ESTADO, SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA: DA IMPORTÂNCIA DE FORMAÇÃO DO GESTOR DEMOCRÁTICO Neusa Chaves Batista – UFRGS [email protected] Resumo: pretendo, no presente ensaio, trazer alguns subsídios teóricos e contextuais sobre pesquisa que realizo, em nível de doutorado, no programa de pós-graduação em educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Trata-se da análise da política nacional de formação/capacitação de conselheiros municipais de educação, consubstanciada por meio do programa “Pró-conselho” do Ministério da Educação, e de seu impacto na gestão de sistemas municipais de ensino no Rio Grande do Sul. Palavras-chave: Estado; democracia; sociedade civil; gestão democrática; formação do gestor. INTRODUÇÃO O texto enfoca questões pertinentes à relação Estado, sociedade civil e democracia numa perspectiva de apontar a importância de tal relação na construção de políticas públicas. Entende-se que é a partir desta relação que se produz significados às representações sociais dos gestores públicos e daí para suas práticas no governo da educação no âmbito dos municípios. O estudo da política em tela, por sua natureza, formar conselheiros municipais de educação com vistas a promover a gestão democrática do sistema de ensino – requer uma reflexão mais profunda sobre os conceitos envolvidos. Isto porque a democracia como forma de governo do Estado moderno na teoria política e sociológica não tem sido algo fácil de definir, inexistindo consenso sobre o próprio conceito de democracia. Mas, me parece prudente observar que constantemente os livros-textos de filosofia política definem a democracia como uma categoria universal vista de forma transtemporal e como uma modalidade particular de um regime político dentre outros, negligenciando sua dimensão experiencial (DALLMAYR, 2001). Quer dizer, o fato de a democracia ser inerente às lutas e a agonias concretas e contextualizadas. Logo, democracia não é apenas uma opção de um regime dentre outros igualmente disponíveis em todos os momentos e lugares, mas constitui-se em uma resposta a desafios e a aspirações históricas. Cumpre esclarecer que no escopo deste ensaio o sentido atribuído à democracia orienta-se por perspectivas que vão além de uma democracia formal e/ou procedimentalista, trata-se de considerá-la, enquanto prática social, o substrato éticopolítico das relações sociais, portanto, da formação de sujeitos democráticos. A 2 democracia moderna nasce como prolongamento do liberalismo entendida principalmente como instituição jurídica e parlamentar, no entanto, no contexto histórico das lutas populares adquire um significado mais radical e etimológico, de participação e exercício popular do poder. A democracia é o elo de articulação entre Estado e sociedade civil substantivado na gestão de políticas públicas. Deste modo, caracterizo a participação - enquanto um dos instrumentos mais importantes de realização da democracia como construção histórica - de maneira indissociável do conceito de poder, implicando a capacidade de intervenção direta dos atores nos processos de decisão sobre a gestão pública e não apenas a consagração do sufrágio universal. Sob estas assertivas discuto interpretações remetendo a um quadro teórico que possibilite o exame mais acurado do impacto da política nacional de formação de conselheiros municipais de educação/Pró-conselho sobre a gestão dos sistemas municipais de ensino. Parte-se do princípio de que esta política traz á tona o Estado no seu papel de educador, visto que, essencialmente, formar é educar. É, portanto, pensar em processos de formação identitária. Ou seja, é a forma como incorporamos tanto os “saberes” formais e cotidianos quanto os valores e crenças com os quais entramos em contato e que definem as nossas possibilidades de ação sobre e no mundo (OLIVEIRA, 2006). Logo, para entender de que forma os gestores da política no âmbito nacional e local interpretam a democracia como princípio educador é preciso constituir base teórica. O pressuposto do qual parto é o de que a educação de valores democráticos é uma forma de socialização normativa cuja base centra-se na idéia de que para além da pluralidade de valores, desejável numa sociedade democrática, é possível o consenso em torno de um certo número de valores. Isto pressupõe que os diferentes grupos de cidadãos, associações e comunidades locais possam intervir diretamente na definição de alguns valores e que, portanto, se privilegiem formas de democracia mais assentes na prática da participação e no comportamento do que na tomada de consciência dos valores existentes no indivíduo e oriundos de estruturas sociais (LIMA, 1990). Desde Rousseau definia-se a participação por seu caráter processual e educativo e como “uma ordem social que afeta a estrutura da personalidade humana” (PATEMAN, 1992). 3 ESTADO E SOCIEDADE CIVIL: UMA RELAÇÃO CONSTRUÍDA HISTORICAMENTE Para compreender a complexidade que envolve a relação Estado e sociedade civil é preciso atentar para a dinâmica das correlações de forças que historicamente têm alimentado os conceitos constituídos na atualidade. Pode-se dizer que foram as condições históricas, as quais consagraram a hegemonia do modelo de sociedade capitalista, que levaram ao crescimento do Estado bem como à construção de uma “sociedade civil organizada”. No curso do pensamento político dos últimos séculos, desde as concepções jusnaturalistas até as mais utilizadas atualmente, de cunho marxista (Bobbio, 1995), houve uma significativa mudança na compreensão da noção de sociedade civil. Na doutrina política tradicional jusnaturalista, a sociedade civil contrapunha-se à “sociedade natural” sendo sinônimo de sociedade política, portanto, de “Estado”. Mas esta noção se amplia e, em épocas em que guerras eram travadas para a fundação de Estados nacionais, a sociedade civil (Estado) deixa de se contrapor apenas ao Estado de natureza: ocorre uma identificação entre Estado de natureza e Estado selvagem, neste sentido, sociedade civil passa também a se identificar à sociedade civilizada, ou seja, contrapõe-se a sociedade dos “povos primitivos” 1. O Estado torna-se uma organização distinta da sociedade civil no século XVIII, todavia, esta distinção já aparecia no século XVII, principalmente na Inglaterra, com a ascensão da burguesia ao poder (GRUPPI, 1980). Esta distinção demarcou a separação entre espaço público (o Estado) e espaço privado (a sociedade civil). Com a distinção entre sociedade civil e Estado, a burguesia nascente atribui como principal papel ao Estado a tutela da propriedade privada sendo que, os