Arq Bras Cardiol volume 75, (nº 2), 2000 Soufen cols. Relato de eCaso Aneurisma apical e hipertrofia ventricular esquerda Aneurisma Apical e Hipertrofia Ventricular Esquerda Helena Nogueira Soufen, Clovis de Carvalho Frimm, Luiz Alberto Benvenuti, Charles Mady São Paulo, SP Mulher de 59 anos apresentou, após 16 anos de hipertensão arterial sistêmica controlada, acidente vascular encefálico transitório de origem embólica. O ecocardiograma e a ressonância nuclear magnética do coração evidenciaram hipertrofia biventricular grave e aneurisma apical com trombo. O aparecimento de um aneurisma apical na hipertrofia cardíaca, apesar de raro, foi descrito em pacientes com cardiomiopatia hipertrófica. Entretanto, nunca foi relatado na hipertensão arterial sistêmica. No presente caso, a falta de relação entre a severidade da hipertrofia e o nível da pressão arterial, bem como o desarranjo estrutural do miocárdio ao exame histológico da biópsia endomiocárdica, levaram ao diagnóstico de cardiomiopatia hipertrófica. A hipetrofia ventricular esquerda é uma adaptação do coração ao aumento de pós-carga que ocorre na hipertensão arterial sistêmica. Em alguns casos, porém, a presença e o grau da hipertrofia não correspondem à gravidade do quadro hipertensivo, o que já foi descrito em hipertensos idosos e em pacientes com feocromocitoma 1. Outros fatores, como o nível de pressão arterial, atividade de renina plasmática e catecolaminas circulantes, parecem relacionar-se ao grau de hipertrofia. É também possível, diante da alta prevalência da hipertensão na população, haver associação com cardiomiopatia hi– pertrófica em alguns pacientes 2. Apresentamos um caso de uma doente com hipertensão arterial moderada e evidência de importante hipertrofia, associada à presença de aneurisma apical do ventrículo esquerdo, complicação raramente encontrada na cardiomiopatia hipertrófica 3 e ainda não descrita de forma isolada na hipertensão arterial. Relato do caso Mulher de 59 anos, tabagista prévia com diagnóstico de hipertensão arterial sistêmica desde 1982, quando passou a fazer seguimento ambulatorial regular. Não apresentava história familiar de cardiopatia ou de morte súbita. Ao exame físico, observava-se pressão arterial de 160x95mmHg Instituto do Coração do Hospital das Clínicas - FMUSP Correspondência: Helena Nogueira Soufen – Incor - Unidade Clínica de Cardiopatias Gerais - Av. Dr. Enéas C. Aguiar, 44 - 05403-900 – São Paulo - SP Recebido para publicação em 27/8/99 Aceito em 29/12/99 e freqüência cardíaca de 76bpm. O íctus era palpável no 5º espaço intercostal esquerdo, linha hemiclavicular com impulsão aumentada. À ausculta, as bulhas cardíacas revelaram-se rítmicas e normofonéticas com sopro sistólico ejetivo na base do precórdio ++/4+, sem irradiação. O pulso carotídeo foi normal à palpação. Os exames para o diagnóstico de causas secundárias à hipertensão arterial resultaram negativos, bem como a sorologia para doença de Chagas. Evoluiu assintomática e com pressão arterial controlada até meados de 1997, em uso de atenolol e clortalidona. Desde então, passou a apresentar sintomas de cansaço e dor precordial progressiva aos esforços. O eletrocardiograma e o ecocardiograma mostraram sinais indicativos de hipertrofia do ventrículo esquerdo. Em agosto de 1998, a paciente apresentou quadro ictal, representado por afasia de expressão e hemiparesia esquerda de 30min de duração e resolução completa. Não apresentava quadro clínico compatível com crise hipertensiva, sendo estabelecida a hipótese diagnóstica de episódio isquêmico transitório encefálico de provável natureza tromboembólica. Iniciou investigação para pesquisa da origem do êmbolo. O ecocardiograma revelou importante