O conceito de poder na filosofia política de Marsílio de Pádua

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O conceito de poder na filosofia política de Marsílio de Pádua
Cézar de Alencar Arnaut de Toledo* e Peterson Razente Camparotto
Departamento de Fundamentos da Educação, Universidade Estadual de Maringá, Av. Colombo, 5790, 87020-900, Maringá,
Paraná, Brasil. *Autor para correspondência. e-mail: [email protected] e [email protected]
RESUMO. Marsílio Mainardini, jurisconsulto e estudioso da política, nasceu em Pádua,
Itália, por volta de 1280 e viveu até 1343. Filho de um notário da prestigiada Universidade
Patavina, estudou Direito em sua cidade natal, notável centro da cultura jurídica da época.
Ele foi grandemente influenciado pela filosofia aristotélica, fato que pode ser verificado em
sua obra: Defensor pacis (1324) na qual expôs uma filosofia política delineada pelo esforço de
construção de uma noção de Estado (ou governo) livre das arbitrariedades da corte
pontifical de Roma (ou de Avinhão). Seu conceito de soberania do povo contribuiu
grandemente para a laicização do Estado e do Poder, numa antecipação da Modernidade
Política, construída a partir do século XVI. O texto enfoca mais detalhadamente seu
conceito de poder por meio da análise do modelo de organização civil do Estado e também
de seu repúdio às ingerências eclesiásticas sobre os governos civis. A edição do Defensor da
paz aqui utilizada é a tradução brasileira de 1994.
Palavras-chave: Marsílio de Pádua, filosofia política, século XIV, poder.
ABSTRACT. The Concept of Power in Marsilius of Padua’s Political Philosophy.
Marsilio Mainardini, called Marsilius of Padua, jurist and studious of politics was born in
Padova, Italy, around the year 1280 and lived until 1343. His father was an important jurist
at the prestigious University of Padua. He studied Law in his hometown, that was an
outstanding juridical culture center of that time. He was influenced by Aristotle’s
Philosophy, a fact that can be verified on his work: Defensor pacis (1324) in which he exposed
a political philosophy delineated by the construction effort of a State notion (or
government) free from the arbitraryties of the Roman pontifical court (and from Avignon).
His concept of popular sovereignty contributed for secularization of the State and the
Power, as an anticipation of the Political Modernity, built from the 16th century. The text
focus more details on the concept of power through the analysis of its State civil
organization model and also, the author’s rejection to ecclesiastical interferences on civil
governments. The edition of Defensor of Peace, which is used in this paper, is the Brazilian
translation from 1994.
Key words: Marsilius of Padua, political philosophy, 14th century, power.
O tema do presente artigo é o conceito de poder
na filosofia política de Marsílio de Pádua (12751343), político e jurista que, ao aderir ao partido dos
gibelinos, cerrou fileiras ao lado daqueles que
lutavam contra as pretensões papais de domínio
sobre o poder temporal. Sua mais importante obra é
o Defensor pacis (O Defensor da Paz) de 1324. Nela o
autor formulou sua teoria de poder sustentando um
argumento que prescindia do direito divino. Para
ele, a sustentação do poder é a soberania do povo.
Devido a isso, é considerado precursor dos
modernos. Sua passagem pela Universidade de Paris,
onde começou a ensinar em 1310 e exerceu o cargo
de reitor no ano de 1313, além de seu apoio ao
imperador Luís IV, da Baviera (imperador de 1314 a
1347), rendeu-lhe perseguição e acusação de heresia
Acta Scientiarum. Human and Social Sciences
(Frölich, 1987: 104). Sua visão de mundo deve,
portanto, ser sempre considerada em função da
época em que ele viveu e das questões políticas que
encarou. Marsílio de Pádua testemunhou parte do
cativeiro de Babilônia da Igreja (1309-1376) período em que a sede do papado foi transferida para
Avinhão, no sul da França, onde sofreu fortíssima
influência político-administrativa dos reis de
França.1 O século XIV foi um período de
turbulentas relações entre o papado, os reis e
imperadores. E foi em meio ao clima político tenso
entre os governos civis e a cúpula da Igreja que
1
Veja-se ARNALDI, G. Igreja e papado. In: LE GOFF, J.;
SCHMITT, J. C. Dicionário Temático do Ocidente Medieval, v. I,
p. 567-589, especialmente p. 584-587.
Maringá, v. 25, no. 2, p. 267-276, 2003
268
Arnaut de Toledo e Razente Camparotto
Marsílio de Pádua construiu sua filosofia política. As
tensas relações entre o Imperador Luís IV, do Sacro
Império Romano Germânico e o papado,
especialmente no período do pontificado do papa
João XXII (Fischer-Wollpert, 1991: 107-108)2 na
disputa pela administração ou domínio de terras,3
contribuiu, certamente, para a formação da visão
política antipontifical de Marsílio de Pádua. A
disputa não era novidade, porém, eram diferentes os
tempos que viam nascer justificativas como as de
Marsílio de Pádua, claramente civis, para oferecer
sustentabilidade teórica ao poder dos governantes
(reis ou imperadores).
Nossa análise do conceito de poder na filosofia
política de Marsílio de Pádua parte de sua principal
obra, Defensor pacis (1324). Ela é dividida em três
partes e a primeira parte contém sua filosofia política
propriamente dita. Segue-se a segunda, que, além de
seu conteúdo político, revela as concepções
eclesiológicas de Marsílio de Pádua. Ambas as partes
são retomadas na terceira e última: a conclusão.