direitos de propriedade deveriam ser exercidos na sociedade civil. Assim, Estado e sociedade civil obedeceriam a normas e leis diferentes. Resulta deste processo a noção liberal-burguesa de que a sociedade civil era espaço privilegiado dos cidadãos-proprietários bem como a idéia de que o Estado deveria deter-se apenas com as relações econômicas. Sob esta perspectiva a propriedade privada (protegida pelo Estado) e a liberdade econômica (exercida na sociedade civil) passam a ser o pressuposto basilar do liberalismo econômico. Produz-se, então, uma separação formal, e não real, entre Estado e sociedade civil. Ocorre um tipo de manifestação sobre a participação na esfera do poder estatal permeada pela idéia de que: não se pode pensar que fossem capazes de uma opinião 4 independente os servos das fazendas, ou os aprendizes das oficinas artesanais porque usavam somente as mãos e não a cabeça. Por conseguinte, eles não poderiam ter direito de voto, nem de serem eleitos. Os direitos políticos ativos - portanto, o controle do Estado - caberiam somente aos proprietários2 (GRUPPI, 1980; GOHN, 2005). Logo, entre os séculos XVIII e XIX, pode-se dizer que as discussões sobre a relação Estado e sociedade civil se davam basicamente em torno da polêmica que dizia respeito à definição da arena onde se constituiria o cidadão do Estado moderno. De um lado a argumentação dos jusnaturalistas3, para os quais o Estado nasce de um contrato, ou seja, o indivíduo é preexistente e funda a sociedade através de um acordo, de um contrato; de outro, a argumentação de Hegel4 (Bottomore, 1988), afirmando que o Estado é o fundamento da sociedade civil e da família e não o contrário5. No entendimento do autor não há sociedade civil sem um Estado que a construa, que a componha e que integre suas partes; não existe povo se não existir o Estado, pois, é o Estado que funda o povo e não o contrário. A sociedade civil enquanto esfera dos indivíduos que deixaram a unidade da família para ingressar na competição econômica, é uma arena de necessidades particulares, interesses egoístas e divisionismo, dotada de um potencial de auto-destruição. Só o Estado pode garantir o interesse universal, uma vez que, inexiste racionalidade inata à sociedade civil que leve ao bem comum. Ao final do século XIX, afirma-se a materialização de um Estado moderno, de orientação contratualista, que fundirá duas diferentes concepções progressistas forjadas à época: 1) a concepção do liberalismo econômico, que defendia a correlação entre propriedade e liberdade; 2) a concepção liberal democrática (baseada principalmente em Rousseau e forjada com a Revolução Francesa) segundo a qual a liberdade baseia-se na igualdade, mas essencialmente na igualdade jurídica. Na concepção democrática de Rousseau, a soberania é do povo, que a exprime no Estado, mas o fundamento da soberania fica sempre no povo. Na concepção do liberalismo econômico, o Estado deve somente garantir a esfera das liberdades, a inviolabilidade da pessoa, da iniciativa privada em campo econômico. Emerge, portanto, principalmente das concepções contratualistas, a base do individualismo que fundamenta a sociedade capitalista. Nesta concepção de sociedade o ponto de partida e de chegada é sempre a liberdade e o benefício do indivíduo. Com a concretização do Estado liberal emerge, ainda no século XIX, uma a visão crítica sobre a relação Estado e sociedade civil. Retomando o conceito de Hegel, Marx6 considera a sociedade civil como uma medida da transição da sociedade feudal 5 para a sociedade burguesa. Os antigos laços de privilégios foram substituídos pelas necessidades egoístas de indivíduos atomísticos, separados uns dos outros e da comunidade, os únicos laços que existem entre eles são proporcionados pela Lei, que não é o produto de sua vontade e não se ajusta à sua natureza, mas que domina as relações humanas pela ameaça de punição. O Estado moderno torna-se necessário (e ao mesmo tempo limitado) pelas características da sociedade civil. A fragmentação e miséria da sociedade civil escapam ao controle do Estado, restrito a atividades formais, negativas, tornando-se impotente devido ao conflito que é a essência da vida econômica7 (GRUPPI, 1980; BOTTOMORE, 1988; BOBBIO, 1995). Apesar de Marx elaborar claramente uma distinção entre o domínio público (Estado) e o domínio privado (sociedade civil) é ele quem primeiro estabelece uma conexão entre a sociedade civil, entendida como espaço que abarca o conjunto das relações econômicas, e a sociedade política. Afirma que elas estão entrelaçadas, uma é a expressão da outra. A sociedade política, o Estado, é expressão da sociedade civil, isto é, das relações de produção que nela se instalaram (IDEM). É neste sentido que se começa a produzir questionamentos do tipo: quem governa? Para quem governa? Assim, pode-se dizer, que de Hobbes a Locke, Rousseau a Kant, de Hegel até Marx o Estado vem sendo interpretado na sua relação com a sociedade civil das mais diversas formas. Todavia, é somente a partir da leitura de Marx que se inicia um processo de “dessacralização” do Estado e é relacionada sua existência às contradições das classes sociais existentes na sociedade. É primeiramente em Marx e depois pelos marxistas, que o Estado vai sendo desnudado em sua essência e perdendo sua aura de superioridade sobre a sociedade. Foi assim que Engels (2006), nos passos de Marx, preocupou-se em estabelecer a gênese das relações sociais constitutivas do Estado moderno. Afirma que a sociedade não é a soma das famílias que a compõem. A formação da sociedade e da família são duas coisas que marcham juntas, pois a sociedade organiza as relações entre os sexos para sua própria vida e sobrevivência, e principalmente visando suas necessidades econômicas. O Estado não existiu desde sempre: houve sociedades que prescindiram do Estado, que não tiveram a menor idéia de Estado e de poder estatal. O Estado torna-se uma necessidade a partir de um determinado grau de desenvolvimento econômico, o qual está necessariamente ligado à divisão da sociedade em classes. O Estado é justamente uma conseqüência dessa divisão, começa a nascer quando surgem as classes e com ela, a luta de classes8. 