FLORESTAN FERNANDES

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FLORESTAN FERNANDES: CONCEPÇÃO DE CIÊNCIA E EDUCAÇÃO1
Marcus Vinicius da Cunha -USP
Introdução
Em trabalho recente (Cunha, 2004), analisamos o ensaio de Florestan Fernandes
(1967) denominado “A ciência aplicada e a educação como fatores de mudança cultural
provocada”, escrito no final dos anos 1950 no âmbito dos Centros de Pesquisas
Educacionais do INEP. Seguindo a metodologia sugerida por Mazzotti (2002), baseada nas
teses de Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002), identificamos as concepções do autor com a
metáfora percurso determinado, em oposição às idéias de Anísio Teixeira, as quais
caracterizamos pela metáfora percurso indeterminado. Fundamentamos nossas conclusões
na ênfase dada pelo sociólogo paulista na idéia de planejamento científico da educação,
isto é, na colocação das ciências sociais como responsáveis pela definição de meios e fins
educacionais, o que viria permitir a transformação cultural do país mediante uma trajetória
segura, previsível e calculada.
No presente estudo, procuraremos ampliar nosso entendimento do ideário
educacional do autor, tomando como eixo de análise a sua noção de ciência. Centraremos
nossa atenção numa das fases de sua produção intelectual, chamada “acadêmicoreformista” (FREITAG, 1987; GARCIA, 2002), quando se desenvolveram as proposições
que influenciaram no estabelecimento de um padrão acadêmico da sociologia no Brasil.
Cronologicamente, essa etapa é delimitada pelo início da vida acadêmica de Fernandes, na
década de 1940, e pelo evento do AI-5 de 1968, quando de seu desligamento compulsório
da Universidade de São Paulo.2
Seguindo a mesma abordagem metodológica, a análise retórica, destacaremos
inicialmente as metáforas encontradas nas falas de pesquisadores que se dedicaram a
estudar o pensamento do autor, e em seguida buscaremos compreender alguns recursos
argumentativos componentes do discurso sociológico e educacional de Fernandes.
As Metáforas
Em Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p. 453), vemos que a metáfora é uma
“analogia condensada, resultante da fusão de um elemento do foro com um elemento do
tema”, cada qual pertencente a um domínio distinto. Numa analogia do tipo “A está para B,
assim como C está para D”, os dois primeiros termos dizem respeito a algo que já se
conhece relativamente bem, pertencendo portanto ao foro, ao passo que os segundos
designam aquilo que se deseja elucidar, ou seja, o tema. O esclarecimento do tema se dá
por intermédio de uma metáfora, como “C é A de D”. Como exemplificam os autores, na
Arte poética de Aristóteles lê-se que a noite está para o dia, assim como a velhice está para
a vida. Se o que se deseja esclarecer é o significado da velhice, pode-se dizer “a velhice é a
noite da vida”, ou seja: no âmbito da vida, a velhice tem o mesmo sentido que tem a noite
no âmbito do dia.
Vejamos as metáforas empregadas por diversos autores para elucidar o pensamento
de Florestan Fernandes. Antônio Cândido (1987, p. 33) considera que a década de quarenta
foi, para Florestan, a era da “construção do saber que, ao construir o seu constrói a
possibilidade de saber dos outros”, ao passo que o período posterior aos anos sessenta
revelou o “cientista cujo ato de construção intelectual já é um ato político”.3 Bárbara
Freitag (1987, p. 165) enxerga o Florestan da primeira fase como um cientista ocupado em
“reconstruir a realidade social”. Referindo-se à proposta de “colaboração interdisciplinar”
que vê na antropologia de Fernandes, Edgar de Assis Carvalho (1987, p. 80) diz que o
autor pretende “a construção de uma ciência total da cultura”. O próprio Florestan
Fernandes (1976a, p. 148), em texto que revê sua trajetória intelectual, menciona a
expressão “arquitetura mental” para designar o arranjo de suas idéias juvenis. Para Sylvia
Garcia (2002, p. 90), o jovem Florestan buscava uma “disposição construtiva diante do
mundo”, sendo particularmente cativado pelas “possibilidades positivas e edificadoras da
ciência moderna”, motivado pelo “espírito da construção”, que seria, “em um primeiro
nível, construção de si mesmo”.
Como se vê, é freqüente o uso de expressões tomadas de empréstimo a um certo
ofício, o de profissionais que planejam e erguem prédios, ou que os refazem, como os
engenheiros, os mestres-de-obras e os pedreiros. Esse ofício requer instrumentos mentais e
tecnologias para cálculos exatos, precisos, sem o que a obra não adquire solidez. O
discurso dos estudiosos de Florestan Fernandes estabelece analogias entre essa atividade e
o ofício de Fernandes, que pertence ao domínio das coisas não materiais, mais
precisamente sociais, lançando mão do seguinte raciocínio: a ênfase na exatidão está para
os construtores ou reformadores de prédios, assim como a ciência social está para
Florestan, o que permite dizer que a ciência social de Fernandes equivale às práticas e
instrumentos dos construtores, devido ao seu caráter de exatidão.