Inicialmente, o pensador paduano procurou
demonstrar que o poder somente atuaria em uma
sociedade política consolidada. Desse modo, quando
a comunidade civil evoluísse das formas imperfeitas
para as formas mais aperfeiçoadas, o poder adquiriria
substrato para seu exercício jurisdicional. Desse
modo, o poder teria seu exercício sob a condição de
formas políticas perfeitas, isto é, institucionalizadas,
para o seu controle e eficácia. Conforme Marsílio de
Pádua, essa perfeição, à semelhança da natureza,
seria resultado de um processo evolutivo racional de
organização das partes em relação ao todo. Então,
percebe-se que o poder não tem condições de atuar
em benefício do homem a partir de indivíduos
isolados, pois, de acordo com o filósofo paduano:
O ser humano, na maioria das vezes, está mais inclinado a
fazer o mal impelido ou pelo amor ou pelo ódio ou pela
cobiça ou sob pressão de súplicas ou ainda na esperança de
vir a gozar de um beneficio ou prazer qualquer4.
O poder, atuando coletivamente, deveria
controlar essa inclinação maléfica do homem. A lei
humana, por meio do poder contido em sua
2
3
4
Trata-se de Jacques Duèse, eleito papa em 07 de agosto de
1316 por um Colégio, no qual, 17 dos 24 cardeais eram
franceses, e os demais, italianos. Seu pontificado durou até sua
morte em 4 de dezembro de 1334, quando tinha 89 anos e foi
fortemente marcado pelas disputas e guerras que protagonizou.
Outras marcas distintivas de seu pontificado foram: o nepotismo
e o aumento da presença francesa no colégio cardinalício.
Cf: DUFY, E. Santos e pecadores. p. 123-125. Veja-se também:
COLLINS, M.; PRICE, M. A. História do cristianismo. p. 118-119,
2000.
MARSÍLIO DE PÁDUA. O Defensor da paz, Primeira parte,
Capítulo XVI, parágrafo 5. Doravante indicado da seguinte
forma: DP, seguido da parte (I, II ou III), do capítulo, ou
capítulos, e do parágrafo, quando necessário, 1994.
Acta Scientiarum. Human and Social Sciences
essência, controla os excessos da vontade e da razão
humanas. Pode-se constatar que a vontade e a razão
humanas possuem excessos em seus mecanismos em
virtude da supramencionada inclinação maléfica da
natureza imperfeita do homem. Nota-se,
inusitadamente, que a mesma razão que concebe a
lei é controlada por esta em seus excessos. Percebese nessa relação entre lei e poder um paradoxo, pois
a mesma vontade que constitui o poder na lei
também é controlada pela mesma lei. Como pode
haver controle através de um poder originalmente
eivado de excessos? Assim, o problema da filosofia
política marsiliana está na própria natureza humana.
Marsílio de Pádua tentou resolver esse problema a
partir da superioridade numérica e da qualidade de
razões a serviço do processo legislativo, numa
coletividade maior: a sociedade civil. Por isso,
Marsílio de Pádua afirmou que “a lei é um
enunciado ou princípio que procede duma certa
prudência e da inteligência política”.5
Pode-se perceber que o poder, na filosofia
política marsiliana, deveria estar a serviço da paz e da
sobrevivência do homem na comunidade civil.
Conforme Marsílio de Pádua, o sentimento de
caridade sobrenatural e a cooperação entre os
homens viabilizariam a vida em sociedade. Kölmel
afirma que a filosofia política marsiliana apresenta o
homem exclusivamente em sua dimensão social6.
Assim, o exercício do poder seria aperfeiçoado pelas
relações de cooperação social. O filósofo paduano
entendia que uma pluralidade de legisladores
escolhidos proporciona uma superioridade numérica
ou quantitativa e qualitativa de experiências e
inteligências a serviço do poder. Marsílio de Pádua
salientou que “a lei é um olho constituído por
inúmeros olhos”.7 Pode-se notar que a cooperação
ou ajuda mútua entre os cidadãos aperfeiçoaria o
devido controle do exercício do poder jurisdicional,
que atuaria circunscrito pelas leis elaboradas a partir
da cooperação de várias inteligências políticas no
processo legislativo.
Pode-se perceber que a razão, sob a forma de
inteligência política, por si só não seria suficiente
enquanto processo legislativo. Sob essa perspectiva,
o poder não seria controlado somente pela razão ou
pela prudência política. Seu exercício também é
relacionado às virtudes como a justiça e a eqüidade,
por exemplo. Com base nisso, não bastaria o
controle racional do poder, mas, seria necessário que
este atuasse no âmbito da justiça requerida. Por isso,
5
6
7
Idem, ibidem I, X, § 4
KÖLMEL, W. Universitas civium et fidelium: kriterien der
sozialtheorie des Marsilius von Padova. In: Medioevo. p.70.
MARSÍLIO DE PÁDUA. DP I, XI, § 3.
Maringá, v. 25, no. 2, p. 267-276, 2003
O conceito de poder na filosofia política de Marsílio de Pádua
Marsílio de Pádua demonstrou a importância da lei
cristã ou evangélica que, segundo ele, imprimiria
justiça e bondade aos atos humanos, no mundo
temporal. Marsílio de Pádua constatou que as
religiões seriam como leis que contribuiriam para o
aperfeiçoamento dos atos humanos que já estão
normatizados pela lei humana ou civil. Assim, as
concepções extraídas das virtudes da religião como a
bondade, o amor fraternal e a justiça colaborariam
no sentido de propiciar o exercício de um poder
político temperado e eqüitativo. Gilson, a esse
respeito, observa que, na filosofia política marsiliana,
“os sacerdotes existem para ensinar o Evangelho,
primeiro tendo em vista a salvação eterna e,
acessoriamente, para facilitar a tarefa da polícia”
(Gilson, 1998: 862).
Pode-se constatar que na filosofia política
marsiliana, o exercício jurisdicional do poder não se
limitaria ao homem, considerado individualmente.
