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FOLIA DOS SANTOS REIS DE LAGOLÂNDIA, NA TRILHA
DASSONORIDADES FESTIVAS1
LAGOLÂNDIA’S THREE KINGS ‘FOLIA’, ON THE TRAIL OF SONORITY
Aline Santana Lôbo - TECCER/UEG – Anápolis – Goiás - Brasil
[email protected]
Dra. Mary Anne Vieira Silva - TECCER/UEG – Anápolis – Goiás - Brasil
[email protected]
Dra. Maria Idelma Vieira D’Abadia- TECCER/UEG – Anápolis – Goiás - Brasil
[email protected]
Resumo
Propomos um breve estudo das sonoridades das músicas dos rituais que compõem o
fenômeno religioso presente na Folia de Santos Reis, que gira atualmente no Distrito de
Lagolândia, no município de Pirenópolis, Goiás. Trata-se de uma manifestação do catolicismo
popular que adquiriu especificidades e singularidades. É uma folia que na sua forma ritual
desenha um caminho circular composto pelas fazendas e o distrito, definindo uma paisagem e
uma espacialidade dinâmica, um estar indo para algum lugar em que as músicas são o
amálgama da festividade. As Folias são entendidas como fenômeno contemporâneo
complexo, dotado de sujeitos protagonistas. As inferências apresentadas são resultantes da
pesquisa de campo realizada ao longo de dois anos in loco, além das referências sobre a
temática das religiosidades do Cerrado na contemporaneidade.
1
O presente trabalho está vinculado à pesquisa “Artes e Saberes nas Manifestações Católicas Populares” UEG,
que conta com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás — FAPEG, conforme Chamada
Pública nº 005/2012 e ao Projeto de Pesquisa Paisagem sonora, tradição e identidade: as folias de Reis em
Pirenópolis-Goiás
ISSN: 2317-9430 Revista Tocantinense de Geografia, Araguaína (TO), Ano 06, n.09, jan./abr. de 2017.
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Palavras chave: Folia de Santos Reis; Religiosidade; Música.
Abstract
We propose a brief study of the sounds from the ritual’s music that composes the religious
phenomenon present in the Three Kings Folia. The feast takes place at the Lagolândia
District, in Pirenópolis, Goiás. It’s about a popular Catholicism manifestation that acquired
specificities and singularities. It is a feast that, in its ritual form, draws a circular path
composed by the farms and the district, defining a dynamic spatiality and landscape, also
defining a “to be going to” some place where the music is the festivity amalgam. The Feasts
are understood as a complex contemporary phenomenon, endowed with subjects as prime
characters. The inferences presented here are the result of a field research conducted over two
years on site, in addition to the references on the subject of the religiosities in the Cerrado
nowadays.
Keywords: Three Kings Folia; Religiousness; Music.
Um Arranjo Festivo, no Ritmo da Fé
Lagolândia é um distrito localizado nas margens do Rio do Peixe, distante 40
quilômetros da área urbana do município de Pirenópolis, Goiás. Rezende (2009), afirma que o
povoado surgiu no começo do século XX com movimento messiânico, caracterizado por ser
liderado por um comandante com poderes que transcendem os dos mortais comuns, reúne à
sua volta seguidores com a crença do retorno de um ser divino que objetiva libertar dos males,
em seu espaço de atuação conquista prestígio, porta-se como conselheiro, ajuda os
necessitados e cura doentes sem nenhuma pretensão material.
Esse movimento tem início com o nascimento de Benedita Cipriano Gomes em 1905,
na Fazenda Mozondó e suas várias experiências espirituais; Dica como era conhecida atraia
pessoas de vários lugares, por ser curandeira, milagreira, profetiza e santa.Embora Santa Dica
tivesse seus próprios meios de tratamento de cura atraindo pessoas das cidades vizinhas e de
outros estados do Brasil para a região de Lagolândia, o catolicismo era a religião
predominante.
As práticas religiosas realizadas por Dica para com seus seguidores “oferecia não
somente a cura dos males físicos, mas passou a cuidar dos peregrinos com alimentação,
abrigo e moradia” (REZENDE, 2009, p.12). Nesse sentido as ações da santa passam também
pelo plano material, possibilitando aos seus seguidores condições de trabalharem a terra de
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forma coletiva ou em mutirões. O arroz, milho, feijão, mandioca e café era plantado e colhido
para subsistência da comunidade.
