UNIVERSIDADE VEIGA DE ALMEIDA PROGRAMA DE MESTRADO PROFISSIONAL EM PSICANÁLISE, SAÚDE E SOCIEDADE MELCHIADES CORRÊA UTRINI OBESIDADE E DISTORÇÃO DA IMAGEM: A DIFICULDADE DE RECONHECIMENTO DA IMAGEM CORPORAL PELO OBESO Rio de Janeiro 2013 MELCHIADES CORRÊA UTRINI OBESIDADE E DISTORÇÃO DA IMAGEM: A DIFICULDADE DE RECONHECIMENTO DA IMAGEM CORPORAL PELO OBESO Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação – Strictu sensu – Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Linha de pesquisa: Psicanálise e Saúde. ORIENTADOR: PROF. DR. AUTERIVES MACIEL JÚNIOR Rio de Janeiro 2013 DIRETORIA DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU SENSU E DE PESQUISA Rua Ibituruna, 108 – Maracanã 20271-020 – Rio de Janeiro – RJ Tel.: (21) 2574-8871 - (21) 2574-8922 FICHA CATALOGRÁFICA U92o Utrini, Melchiades Corrêa. Obesidade e distorção da imagem: a dificuldade de reconhecimento da imagem corporal pelo obeso / Melchiades Corrêa Utrini, 2013. 107 f. ; 30 cm. Dissertação (Mestrado) – Universidade Veiga de Almeida, Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade, Rio de Janeiro, 2013. Orientação: Prof. Dr. Auterives Maciel Júnior. 1. Psicanálise. 2. Obesidade. 3. Imagem Corporal. I. Maciel Júnior, Auterives. II. Universidade Veiga de Almeida, Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade. III. Título. CDD – 616.8917 Decs Ficha Catalográfica elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UVA Biblioteca Maria Anunciação Almeida de Carvalho FOLHA DE APROVAÇÃO MELCHIADES CORRÊA UTRINI OBESIDADE E DISTORÇÃO DA IMAGEM: A DIFICULDADE DE RECONHECIMENTO DA IMAGEM CORPORAL PELO OBESO Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação – Strictu sensu – Mestrado Profissional em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade. Linha de pesquisa: Psicanálise e Saúde. Aprovado em 06/12/2013 BANCA EXAMINADORA _______________________________ Prof. Dr. Auterives Maciel Júnior Universidade Veiga de Almeida _______________________________ Profª. Drª. Gloria Sadala Universidade Veiga de Almeida _______________________________ Profª. Drª. Jô Gondar Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro A minha filha Júlia, por ter entendido a falta de paciência e as tantas vezes que com ela não pude brincar ou mesmo estudar... A minha esposa e amiga, Catia Cristina, companheira de muitas jornadas, por toda ajuda e paciência durante este percurso; mas, e acima de qualquer coisa, por tudo que já compartilhamos, conseguimos e ainda haveremos de construir juntos. A Creuza, minha mãe, incentivadora de sempre na busca de conhecimento. À memória de meu pai, Melchiades, com imensa gratidão e saudade. Infelizmente, não lhe foi possível assistir a essa conquista. A Carla, minha irmã, sempre pronta a estimular-me o desenvolvimento profissional. Aos meus familiares, que sempre me ofereceram apoio incondicional, impulsionando-me a prosseguir nesta caminhada acadêmica. A todos os pacientes que acreditam no trabalho dos profissionais do Núcleo de Índice de Massa Corporal (NIMC). AGRADECIMENTOS Meus agradecimentos a todos os que comigo vivenciaram essa trajetória, compartilhando momentos de alegrias, de angústias, de conquistas, de inseguranças e que, embora de forma distinta e peculiar, contribuíram para a construção e finalização deste trabalho. Em especial, meu mais sincero muito obrigado: Ao meu orientador, Prof. Dr. Auterives Maciel Júnior, por ter aceitado conduzirme nesta tarefa; mas, e principalmente, pela orientação firme e cuidadosa oferecida, pelas oportunidades de crescimento profissional, pelo apoio ilimitado e confiança absoluta. Às professoras Drª Jô Gondar, Drª Glória Sadala e Drª. Maria Isabel Fortes, pela cortesia em aceitar fazer parte da banca do exame de qualificação e de defesa, compartilhando pontos, ideias e sugestões. A todos os colegas que fizeram parte da turma de Mestrado da Universidade Veiga de Almeida e que comigo partilharam suas ideias. Aos Professores do curso de Mestrado em Psicanálise, Sociedade e Saúde. Além da transmissão de conhecimentos, ensinaram-me a vencer as dificuldades desta trajetória. A todos os Colaboradores da Universidade Veiga de Almeida e aos que por ela passaram, pela disposição e atenção dispensadas. À Professora Doutora Nilce Del Rio, Cristiane Pacheco e Selma dos Santos, por aceitar ser leitora e, a um tempo, revisora desta dissertação, contribuindo com suas sugestões. A todos os Colegas da Prefeitura de Resende, por me incentivarem e motivarem a levar a termo este curso de Mestrado. Principalmente, sou agradecido a Wagner, a Lucinete, a Daniela, a Carmem Lucia, a Renata, a Munira, a