Assim, a formação da comunidade civil seria
condição para o exercício do poder. Marsílio de
Pádua reforçou essa concepção, quando indicou a
inclinação natural do homem para a plenitude de sua
suficiência na vida em sociedade. Desse modo, o
poder ou a autoridade do governante, exercido no
controle racional das leis, deveria dispor e organizar
racionalmente as várias funções e aptidões dos
grupos sociais, para proporcionar e suprir a
suficiência e a autonomia do reino ou da sociedade
civil. O poder, nessas bases teóricas, deveria estar a
serviço da sobrevivência humana diante de suas
necessidades materiais. Nessas circunstâncias, a
devida existência humana no contexto de um grupo
social dependeria de condições materiais que
proviriam dos frutos do trabalho dos diversos grupos
sociais reciprocamente considerados. Assim, o poder
encontraria substrato em uma estrutura material de
atuação na sociedade civil, em sua própria atividade
ordenadora dessa mesma estrutura. Pode-se
perceber que aqui a soberania de um Estado,
também depende de sua autonomia e independência
econômica. Nessa perspectiva, as características
desse modelo de poder civil estariam consoantes ao
imanentismo, ou seja, tal poder possui mecanismos
intrínsecos e independentes. Marsílio de Pádua
buscou, a partir dessa idéia, enfatizar a autonomia de
um reino soberano e independente.
Então, as partes ou classes sociais, segundo o
pensador paduano, são organizadas conforme a razão
e o motivo de sua instituição para consolidar a
comunidade civil perfeita. A razão inerente à lei
agregada ao poder atua no planejamento e na
composição dos grupos sociais que estão em situação
de mútua dependência. Marsílio de Pádua, inspirado
em Aristóteles, expressou essa racionalidade da
organização civil ao atentar para a relação entre o
todo (comunidade civil) e as partes (grupos sociais)
ao definir as causas das origens diversas dos grupos
sociais. Desse modo, a causa material consiste na
própria humanidade. As causas formais são os
hábitos considerados sob as formas das pessoas que
os possuem. Essas causas formais, destacou o
pensador paduano, são os preceitos que a causa
eficiente determinou ou outorgou às pessoas e suas
determinadas funções.8 O pensador paduano
comparou essa organização civil racional à razão dos
mecanismos da natureza que oferece autonomia e
sobrevivência aos organismos em geral.
A origem ou causa remota do poder, segundo
Marsílio de Pádua, é Deus. Constata-se aqui a
influência da doutrina de São Paulo, segundo a qual
todo poder vem de Deus (Nisi potestas non a Deo est).
Assim, na filosofia política marsiliana, o poder
presente na lei divina, por si, já seria expressão do
poder de Deus. No entanto, percebe-se que o poder
contido na lei humana provém da somatória das
vontades conscientes e individuais da totalidade dos
cidadãos, por meio de um consenso. Apesar disso, a
causa final ou remota dos poderes inseridos tanto na
lei divina quanto na lei humana é Deus. Essa
afirmação explica a presença da hierarquia na
filosofia política marsiliana cujo ápice da
manifestação do poder é Deus.9 Conforme Marsílio
de Pádua, Deus, a partir do livre-arbítrio divino,
concedeu liberdade à razão humana para, por
intermédio de seu livre-arbítrio, estabelecer seus
governantes. Pode-se afirmar que Deus, conferindo
autonomia e liberdade de iniciativa às inteligências
humanas para o estabelecimento dos governos,
proporcionou-lhes autoridade e através da liberdade
concedida às suas vontades, o poder de governar.
Torna-se constatável que qualquer ingerência
perniciosa no livre-arbítrio, concedido à razão e à
vontade dos homens por Deus para o
estabelecimento
dos
governos
temporais,
considerar-se-ia uma intromissão e uma ofensa ao
próprio livre-arbítrio divino. Percebe-se que
Marsílio de Pádua estabeleceu uma conexão entre o
livre-arbítrio divino e o livre-arbítrio humano. A
concessão divina do poder e da liberdade de
governar, no âmbito do livre-arbítrio humano, é o
limiar exato da laicização da filosofia política do
pensador paduano. O pensador paduano afirmou
que Deus “estabelece os governos por meio da razão
8
9
Acta Scientiarum. Human and Social Sciences
269
MARSÍLIO DE PÁDUA. DP I, VII.
Idem, ibidem I, IX, § 2.
Maringá, v. 25, no. 2, p. 267-276, 2003
270
Arnaut de Toledo e Razente Camparotto
humana, à qual conferiu liberdade para efetivar tal
instituição”.10
De acordo com as analogias desenvolvidas pelo
pensador paduano, o sentir do conjunto dos
cidadãos agiria como princípio ou como causa
motora, através da vontade consensual dos cidadãos,
imprimindo força ou lei e poder ou autoridade no
primeiro e mais nobre órgão do organismo social, a
classe governante. O poder ou autoridade é
considerado o calor ou energia global proveniente da
soma de todas as vontades dos cidadãos, ordenadas
num consenso. Esse poder ou autoridade contida na
lei consiste no próprio poder coercivo da mesma.
Tal consenso de vontades, na visão de Barani, não é
somente um procedimento de assembléia
participativa para estatuir leis, e sim uma
transferência de poder à “parte preponderante”
(valentior pars), equiparada ao povo (Barani, 1979:
266). Pode-se notar que esse poder ou jurisdição
coerciva é a razão da existência da lei. É possível
constatar, na filosofia política marsiliana, que o
poder e a lei possuem uma interdependência
fundamental. Desse modo, a lei não existe sem
poder e este não tem razão de existir sem a lei. Essa
dependência mútua entre lei e poder conduz a um
paradoxo. Como pode ser o poder condição de
existência da lei que é, ao mesmo tempo, condição
de existência do poder? Percebe-se um esforço
teórico de Marsílio de Pádua na busca de um
imanentismo político, onde as causas e as origens
dos instrumentos de exercícios do poder são
buscadas neles mesmos. Assim, o pensador paduano,
por meio desse modelo político imanentista,
contrariou os partidários da teocracia pontifical que
teorizavam um modelo político transcendentalista,
sob o manto da teologia. Esse veemente ataque do
filósofo paduano em busca de uma sociedade política
autônoma, porém, possui um paradoxo originário da
própria contrariedade da natureza humana, incapaz
de formar um poder totalmente autônomo e
independente em razão de sua imperfeição original.