Esse movimento chama atenção das elites dominantes da época, o que provocou o
conflito pela terra, resultando na perseguição com intervenção armada da força policial do
Estado no local. Após o fato, Dica se insere nas lutas políticas passando por vários momentos
do cenário político nacional. No entanto, suas atividades religiosas seguem atraindo fieis de
várias localidades, o que garante a continuidade e o fortalecimento do povoado.
A
religiosidade
dos
moradores
de
Lagolândia
pode
ser
percebida
na
contemporaneidade das festas que acontecem num ciclo anual desde a formação do povoado.
Curado (2011) apresenta um inventário dos festejos, realizados no local, que ainda mobilizam
a comunidade nos dias atuais, a saber: Nossa Senhora da Conceição mês de dezembro; Folia
de Reis, janeiro; Folia de São João, junho e Festa do Divino Pai Eterno, julho.Os ciclos
festivos estão relacionados às manifestações socioespaciais, nas quais as práticas de trabalho,
lazer e devoção estruturam as práticas cotidianas. De acordo com Rigonato,
a devoção religiosa para as populações tradicionais tem um significado
ímpar. Para as populações do Cerrado, as manifestações festivas sinalizam
os períodos importantes do ano, na perspectiva de garantir prosperidade da
família (2005. p.82).
Para o autor, o ciclo festivo dá as condições de organização da vida de trabalho
sertaneja, com as suas práticas religiosas, tornando um ciclo maior no entrelaçar de trabalho e
festa. Segundo D’Abadia(2014), as festas religiosas podem ser vistas, como fator de
ressignificação, ou seja, a perpetuação de uma tradição. Nesse sentido Lôbo(2011), também
corrobora ao afirmar a integração do homem festivo e o seu ambiente como forma de
permanência e a resistência das festas no espaço. Assim,
é possível relacionar, de forma integrada, o homem e seu ambiente, porque a
festa é uma experiência concreta composta de vários sentidos resultantes da
relação entre os partícipes que a vivenciam e a paisagem em que se inscreve.
A apreensão do lugar festivo requer a interpretação de uma malha de
significados costurados pela história, pela memória e pela cultura locais que
influenciam as identidades presentes. A festa interfere ainda num processo
de composição de memória que se mantém vivo na consciência do grupo e
faz com que ela oriente as ações no momento presente (2011, p. 87).
Podemos inferir que a festa ou mais especificamente os festejos da Folia em suas
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várias dimensões é um texto que pode ser lido e interpretado de acordo com várias nuances.
Cosgrove (2004) esclarece que a paisagem cultural é um texto de muitas dimensões,
oferecendo a possibilidade de leituras diferentes, simultâneas e igualmente válidas. Desse
modo, inferimos sobre as manifestações festivas com foco na sonoridade contida nas
paisagens dos rituais da Folia de Santos Reis de Lagolândia.
A sonoridade do fenômeno religioso ocorrido durante os festejos da Folia de Santos
Reis que acontece no período da estação chuvosa, de 31 de dezembro a 06 de janeiro em
Lagolândia e nas fazendas vizinhas. É uma festa realizada desde 1920 quando cresce o fluxo
de pessoas que vão morar na região devido os feitos de Santa Dica.
A Folia de Santos Reis é uma das manifestações do catolicismo popular, que
contempla os festejos em louvor aos Reis Baltazar, Melquior e Gaspar. A história bíblica da
natividade é relembrada por meio dos rituais das Folias que celebram a visita dos magos a
Jesus na ocasião de seu nascimento.
Os foliões de Reis são grupos de andarilhos que perfazem um caminho circular, ora
pelas ruas do vilarejo, ora pelas estradas das fazendas. Este “bando precatório” de acordo com
Cascudo (1972, p.402), portam a bandeira que representam os Reis Magos do Oriente,
misturam o tempo mítico com o atual, refazendo a viagem em busca do local do nascimento
do menino Deus. A relação entre as práticas dessa expressão cultural e as vivências míticas
confere sentido à realidade e preservam a identidade de seus partícipes.