hipertrofia do ventrículo esquerdo com espessuras de septo de 21mm e parede posterior de 16mm. A fração de ejeção era normal, mas chamou atenção a presença de aneurisma da parede apical com trombo. O Doppler demonstrou, ainda, a presença de um gradiente intraventricular de 120mmHg. O estudo de ressonância nuclear magnética (fig. 1) confirmou a importante hipertrofia do ventrículo esquerdo associada à obstrução ventricular na região medioventricular, e à presença de aneurisma apical com trombo. A hipertrofia comprometia também o ventrículo direito. Foi indicada a realização de cineangiocoronariografia, que revelou artérias coronárias normais. Diante da gravidade do quadro e da incerteza diagnóstica da causa da cardiopatia, a paciente foi submetida a biópsia endomiocárdica do ventrículo direito. À microscopia óptica, o estudo histológico dos fragmentos de tecido obtidos descartaram doenças de depósito e inflamatórias e confirmaram a existência de hipertrofia e desarranjo dos miócitos (fig. 2). Havia também desarranjo de miofibrilas à microscopia eletrônica (fig. 3). Foi iniciada anticoagulação oral com warfarina e associado verapamil ao esquema terapêutico. Houve remissão completa de sintomas indicativos de isquemia encefálica. Já os sintomas cardiovasculares apresentaram melhora, porém "# Soufen e cols. Aneurisma apical e hipertrofia ventricular esquerda Arq Bras Cardiol volume 75, (nº 2), 2000 Discussão Fig. 1 – Ressonância nuclear magnética cardíaca mostrando corte em quatro câmaras em sístole, demonstrando hipertrofia biventricular grave, aneurisma apical em ventrículo esquerdo e trombo intracavitário. Fig. 2 – Fotomicrografia do fragmento de miocárdio obtido por biópsia de ventrículo direito, demonstrando hipertrofia de miócitos com discreto desarranjo estrutural. HE, 250x. Fig. 3 – Fotomicrografia eletrônica do fragmento miocárdico mostrando miócito com desarranjo das miofibrilas. 22000x. sem remissão completa, o que não impediu a doente de retomar as suas atividades profissionais habituais. "$ O presente relato refere-se ao caso de uma paciente com diagnóstico de hipertensão arterial sistêmica que, apesar do bom controle clínico, apresentou hipertrofia progressiva do ventrículo esquerdo e desenvolvimento de aneurisma apical com trombo, complicado com quadro encefálico isquêmico transitório. A ressonância nuclear magnética confirmou os achados ecocardiográficos, demonstrando a hipertrofia assimétrica com obstrução médio ventricular e a presença de aneurisma apical com trombo. Sua contribuição adicional, neste caso, baseou-se na identificação de hipertrofia extensiva ao ventrículo direito. O surgimento de aneurisma do ventrículo esquerdo em um quadro de hipertrofia cardíaca, na ausência de doença arterial coronariana, já foi descrito em doentes com cardiomiopatia hipertrófica 3. Esta complicação, até onde sabemos, nunca foi observada em pacientes com hipertrofia secundária à hipertensão arterial sistêmica. Na cardiomiopatia hipertrófica, supõe-se que quando há obstrução medioventricular, o ápice do ventrículo esquerdo seja submetido a um aumento crônico do estresse sistólico, ficando assim sujeito a episódios repetidos de isquemia com necrose progressiva. Com a redução da contratilidade apical e o aumento do estresse de parede, ocorre um ciclo vicioso que favorece a formação de um aneurisma 3. É evidente que a redução da reserva de fluxo arterial coronariano, que ocorre na cardiomiopatia hipertrófica, pode também contribuir para a gênese de um aneurisma 3. Diante da alta prevalência da hipertensão arterial na população geral, é possível existir associação de outras doenças ao quadro hipertensivo 4. Em nosso meio, a presença de aneurisma apical sempre