Segundo Marsílio de Pádua:
Na verdade, um poder não é qualificado como lícito ou
ilícito, e a diferença que há entre ambos não pode ser notada
senão através de atos lícitos ou ilícitos dele decorrentes ou que
podem acontecer por seu intermédio11.
Esse modelo político autônomo e imanentista,
teorizado por Marsílio de Pádua, fora reflexo de sua
formação escolástica. A lógica aristotélica aplicada à
filosofia política marsiliana propiciou a formação de
um sistema político auto-suficiente, que se justificou
por razões próprias e independentes. Esse sistema
político hermético propiciou a formação da razão
histórica de uma sociedade civil com bases teóricas
próprias. Pode-se constatar que uma conseqüência
dessa razão própria do sistema político escolástico é a
evidência de uma “razão de Estado” em Marsílio de
Pádua. De Sousa identificou em Marsílio de Pádua,
na obra Defensor pacis, a antecipação do princípio da
razão de Estado12. Marsílio de Pádua, ao comparar
esse sistema lógico da sociedade civil a um
organismo autônomo, afirmou que as ações nesse
modelo orgânico e suficiente de comunidade civil
não são isoladas, pois causam efeitos em todo o
organismo social e civil. A ação política e, portanto,
pública, deve estar voltada para o “todo social”. Por
isso, ela requer a somatória de vontades, fruto do
consenso do conjunto da população. Percebe-se que
essa somatória de vontades se configura na ação por
meio da unidade quantitativa da ação, que é quesito
civil para se considerar um governo unitário ou
detentor da unidade numérica. Ainda segundo o
filósofo paduano, qualquer ação do príncipe
representa a ação de toda a comunidade civil.13
A partir das analogias feitas pelo filósofo
paduano, o poder ou calor consiste em uma energia
que se propaga desordenadamente, e deve ser
controlada pela lei humana.14 Nessa perspectiva, a lei
humana regula os atos voluntários, pelos quais esse
poder da lei é originado do impulso ou energia da
própria vontade humana e imperfeita em sua
natureza, e que se manifesta em relação a uma
pessoa ou objeto exterior. Tais atos humanos
voluntários, segundo Marsílio de Pádua, são
divididos em controlados e não-controlados. Os atos
controlados transitivos ocorrem a partir de
movimentos de órgãos externos. Esses atos, na
filosofia política marsiliana, são importantes para a
compreensão do poder, pois ele é exercido através da
exteriorização desses atos, como a posse, por
exemplo. Então o poder contido na lei deve também
se exteriorizar para controlar com eficácia os atos
humanos voluntários controlados transitivos. Se a
unidade quantitativa da ação é obtida pela soma das
vontades humanas da parte preponderante, sua
exteriorização só pode se efetivar através de atos
humanos controlados transitivos, pois sua origem é
uma vontade consensual de natureza humana.
Trata-se, portanto, de um poder genuinamente
humano proveniente da natureza humana e, num
plano coletivo, de um poder civil. Percebe-se que a
12
10
11
Idem, ibidem I, IX, § 2.
MARSÍLIO DE PÁDUA. DP II, XIII, § 7.
Acta Scientiarum. Human and Social Sciences
13
14
Veja-se: Razão de Estado. In: DE SOUSA, J. P. G. et al.
Dicionário de Política. p. 451.
MARSÍLIO DE PÁDUA. DP I, XV, § 4.
Idem, ibidem I, XV, § 5 e seguintes.
Maringá, v. 25, no. 2, p. 267-276, 2003
O conceito de poder na filosofia política de Marsílio de Pádua
valorização do indivíduo, enquanto ser ou
organismo que tem o poder de exteriorizar atos a
partir de sua vontade, e se projeta no modelo
político de sociedade civil que, a partir de uma
associação de homens (de vontades), também
exterioriza seu poder por meio de atos. Na filosofia
política marsiliana, a esfera do agir está voltada para
o “público”, pois “a esfera do agir, de acordo com
sua finalidade requerida, consiste em prover a
suficiência comum à maior parte dos cidadãos nesta
vida”.15 Já no tocante à lei divina, ela pode
regulamentar tanto os atos humanos controlados
transitivos quanto os imanentes, contribuindo para a
paz nos regimes civis de governo.16
Percebe-se que o poder do legislador humano,
que parte das vontades conscientes do conjunto dos
cidadãos, é legítimo em seu exercício. Então, podese notar que a legitimidade presente na esfera do
poder divino está também presente na esfera
temporal ou humana do exercício de poder. A causa
de tal legitimidade está na liberdade concedida por
Deus aos homens para o estabelecimento dos
governos temporais com reflexo no consenso
popular de transferência de poder para o legislador
humano. Essa legitimidade dos governos temporais
de origem divina sugere que a medida da liberdade
da razão legiferante nos planos divino e humano, por
possuírem Deus como causa remota, evidenciam
alguma inter-relação. O filósofo paduano, na obra
Defensor pacis, propõe uma relação ao menos indireta
entre lei humana e a lei divina, o ápice da hierarquia
das leis. Entre essas leis, indicou uma espécie de
direito natural, que é conhecido pelos povos de todo
o mundo e são considerados direitos naturais por
metalepse. Quanto à relação entre as leis humana e
divina, o pensador paduano afirmou:
Todavia, sempre se deve considerar algo lícito ou ilícito, antes
segundo o que estabelece a lei Divina do que a humana,
especialmente nos casos em que há divergência entre ambas
quanto a seus preceitos, proibições e permissões17.