As paisagens festivas são compostas por sonoridades que fazem parte do universo
simbólico subjetivo dos envolvidos, seja direta ou indiretamente com as Folias. Os elementos
simbólicos construídos pela paisagem que se cria sonoramente pela música nos festejos da
Folia estabelece um sistema comunicacional que integra uma paisagem sonora sagrada. Esse
fenômeno religioso dá forma às construções míticas ligadas a busca do eterno retorno
(ELIADE,1992). A música dos rituais festivos é um veículo sonoro que interfere e influencia
o homo religiosus, no sentido dado por Croatto (2001), na experiência com o sagrado.
As Vibrações Musicais de uma Paisagem Festiva
A música é o fio condutor dos rituais das Folias, sem música a Folia não acontece. Os
cantos rimados dão ordenamento à função religiosa da festividade criando uma sonoridade
que estabelece um sistema de comunicação que conduz as ações dos participantes. Os foliões
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se dispõem em dois grupos para entoaras canções do ritual, um grupo canta uma estrofe e o
outro grupo responde, enquanto os devotos acompanham cumprindo as narrativas
comunicadas.
Os sentidos da devoção são criados a partir das músicas dos rituais, instituindo
encontros com as divindades em busca da mítica ligada à natividade.Numa experiência de fé
visível e emocionante em que o músico artista e devoto e o participante ouvinte revelam a
vivência de uma prática simbólica que estabelece uma troca mútua que faz com este e outros
mundos.
É possível perceber a sucessão cronológica dos enredos narrados nas melodias da
Folia. As ações rituais se desenrolam numa sequência de acontecimentos previsíveis que
todos os anos se repetem onde o eterno, o antigo e o novo se harmonizam e propiciam
momentos de ensinamentos da fé cristã, demarcando as temporalidades e a paisagem do
festejo. O deslocamento dos foliões cantadores e tocadores cumprem com a jornada em busca
do tempo sagrado.
As combinações de sons simultâneos durante o evento festivo da Folia compõem a
paisagem sonora constituída pelas diversas sonoridades que são familiares para os
participantes. Os foliões músicos portam instrumentos musicais como violas, violões,
acordeom, caixa, pandeiro, além das vozes que entoam os cânticos. Cada instrumento produz
timbres, altura, intensidade, duração próprios que harmonizam com o momento de
devoção.Os elementos simbólicos contidos nas paisagens sonoras festivas são desvelados
pelos sons produzidos durante os rituais em devoção aos Santos Reis.
Os símbolos são “um conjunto de dispositivos evocadores para despertar, canalizar e
domesticar emoções poderosas” (TURNER, 2013, p.53), já para Tuan(1980) constitui-se
como um dos pilares para a atribuição da sacralidade do lugar.No entanto, Croatto(2001)
compreende que o símbolo sendo a linguagem básica da experiência religiosa, faz pensar, e
diz sempre mais do que é. O símbolo é a linguagem do profundo, da intuição, do enigma. Por
isso é a linguagem da poesia, dos sonhos, do amor e da experiência religiosa, por que está
para além da racionalidade. Para Schafer, “um evento sonoro é simbólico quando desperta em
nós emoções ou pensamentos, além de suas sensações mecânicas ou funções sinalizadoras,
quando possui uma numinosidade ou reverberação que ressoa nos mais profundos recessos da
psique” (2011, p. 239), ou seja, quando é capaz de provocar emoções e sentimentos
profundos.
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Também corrobora com esse argumento as ideias de Otto (2007), ao evidenciar que as
percepções do numinoso, seriam um convite aos estados psíquicos de solene devoção e
arrebatamento e os sentimentos que este provoca. Um sentimento notável dessa experiência é
a dependência religiosa, que se traduz no sentimento de nulidade perante aquilo que está
acima de toda criatura e seu caráter avassalador, é uma reação-sentimento, desencadeada na
psique por uma experiência que a própria pessoa precisa passar.
A folia se organiza num movimento circular ladeada pelos sons das músicas sagradas
que atuam no fortalecimento da fé e da devoção das pessoas que a ela estão ligadas. É
perceptível nestas festas da cultura popular que a experiência religiosa não é somente
individual, mas coletiva. A música se porta como um elemento agregador constituindo um
fenômeno sonoro religioso.