Neide Capistrano, a Juliana e a Nilma. A toda Equipe do Núcleo de Índice de Massa Corporal, (NIMC), pelo incentivo e amizade. RESUMO Este trabalho investigou a obesidade que, atualmente, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), espalhou-se por todo o mundo, como uma epidemia, originando o surgimento de um significativo número de outros pesquisadores que se puseram no encalço da prevenção e do tratamento para essa patologia, desde medicamentos, atividades físicas, dietas alimentares, até chegar, nos casos mórbidos, à cirurgia bariátrica, procedimento mais eficaz em todos os sentidos. Constatou-se que, não tratada, a obesidade acarreta perda de diversas funções orgânicas. Com a intervenção cirúrgica, os obesos resgatam a independência, reassumem seu lugar social, além de estabelecerem uma nova relação com o próprio corpo. Representação mental do próprio físico, a imagem corporal é construída a partir de múltiplos componentes e de seus elementos constitutivos fisiológicos, libidinais e sociais, mormente no que diz respeito à estética corporal, cujo padrão atual é a magreza extrema, numa ostensiva defesa do culto exagerado do corpo considerado perfeito. Os aspectos da dificuldade de reconhecimento da própria imagem física devido à falha narcísica e a importância sobre a etiologia multifatorial da obesidade também foram tratados aqui, além da imagem corporal, após a cirurgia bariátrica, cujos olhares de admiração voltados para o obeso levam-no a uma sensação de igualdade com os demais. Palavras-chave: Obesidade; psicanálise; imagem corporal. ABSTRACT This work investigated the obesity which, currently, according to the World Health Organization (who), has spread throughout the world, such an epidemic, resulting in the emergence of a significant number of other researchers who stood in the way of prevention and treatment for this condition, provided medicines, physical activities, food diets, until, in morbid cases, bariatric surgery, most effective procedure in every way. It was found that untreated, obesity causes loss of various organic functions. With surgery, the obese rescue independence, are resuming their social place, in addition to establishing a new relationship with her own body. Mental representation of own physical, body image is constructed from multiple components and their physiological constituent elements, libidinais and social sciences, especially as regards the body aesthetics, whose current standard is the extreme thinness, in ostensible defense of exaggerated cult of the body considered perfect. Aspects of difficulty of recognition of own physical image due to the narcissistic failure and the importance about the multifactorial etiology of obesity have also been treated here, in addition to body image, after Bariatric Surgery, whose looks of wonderment facing the obese leads to a feeling of equality with others. Keywords: Obesity; psychoanalysis; body image. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .............................................................................................. 10 2 OBESIDADE MÓRBIDA: UM PROBLEMA PARA A PSICANÁLISE ......... 15 2.1 Abordagem histórica da obesidade mórbida como doença ....................... 17 2.2 A intervenção cirúrgica .............................................................................. 25 2.3 Abordagem psicanalítica e a obesidade .................................................... 31 2.4 Desejo e gozo ............................................................................................ 43 2.5 Uma nova sintomatologia .......................................................................... 49 3 IMAGEM CORPORAL NA CONTEMPORANEIDADE ................................ 52 3.1 O corpo ...................................................................................................... 53 3.2 Imagem corporal ........................................................................................ 59 3.3 Imagem corporal e obesidade ................................................................... 68 4 JÁ NÃO SOU MAIS A MESMA: POSSO VER-ME ...................................... 74 4.1 O corpo que volto a habitar ........................................................................ 75 4.2 Nova percepção da imagem corporal ........................................................ 77 4.3 Clínica de obesidade: fragmentos de casos .............................................. 81 4.3.1 Caso 01 ................................................................................................... 