implica na suspeita etiológica de doença de Chagas. Porém, o resultado reiteradamente negativo de duas sorologias específicas afastou este diagnóstico. Padrões ecocardiográficos sugestivos de cardiomiopatia hipertrófica já foram descritos em pacientes com hipertensão arterial, estando o grau de hipertrofia algumas vezes dissociado da gravidade do quadro hipertensivo, como ocorre em hipertensos jovens, idosos e em alguns casos de hipertensão secundária. Nesses casos o tratamento da hipertensão com a regressão da hipertrofia cardíaca pode ajudar no diagnóstico diferencial. Em nosso meio pudemos observar a regressão completa de uma hipertrofia cardíaca grave e assimétrica após a cura de um paciente com feocromocitoma 1. A história familiar pode auxiliar o diagnóstico de cardiomiopatia hipertrófica, mas, quando ausente, não afasta a doença. É, entretanto, escassa a informação encontrada na literatura que possa auxiliar o clínico no diagnóstico diferencial entre cardiomiopatia hipertrófica e a hipertrofia cardíaca que ocorre na hipertensão arterial. Alguns autores compararam pacientes com hipertensão e cardiomiopatia hipertrófica com relação a sinais clínicos e parâmetros obtidos em exames ecocardiográficos, ventriculográficos e também à biópsia endomiocárdica 4-6. Encontraram-se apenas algumas diferenças na função diastólica, como um tempo de relaxamento isovolumétrico mais curto na hipertensão Arq Bras Cardiol volume 75, (nº 2), 2000 Soufen e cols. Aneurisma apical e hipertrofia ventricular esquerda arterial. No entanto, nenhuma das variáveis estudadas foi capaz de distinguir as duas doenças. Os resultados da biópsia endomiocárdica parecem ser úteis nessa distinção 5,6. Assim é que apesar do desarranjo das fibras miocárdicas não ser patognomônico de cardiomiopatia hipertrófica, estudo prévio mostrou que o mesmo está presente em 86% dos casos de cardiomiopatia hipertrófica comparado a apenas 14% dos casos de hipertensão arterial 5. Outros achados histológicos, tais como a fibrose miocárdica e o diâmetro dos miócitos são semelhantes nas duas doenças 6 . Apesar da quantidade de fibrose ser comparável, a distribuição espacial das fibras colágenas não o é, sendo plexiforme na cardiomiopatia hipertrófica, o que traduz a desorganização dos miócitos. Na hipertensão arterial o padrão de distribuição das fibras colágenas é normal 6. Diante dessas considerações, os dados clínicos do presente caso apontam para a associação de duas doenças: a hipertensão arterial sistêmica e a cardiomiopatia hipertrófica. A suspeita deste diagnóstico surgiu diante de uma rara complicação da cardiomiopatia hipertrófica, a formação de um aneurisma apical. Assim, este relato de caso ilustra que o aumento do ventrículo esquerdo na hipertensão arterial pode não ser decorrente de um aumento de pós-carga, mas sim representar em uma rara eventualidade a manifestação de outra doença. Neste caso, o diagnóstico de cardiomiopatia hipertrófica foi contemplado diante do grau de hipertrofia desproporcional à gravidade da hipertensão, sem regressão com o controle da pressão arterial, associado à complicação característica. Atualmente, o estudo histológico do miocárdio, apesar de não ser definitivo, auxilia no estabelecimento diagnóstico, principalmente por afastar a possibilidade de doenças inflamatórias e de depósito. Referências 1. 2. 3. 4. Lopes HF, Silva HB, Frimm CC, Bortolotto LA, Belotti G, Pileggi F. Falso diagnóstico de miocardiopatia hipertrófica em feocromocitoma. Arq Bras Cardiol 1995; 65: 167-79. Lewis JF, Maron BJ. Diversity of patterns of hypertrophy in patients with systemic hypertension and marked left ventricular wall thickening. 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