6 No entanto, apesar de Engels considerar o Estado a expressão de dominação de uma classe, percebe-o também como um momento de equilíbrio jurídico e político, um momento de mediação. “O Estado não é somente um poder brutal, é, outrossim, a busca de um equilíbrio jurídico, embora contraditório, provisório, transitório”. O Estado nasce da sociedade, nasce das classes, e da dominação de uma delas; e, ao mesmo tempo, torna-se sempre mais estranho para a sociedade, isto é, transforma-se num corpo separado: mas esta separação é apenas aparente. Embora continue a usar a categoria sociedade civil para referir-se a esfera privada ou não-estatal, Gramsci (2000), seguindo a linha crítica marxiana, elabora um conceito de sociedade civil com características diversas às de Marx. A análise sumária do conceito de sociedade civil realizada por Marx terminou com a identificação entre sociedade civil e momento estrutural da sociedade capitalista. Esta identificação vai ser o ponto de partida da análise de Gramsci. Ele introduz uma profunda inovação em relação a toda a tradição marxista que o antecedeu ao afirmar que “a sociedade civil não pertence ao momento da estrutura, mas ao da superestrutura” 9. Para Gramsci a sociedade civil não é simplesmente uma esfera de necessidades individuais, mas de organizações, e tem o potencial de auto-regulação racional e de liberdade. É uma organização complexa, um conjunto de organismos comumente chamados de “privados”, onde a “hegemonia” e o “consentimento espontâneo” são organizados. É neste sentido que Gramsci avança no conceito de sociedade civil em relação às perspectivas de Hegel, Engels e Marx, ao considerar a sociedade civil não apenas o espaço das iniciativas econômicas mas também de manifestação das forças ideológicas e culturais. É a partir da concepção gramsciana que se percebe claramente as articulações entre sociedade política e sociedade civil, situando as duas instâncias no mesmo patamar de relações de poder. Gramsci enfatiza a inter-relação de ambas, argumentando que, conquanto o uso limitado da palavra Estado possa referir-se ao governo, o conceito de Estado inclui, na realidade, elementos da sociedade civil. O Estado, estritamente concebido como governo, é protegido pela hegemonia10 organizada na sociedade civil, ao passo que a hegemonia da classe dominante é fortalecida pelo aparelho coercitivo estatal. Mas, o Estado também tem uma “função ética” ao tentar educar a opinião pública e influenciar a esfera econômica. Por sua vez, o próprio conceito de lei deve ser ampliado, já que elementos de costume e hábito podem 7 exercer uma pressão coletiva no sentido da conformidade, sem coerção ou sansões (BOTTOMORE, 1988; SEMERARO, 1999; GRAMSCI, 2000). Deste modo, para Gramsci, o Estado é força e consenso, quer dizer, apesar de estar a serviço de uma classe dominante ele não se mantém apenas pela força e coerção legal. Sua dominação é bem mais sutil e eficaz. Através de diversos meios e sistemas (simbólicos ou não), inclusive e principalmente através de entidades que aparentemente estão fora da estrutura estatal coercitiva, o Estado se mantém e se reproduz como instrumento de uma classe, também construindo o consenso no meio da sociedade. Assim, é por meio da concepção gramsciana que se amplia a visão marxiana de Estado, interpretando-o como um espaço que envolve a sociedade política e a sociedade civil: a primeira, (Estado em sentido restrito ou Estado-coerção) é formada pelos mecanismos que garantam o monopólio da força pela classe dominante através da burocracia executiva e das forças policial-militar e; a segunda, é formada pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e difusão das ideologias, composta pelo sistema escolar, Igreja, sindicatos, partidos políticos, organizações profissionais, organizações culturais - revistas, jornais, meios de comunicação de massa, etc. (GRAMSCI, 2000). Situando as condições históricas da relação entre Estado e sociedade civil, podese inferir que a segunda dimensão, a da sociedade civil, só poderia ter sua existência material destacada com maior intensidade apenas no período em que o fez Gramsci, ou seja, na segunda década do século XX. Foi exatamente neste período que o Estado passou a ser “dessacralizado” como ente regulador das relações sociais e exatamente porque a sociedade civil - organizada em partidos de massas, sindicatos de trabalhadores dos mais diversos ramos, e também em outras formas complexas de organização social como conselhos de trabalhadores – emergia em sua existência material concreta. Foi somente sob o processo histórico que deu materialidade à sociedade civil que ela pôde ser capturada teoricamente; antes disso o Estado-coerção era muito superior em sua base material para se permitir tal percepção. A partir de Gramsci não se podia mais pensar a sociedade civil como sendo uma realidade privada, de caráter exclusivamente econômico, agindo à parte da estrutura pública do Estado. Assim, para evitar o economicismo de um lado e o estatismo de outro Gramsci defende uma relação dialética de identidade-distinção entre sociedade civil e sociedade política, duas esferas distintas e relativamente autônomas, mas inseparáveis na prática. 8 Na esteira do pensamento de Gramsci segue Bobbio (1988)11, que atualiza questões abertas pelo autor em sua época. Retoma questões como a formação das modernas organizações políticas, o desenvolvimento da sociedade civil, sua relação com o Estado e a construção da democracia. No entendimento de Bobbio (1988), o fenômeno típico da sociedade moderna é constituído pela emancipação da sociedade civil diante do Estado e pela formação na sociedade civil, independente do Estado-instituição e do Estado-aparelho, e até contra o Estado, de grupos de interesses, inclusive conflitantes entre si, que contribuem para formar decisões políticas. Para ele, particularmente decisiva, neste sentido, foi a formação da sociedade industrial que, com suas associações, promoveu a integração do indivíduo e a desintegração do Estado, revelando a validade de uma sociedade civil que tende a absorver a sociedade política. O desenvolvimento da sociedade civil gerou uma perda praticamente irreparável à concepção tradicional de Estado como centro de poder soberano. Lembra que graças à influência do liberalismo democrático (Rousseau), do socialismo e do cristianismo social, vive-se hoje um pluralismo político e social que viabiliza a distribuição do poder entre numerosas “esferas particulares”, relativamente autônomas, que levam a cabo o conjunto das lutas antidespóticas e permitem aos vários grupos e camadas sociais a participação direta ou indireta na formação da vontade coletiva (IDEM). Logo, sugere o autor, se nos séculos anteriores foi preciso lutar para se livrar do absolutismo do Estado e da religião, hoje é necessário lutar para criar maiores espaços de liberdade para inúmeras forças que compõem a sociedade civil. Pouco importa, de fato, se o indivíduo é livre politicamente se não é livre socialmente. O problema da liberdade depende não apenas da organização do Estado, mas principalmente da organização da produção e da sociedade como um todo; envolve não o cidadão, ou seja, o homem público, mas o homem enquanto ser social, enquanto homem. Nesse sentido, parece que a direção do desenvolvimento histórico não sejam mais do “Estado despótico para o Estado liberal”, mas do “Estado liberal para a sociedade libertada”. Conforme Semeraro (1999) é conveniente salientar que a perspectiva de Bobbio, apesar de lastreada no conceito de sociedade civil de Gramsci, apresenta distinções. Bobbio a fim de extremar uma visão associativa e “policêntrica” da sociedade civil termina por tornar o Estado um organismo de caráter jurídico, laico, neutro e mínimo, em condições de garantir apenas as “regras do jogo” estabelecidas pelo sistema político vigente. 