81 4.3.2 Caso 02 ................................................................................................... 83 4.3.3 Caso 03 ................................................................................................... 85 4.3.4 Caso 04 ................................................................................................... 86 4.3.5 Caso 05 ................................................................................................... 88 5 CONCLUSÃO ............................................................................................... 91 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................ 95 7 APÊNDICE ................................................................................................ 102 10 1. Introdução Ao pensar a obesidade, o que vem de imediato à mente é: “um sujeito preguiçoso, lento, que come muito, engraçado e que não se envergonha, pois é só fechar a boca e parar de comer muito que emagrece”, conforme entendem alguns. Em contrapartida, isso faz lembrar aquela frase de Gille Lambert apud Dualib (2000) “Emagrecer é morrer um pouco” (idem, ibidem, p.103). Ou seja, emagrecer denota sofrimento. Portanto, é possível considerar que ‘fechar a boca’ significa emagrecer e que emagrecer significa morrer lentamente, sabese que a realidade é bem outra. Mesmo porque não se alcança um objetivo tão facilmente e tão simplesmente quanto possa sugerir tais preceitos, pois na época presente a obesidade é considerada, em todo o mundo, uma doença que tem levado a óbito muitas pessoas. Por outro lado, indaga-se, por que então a obesidade, que outrora representava um padrão de beleza, não raro retratado em quadros, em painéis emoldurados, foi retirada daquele patamar de preferência que ocupava na sociedade, convertendo-se em uma enfermidade, o mais das vezes concebida na atualidade como epidemia mundial? É sabido que o homem sempre se preocupou em conceituar o belo. Com o passar dos tempos, esse conceito foi se transformando de acordo com a cultura de cada momento. Hoje, embora sob outra perspectiva, observa-se a existência de uma excessiva preocupação com a beleza, com a saúde, com um corpo musculoso e magro, possibilitando o surgimento de inúmeras práticas de exercício corporal, de técnicas de intervenção modernas, enfim, de um semnúmero de novidades não só no mercado cosmético, como também no comércio de vitaminas. Tudo isso faz aflorar, de maneira contundente, a importância que atualmente é concedida ao cultivo da juventude, da beleza, do corpo saudável e da boa forma, a estabelecer um estilo de viver e um estilo de ser. A verdade é que, a partir de tais fatos, torna-se mais fácil imaginar porque a obesidade passou a ser considerada uma enfermidade. É como se ela refletisse aquele outro lado da moeda que ninguém quer representar, por entender que se colocar nessa condição significa ser rejeitado, revela uma possibilidade de estar ou de vir a estar enfermo. Afinal, sabe-se que existem muitas comorbidades, isto é, não há quem ignore a existência de uma grande 11 quantidade de doenças associadas, doenças essas que tornam a obesidade um pecado. São muitos os métodos ofertados que prometem alcançar o emagrecimento cobiçado, como, por exemplo, as conhecidas e famosas dietas da lua, a dos carboidratos, a das proteínas, a da água, e tantas outras, sem que se tenha uma real comprovação científica de sua eficácia. Embora a redução do peso aconteça de fato e quase sempre com algum sofrimento, é sabido também que logo depois ocorre um retrocesso e a pessoa volta a ganhar peso, caracterizando o chamado efeito sanfona, que é o mais desanimador e decepcionante para esse sujeito, por levá-lo a engordar ainda mais do que antes. Porém, como tais procedimentos não davam conta desse tipo de comportamento, mormente em se tratando de obesidade mórbida, a medicina adotou um novo procedimento, visando à eliminação de tecidos adiposos, a que denominou cirurgia bariátrica, de forma a impossibilitar seu retorno. Em outras palavras: o objetivo é minimizar o surgimento daquilo que se convencionou caracterizar como efeito sanfona, com vistas a proporcionar mais qualidade de vida ao sujeito. Tal método implica algumas atitudes da equipe de profissionais, mas principalmente do sujeito com obesidade, na perspectiva de alcançar o resultado esperado, que é emagrecer com qualidade de vida. Esse recurso há de possibilitar a realização da façanha que para muitos constitui a última cartada. Aqui, esbarra-se em outra questão, objeto primeiro deste trabalho: a imagem que grande parte dos obesos preserva de si mesmos é constituída por uma representação distorcida, não