A tradição, a fé, a música, a devoção e o lazer estão presentes nos quatro momentos
rituais: o junta, o giro, o pouso e a entrega. O junta é o momento de encontro dos foliões para
levantar a bandeira de Santos Reis diante de um altar. O giro é o movimento dos foliões de
casa em casa pedindo donativos em nome do santo de devoção. O pouso é o local onde no final
de cada dia do giro, os foliões chegam para o pernoite da bandeira. A entrega é o momento de
finalização da Folia, reunião dos donativos arrecadados, agradecimentos pela participação de todos os
envolvidos e de guardar a bandeira para o ano seguinte.
Em todo percurso os foliões são guiados pela bandeira representativa dos santos e
munidos de instrumentos musicais como viola, violão, caixa, pandeiro, acordeom; que
cumprem as funções quando são executados pelos músicos integrantes. Para Pessoa a Folia de
Reis basicamente é uma
observância estrita do sentido da viagem, com um começo, um meio e um
fim. O que substancialmente, diferencia a Folia de Reis dos outros reisados é
o giro. Em outros reisados, há o movimento de andar de casa em casa, mas
não há, como na Folia de Reis, um pacto entre padroeiro (Santos Reis),
agentes (foliões, gerentes, festeiros e seus auxiliares) e devotos (os
moradores), pelo qual ficam estabelecidos estreitos compromissos: o
padroeiro oferece as bênçãos e proteção e recebe a generosa dedicação de
todos; os agentes dedicam-se inteiramente ao serviço tanto do padroeiro
quanto dos devotos; e os devotos se comprometem a receber a fé a vista do
padroeiro e retribuir com donativos generosos suas bênçãos e sua proteção
(2007, p.193-194).
Depois do junta, que acontece no dia 31 de dezembro com a presença da comunidade,
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no salão de festas em Lagolândia, os foliões seguem o giro pelas casas e fazendas vizinhas,
chegando à proximidade do povoado de Placas e região do Fundão, num percurso aproximado
de 20 quilômetros. Os foliões, todos do sexo masculino, de várias idades, desde idosos até
crianças, realizam o percurso no período noturno entre as 22 horas e as 5 horas da manhã,
passando em média por duas dezenas de casas a cada dia do giro.Em cada residência os
moradores esperam a passagem da Folia. Os foliões aproximam da casa do devoto na noite
escura e em sua porta entoa a música:
O de casa nobre gente
Escuta que eu direi (bis)
Aqui está Nossa Senhora
Chegada de Santos Reis.
O Senhor e Santos Reis
Santos de todos poderes (bis)
Que desceu do céu a terra
Para seu mundo ocorrer (bis)
Para seu mundo ocorreria
Junto com Nossa senhora (bis)
Ele veio lhe visitar
Lhe pedir a sua esmola. (bis)
A esmola que vós deste
Nós viemos a receber (bis)
É o Monarque Santos Reis
É quem vai lhe agradecer (bis)
Ocê esteja convidado
Com toda sua família (bis)
Pra rezar uma ladainha
Pro festejo do seu dia (bis)
Senhor e dono da casa
Abre a porta e cende a luz
Receber os Santos Reis
E o retrato de Jesus2
No final da música o morador abre a porta de sua casa obedecendo ao comando dado,
a música entoada pelos foliões cumpre com o ritual a ser seguido pelos devotos. Esta
invocação recita e assume os sentidos das palavras pronunciadas sem equívoco o suficiente
2 As palavras foram grafadas respeitando sua sonoridade durante o canto.
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para alcançar o fim desejado (TOLOSANA, 2012). O diálogo entre o morador e os foliões
acontece pelos sons dos instrumentos musicais acompanhados pelas vozes.
Todos os elementos que estruturam a música, sejam modos, andamentos,
formas musicais, harmonizações, timbres, ritmos, linha melódica, etc., agem
como estímulos. Dessa forma, provocam reações que podem ser individuais
ou comuns a um grupo social. Para que estas reações possam ser
consideradas artísticas, é preciso que atuem sobre o lado emocional do
ouvinte. Nesse caso, a música estaria cumprindo sua função social, que é a
de emocionar e comunicar sentimentos (WEIGEL, 1988, p.169).