9 Para Gramsci a sociedade civil não se reduz à preservação do espaço das livres iniciativas dos indivíduos em busca da satisfação de seus interesses pessoais que precisam do Estado como “mal necessário” e expediente instrumental para garantir as regras do jogo, evitar a “guerra de todos contra todos”; mas ela é o espaço da máxima expansão dos sujeitos, que com sua efetiva participação e responsabilidade desenvolvem suas capacidades pessoais e coletivas na gestão da “coisa pública” a tal ponto de tornar inútil o Estado coercitivo e exterior. A DEMOCRACIA E OS CONFLITOS ENTRE AS FORMAS DE PARTICIPAÇÃO NA GESTÃO PÚBLICA: A CONQUISTA DOS DIREITOS DE CIDADANIA Se tomarmos a noção de esfera pública que articula sociedade política e sociedade civil no mesmo patamar de relações de poder e ainda aceitarmos a idéia de que a hegemonia de uma classe e/ou grupo social é produzida no âmbito da sociedade civil com vistas a tomar a direção da sociedade política (Estado-instituição), pode-se dizer que, historicamente, tem prevalecido na direção da gestão pública a ideologia liberal e com ela a sua noção de Estado. É a partir desta percepção que discuto a crise da democracia no Estado capitalista. À medida que no campo conceitual e ideológico prevalece a noção de Estado liberal, ocorre a ampliação do sufrágio universal e da igualdade jurídica consolidando a democracia como forma de governo do Estado de direito. Emerge daí uma constante tensão entre liberalismo e democracia inerente ao processo civilizatório que constituiu a contratualidade moderna. Visto que a fusão dos princípios do liberalismo e da democracia no Estado de direito não deixou de privilegiar historicamente a propriedade privada e a tutela do Estado à iniciativa econômica em detrimento das iniciativas sociais (aqui pensando em Estado como fruto de um contrato social que tem por finalidade o “bem comum”). Segundo Santos (1999) desde sua gênese o contrato social moderno visa criar um paradigma sociopolítico que produza de maneira normal, constante e consistente quatro bens públicos: legitimidade da governação, bem-estar econômico e social, segurança e identidade coletiva. Estes bens públicos só são realizáveis em conjunto: são, no fundo, modos diferentes, mas convergentes, para realizar o bem comum e a vontade geral sob o governo democrático. Para o autor, esta proposta de gestão social é a própria expressão de uma tensão dialética entre regulação social e emancipação social12 que se reproduz pela polarização 10 constante entre a vontade individual e a vontade geral, entre o interesse particular e o bem comum. Entende que a idéia do contrato social e os seus princípios são o fundamento ideológico e político da contratualidade real que organiza a sociabilidade e a política nas sociedades modernas13. Para garantir a legitimidade do Estado os governos precisam efetivar conjuntamente os quatro bens públicos inerentes à razão de existência do próprio Estado enquanto contrato social moderno. A realização destes bens públicos desdobrou-se numa vasta constelação de lutas sociais, desde logo as lutas de classes que exprimiam a divergência fundamental dos interesses gerados pelas relações sociais de produção capitalista. Por via desta divergência e das antinomias, inerentes ao contrato social, entre autonomia individual e justiça social, entre liberdade e igualdade, as lutas pela realização do bem comum sempre foram lutas por definições alternativas do bem comum. Essas lutas foram se cristalizando em contratualizações parcelares, incidindo, na maioria das vezes, sobre os menores denominadores comuns acordados (SANTOS, 1999, p. 33). Essas contratualizações, por outra via, foram se traduzindo numa materialidade de instituições assegurando o respeito e a continuidade do que foi acordado por meio de novas formas de ingerência e envolvimento político (Baquero, 2007) na elaboração e fiscalização das políticas implementadas pelos governos, especialmente às de cunho social. É neste sentido, que a defesa da democracia participativa passa a constituir-se em pilar para a luta por melhores condições de vida e pelo acesso aos benefícios da civilização. A incapacidade de o Estado equilibrar regulação social e emancipação social tem implicado na rejeição da democracia procedimentalista e representativa em detrimento de uma democracia participativa consubstanciada pela participação dos cidadãos diretamente na construção de políticas públicas. Este quadro, no dizer de Baquero, se dá em virtude do surgimento e institucionalização de novas formas de dominação com base não tanto na exploração do trabalho, mas sim na manipulação da demanda, na deteriorização das condições de vida e na concentração de recursos e da capacidade de decisão. Sob estes aspectos inicia-se uma crise no modelo de participação baseado na representação política porque os eleitores deixam de se sentirem representados passando a exprimir tal sentimento denunciando uma classe política que fere o objetivo central do contrato social moderno – gerir o bem comum – ao gerenciar apenas o que é de seu 11 interesse pessoal. Este comportamento tem o seu aspecto negativo visto que a consciência de cidadania enfraquece-se porque muitos indivíduos abandonam os espaços de luta política assumindo um comportamento muito mais de consumidores do que de cidadãos de direitos ou, sentindo-se marginalizados ou excluídos das decisões, têm o sentimento de que, por razões econômicas, políticas, étnicas ou culturais, não possam destas participar. É neste sentido que a democracia representativa passa a ser o fio condutor ao mesmo tempo de tensão e de legitimidade da ação política na modernidade. Nas democracias liberais, a participação nas decisões políticas foi resolvida por meio de uma das muitas liberdades