Pode-se dizer que o poder somente deve existir
com a lei, pois é a razão livre concedida por Deus
para ditar leis que proporcionam o exercício político
do poder, imprimindo a autoridade legítima dessa
liberdade de origem divina ao próprio poder
governante, operado nos moldes dessa mesma lei. A
partir dessa concessão divina, Marsílio de Pádua
acentuou o caráter racional, autônomo e, portanto,
civil, do poder na sociedade política. Pode-se dizer
que a legitimidade do poder de origem divina que se
15
16
17
Idem, ibidem I, XII, § 7.
Idem, ibidem II, VIII e IX.
Idem, ibidem II, XII, § 9.
Acta Scientiarum. Human and Social Sciences
271
localiza no ápice da hierarquia das leis consiste, em
última instância, numa ligação entre o homem e
Deus concebida de modo especial pelo cristão na
Idade Média. A esse respeito, De Libera afirma:
Percebe-se aqui que a atitude de alguns modernos que
denunciam nas burocracias autoritárias um respeito quase
religioso pela hierarquia, subestimam e desconhecem o
próprio alcance da noção que eles utilizam: a idéia de
hierarquia é inicialmente religiosa, depois, com o
Cristianismo, eclesiástica, antes de ser política. A visão
hierárquica da ordem política é a politização de uma
estrutura originariamente religiosa, não a sacralização de
uma estrutura originariamente política (De Libera, 1998:
455-456).
A hierarquia, de origem religiosa, influenciou a
política de Marsílio de Pádua. O universo cultural
do cristão medieval compreendeu como caráter
sagrado o papel atribuído aos reis. Os reis, segundo
relatos medievais, curavam afecções ganglionares
(escrófulas) com um simples toque e um sinal da
cruz. Felipe IV, o Belo, rei da França, mesmo
possuindo um grande aparato jurídico-político em
seu governo, não se dispensou de praticar tais rituais
de cura, demonstrando uma suposta manifestação de
um poder religioso na consolidação do seu poder
político.18 Marsílio de Pádua, definitivamente, não
afirmou a existência de um poder sagrado ou divino
nos reis, porém, imbuído dessa cultura do cristão
medieval, valorizou a figura do imperador. Tal
compreensão pode ser relacionada com a valorização
do Novo Testamento por Marsílio de Pádua em
detrimento da hierocracia pontifical que utilizou o
Antigo Testamento para legitimar o poder do Sumo
Pontífice, pois pode-se perceber que, a partir da
Nova Lei, Deus se humanizou em Cristo para estar
entre os homens. Assim, a ligação entre o homem
medieval e Deus, através da hierarquia, evidenciouse com mais força na filosofia política. Acerca da
dignidade dos reis, Marsílio de Pádua afirmou que
“considerando, pois, o fato de que Cristo não foi
nem é rei e senhor tanto do imperador romano
quanto de qualquer outro monarca ou príncipe, mas
bem mais seu igual”.19
O poder coercivo, na filosofia política marsiliana,
ganha proporções globais de atuação no organismo
social quando se exterioriza e se irradia por meio da
generalidade da lei apoiada no próprio aparato
militar e coercivo. Nessas proporções, o filósofo
paduano denominou o poder de “espírito” que,
através de uma “unidade quantitativa de ação”, age
em todo o organismo civil ao ser requerido o seu
18
19
Cf: BLOCH, M. Os Reis Taumaturgos, passim, 1993.
MARSÍLIO DE PÁDUA. DP I, XIX, § 10.
Maringá, v. 25, no. 2, p. 267-276, 2003
272
exercício. No entanto, há casos excepcionais em que
a amplitude rigorosa da lei não prevê determinadas
situações concretas, constituindo uma omissão ou
lacuna da lei. Sob essas circunstâncias, percebe-se
que o poder ou a autoridade delegada ao governante
perde sua forma de controle ou limite de atuação.
Assim, na ausência da força universal de causalidade
da lei, o monarca detém todo esse poder originado
da vontade consensual dos súditos, ao seu livrearbítrio. Nessa situação excepcionalíssima, o
governante prudente e justo deve temperar a atuação
do poder disponível à sua discrição. Trata-se do uso
da “eqüidade” ou “epiquéia” que, conforme Marsílio
de Pádua, é uma interpretação benévola e flexível
que mitiga a omissão ou amplitude rigorosa das leis.
Segundo o filósofo paduano, o conceito de
justiça nas leis é o que serve melhor ao interesse da
cidade ou sociedade civil e aos grupos sociais, mais
especificamente, ao conjunto dos cidadãos. Logo,
constata-se que o poder deve ser exercido de acordo
com as leis elaboradas para propiciar o bem comum
a todos. O conceito de lei, para Marsílio de Pádua,
tomado em si mesmo, ao revelar a medida exata do
justo e do útil para a sociedade civil, é chamado de
doutrina ou ciência do direito ou ainda “ciência
acerca dos atos civis”. Esse mesmo conceito, ao
estipular ou impor um preceito coercivo ou uma
pena específica, denomina-se lei no sentido mais
estrito e correto. De acordo com o pensador
paduano, a necessidade de legislar está na realização
correta dos julgamentos civis preservados, na medida
do possível, das imperfeições dos atos humanos
decorrentes dos excessos da inteligência e da
vontade. Sob essa ótica, o juiz deve se condicionar ao
preceito determinado na lei, respeitando a segurança
do princípio da legalidade para os governos
temporais.
Esse princípio da legalidade está apoiado numa
pluralidade de legisladores eleitos e dotados de
representatividade perante a parte preponderante.
Percebe-se que Marsílio de Pádua tentou resolver o
mencionado paradoxo da natureza humana em sua
filosofia, a partir da quantidade e da qualidade de
inteligências envolvidas no governo temporal. Um
reflexo disso é a importância somente conferida à
maioria (parte preponderante) da totalidade do
conjunto dos cidadãos. Sendo assim, se uma minoria
legislasse em proveito próprio, estaria ferindo a
liberdade dos demais cidadãos. Segundo o filósofo
paduano, a liberdade dos civis está em obedecer a
uma norma constituída e estabelecida pelo próprio
agente que a ela se deve submeter. Essa reflexão
insere Marsílio de Pádua nas tendências do
contratualismo medieval, que culminou em teorias
Arnaut de Toledo e Razente Camparotto
constitucionalistas. A concepção de legislador
humano suscita ambigüidades na obra Defensor pacis.