Ao analisar as contribuições de Comte, Weber, Durkheim, Mannheim e Marx para
o pensamento de Fernandes, Octávio Ianni (1987, p. 51) considera que a sociologia do
autor exibe “uma rica e complexa arquitetura”. A imagem do arquiteto talvez seja a mais
adequada nesse universo metafórico, mais até do que a figura do simples construtor, pois
se trata de um profissional que trabalha com a exatidão na esfera das coisas materiais, mas
que lida, ao mesmo tempo, com as implicações sociais de suas obras.4 Tal qual um
arquiteto, Florestan vê a sua ciência como capaz de traçar com precisão os rumos da
construção, ou da reconstrução, da ordem social. As noções de projeto, planejamento,
metas e controle compõem o universo de sua ciência social.
Os estudiosos do pensamento de Fernandes confirmam esse juízo quando se
referem à sua concepção de ciência. Sylvia Garcia (2002, p. 42) diz que para o jovem
Florestan a “ciência e a técnica” surgiram “como os instrumentos essenciais para a
implantação da civilização moderna” no Brasil, em contraponto à mentalidade vigente na
república dos coronéis. Garcia (idem, p. 99-100) diz ainda que o seu “projeto” para as
ciências da sociedade consistia na “idéia de que a principal tarefa da inteligência é
conhecer e explicar a realidade existente”, de maneira a criar “as condições de
possibilidade para a transformação do estado dado de coisas, marcado pela irracionalidade
da desigualdade e da dominação”, condição essa que refletia, para ele, a “corrupção do
projeto social moderno que aguarda ainda o momento de sua efetiva institucionalização”.
Vem daí a crítica de Florestan, apontada por Carlos Guilherme Mota (1987, p. 184), ao
“ensaísmo” da tradição sociológica brasileira, bem como a sua ênfase na necessidade de
desenvolver “conceitos de base” capazes de explicar e transformar o país.
O próprio Fernandes (1976a, p. 269) descreve a ciência como o instrumento que
permite a invenção de “novas técnicas e instituições sociais, que facilitem e simplifiquem o
uso das descobertas da sociologia de um modo correto, positivo e construtivo”, no
“desenvolvimento de uma ciência social e de uma tecnologia científica na esfera do
controle racional e construtivo dos problemas sociais e das mudanças sociais”. Para Garcia
(2002, p. 123) essa radicalidade vista por Florestan na atividade do cientista social é
decorrente da “perspectiva teórico-prática que o chamado marxismo científico partilha com
outras vertentes fundadoras das ciências sociais”, todas elas “alinhadas à concepção
racionalista da ciência, característica da modernidade clássica, afirmando convictamente o
poder do saber científico para o controle racional do mundo”.
No campo da educação, Jorge Nagle (1987, p. 188) opera no mesmo registro
metafórico ao descrever as idéias de Fernandes como “um pensamento para a
reconstrução”. O próprio Fernandes (1966, p. 46) escreve que a educação escolar deveria
tornar-se “fator social construtivo, no seio da sociedade brasileira”, sendo para isso
imprescindível uma atuação decisiva do Estado na implementação de uma política de
“reconstrução educacional”.5 A metáfora do arquiteto, quando posta no terreno da
educação escolar, ratifica o que dissemos quanto à caracterização de Fernandes por
intermédio da metáfora percurso determinado (CUNHA, 2004).
Os Pares Filosóficos
Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p. 213) consideram que todo texto escrito
comporta uma articulação discursiva que visa guiar as elaborações espontâneas feitas pelo
leitor, de maneira a obter sua adesão à tese apresentada. Dentre as técnicas argumentativas
destinadas a isso, destacamos a dissociação de noções, na qual encontra-se o recurso a
lugares quantitativos e a lugares qualitativos. Enquanto os segundos lançam mão de figuras
que exaltam qualidades, estéticas ou afetivas, por exemplo, que independem da quantidade,
os primeiros enfatizam os valores duráveis, como a estabilidade, a universalidade e a
segurança, procurando mostrar que vale mais aquilo que apresenta esses atributos em
maior volume (Perelman, 1997, p. 188). Compõem-se assim os chamados pares antitéticos
(PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 479), em que o segundo termo é o
oposto do primeiro.
Como analisa Maria Ângela D’Incao (1987, p. 65), Florestan Fernandes posicionase em prol da ciência e do desenvolvimento no debate travado nas décadas de 1950 e 1960,
e ao fazê-lo elabora oposições como “subdesenvolvimento x desenvolvimento,
irracionalidade x racionalidade, tradicional x moderno, estagnação x progresso”. Revelase, portanto, um conjunto de pares antitéticos apoiados em lugares quantitativos, nos quais
prevalece o valor positivo do segundo termo de cada par.
Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p. 473) consideram ainda que os pares
antitéticos podem transformar-se em pares filosóficos, cuja forma é “termo I – termo II”,
como no protótipo “aparência – realidade”, sendo que o termo II “fornece um critério, uma
norma que permite distinguir o que é válido do que não é, entre os aspectos do termo I”, os
quais são apresentados como ilusórios ou errôneos.
Os pares filosóficos com que trabalha Florestan Fernandes organizam-se em torno
daquele par prototípico, resultando nos pares “entendimento – razão” e “opinião – ciência”.
Sua mensagem aos cientistas sociais destaca a urgência de “robustecer a nossa fé na
ciência e na capacidade do homem comum de elevar-se até ela”, alargando “o horizonte
cultural dominante” e fazendo “aumentar a confiança dos leigos no pensamento científico”.
Em suma, Fernandes (1967b, p. 86) prega a tarefa de elevar o homem comum do reino da
opinião para o da ciência, de maneira a forjar no Brasil “uma nova civilização”. Cumpre ao
homem de ciência, segundo o autor, exercer uma liderança que prepare a sociedade
brasileira para um tempo em que “os problemas sociais e humanos” sejam “largamente
submetidos a controle racional”, ou seja, para que a intervenção racional, científica,
predomine sobre os instrumentos oriundos do mero entendimento.
Ao discutir os problemas da educação da década de 1950, Fernandes (1976a, p.
109) projeta essa concepção para o campo educacional, posicionando-se favoravelmente ao
ensino da sociologia nos cursos secundários, pois essa iniciativa permitiria instruir os
jovens para escolhas baseadas em “fundamento racional”. A difusão da ciência social na
escola criaria “personalidades mais aptas à participação das atividades políticas, como
estas se processam no estado moderno”, contribuindo assim “para a formação de atitudes
cívicas e para a constituição de uma consciência política definida em torno da
compreensão dos direitos e dos deveres dos cidadãos”. O ensino da sociologia, enfim, faria
“um adestramento adequado, vivo e construído através de experiências concretas, sobre as
condições materiais e morais de existência” (idem, p. 117).
Desse modo, o ideário educacional de Florestan Fernandes apresenta-se como
decorrência de seu ideário científico, podendo ser descrito pela metáfora do cientistaarquiteto, aquele que domina o ferramental da razão instrumental para iluminar as massas e
conduzi-las com precisão ao esclarecimento, construindo assim um novo mundo.
Considerações Finais
Com as reflexões contidas neste trabalho, não esperamos ter esclarecido mais do
que alguns aspectos do pensamento de Florestan Fernandes. Nosso principal intuito foi
exercitar o ferramental da análise retórica, mostrando seu potencial para a compreensão de
discursos científicos e educacionais. A retomada de Aristóteles por Perelman e OlbrechtsTyteca, bem como por Stephen Toulmin (2001) e outros, no século XX, deu nova
abrangência ao estudo das ciências do homem, permitindo ver que todo raciocínio
argumentativo destina-se a um auditório e, sendo assim, emprega meios que considera
efetivos para conquistar a adesão das mentes dos ouvintes.
Essa observação abre perspectiva para pensarmos nas razões determinantes do
sucesso – e também do fracasso – de proposições elaboradas no campo educacional, dando
margem à investigação dos vínculos entre os discursos e as disposições intelectuais de uma
época. No caso de Florestan Fernandes, caberia indagar sobre a tradição de pensamento do
auditório que aderiu às teses do sociólogo paulista, viabilizando o estabelecimento de uma
forma de pensar as relações entre ciência e educação.
Referências
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PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado da argumentação: a nova
retórica. Tradução Maria E. Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
TOULMIN, S. Os usos do argumento. Tradução Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
1
Trabalho realizado mediante subsídio do CNPq.
Segundo os estudiosos do assunto, essa última fase, “político-revolucionária”, responderia pela ruptura com
a noção de neutralidade da ciência e por um certo radicalismo político orientado para a revolução socialista.
3
Neste e nos demais parágrafos, todos os grifos em frases transcritas foram postos por mim para dar destaque
a expressões que considero metafóricas.
4
Refiro-me ao ideário de figuras emblemáticas como Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, da escola de Le
Corbusier, tão em voga nos anos 1950.
5
Essa idéia, aliás, já constava no título do histórico documento de 1932, “A reconstrução educacional no
Brasil. Ao povo e ao governo. Manifesto dos pioneiros da educação nova”. Uma investigação mais detida
poderá verificar em que medida os pioneiros podem ser descritos pela mesma metáfora que Fernandes.
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