre mente e corpo ao assentar a psicanálise sobre a certeza de que o psiquismo nasce do corpo e o inclui, entretanto possui características qualitativas que o diferenciam do somático, possibilitando sua transcendência. 3.2.4. Comportamentalismo John B. Watson (1913) afirmava que o objeto apropriado para a ciência da psicologia deveria ser o comportamento, uma vez que este seria mensurável segundo os moldes das ciências naturais. O comportamento também proporcionaria uma maior validade para a psicologia científica, já que seria possível verificar e controlar tal objeto. O autor conclui que a discussão sobre a existência e o papel da consciência e dos processos mentais como entidades inescrutáveis e, por isso, inacessíveis à observação, pertence ao campo da metafísica e não da psicologia experimental. Em relação à questão mente-corpo, Teixeira (2007 p. 01) afirma que, ao abolir o mental do escopo e do discurso da psicologia, Watson se tornou mais cartesiano que Descartes, pois separou radicalmente mente e corpo ao sustentar que a psicologia deveria apenas atentar-se ao corpo de modo a exercer comportamentos que são medidos e controlados. Em Ciência e Comportamento Humano (1953/1989), Skinner destaca a relevância que as ciências empíricas, em geral, possuem sobre os outros meios de conhecimento, e defende que o comportamento pode e deve ser tratado pela análise científica que contemplaria a maior parte de sua complexidade. Skinner aponta também para o risco que uma atribuição interna de causalidade dos comportamentos poderia oferecer, de modo a permitir a incidência de contradições ao atribuir a causa dos comportamentos aos agentes internos, sejam eles neurofisiológicos ou processos mentais (SKINNER, 1953/1989). Para o autor, o sistema nervoso não possibilitaria uma explicação imediata do comportamento, assim como a concepção de entidades interiores não poderia ocupar espaço em 4 uma análise científica. Para ele uma análise que contemple as variáveis externas ao indivíduo, torna a pressuposição de um agente interno, originador das respostas, desnecessária. Skinner (1991, p. 25) afirma que, por meio da etimologia das palavras, pode-se chegar ao cerne de sua verdadeira significação, ou seja, aos comportamentos determinantes das situações: a etimologia é a arqueologia do pensamento. Sendo assim, as palavras utilizadas para referenciar estado da mente ou processos cognitivos, em sua origem, referiam-se a algum aspecto do comportamento ou ao ambiente no qual se deu sua ocorrência. Dessa forma, o autor posiciona claramente sua concepção de que os estados considerados subjetivos seriam produtos de contingências verbais, ou um mero erro de vocabulário. Skinner (1991), ao se referir à mente, ironiza os discursos presentes na origem da revolução cognitiva, a qual retomou esse objeto de estudo. O autor critica a consideração da mente como executora dos processos cognitivos mais extraordinários que possibilitaram aos seres humanos dominar o restante da criação. Em relação à ciência do cérebro, esta caberia suprir as lacunas admitidas pela análise do comportamento. Ao fazê-lo, apenas completaria a descrição do comportamento. Ao contrário dos cognitivistas, os analistas comportamentais não precisariam esperar o avanço na área das neurociências, uma vez que os fatos comportamentais por si só seriam suficientes para o desenvolvimento da ciência e a tecnologia comportamental (SKINNER, 1991). O behaviorismo radical, por conseguinte, considera a discussão mente-cérebro desnecessária, uma vez que foi produzida pela comunidade verbal (SKINNER, 1991). 3.2.5. Cognitivismo A chamada “revolução cognitiva” teve um caráter interdisciplinar e proporcionou a retomada do complexo fenômeno mental como objeto de investigação. A psicologia cognitiva experimental surgiu nesse contexto, ao buscar objetivos semelhantes aos das demais áreas de conhecimento (a filosofia, as ciências da computação, entre outras) inseridas nas chamadas ciências cognitivas (LOPES; LOPES; TEIXEIRA, 2004). A psicologia cognitiva emprega a proposta de um modelo computacional da mente, que contemple o processamento das informações, ou seja, os procedimentos que ocorreriam dentro da “caixa-preta” dos organismos. Os procedimentos mentais, dessa forma, são considerados como mediadores dos estímulos e das respostas. (LOPES; LOPES; TEIXEIRA, 2004). Nesse contexto, o estabelecimento das neurociências possibilitaria a afirmação do substrato neural como fenômeno subjacente ao processamento de informação, o que constituiria um elemento importante para o desvendar dos processos mentais (LOPES; LOPES; RODRIGUES, 2000). A questão formada, no entanto, refere-se às conseqüências que a infusão das neurociências cognitivas possa ocasionar na psicologia, sendo uma delas a possível naturalização da mente, o que resultaria na redução da psicologia às neurociências. É nesse sentido que é demonstrada a pertinência das discussões acerca do problema mente-corpo, uma vez que se deve voltar às reflexões a respeito do fenômeno mental, de sua natureza e sua relação com o corpo (cérebro). A psicologia cognitiva voltou-se ao dualismo, uma vez que considerava a relação causal entre a mente e os comportamentos. Sendo assim, seria possível levantar questões acerca da busca pelas neurociências por parte dos psicólogos cognitivistas. Se a proposta inicial da psicologia cognitiva voltava-se para a constatação do dualismo e a investigação do processamento de informação num nível representacional, qual seria o motivo de se recorrer às neurociências (proposta materialista) para sustentar o novo paradigma dentro da psicologia? Estaria a psicologia cognitiva incorrendo em uma contradição? Edward Smith (1999) sustenta que não. É possível, para o autor, conceber uma infusão das neurociências na psicologia cognitiva, sendo esta uma proposta interdisciplinar que promoveria o desenvolvimento das ciências cognitivas e o trato da mente. O psicólogo admite que a infusão da neurociência na psicologia cognitiva constitui uma proposta distinta dos trabalhos originais, que eram orientados pela experimentação nos moldes behavioristas. No entanto, atualmente não é possível conceber uma ciência que dispense considerações a respeito do substrato neural dos comportamentos e das funções cognitivas (SMITH, 1999). As conclusões às quais Smith (1999, p. 86) chegou direcionaram aos benefícios trazidos pela neurociência para a psicologia cognitiva, sendo eles: oferecer dados que reafirmem ou descartem as 5 teorias cognitivas, assim como, fornecer dados mais informativos e diretos para a interpretação dos processos cognitivos e oferecer novos modos de analisar o domínio da cognição em tópicos de investigação. Em relação ao futuro da psicologia cognitiva, o mesmo autor espera que os psicólogos cognitivistas construam suas hipóteses e teorias baseadas em constructos provenientes da neurociência. Smith (1999) segue a tendência de confiar no desenvolvimento futuro da ciência do cérebro, o que teria como resultado um desvanecimento da distinção entre a psicologia e as neurociências. 4. DISCUSSÃO É possível destacar algumas semelhanças e divergências de pontos de vista desses autores, levando-se em consideração os respectivos pontos de vista sobre os objetos de estudo da psicologia e o problema mente-corpo. A teoria proposta por Wundt é compatível com algumas afirmações que Freud estabeleceu ao desenvolver os alicerces da psicanálise. Freud postulou a existência de três classes de neurônios (Φ, ψ e ω), às quais correspondiam três funções mentais (a percepção; a memória e outros processos psicológicos; e a consciência, respectivamente). Dessa forma, haveria também para Freud um paralelismo psicofísico, entre estruturas cerebrais e as “estruturas mentais”. É possível estabelecer, do mesmo modo, uma semelhança entre o que Freud denominou qualidades (sensações conscientes) e sua localização, ou seja, elas estariam presentes apenas na última classe de neurônios apresentada e Wundt, que também investigou as sensações e do modo como estas se apresentavam aos indivíduos, por meio da introspecção. Assim como Wundt, Freud afirmou ser possível a investigação dessas qualidades apenas por meio da introspecção. Devido às semelhanças, Wundt e Freud cometeram os mesmos erros, segundo James. As críticas apontadas pelo autor diziam respeito apenas ao estruturalismo e associacionismo, porém, é possível inferir o que seria também uma crítica aos pressupostos desenvolvidos por Freud. Tais críticas dizem respeito aos resultantes de ambas as teorias (estruturalista e psicanalista). Estas permitiriam a inferência de entidades interiores, tais como o sujeito inconsciente, ou “unidades elementares da consciência”. Todos esses elementos caracterizavam-se por permitir a existência de um homúnculo que coordenaria as funções mentais. De acordo com James, a discussão a respeito da existência dessa questão seria papel da metafísica e não da ciência psicológica. James (1890) rejeita a existência de “apêndices” mentais, correspondentes a cada unidade ou célula do cérebro, de modo a contradizer as hipóteses de Freud sobre as classes de neurônios, cada qual com sua função, uma distinta da