havendo comparativo com a realidade da própria imagem, daí, inclusive, não reconhecerem o quão avantajado se encontra aquele corpo. Mas como eles conseguem emagrecer e reconhecer sua imagem corporal? Pergunta-se após se submeterem à cirurgia bariátrica. Por certo que uma segunda questão é esse reconhecimento mesmo da imagem corporal que advém da tomada de consciência desse corpo, já em processo de emagrecimento. A cirurgia por si só produz uma euforia nessa estrutura física, que então deixa de ser considerada achacada, enfermiça, doente, e passa a ansiar por se tornar mais um, dentro dessa sociedade, cujos estereótipos para 12 ser bem sucedido é ser magro, delgado, é possuir um corpo “sarado”, é consumir todo tipo de suplemento alimentar. Chama a atenção o fato de se perceber o quanto esses sujeitos, apesar de grandes não só fisicamente, mas inclusive no excesso de peso e de gordura corporal que carregavam, acreditavam que não eram tão gordos assim. Diante disso, afloram outras perguntas que se acredita serem pertinentes neste momento: onde tais sujeitos se encontravam durante todo esse tempo? O que faziam de suas vidas? O fato é que, com a autorização dos convênios de saúde para efetuar tais procedimentos, essas pessoas começaram a sair de casa – reduto em que permaneceram por muitos anos, às vezes deprimidos, ansiosos e largados sobre uma cama. A maioria desses pacientes não relaciona o comer à ansiedade. Os obesos mórbidos raramente buscam acompanhamento psicológico para tratamento da corpulência, por desconsiderá-la como doença e por não estabelecerem associação do comer com aspectos psicológicos, acreditando poder lidar sozinhos com a doença. Assim, para esclarecer e dar suporte a este trabalho utilizar-se-á a teoria psicanalítica, pois é nela que se percebem parâmetros para responder a questões como: que corpo é esse, assumido por determinados pacientes, e por que, para eles, a imagem apresenta-se distorcida da realidade? Também é na visão de sujeito da teoria psicanalítica que se pode falar desses pacientes com obesidade e de suas dificuldades em lidar com a imagem e com um corpo tão esquecido e tão malvisto por uma sociedade que quer enquadrá-lo no diferente, no esquisito, no mórbido. Isso faz pensar que a obesidade poderia ser a justificativa de uma histeria moderna, que se apresenta como uma doença para atender a pulsões tão menosprezadas do sujeito de uma sociedade, cuja estética se expressa como mais valorosa que o próprio sujeito. Portanto, a fim de melhor compreender por que, na obesidade mórbida, a imagem corporal apresenta-se muitas vezes distorcida e o que acontece, depois da cirurgia bariátrica, para que a imagem corporal volte a se apresentar de forma real, buscar-se-á suporte em estudiosos da teoria psicanalítica, cuja referência principal é Sigmund Freud. Para tanto, os capítulos serão divididos de maneira a possibilitar uma criteriosa investigação desse campo ainda tão pouco explorado na contemporaneidade. 13 Neste estudo, porém, pretende-se destacar apenas o que diz respeito à cirurgia bariátrica, que aparece na atualidade como a forma mais efetiva para se tratar a obesidade mórbida. Assim, em um primeiro momento, tentar-se-á elucidar, sob uma perspectiva histórica, o discurso globalizado da Organização Mundial de Saúde (OMS) e o modo como essa organização nos apresenta a obesidade como sendo somente uma doença, esquecendo o indivíduo em sua subjetividade. Após isso, buscar-se-ão conceitos da teoria psicanalítica, para elucidar esse físico tão esquecido e tão malvisto por uma sociedade que deseja enquadrá-lo no diferente. E será justamente nesse corpo habitado por pacientes obesos, que se concentrará este estudo, na perspectiva de encontrar resposta para a questão que motiva a investigação: por que a imagem corporal se apresenta, aos obesos, distorcida da realidade? Utilizar-se-á, também, a visão que a psicanálise propõe para obesidade. Ou seja, para esse método terapêutico, a obesidade só se classifica como um sintoma a partir do momento em que ela incomoda o próprio sujeito. Caso contrário, ela não é entendida como enfermidade. Inicialmente, tentar-se-á estabelecer um pequeno histórico da obesidade, de modo a evidenciar todo o processo que acarreta essa suposta doença. A pretensão é chegar aos propalados métodos de emagrecimento, o que vai levar ao foco deste trabalho, que é o resgate da imagem corporal, pensando a cirurgia bariátrica como uma alternativa desse mesmo resgate. Após isso, tentar-se-á exprimir o que a psicanálise considera sobre o tema obesidade, incluindo, nesse caso, a obesidade mórbida, que é a modalidade mais perversa da doença. Há de se falar, também, do conceito de desejo e de gozo, além do surgimento de uma nova sintomatologia e como ela é pensada por esse método terapêutico criado por Freud. Ainda sob a ótica da teoria psicanalítica, se tentará elucidar o motivo pelo qual esse corpo é tão esquecido e tão malvisto por uma sociedade que deseja acondicioná-lo no dissemelhante. Mesmo porque, será nesse corpo que compete o paciente com obesidade, que se concentrará este estudo, cuja aspiração é buscar resposta a mais uma das questões que o motivam: por que a imagem corporal se apresenta distorcida da realidade para o obeso? 