individuais que o cidadão reivindicou e conquistou contra o Estado absoluto. Assim, a participação é definida e vista como manifestação daquela liberdade particular que indo além do direito de exprimir a própria opinião, de reunir-se ou de associar-se para influir na política do país, compreendendo ainda o direito de eleger representantes para o Parlamento e de ser eleito. Ao longo do século XX até a atualidade ocorreu um processo de democratização nas sociedades ocidentais, que gradativamente foi legitimando a democracia representativa como princípio da participação popular. Todavia, paralelamente a este processo institucional pode-se igualmente observar a valorização da democracia participativa emergida a partir das primeiras formas de organização de trabalhadores em luta por direitos. Estas têm sido as forma históricas de manifestação da soberania popular, como foi pensada por Rousseau, constituindo-se, na sua essência, no princípio regulador da governança democrática. Isto significa que a participação popular é um fenômeno que se construiu/constrói tanto na sociedade civil – em especial entre os movimentos sociais e as diversas organizações autônomas da sociedade - quanto no plano institucionallegal, isto é, nas instituições políticas formais (GOHN, 2005). Contradições inerentes às formas de exercício da soberania popular desencadearam debates sobre as imperfeições no processo político das democracias liberais cuja materialidade pode ser percebida a partir de discussões (Souza, 2001) que propõem outros sentidos para a noção de democracia (redistributiva, deliberativa, reflexiva...). Questiona-se principalmente sobre as formas de participação dos cidadãos/cidadãs sobre o direito de bem-estar social. Neste sentido é importante a contribuição de Bobbio (2004) - apesar de sua dedicação ao estudo dos avanços da democracia institucional - é ele quem melhor 12 demarca o espaço onde ocorreu/ocorre a constituição do cidadão nos marcos da democracia participativa. Trata-se da arena onde se deu a valorização das relações humanas sob o escopo da ampliação da concepção dos direitos14. Da defesa dos primeiros direitos de “liberdade negativa” atribuídos ao homem genérico e abstrato, passa-se hoje para direitos que consideram o ser humano em sua especificidade e na concretização das suas diferentes maneiras de ser em sociedade: homem, mulher, criança, idoso, doente, deficiente físico, estudante, negro, desempregado, etc. Ao se complexificar e aprofundar o sentido da democracia, a sociedade percebeu que os direitos políticos e a proclamação dos direitos fundamentais à vida, à liberdade, à propriedade eram insuficientes para garantir o direito das minorias e a diversidade de condições sociais. Foi neste sentido que se ampliou a participação da sociedade civil em espaços demarcadamente estatais15. Assim, a participação guarda estreita relação com o desenvolvimento e ampliação dos direitos humanos que ao penetrar nas relações sociais concretas criaram formas diversificadas de cidadania. Daí pode-se definir todo movimento social como uma forma de organização social que luta pela apropriação coletiva de recursos econômicos, políticos e culturais. Esta forma de atuação coletiva, apesar de rechaçada por alguns governos em alguns momentos históricos, é reconhecida, portanto legitimada em seu conjunto por toda a sociedade. Logo, a participação popular como forma de acesso aos bens produzidos pela humanidade aparece necessariamente ligada à formação dos movimentos sociais e das diversas formas de organizações coletivas. A democracia, desde as primeiras formas de organização dos trabalhadores, começou a se nutrir cada vez mais da defesa e ampliação dos direitos individuais e coletivos num mundo dominado por mercados que hoje interfere tanto no domínio da política econômica quanto na produção de legislação no âmbito dos Estados nacionais. É neste sentido que a formalização dos direitos adquiridos tem sido um importante elemento para a estruturação da cidadania no âmbito local. É certo que só as leis não constroem a cidadania, mas também é certo que estas se constituem em importantes instrumentos de luta para garantir a continuidade de direitos já conquistados. Para Santos (1999, p. 68-69), sob o contexto das lutas sociais por direitos, especialmente os sociais, o modelo de participação social baseado na democracia representativa perde as parcas virtualidades distributivas que alguma vez teve, por este motivo: 13 Nas novas condições, a democracia redistributiva tem de ser democracia participativa, e a participação democrática tem de incidir tanto na atuação estatal de coordenação como na atuação dos agentes privados, empresas, organizações não-governamentais cujos interesses e desempenho o Estado coordena. Em outras palavras, não faz sentido democratizar o Estado se, simultaneamente, não se democratizar a esfera não estatal. Só a convergência dos dois processos de democratização garante a (re)constituição do espaço público de deliberação democrática Todavia, é preciso reconhecer que a ação governamental tem sido fruto de correlações de forças concorrentes implicando em diferentes formas de gerir o bem comum. A participação social na gestão de políticas públicas é uma aspiração histórica enraizada num projeto de sociedade que visa à gestão democrática e popular do poder e até hoje só se concretizou, na sociedade capitalista, por força das lutas sociais. Na atualidade são muitos os obstáculos a uma participação democrática mais ampla: as grandes organizações, partidos e sindicatos, têm um peso crescente na vida política, o que, muitas vezes, retira a suposta “soberania popular”; os interesses particulares não desaparecem diante da vontade geral e as oligarquias se mantêm. Enfim, só a democracia representativa e procedimentalista (Baquero, 2007) não tem conseguido ser eficiente para fundamentar a mediação entre o cidadão e a sociedade e muito menos com o sistema político, razão pela qual o indivíduo se aliena cada vez mais da arena política. Logo, no marco histórico da constituição das sociabilidades modernas, a participação inerente às lutas sociais não tem sido o instrumento de superação da representação política consubstanciada nos marcos da democracia republicana, mas, com certeza é dela que emergem novos sentidos à democracia contemporânea. A luta empreendida pela classe trabalhadora (Santos, 1999) enquanto processo de democratização do poder político foi gradualmente afirmada pelo Estado que se obriga a reconhecer que a economia capitalista não é apenas constituída por capital, fatores de produção e mercado, mas