No plano individual a linguagem musical se destina ao eu interior do ser e estabelece
um elo especial entre razão e emoção. O ato de cantar permeado pela marcação do ritmo
encontra respaldo na metrificação dos versos, tornando claro a oração em devoção aos Santos
Reis, e também confere o comportamento adequado ao participante nos momentos do ritual.
A oralidade representada e transmitida entre os foliões é uma herança de um ritual
passado de geração para geração, de pai para filho, num processo
hereditário, mantém seus traços essenciais por meio da tradição oral. Não há
um roteiro escrito a ser seguido, há uma ritualística experienciada desde
criança por esses foliões, que interiorizam, a partir do vivido, a prática ritual
(NEDER, 2013, p.36).
As narrativas presentes na música ritual expressam representações que acontecem num
tempo primordial, ou seja, conta uma história sagrada reproduzida por várias
gerações.Podemos inferir que essas narrativas são míticas, nas quais, a partir da ação de entes
supremos, revela como uma realidade, uma ação social ou cultural passou a existir. Os mitos
revelam o mistério das origens, os modos de ação e relação dos antepassados, por tal
característica, eles têm o papel de orientar os comportamentos humanos.
Aquilo que é narrado no mito é um acontecimento imaginário, o encontro dos magos
com o menino Deus, contudo, tem a pretensão de instaurar determinada realidade. A principal
função dos mitos consiste em revelar esses modelos exemplares que fundamentam rituais,
atividades e interações humanas. Tal narrativa imaginária do nascimento do messias, a
viagem dos três Reis do Oriente até o local onde se encontrava o menino, se remete a
símbolos que são vivenciados na prática da Folia como a viagem do giro dos Foliões, reviver
o mito traz sentido e significado para a vida atual, em que é possível nascer a cada ano para
que a vida se renove e sirva para que o homo religiosus encontre o sentido de ser-no-mundo.
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As cantorias da Folia de Santos Reis têm uma organização poética que deve ser
seguida hierarquicamente, ou seja, nada é gratuito, há um ritual a ser cumprido onde as
melodias entoadas dão o sentido para o momento vivenciado. As músicas como um elemento
espaço-temporal são executadas como explica Moreyra (1983) no momento da chegada, do
peditório, da despedida, do agradecimento.
Cada elemento encontrado, seja ele os arcos de folha que formam os portais de
passagem, os santos de devoção, os presépios, as flores, as fitas, o altar, além das narrativas
musicais do nascimento do messias são entoados em forma de saudação pelos foliões músicos
no interior das casas visitadas
que abrigará um dos seis pousos, improvisa-se um altar em que o seu dono
coloca imagens dos santos de devoção familiar junto ao presépio, que
sempre está presente no altar que irá receber a bandeira da folia. Delimitando
o espaço entre o fora e o dentro da casa, na soleira da porta principal de
entrada, é preparado, nas vésperas do pouso, um arco, geralmente de folhas
de bambu, com alguns enfeites em flores (CURADO, 2011, p.131).
Algo marcante nas músicas das folias é o improviso, sem perder o fio condutor da
história mítica contada e vivenciada. Os foliões músicos adequam suas cantorias a realidade
presente, assim, “a Folia cumpre uma jornada. Isso é o mesmo que dizer que os foliões se
reconhecem obrigados por devoção a participarem dela” (BRANDÃO, 2004, p. 383).
Um grupo seleto de foliões é responsável pela organização da folia e contribuem para
que as tradições aconteçam, dentre suas responsabilidades está a guardados donativos
arrecadados durante o percurso do giro, a organização do sorteio das funções de cada folião
dentro da hierarquia da Folia que acontece no último dia, a seleção das casas onde sediará os
futuros pousos e sua mais difícil missão: a de envolver a comunidade nos afazeres da festa,
pois, a formação desta rede de participação é a que cria vínculos e dá sentido à festividade.