outra. Ao contrário, ele afirma que as estruturas cerebrais como um todo integrado – e não apenas uma classe de neurônios – corresponderia à consciência. É possível, no entanto, apontar semelhanças entre os escritos de William James, Wundt e Freud, uma vez que os teóricos desenvolveram tentativas de constituir a psicologia como disciplina apta para a investigação científica. Todos eles consideravam que a psicologia deveria ser uma ciência natural, com os métodos utilizados por estas ciências. James e Freud defendiam o papel das funções mentais como determinantes causais das modificações nas estruturas e funções cerebrais. As colocações comportamentalistas também oferecem semelhanças com as teorias de William James, ao afirmarem a psicologia como ciência natural e optarem pela metodologia aplicada às ciências naturais. Do mesmo modo que os comportamentalistas, James afirma a necessidade de investigar a relação que os indivíduos mantêm com o meio no qual estão inseridos. Em relação aos cognitivistas atuais, do mesmo modo que os demais autores, apresentam uma tendência de pautar a investigação científica nos moldes das ciências naturais, uma vez que defendem a infusão das neurociências nos estudos de psicologia. A psicologia cognitiva, na verdade, parece ter recuperado ao longo de seu percurso, aspectos concernentes a todas as demais abordagens citadas. A abordagem cognitiva da psicologia utiliza a introspecção como fonte de dados, assim como o fez Wundt. De modo semelhante aos comportamentalistas, vale-se também dos métodos experimentais em seus estudos, porém, acrescentando os métodos computacionais e psicobiológicos, na tentativa de desenvolver uma ciência nos critérios positivistas. Por esta razão, volta-se para a ciência do cérebro, em busca da confirmação de suas teorias ou em busca de novos dados para a análise. Considera como 6 objeto de investigação científica os processos mentais, tal como James, de modo que os investiga mantendo um constante diálogo com a neurofisiologia. Em um diálogo com a psicanálise, teóricos cognitivistas citados buscaram compreender a mente como sendo uma propriedade emergente do cérebro. Há também uma constante busca pelos correlatos neurais dos processos mentais/cognitivos. É possível afirmar que, em geral, todos os teóricos aqui apresentados, tiveram uma compreensão parecida do que avaliaram ser os objetivos da ciência. Desse modo, aquilo que consideraram a possibilidade de haver uma investigação científica nos moldes de uma ciência natural seria o objeto da psicologia científica. Aquilo que escapava aos objetivos da ciência deveria ser relegado à metafísica. Os teóricos divergiram, no entanto, sobre qual ponto a investigação científica poderia atingir. Wundt acreditava ser possível o estudo científico das sensações e da consciência, em seus aspectos mais elementares. James propunha o estudo da vida mental por meio da investigação neurofisiológica. Também afirmava ser necessário haver um estudo contextual, do indivíduo junto ao meio. O estudo das funções mentais relacionadas aos correlatos neurais, segundo ele, caberia ao escopo da psicologia científica. Freud afirmou ser possível a investigação científica dos processos psicológicos inconscientes, relegando a consciência para a filosofia, já que a consciência se referiria aos aspectos qualitativos da vida dos indivíduos e o inconsciente era dado por processos quantitativos de disparos neurais. A separação entre aspectos mensuráveis e não-mensuráveis proporcionaria à psicologia abster-se das contradições pelas quais passava (e ainda passa). Os comportamentalistas relegaram o estudo dos processos mentais à metafísica, ou ao total desaparecimento. Por sua vez, os cognitivistas experimentais se atêm aos estudos sobre o processamento de informação e tempo de reação no âmbito das representações mentais, concebendo pinceladas de psicobiologia. Há também os cognitivistas que se aproximaram mais das neurociências, priorizando os estudos nesta área. Os autores citados buscaram encarar o problema mente-corpo de uma forma voltada ao materialismo, a fim de sustentar a possibilidade da psicologia como ciência natural. No entanto, diversas vezes, deslizaram para a constatação do dualismo; de outro modo, não seria necessária a existência dos postulados psicológicos. Tal constatação acaba por fornecer uma maneira própria de se conceber a investigação científica na psicologia, acrescida da concepção das ciências naturais. A única exceção que contempla a redução dos processos mentais aos comportamentos foi defendida pelo behaviorismo. Pode-se concluir que a maior parte da psicologia utiliza pressupostos materialistas para afirmarem sua posição enquanto ciência. No entanto, ao contrário das ciências naturais, a psicologia propõe a investigação de objetos considerados inescrutáveis aos moldes positivistas, o que não retira, de forma alguma, o mérito que a disciplina possui enquanto matéria científica. A psicologia, devido a sua abertura, tem, portanto, a possibilidade de dialogar com outras áreas do conhecimento, tais como a filosofia, a teologia, as ciências sociais e as biológicas. 