também por trabalhadores, pessoas e classes com necessidades básicas, interesses próprios e legítimos e, em suma, com direitos de cidadania. Para manter a legitimidade do Estado capitalista tornou-se necessário o reconhecimento e a institucionalização de direitos de cidadania incorrendo na gradual “politização do Estado”. Este fato, por um lado expandiu a capacidade reguladora do Estado sobre a cidadania local. Por outro, foi este processo que consolidou o papel social do Estado enquanto garantidor e provedor do bem-estar social. Assim, na mesma 14 medida em que estatizou a regulação da cidadania o Estado fez dela um campo de luta política e, nessa medida, ele próprio se politizou abrindo espaços para a participação social na gestão das políticas públicas, ou ainda, abrindo possibilidades para a construção de uma nova “hegemonia política”. O SUJEITO DEMOCRÁTICO E A FORMAÇÃO DO GESTOR PÚBLICO Retomando o propósito da construção deste texto - constituir uma referência teórica para dar suporte analítico-interpretativo ao estudo da política nacional de formação de conselheiros/as municipais de educação (Pró-conselho) que tem por objetivo principal promover a gestão democrática nos sistemas municipais de ensino pode-se agora, diante do exposto até aqui, questionar: será possível gerir democraticamente os sistemas municipais de ensino sem a direção de sujeitos democráticos? Neste sentido, formar o gestor democrático não significaria formar subjetividades democráticas sob os preceitos da democracia não só como um procedimento legal, mas também como um valor pessoal e coletivo? E falar em valores não significaria remeter ao sentido moral da democracia como forma de gestão da vida pessoal e coletiva de sujeitos históricos? O processo histórico de construção do Estado de direito nos mostra que a democracia amplia os seus sentidos à medida que a sociedade se organiza sob as “regras do jogo” (Bobbio, 2000)16 mas lastreada por um espírito democrático que, na luta por ampliação dos direitos humanos, fez da democracia institucional apenas o início do jogo. Foi sob a dimensão da democracia participativa que os trabalhadores, historicamente privados de sua dignidade e pulverizados em suas vidas pelo Estadocoerção, obtiveram suas primeiras conquistas em termos de direitos e ampliação dos espaços de participação na esfera estatal. É desta relação que os indivíduos encontram as primeiras condições para construir uma subjetividade social constituída por sujeitos livres e criativamente organizados, possibilitando o desenvolvimento de suas potencialidades pessoais em suas dimensões públicas e coletivas. (SEMERARO, 1999; RAGAZZINI, 2005). Assim, pode-se considerar que foi na luta histórica pela ampliação dos direitos que os indivíduos, subalternizados pelo contrato social moderno, tornaram-se ativos e organizados estabelecendo as primeiras iniciativas dos sujeitos modernos que com sua cultura, com seus valores ético-políticos e suas dinâmicas associativas chegaram a 15 formar as variáveis de subjetividades coletivas fomentadas pelos valores da democracia participativa. Segundo Santos (1996) a incorporação textual-imaginética do processo histórico das lutas sociais, das escolhas e das possibilidades, das imagens do sofrimento humano causado por elas à subjetividade humana, são contribuições importantes para a formação de identidades inconformistas. O autor considera tais identidades indispensáveis para o acontecer de um projeto educativo emancipatório17 voltado para a formação de subjetividades democráticas. Logo, formar é educar e educar é permitir que os saberes ganhem sentido através do reconhecimento dos significados político-sociais das práticas que suscitam ou favorecem. A moralidade se aprende (e apreende) na ação cotidiana, dentro de um conjunto de instituições que desempenham uma função central na educação moral dos sujeitos: família, escolas, igrejas, empresas, partidos políticos, meios de comunicação, sindicatos, movimentos sociais e todos aqueles âmbitos nos quais se estabelecem vínculos de socialização que, em variado grau e intensidade, influenciam na vida moral dos indivíduos. A moralidade se constrói socialmente no processo histórico de formação da subjetividade humana (GENTILI, 2000, p. 150). Neste sentido é preciso atentar ao fato de que nenhum sujeito constitui uma subjetividade coletiva sem uma relação de reciprocidade com sua subjetividade individual, haja vista que “a liberdade individual não termina onde começa a dos outros, mas se desenvolve ainda mais quando se encontra com a dos outros”. A concepção relacional do homem (mulher) não reduz o indivíduo a um simples produto do social. Coloca-se, pois, o problema da responsabilidade e da escolha. Responsabilidade diante de si próprio, dos outros e do mundo. Se a “naturalidade” é concebida como “natureza dos brutos”, se tudo é justificado pelo ambiente social, então todo senso de responsabilidade individual [...] acaba por deteriorar-se, afogando-se numa abstrata e jamais encontrável responsabilidade social. É neste sentido que Ragazzini (2005)18 coloca a pergunta de Gramsci: “é preferível ‘pensar’ sem ter consciência crítica, ‘participar’ de uma visão de mundo ‘imposta’ mecanicamente pelo ambiente externo, ou é preferível elaborar consciente e criticamente uma visão própria de mundo?” Esta interrogação se torna relevante quando pensada sob as possibilidades de construção de uma nova subjetividade crítica que saiba dirigir a contemporaneidade, formar comportamentos e idéias, interpretar a responsabilidade em relação a si e em 16 relação aos outros, mesmo contradizendo o sentir comum difundido e a ideologia dominante. Semeraro (1999, p. 72) também apoiado nas concepções gramscianas, afirma que a formação de sujeitos sociais que visam à construção de um projeto de sociedade aberto à participação social está intimamente relacionada à consciência e a subjetividade individual. O autor afirma que: A consciência e a subjetividade representam uma dimensão fundamental na ação política, uma vez que, se é verdade que não é a consciência que determina o ser social, é também verdade que só por meio da consciência o homem pode apropriar-se das funções da sociedade e ter condição de realizá-las lutando contra as pressões externas qu condicionam o seu comportamento e neutralizam suas aspirações. Sob esta concepção os homens (e mulheres) são sujeitos reais da história19 e não instrumentos passivos de determinações materiais ou espirituais. Neste sentido o homem é impensável fora da história das relações sociais e das transformações operadas pelo trabalho organizado