Apesar de o governo ser uno, de a jurisdição ser una,
há uma composição pluralista de membros no
exercício do poder que legislam, julgam e executam
decisões na sociedade civil. De Souza apresenta uma
solução para essa dúvida:
À primeira vista, os capítulos iniciais do Defensor pacis
sugerem que cada um desses poderes é exercido por uma
pessoa diferente, mas na segunda parte daquela obra, no
Defensor minor e no De Iurisdictione, percebe-se claramente
que o Legislator Humanus-Princeps são a mesma pessoa.20
Marsílio de Pádua, em que pese haver teorizado a
soberania de um reino através da unidade numérica,
é reconhecido como um “precursor da separação dos
poderes” (Bonavides, 1992: 148). Há quem defenda
ainda que “o paduano é, entre outros, o primeiro
escritor que distinguiu o poder executivo do poder
legislativo” (Mosca, 1980: 93). Conforme foi
mencionado por Marsílio de Pádua, a lei,
proporcionando uma sociedade política temperada,
está livre da malícia e da ignorância humanas, o que
é imprescindível aos julgamentos civis. Desse modo,
as causas ou objetivos precípuos da lei consistem em
concorrer para a justiça e o bem comum, promover a
organização social e proporcionar segurança e
estabilidade governamental à sociedade política. O
cumprimento da lei, segundo o pensador paduano, é
possível mediante uma força coerciva exercida por
um grupo militar ou defensivo, cuja função primeira
deve estar a serviço da execução do poder. Então, o
poder, através desse aparato militar, exterioriza-se
por ocasião da transgressão da lei. Isso decorre da
necessidade do controle efetivo dos atos humanos
controlados transitivos. Quanto ao caráter físico e
militar da exteriorização do poder, o pensador
paduano esclareceu que há “um grupo militar ou
defensivo, ao qual muitas dentre as artes
“mecânicas” [grifo nosso] prestam serviço.”21
O filósofo paduano notou que a religião pode ser
considerada lei ao prescrever uma norma e a
respectiva punição no outro mundo. A retificação, a
interpretação e a supressão das leis humanas
competem somente à autoridade do legislador
humano. A “pessoa” que detém o poder de fazer
cumprir as leis é o conjunto dos cidadãos ou sua
parte preponderante. Assim, é essa “pessoa” que
dispõe da força coerciva contra transgressores da
lei.22 A lei, entendeu o filósofo paduano, tempera o
20
21
22
Acta Scientiarum. Human and Social Sciences
DE SOUZA, J. A. de C. R. Marsílio de Pádua e o “De
iurisdictione imperatoris in causis matrimonialibus”. In:
Leopoldianum. p. 159-160, 1984.
MARSÍLIO DE PÁDUA. DP I, V, § 8.
Idem, ibidem I, XII, § 5.
Maringá, v. 25, no. 2, p. 267-276, 2003
O conceito de poder na filosofia política de Marsílio de Pádua
273
poder e assegura liberdade e vida suficiente a todos
os grupos sociais organizados na sociedade civil.
Desse modo, Marsílio de Pádua aconselhou que o
príncipe deve estar atento a esse detalhe, pois suas
virtudes no cumprimento da lei despertam a
reverência e a observância das normas jurídicas pelos
súditos. Nesse aspecto, sendo o príncipe faltoso na
observância da lei ou tirânico em suas ações, pode
vir o monarca a ser deposto pelo conjunto da
população.
Pode-se afirmar que o respeito à lei consiste
numa espécie de educação cívica, uma educação a
serviço do poder, na teoria política marsiliana. Seu
poder não se restringe à exteriorização da força física,
mas preconiza uma educação baseada em preceitos
morais numa comunidade civil pela paz. A lei
possui, nesse sentido, um enunciado de
conhecimento, de inteligência política. Infere-se
disso a atenção disponibilizada pelo pensador
paduano ao processo legislativo. A começar pela
prudência e inteligência requerida pela classe social
dos legisladores. Quando Marsílio de Pádua fez uma
comparação figurada entre a lei e um “olho
constituído de inúmeros olhos”, interpreta-se que o
olho, segundo o filósofo paduano, é um dos órgãos
mais nobres do corpo porque é grande responsável
pela recepção do conhecimento. A nobreza do olho
está em sua capacidade de apreender fatos e
conhecimentos. Acerca disso, o pensador paduano
observou que “as imagens ou simulacros e as
espécies das coisas que, de certo modo, são para a
alma a base para o conhecimento”23.
Percebe-se que o conhecimento acerca do que é
justo e útil para a sociedade civil redunda no próprio
conhecimento da lei, na filosofia política marsiliana.