No sorteio das funções realizado no dia de Santos Reis os cargos pressupõem os
afazeres a serem realizados no ano vindouro. Na Folia de Lagolândia o regente organiza e
coordena, combina com os moradores que irão oferecer os pousos com antecedência, decide o
trajeto, cuida para que o ritual saia como previsto; os foliões de guia são os músicos que além
de tocarem algum instrumento musical tiram e improvisam os versos; os foliões de contra
guia são aqueles que respondem os versos dos guias, também tocam instrumentos musicais;
os foliões músicos acompanham os guias e contra guias com seus instrumentos musicais;
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Catarina e o Caetano são os divertidos palhaços da folia que só aparecem no ritual do pouso
na hora da saída para o giro.
No percurso os foliões passam por trieiros3, munidos de lanternas, guarda-chuvas,
realizando o trajeto a pé. No início da manhã voltam para suas casas e se encontram
novamente a partir das 15 horas no local onde acontece o pouso para a reza do terço, jantar,
agradecimento de mesa, pedido de esmola, catira e o novo giro.
O giro tem seu percurso previamente estabelecido, os foliões seguem pelo caminho,
guiados pela bandeira dos Santos Reis, pedindo donativos em seu nome. Como a região é
relativamente pequena, todos se conhecem e a companhia só passa na casa dos devotos
católicos. Por ser uma festa realizada no ciclo das águas as estradas de acesso aos pousos da
Folia são difíceis, com atoleiros e estradas mal conservadas.
Alguns cuidados precisam ser tomados para estabelecer os percursos do giro, se forem
burlados alguns dos impedimentos, de acordo com a crença do grupo, pode acontecer o pior
dos castigos que é a morte de um folião do grupo, são os interditos, dentre os vários está o que
proíbe o cruzamento de caminhos e a travessia do Rio do Peixe. O rio que passa pelo distrito
de Lagolândia, serve de limite para a atuação da bandeira de Santos Reis, este mesmo rio
serviu de cenário para o confronto entre jagunços e militares contra Dica e seus seguidores,
num episódio que ficou conhecido como “Dia do Fogo”.
Para Cassirer (2001) o homem é entendido como um ser simbólico, produtor de signos
e símbolos na sua relação com o mundo: a ciência, a linguagem, a arte, a história, o mito e a
religião são modalidades de simbolização com as quais o homem constrói sua realidade,
engendrando conhecimento com suas próprias perspectivas e valores. Com sua atividade
simbólica, os homens conformam mundos próprios, criando significados baseados em suas
experiências. A produção do simbólico é condição imprescindível para a captação do sensível,
possibilitando a relação do homem com o mundo.
As vibrações produzidas pelas músicas executadas pelos foliões nos rituais da Folia
repercutem no íntimo dos envolvidos e alicerçam a criação dos signos e dos símbolos
servindo de apoio para reforçar a religiosidade. É uma linguagem infinita e universal em que
o mundo mítico-religioso e a arte se apresentam ao sujeito que não recebe passivamente as
sensações exteriores, mas sim as enlaça com signos sensíveis e significativos por meio das
várias construções simbólicas.
3 Trilha pequena ou estreita. Estradas estreitas efetuadas pela passagem de gado. Normalmente diminui as
distancias entre dois lugares.
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Os sons são fenômenos vibratórios que se propagam no ar, e consequentemente
compõem a paisagem sonora do lugar. Quando emitidos no ambiente festivo da Folia de
Santos Reis têm significados referenciais, são eventos acústicos que precisam ser investigados
como signos, sinais e símbolos. Um signo é qualquer realidade física, como por exemplo, a
nota entoada. O sinal tem um som específico, por exemplo, quando o caixeiro bate na caixa
várias vezes os foliões sabem que está na hora de agradecer a mesa.Já o símbolo tem
conotações mais complexas, que não é precisamente explicado, mas tem significância para
quem o conhece e o reverencia.
Os Espaços das Sonoridades Sagradas da Folia
A paisagem sonora das festas é um receptáculo de símbolos que reflete a cultura.
Segundo Rios (2006), as músicas emitidas durante os festejos da Folia em louvor aos três Reis
Santos compõem um lugar único que o torna singular. As sonoridades compõem um dos
elementos subjetivos responsável por conceder identidade ao lugar.Os foliões são
normalmente bons músicos alguns excepcionais, mas, ao apresentar os cantos, estão, antes de
tudo, expressando sua devoção, não raro cumprindo uma promessa. O elo forte entre música e
religião é uma marca presente nas culturas tradicionais.