socialmente. O homem é processo de seus atos, construir uma personalidade significa adquirir consciência de tais relações, modificá-la, modificar tais relações e, de qualquer modo, ter consciência plena dela. Por este motivo a compreensão crítica de si mesmo ocorre20 por meio de uma luta de hegemonias políticas, de direções contrastantes, primeiro no campo da ética, depois no da política, para se chegar a uma elaboração superior da própria concepção do real. No entanto, não é uma concepção do mundo que introduz novas morais, mas novos comportamentos – ligados a novas situações materiais – que introduzem novas visões de mundo organizadas não tanto e nem somente nas idéias, quanto, principalmente, em aparatos hegemônicos21 (RAGAZZINE, 1999). CONSIDERAÇÕES FINAIS A título de considerações finais pode-se dizer que se por um lado, as interpretações sobre o sujeito democrático contemporâneo expressam todo um processo de transformação da própria noção de esfera pública; por outro, expressam também a emergência de novos comportamentos democráticos erigidos a partir de uma ética de vida fluída desde o esforço constante das diversas cidadanias em luta para melhorar suas condições socioeconômicas, políticas e culturais. 17 Deste modo para avançar em direção de uma efetiva democracia social ou para o que Santos(1999) chama de “democracia sem fim”, é preciso resgatar a noção de identidade individual e coletiva gestada a partir do sujeito organizado na luta por direitos enquanto prática politizadora da ação social e elemento fundamental da formação de subjetividades democráticas. Neste sentido, entende-se que “politizar significa identificar relações de poder e imaginar formas práticas de transformá-las em relações de autoridade partilhada”. Não se pode esquecer que o sujeito democrático além de histórico e coletivo, é também fruto de uma história pessoal e local. Assim, a “moralidade” que pressupõe o exercício e luta da e pela cidadania se reconhece como sendo histórica, contingente, relativa e aberta. Sabendo-se inevitável, trata de construir-se e garantir-se como um espaço de diálogo com o outro e de respeito pelo diferente. Disto segue que a formação de uma moralidade democrática implica profundo processo de transformação dos valores, das normas e dos direitos morais existentes, articulando a um não menos profundo processo de construção de uma capacidade de questionamento crítico capaz de tornar os sujeitos protagonistas ativos na construção da própria moralidade (GENTILI, 2000). Resta acrescentar que a globalização do modo de vida capitalista salienta o caráter fragmentário do social produzindo um pensar que realça a relatividade dos conteúdos valorativos circulantes na sociedade. Se pensarmos na democracia em termos de representação de uma ordem, que é também representação de um valor, pode-se caracterizá-la como um conteúdo que disputa hegemonia no mercado dos bens materiais e simbólicos. Assim, a democracia é também um valor e como toda a gama de valores é uma construção individual e coletiva e, como tal, sempre instável. Os que aderem a ela dotam-lhe de significados, atribuem-lhe sentidos; isto é, a cada momento ela é (re)criada (re)inventada em todos os espaços de vivência pessoal e coletiva, implicando em cada indivíduo a vontade de fazê-la digna de reconhecimento social. Esta situação demanda dos sujeitos capacidade crítica de escolha e seleção. NOTAS 18 1 Não podemos esquecer que esta foi a justificativa para o extermínio de muitos “povos primitivos” pelos chamados “povos civilizados” da Europa. Emerge desta concepção a tentativa de legitimar o imperialismo europeu e depois norte-americano sobre os países subdesenvolvidos. 2 Gruppi (1980) afirma que é nítida a distinção que Benjamin Constant (1767-1830) faz entre sociedade civil e sociedade estatal. Para Constant os direitos da liberdade são gozados principalmente na vida particular, pois são direitos da iniciativa econômica. Daí adviria toda a polêmica com Rousseau: a igualdade de Rousseau destrói toda a liberdade, por conseguinte suas concepções devem ser rejeitadas como uma grande ameaça à liberdade. Constant defende assim a identificação entre propriedade e liberdade, isto é, a liberdade como diferença e não como igualdade. 3 Especialmente, e apesar de apontarem pontos de vistas diferentes, pode-se citar: Thomas Hobbes (15881679); John Locke (1631-1704); Jean-Jacques Rousseau (1712-1778); Emmanuel Kant (1724-1804). 4 Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831). 5 Segundo Bobbio (1999), a inovação de Hegel em relação ao jusnaturalismo está no fato de que ele abandona as análises predominantemente jurídicas, que tendiam a reduzir as relações econômicas às suas formas jurídicas ou seja, as teorias da propriedade e do contrato. 6 Karl Marx (1818-1883). É em Marx que temos o início de um questionamento crítico da superioridade (legitimidade) do Estado sobre a sociedade. Neste sentido, embora Hegel e Marx compartilhem o conceito de totalidade, se diferenciam substancialmente sobre o objeto e seu método de construção: para Hegel o Estado, para Marx a sociedade. 7 Salienta-se que Marx dá início a esta discussão sobrepondo o materialismo (filosofia segundo a qual a realidade é Matéria ou Natureza) ao idealismo hegeliano (filosofia segundo a qual a realidade é Idéia ou Espírito). 8 Tudo começa quando se diferencia a posição dos homens nas relações de produção. Por um lado temos os escravos, pelo outro, o proprietário de escravos; de uma parte o proprietário da terra, de outra, os que nela trabalham, subjugados pelo proprietário. Quando se produzem essas diferenciações nas relações de produção, determinando a formação de classes sociais e por conseguinte, a luta de classes, surge a necessidade do Estado: a classe que detém a propriedade dos principais meios de produção deve institucionalizar sua dominação econômica através de organismos de dominação política, com estruturas jurídicas, com tribunais, com forças repressivas etc. (IDEM). 9 Marx situa a sociedade civil no conjunto de relações materiais de produção (estrutura) e o Estado na base da produção político-ideológico (superestrutura). Gramsci situa sociedade civil e Estado na superestrutura. 10 O termo hegemonia apesar de ter sido usado anteriormente por Lênin, traz uma dupla interpretação: a primeira, teria o significado de dominação; a segunda um significado de liderança tendo implícita alguma noção de consentimento. É nesta segunda definição que este termo assume um papel de destaque na elaboração de todo o quadro teórico grasmciano. 