Na segunda parte da obra Defensor pacis, Marsílio de
Pádua denotou a importância desse aprendizado,
quando disse que os membros da Igreja deveriam ser
punidos com mais severidade, pois já conhecem e
professam essa educação nas virtudes das leis da
religião. Outro indício dessa importante função
educadora do poder, constata-se na importância que
o filósofo paduano atribuiu às disciplinas operativas
em sua filosofia política. Remotti identifica essa
tendência na filosofia política marsiliana, ao
evidenciar nela um modelo pedagógico destinado a
formar uma identidade pessoal, social e histórica dos
cidadãos, própria do contratualismo. Remotti
ressalta que, no Defensor pacis, a lei não provém
somente da autoridade, pois é discutida e aprovada
em assembléia pelos que a ela estão obrigados.24
De acordo com Marsílio de Pádua, a lei é perfeita
quando é constituída na dimensão exata do justo e
do útil25. A causa eficiente da lei é o legislador, ao
qual também compete a escolha do governante. Essa
lei, conforme o filósofo paduano, pode estar sob a
forma de estatutos, costumes, normas, plebiscitos e
decretais. O legislador humano, causa eficiente,
primeira e específica da lei, é o povo, entendido
como o conjunto dos cidadãos ou sua parte
preponderante. O legislador humano é eleito pela
vontade externada verbalmente no seio da
assembléia geral. A parte preponderante é a maior
em quantidade e qualidade ao mesmo tempo. Em
alguns momentos necessários, a quantidade
(maioria) prepondera, e em outros, a qualidade
(individualismo) dos cidadãos é essencial. Os
cidadãos podem delegar a promulgação da lei a uma
ou muitas pessoas que, desde então, são legisladores
de modo relativo e representativo sob a autoridade e
poder do primeiro legislador ou povo, pois “na obra
de Marsílio de Pádua, Defensor pacis, surgida em
1324, aparece uma noção unitária e ampla de povo”
(Dallari, 1995: 83).
O estabelecimento de um governo, conforme o
pensador paduano, deve ocorrer com base no
direito, na razão e na eleição (vontade). Pode-se
notar que a eleição é o próprio corolário do livrearbítrio humano legitimado pelo livre-arbítrio
divino. A eleição, segundo Marsílio de Pádua,
“nunca deixará de existir tanto quanto os seres
humanos”26. Assim, a eleição é resultado da
participação dos cidadãos no governo da sociedade
civil. Essa participação ocorre através da lei que deve
ser conhecida, pois, dada a sua publicidade, ninguém
pode se excusar de cumpri-la alegando seu
desconhecimento. Isso revela a importância
educativa da lei na cidadania dos governos civis. O
conceito de cidadão na filosofia política marsiliana
exclui, sob certos critérios, crianças, escravos,
estrangeiros e mulheres que não participam do
governo.27 No entanto, conforme Vilani, “a Idade
Média conheceu teorias de governo genuinamente
populares, mas lá não encontramos uma concepção
de cidadania como a entendemos hoje” (Vilani,
1995: 85).
A “parte preponderante” ignora os protestos da
minoria em determinadas circunstâncias, em vista de
um propósito maior e mais importante: o bem
23
25
24
Idem, ibidem II, II, § 5.
REMOTTI, R. Il Paradigma del diritto e le modalità dell’intervento
pedagogico.
Disponível
em:
<http://www.web.tiscali.it/
Acta Scientiarum. Human and Social Sciences
26
27
mediazionepedagogica/anno_01/numero_03/Remotti/par01.htm.
> Acesso em: 14 Jun. de 2002.
MARSÍLIO DE PÁDUA. DP I, X, § 5.
MARSÍLIO DE PÁDUA. DP I, IX, § 7.
Idem, ibidem I, XII, § 4.
Maringá, v. 25, no. 2, p. 267-276, 2003
274
Arnaut de Toledo e Razente Camparotto
comum28. Floriano Jonas César define o bem
comum na filosofia política marsiliana:
Devemos entender corretamente, porém, o que é este bem
comum. Ele diz respeito, primeiro, à vida suficiente
presente, à felicidade civil que, dentre todos os desejos
possíveis ao homem neste século, é vista como o melhor e o
[fim] último dos atos humanos. Diz respeito, porém,
também à vida suficiente eterna, que os cidadãos também
desejam e buscam (César, 1994: 73).
O filósofo paduano escolheu um tipo de governo
temperado que julgou ser o mais perfeito: a
monarquia real. A partir dessa escolha, Marsílio de
Pádua dedicou a obra Defensor pacis a Luís IV, da
Baviera. O monarca, segundo o pensador paduano,
deve atuar através do exercício do poder restrito e
circunscrito das leis. O poder deve ser temperado e
controlado também pelo princípio da legalidade. O
filósofo paduano teorizou o governo representativo
de um só. Conforme Marsílio de Pádua, vários
governantes legitimariam várias sentenças causando
um caos político e gerando prejuízos à cidade, como
lutas, sedições, conflitos e facciosismos. O
“mandatário supremo”, porém, deve governar nos
limites da lei, do justo e do útil sob pena de ser
deposto pela população. Essa unidade de comando
está relacionada à “unidade quantitativa da ação” e à
unidade numérica do Reino. Segundo Marsílio de
Pádua, não se trata de uma unidade absoluta, nem de
uma predicação formal de uma unidade numérica
qualquer, tampouco uma predicação de algum
conceito universal de unidade29. Marsílio de Pádua,
ao conceituar a unidade numérica de um reino,
utilizou-se de um instrumento caro aos escolásticos,
a abstração. Percebe-se que o pensador paduano
abstraiu o caráter numérico do conceito de unidade
de um reino, preservando as individualidades da
parte preponderante, na medida em que não
teorizou um “conceito universal de unidade”. Assim,
Marsílio de Pádua, a respeito da unidade numérica,
reiterou que “isto não significa, porém, que elas
sejam uma pessoa formalmente, sob determinado
aspecto, mas de fato o são, consideradas
numericamente”.30
A partir dessa abstração do conceito de poder,
pode-se perceber algumas formas de seu exercício.
Uma manifestação perceptível dessa abstração da
unidade do poder é o contratualismo31. Outro
conceito tratado nesse modelo de poder civil foi o de
soberania, caracterizada como o poder proveniente
28
29
30
31
MARSÍLIO DE PÁDUA. DP I, XII, § 5.
MARSÍLIO DE PÁDUA. DP I, XVII, § 11.
Idem, ibidem I, XVII, § 11.
Veja-se Contratualismo, In: BOBBIO, N. et al. Dicionário de
Política, 1992.