Os sons da paisagem sonora marcam o espaço ao ser codificado
coletivamente, pois está integrado ao grupo social, são reconhecidos por toda
gente do lugar ou por estranhos. Os sons no espaço da festa são codificados
pelo coletivo, pelo grupo que participa das ações festivas. Mas, há também
os sons que só é codificado pelo grupo social que habita um lugar, pois ele
está integrado ao grupo. Essas especificidades sonoras são as assinaturas
sonoras ou conjuntos de sons que assinalam um espaço (MOREIRA, 2013,
p.154).
A religiosidade no mundo contemporâneo assume a forma de uma experiência ampla e
difusa no espaço. A experiência religiosa da Folia de vivenciar o mundo sagrado é embalada
pelas sonoridades dos versos, que por si só carregam uma gama de significados, compõem o
elo entre os foliões e a divindades de Santos Reis que são evocados com as cantorias. As
sonoridades sagradas que compõem os rituais revitalizam a fé, cumprem promessas,
promovem cura de doenças, realizam milagres, embalam danças, alimentam narrativas,
animam festas. Além disso, a sonoridades sagradas propiciam a continuidades das tradições.
A formação de uma espacialidade simbólica constituída nos rituais das Folias de
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Santos Reis é criada a partir das músicas entoadas que compõem o fenômeno religioso. Cada
passo do ritual é proferido e explicitado pelas melodias que rimam versos que estruturam as
experiências de fé, devoção e lazer. O fenômeno musical e o fenômeno religioso se
entrelaçam e se tornam interdependentes e indispensáveis nas Folias.
A ocorrência de uma conexão entre o espaço material e o espaço simbólico garante
uma identidade territorial. O aspecto cultural da música, no qual as subjetividades encontram
suas similitudes, constroem as identidades e repetem a cada ano um fazer tradicional que é
repassado pela oralidade e consequentemente trazem os sentidos de pertencimento.
Considerações Finais
A Folia de Reis que gira em Lagolândia perpetua os sentidos da devoção desde o
surgimento do povoado. No ritmo da fé e da tradição, a festa quase centenária que
homenageia os Magos compõem rituais da religiosidade popular e é estruturada por elementos
simbólicos dos quais a música tem papel preponderante atuando no ser, no mundo de quem
vivencia os festejos.
As relações tempo-espaço das sonoridades encontradas nas festas que homenageiam
os Reis Santos indicam que as músicas tocadas e entoadas pelos foliões nos rituais cumprem
com tradições específicas. É no comportamento consagrado que origina, de alguma forma,
essa convicção de que as concepções religiosas são verídicas e de que as diretivas religiosas
são corretas. A música serve de apoio para a prática da religiosidade, por ser uma linguagem
universal, capaz de criar e recriar a própria realidade.
Para Geertz (1989, p. 84) num ritual, o mundo vivido e o mundo imaginado fundem-se
sob a mediação de um único conjunto de formas simbólicas, tornando-se um mundo único e
produzindo aquela transformação idiossincrática no sentido de realidade.
A poesia e a rima presentes nos versos das folias de Reis fortalecem as relações
pessoais, expressam devoção, cumprem promessas feitas pelos participantes aos Reis Magos
com o intuito de ajudar ou favorecer os envolvidos na folia. Os versos das toadas articulam as
aspirações pessoais e interpretam a visão de mundo aos olhos de seus participantes, os quais
fazem referências aos Reis Magos como intermediadores da relação com Deus,
transformando-os em verdadeiros santos.
A paisagem sonora criada pelos Foliões é percebida pelos que a fazem – os tocadores,
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os batedores e os cantores – trazendo elementos conhecidos do passado, refeitos no presente,
o que caracteriza uma paisagem sonora que identifica o lugar e apresenta seus elementos
históricos, vivos na memória dos partícipes.