11 É preciso esclarecer que são inúmeras as críticas (de marxistas) sobre os escritos de Norberto Bobbio quando trata de conceitos em Gramsci. Todavia, considero que Norberto Bobbio na obra intitulada “Ensaios sobre Gramsci e o conceito de sociedade civil”. São Paulo: Paz e Terra, 1999, responde a tais criticas de forma satisfatória. Segundo Semeraro (1999), reconhecido estudioso das obras de Gramsci, mantidas as diferenças ideológicas, são as reflexões de Norberto Bobbio que atualizam questões abertas por Gramsci tais como: a formação das modernas organizações políticas, o desenvolvimento da sociedade civil, sua relação com o Estado e a democracia. 12 Regulação social constituída pelo princípio do Estado, formulado especialmente por Hobbes; pelo princípio do mercado, desenvolvido, sobretudo por Locke e Adam Smith; pelo princípio da comunidade, que domina toda a teoria social e política de Rousseau. Emancipação social constituída pelas três lógicas de racionalidade definidas por Weber: a racionalidade estético-expressiva das artes e da literatura; a 19 racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da tecnologia predominante na sociedade moderna; a racionalidade moral-prática da ética e do direito (SANTOS, 2000). 13 (...) como qualquer outro contrato, o contrato social assenta em critérios de inclusão que, portanto, são também critérios de exclusão. São três os critérios principais: o primeiro é que o contrato social inclui apenas indivíduos e suas associações. A natureza é excluída do contrato, e é significativo a este respeito que o que está antes ou fora dele se designe por estado de natureza. A única natureza que conta é a humana, e mesmo esta conta apenas para ser domesticada pelas Leis do Estado e pelas regras de convivência da sociedade civil. Toda outra natureza ou é ameaça ou é recurso. O segundo critério é o da cidadania territorialmente fundada. Só os cidadãos integram o contrato social. Todos os outros – sejam eles mulheres, estrangeiros, imigrantes, minorias (e, às vezes, maiorias) étnicas – são dele excluídos. Vivem no estado de natureza mesmo quando vivem na casa dos cidadãos. O terceiro critério é o do comércio público dos interesses. Só os interesses exprimíveis na sociedade civil são objeto do contrato. Estão, portanto, fora dele a vida privada, os interesses pessoais de que é feita a intimidade e o espaço doméstico (SANTOS, 1999, p. 34). 14 Bobbio cita as seguintes etapas da construção dos direitos humanos no Estado democrático de direito. 1) Positivação, conversão do valor da pessoa humana e do reconhecimento Positivo (leis), da legitimidade da perspectiva ex parte populi. São as Declarações dos Diretos; 2) Generalização, princípio da igualdade e o seu corolário lógico, o da não discriminação; 3) Internacionalização, proveniente do reconhecimento que inaugura de maneira abrangente com a Declaração Universal de 1948 que, num mundo interdependente a tutela dos direitos humanos, requer o apoio da comunidade internacional e normas de Direito Internacional Público; 4) Especificação, assinala um aprofundamento da tutela, que deixa de levar em conta apenas os destinatários genéricos – o ser humano, o cidadão – e passa a cuidar do ser em situação – o idoso, a mulher, a criança, o deficiente, etc.. 15 É desta forma que o autor destaca a íntima relação entre o nascimento e o crescimento dos direitos sociais de um lado, e de outro a transformação da sociedade; entre estruturação democrática e a consolidação do sistema jurídico atual. Mais recentemente, considerando o atual contexto social, alarga o horizonte dos direitos para: os direitos de “terceira” geração que diz respeito ao direito dos cidadãos de viver em ambiente não poluído e não ameaçado pela destruição nuclear e os direitos de “quarta” geração os quais se referem ao direito de proteção dos efeitos de manipulação genética que podem comprometer a integridade física e psíquica dos indivíduos e, até, da própria espécie. 16 Bobbio (2000) define a democracia a partir de três princípios institucionais:1) como um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos; 2) um regime é tanto mais democrático, quanto maior for o número de pessoas que participam, direta ou indiretamente, da tomada de decisões; 3) as escolhas a serem feitas devem levar em consideração a realidade. 17 Para Santos (1996) o projeto educativo emancipatório é um projeto de aprendizagem de conhecimentos conflitantes com o objetivo de, através dele, produzir imagens radicais e desestabilizadoras dos conflitos sociais em que traduziram no passado, imagens capazes de potenciar a indignação e a rebeldia (p. 118). 18 Dário Ragazzine preocupa-se em mostrar, a partir de um estudo minucioso (análise de conteúdo) dos escritos redigidos no cárcere por Gramsci, a fluência, nos textos, de uma preocupação constante em apreender a personalidade na unidade orgânica do individual e do social, do subjetivo e do coletivo. Afirma que a reflexão gramsciana é atravessada por duas linhas de atenção temática e teórica: uma que confronta os macroproblemas sociais e as suas conexões (da história à política, à sociologia, à economia, etc.) e outra, que confronta os microproblemas individuais e as conexões com os macroproblemas sociais. 19 O historicismo gramsciano é uma expressão teórica que busca sistematizar a lógica inerente ao processo histórico real, ao contrário das teorias que compreendem o real como ilustração de sua lógica (VIEIRA, 2003). 20 Na análise da singularidade e da individualidade há um uso paradigmático e analógico do marxismo gramsciano. A contraditoriedade da consciência individual, compreendido o indivíduo como bloco histórico de relações e de ideologias contraditória, exige de quem quer ser criador de si próprio, fazer um reconhecimento genético, distinguir entre bom senso e senso comum, encontrar os pontos de alavancagem 20 com os quais transformar as discrasias em ocasiões e recursos de redefinição dinâmica. O pressuposto é que todos os homens são intelectuais e filósofos, mesmo quando não têm esta função social (RAGAZZINE, 1999, p. 46). 21 Esta hegemonia é constituída na sociedade civil, espaço não-estatal onde os indivíduos desenvolvem sua subjetividade social, onde são organizados interesses, disputada a hegemonia com as armas das ideologias e onde se define quem, afinal, vai assumir a direção efetiva da sociedade, a sua orientação econômica e cultural. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAQUERO, Marcello (2007). A democracia brasileira e a cultura política no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da UFRGS. 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