Acta Scientiarum. Human and Social Sciences
do conjunto dos cidadãos e que impera acima de
cada um deles individualmente. É a chamada
“soberania popular”, ou seja, o poder ou autoridade
que emana do povo. Esta unidade de poder soberano
na obra Defensor pacis, está vinculada a um reino
específico. O poder atua através da jurisdição num
determinado território. Outra manifestação da
abstração da unidade do poder civil é o conceito de
personalidade jurídica estatal. A unidade quantitativa
de ação a partir do conjunto dos cidadãos de um
reino influenciou, na gênese da chamada “vontade
do Estado”, ou seja, a vontade ordenada originária do
conjunto de vontades da parte preponderante. Esse
consenso de vontades imprime na sociedade política
ou reino um status de “pessoa” com capacidade
jurídica, possuindo direitos e deveres. O filósofo
paduano afirmou:
Trata-se efetivamente de uma unidade de ordem, não de
uma unidade absoluta, quer dizer, de muitos homens
considerados um ou de um conjunto de pessoas que afirma
constituir algo único quantitativamente. Isto não significa,
porém, que elas sejam uma pessoa formalmente, sob
determinado aspecto, mas de fato o são, consideradas em
relação a uma unidade relativa ao número, isto é, o governo
por quem são organizadas32.
Percebe-se que a teoria política de Marsílio de
Pádua, a partir de tais abstrações, é viabilizada
mediante os frutos da evolução racional das formas
mais imperfeitas para as mais perfeitas de associação
humana. Assim, essa evolução consiste num reflexo
do aprimoramento humano em atividades que
provêm da natureza e da arte. A organização da
cidade, segundo Marsílio de Pádua, está em função
do viver bem. Percebe-se mais uma vez que o poder
somente existe numa associação humana quando há
uma evolução das condições materiais e históricas
para a consolidação da comunidade civil. Tais
condições, através do poder, propiciam a paz e a
prosperidade da vida humana na sociedade civil. A
filosofia política marsiliana, ao teorizar o modelo
político do “reino”, agregou-lhe conceitos da
filosofia política de Aristóteles ao mesmo tempo em
que antecipou caracteres do Estado Moderno. Berti
nota que “a concepção marsiliana de Regnum vem a
se colocar como meio termo entre a doutrina
aristotélica da pólis e a idéia moderna de Estado”.33
A idéia de soberania popular somada à veemente
defesa da liberdade, suscitou em alguns estudiosos a
identificação de Marsílio de Pádua com idéias
democráticas da Modernidade Política. Tais idéias
foram defendidas por Marsílio de Pádua com
32
33
MARSÍLIO DE PÁDUA. DP I, XVII, § 11.
BERTI, E. Il “Regnum” di Marsilio tra la “polis” aristotelica e lo
“stato” moderno. Medioevo. p. 181, 1979.
Maringá, v. 25, no. 2, p. 267-276, 2003
O conceito de poder na filosofia política de Marsílio de Pádua
esperança e até um certo radicalismo. Seu modelo
supostamente considerado democrático chega a ser
interpretado como uma espécie de Estado totalitário.
Piaia, a esse respeito, observa na obra Defensor pacis o
absolutismo, conseqüência da transferência da
Plenitudo potestatis papal ao Legislator humanus e ao
imperador;
a
ampliação
ilimitada
do
intervencionismo estatal; o monismo jurídico; o
imanentismo que é reconduzido à distinção
averroística do dúplice fim do homem, um pessoal e
transcendente e um social. Essa concepção, segundo
Piaia, é próxima do Estado Ético, podendo constituir
um pressuposto filosófico do totalitarismo (Piaia,
1976: 364-365).34
Marsílio de Pádua finalizou sua teoria política
apresentada na obra Defensor pacis afirmando que,
sem a existência da sociedade civil, o homem
impedido de obter auto-suficiência, caminharia para
a sua própria destruição. O poder age no sentido
oposto a essa destruição, ou caos, organizando,
aperfeiçoando e consolidando os mecanismos de
sobrevivência do ser humano na sociedade civil.
Nesses moldes, o exercício do poder deve ser
efetivado de forma pacífica, pois, conforme Marsílio
de Pádua, com a ausência de paz e concórdia num
reino, não há unidade política, nem vida suficiente
aos cidadãos. E sem isso, não há que se falar em
soberania e muito menos em sociedade política.
Marsílio relembrou que a paz foi transmitida de
Jesus Cristo para seus apóstolos. Conforme o
pensador paduano, por meio da força e do amor,
anuncia-se a verdade, alcançando a paz nos regimes
civis. Desse modo, com o estabelecimento do poder
e da paz no âmbito de uma sociedade civil, há a
possibilidade da existência e consumação do maior
desejo do homem e fim último de suas ações nessa
vida: a “felicidade social”.
A reverberação das reflexões de Marsílio de
Pádua se faz sentir ainda hoje. A tematização da
discussão sobre as fontes do poder político na
sociedade ainda é polêmica. Poderíamos afastar a
influência religiosa das esferas do poder civil como
pretendia o autor? Parece que temos ainda um longo
caminho a percorrer, a começar pela análise das
origens do pensamento político moderno. Marsílio
de Pádua, sem sombra de dúvida, constituiu um
marco histórico dos primórdios da Modernidade
Política, sendo imprescindível a análise de sua
contribuição teórica diante dos problemas políticos
modernos. Buscar a solução desses problemas na
origem de suas discussões pode suscitar a descoberta
de novos desafios e até de prováveis soluções. O
34
PIAIA, G. Democrazia o Totalitarismo in Marsílio da Padova.
Medioevo. p. 364-365, 1976.
Acta Scientiarum. Human and Social Sciences
275
pensador paduano já trazia em suas reflexões, na
Idade Média, proposta de soluções para problemas
que persistem até hoje no cenário político nacional e
internacional.
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Received on March 12, 2003.
Accepted on September 25, 2003.
Maringá, v. 25, no. 2, p. 267-276, 2003
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