Segundo Eliade (1992), os mitos são exemplos a serem seguidos remete a um tempo
puro, o tempo do instante da criação, servem como modelos para cerimônias de ritualização
periódica como algo que está presente desde os primórdios dos tempos. A repetição dos
rituais da Folia em louvor a Santos Reis, que acontece todos os anos, busca no mito do eterno
retorno o caminho que leva não apenas a transformação do espaço profano em espaço
transcendental como também à projeção de um tempo mítico e primordial.
Enfim, na cosmologia da Folia as sonoridades estão presentes criando laços entre o
mundo espiritual e o mundo físico. O fenômeno musical é renovado a cada repetição anual,
nutrindo os sentidos da devoção, as músicas entoadas além de rechear os espaços festivos de
alegria, completam o sentido da fé.As experiências com o sagrado vivenciadas entre os
partícipes de uma comunidade que realiza a Folia de Santos Reis há quase cem anos, cria
laços da tradição e constrói pontes entre passado e presente dando sentido a própria vida.
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Aline Santana Lôbo - possui graduação em Pedagogia - Faculdades da Associação Educativa Evangélica -1999.
Professora da Secretaria da Educação de Goiás. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em EnsinoAprendizagem. Mestranda do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanidades:
Territórios e Expressões Culturais no Cerrado - TECCER, da Universidade Estadual de Goiás, Câmpus Ciências
Socioeconômicas e Humanas, Anápolis. Bolsista Stricto Sensu do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar
em Ciências Sociais e Humanidades: TECCER, da UEG, Câmpus Ciências Socioeconômicas e Humanas,
Anápolis. Participante do Projeto de Pesquisa Artes e Saberes nas Manifestações Católicas Populares, financiado
pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás - FAPEG, vinculado ao Programa de Pós-Graduação
Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanidades: TECCER, da UEG, Câmpus Ciências Socioeconômicas e
Humanas, Anápolis. Atua principalmente nos seguintes temas: Pirenópolis, Folias, Música e Cultura Popular.
Mary Anne Vieira Silva - possui graduação em Geografia pela Universidade Federal do Ceará - UFC (1994),
mestrado em Geografia (Geografia Humana) pela Universidade de São Paulo - USP (2001) e Doutorado em
Geografia pela Universidade Federal de Goiás - UFG (2013). Atualmente é professora Estatutária Adjunto Nível
II da Universidade Estadual de Goiás em regime de dedicação em tempo integral à docência e à pesquisa
(RTIDP). Coordenadora de Extensão da Universidade Estadual de Goiás. Coordenadora Geral do CRR-UEG.
Pesquisadora/Coordenadora do Centro Interdisciplinar de Estudos África-Américas - CieAA. Pesquisadora da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás. Professora do Programa de Pós-graduação Scrito Sensu,
nível mestrado, em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado (TECCER). Desenvolve pesquisas no âmbito
da Geografia Cultural numa perspectiva pós colonial, tendo como principais temáticas: religiões de matriz
africana (candomblé), relações étnico-raciais, processos diaspóricos, territorialidades e poder.
Maria Idelma Vieira D’Abadia - pós-doutora em Geografia pela Universidade Federal do Paraná (2015).
Doutora em Geografia pela Universidade Federal de Goiás (2010). Mestre em Geografia pela Universidade
Federal de Goiás (2002). Graduada em Licenciatura Plena em Geografia pela Faculdade de Ciências Econômicas
de Anápolis (1990). Atualmente é professora da Secretaria Estadual de Educação e Cultura de Anápolis.
Professora efetiva da Universidade Estadual de Goiás, Campus de Ciências Socioeconômicas e Humanas
(CCSEH - Anápolis) e coordenadora do Programa de Pesquisa e Pós-graduação Interdisciplinar Território e
Expressões Culturais no Cerrado (TECCER). Tem experiência na área de Geografia, com ênfase em Geografia
Cultural e Humana, Cultura popular, tradições atuando principalmente nos seguintes temas: festas religiosas,
turismo, cidade, espaço e estágio supervisionado em Geografia.
Recebido para publicação em 28 de janeiro de 2017.
Aceito para publicação em 02 de março de 2017.
Publicado em 10 de março de 2017.
https://doi.org/10.20873/uft.2317-9430.2017v6n9p48
ISSN: 2317-9430 Revista Tocantinense de Geografia, Araguaína (TO), Ano 06, n.09, jan./abr. de 2017.
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