5. CONCLUSÃO A mente é concebida como um fenômeno de grande complexidade, de modo que não é suficiente abordá-la, limitando-a a um contexto científico apenas. Desse modo, as ciências cognitivas surgem com a proposta de lidar com os fenômenos mentais de forma a integrar os conhecimentos provenientes de diversas áreas, como a filosofia, as ciências sociais (na investigação do contexto cultural na constituição da mente), a lingüística, as neurociências e a psicologia. A psicologia e a psicologia cognitiva mais especificamente, nesse sentido, têm tentado estabelecer-se enquanto ciência da vida mental, dentro do âmbito das ciências cognitivas. Para tanto, é inevitável a admissão de um dualismo, do contrário não haveria como afirmar a existência de seu objeto de estudo, muito menos a utilidade de sua existência enquanto ciência. É inevitável também a integração dos conhecimentos neurocientíficos na psicologia e nas ciências cognitivas, pelo fato de ser inconcebível atualmente que uma área do conhecimento não leve em consideração o nível de desenvolvimento em que as ciências biológicas, como um todo, se encontram (em relação à genética, evolução, neurofisiologia, etc.). 7 No contexto das ciências cognitivas, a psicologia cognitiva pode fornecer um elemento importante de integração entre as áreas do conhecimento. Como foi apontado na discussão, a psicologia, devido a sua história, pode permitir uma abertura que contemple a possibilidade mais concreta de interdisciplinaridade entre as áreas de conhecimento das ciências cognitivas. Nesse sentido, as diferentes abordagens podem proporcionar elementos necessários para se compreender a mente, a cognição e também o papel do ambiente na emissão dos comportamentos dos indivíduos. A psicologia, como foi observado desde a sua constituição como disciplina científica, teve uma múltipla identidade, uma vez que cada autor moldou-a conforme suas convicções. O que esta disciplina científica pode tirar dessa multiplicidade teórica é o reconhecimento de seu caráter maleável, que possibilita o seu diálogo com as demais áreas do saber. Por esta razão, colocá-la no rol das ciências cognitivas é uma grande vantagem. Do contrário, tentar enquadrá-la apenas nos moldes verificáveis (mensuráveis) é amarrar os pés e as mãos, submetendo-a direções reducionistas que resultariam na perda da identidade da psicologia. 6. AGRADECIMENTOS Agradeço à Universidade Federal de Uberlândia e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (UFU/FAPEMIG) por terem fomentado essa iniciação cientifica durante o período de um ano. Agradeço também ao meu orientador, Ederaldo José Lopes e às demais pessoas que contribuíram para a finalização desta pesquisa. 7. REFERÊNCIAS ABIB, J. A . D. , Prólogo à História da Psicologia. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Vol. 21 n. 1, pp. 5360, 2005. CÂNDIDO, C. L. Freud: um monista mentalista?. Psicologia: Teoria e Pesquisa. Brasília, v. 19, n. 2, p. 127-133, 2003. FIGUEIREDO, L. C. M.; SANTI, P. L. R. Psicologia: Uma (nova) introdução. São Paulo: Editora da PUC, 2004. FIGUEIREDO, L.C.M. Matrizes do pensamento psicológico. Petrópolis: Vozes, 1991. FREUD, S. Projeto para uma Psicologia Científica. Rio de Janeiro: Imago, 2ª ed, (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. I) p. 303-409:, 1895/1987. JAMES, W. The Principles of Psychology. 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In such a way, the mind-body problem has been retaken from the pre-scientific psychology until the modern psychology. It was presented the main ideas of the most prominent psychologists about the object of this science, as well as which would be the methods used to reach it, on the basis of extracted concepts of the corpus of Wilhelm Wundt ,William James, John B. Watson, Sigmund Freud, B.F. Skinner and cognitive theoreticians. In 9 this way, it was concluded that psychology can profit by the theoretical multiplicity, that makes possible its dialogue with many other areas of knowledge. Key-words: mind-body problem; science; psychology 10