14 O terceiro capítulo se ocupará da imagem corporal na contemporaneidade, momento em que se utilizará a visão dessa imagem e sua formação no psiquismo do sujeito obeso. Examinar-se-á, ademais, o corpo, de modo a franquear uma vereda para se chegar à razão última deste trabalho, que é falar sobre a distorção da imagem na obesidade mórbida. No quarto e último capítulo, trataremos desse novo corpo e da imagem corporal, depois da cirurgia bariátrica. Também se utilizarão fragmentos de casos clínicos, na perspectiva de ilustrar e demonstrar que a obesidade traz consigo uma distorção de imagem que afeta o psiquismo do obeso. 15 2. Obesidade: um problema para a psicanálise “Aprisionado dentro de todo homem obeso existe um homem magro que apela desesperadamente para ser libertado1”). (CONNOLY, 2005) Considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um dos dez principais problemas de saúde pública do mundo, a obesidade vem crescendo em ritmo alarmante no Brasil. Mas o que é obesidade? Obesidade, nediez ou pimelose2 quer significar uma doença crônica multifatorial, na qual a reserva natural de gordura aumenta até se associar a certos problemas de saúde ou ao aumento da taxa de mortalidade. Representa o resultado do balanço energético positivo, ou seja, revela uma ingestão alimentar superior ao gasto energético (WIKIPÉDIA, 2012). Nas diversas etapas de seu desenvolvimento, o organismo humano traduz o resultado de diferentes interações entre o patrimônio genético (herdado de pais e familiares), o ambiente socioeconômico, cultural e educativo e o ambiente individual e familiar. Daí as pessoas apresentarem diversas características peculiares que as distinguem, especialmente em relação à saúde e à nutrição. A obesidade é o resultado de várias dessas interações, em que chama a atenção os aspectos genéticos, ambientais ou comportamentais. Atualmente, este último – o comportamental – parece ser o mais importante para o desenvolvimento dessa patologia. Assim, a obesidade aparenta trazer repercussões não só de ordem clínica, mas também de aspecto psicológico, ainda que manifestações psíquicas possam ser consideradas causa ou efeito da obesidade. Em assim sendo, filhos de pais obesos apresentam alto risco de se tornarem também pessoas obesas, da mesma forma que determinadas mudanças sociais são passíveis de estimular o aumento de peso em certos grupos de pessoas. Independente da importância de tais causas, o ganho de peso haverá de estar sempre agregado a um aumento de ingestão alimentar e a uma redução 1 Tradução do autor: “Imprisoned um every fat man, a thin one is wildly signaling to be let out” In: CONNOLLY, C. The unquiety grave: a word cycle by Palinurus. Inglaterra: Persea, 2005. 2 Tecnicamente, antepositivo de origem grega pimelē, ês = gordura, mais o sufixo grego-latino ose, usado para formar substantivos referentes a processos patológicos e doenças, processo mórbido. 16 do gasto energético correspondente a essa ingestão. Aliás, é possível que o aumento da ingestão decorra da quantidade de alimentos ingeridos ou de modificações em sua qualidade, resultando numa ingestão calórica total elevada. O gasto energético, por sua vez, é passível de estar associado a características genéticas ou, também, pode ser que seja dependente de uma série de fatores clínicos e endócrinos, incluindo, nesse caso, doenças em que a obesidade seja derivada de distúrbios hormonais. Recentemente, tem-se observado o surgimento de uma série de investigações científicas referentes aos diversos mecanismos pelos quais o indivíduo aufere peso, a demonstrar cada vez mais que tal situação, em sua maioria, encontra-se associada aos mais diferentes fatores. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2004), mais da metade da população adulta brasileira apresenta-se acima do peso. Pesquisas indicam que o excesso de peso já atinge também uma em cada três crianças entre cinco e nove anos de idade e um quinto dos adolescentes no país. No Brasil, aliás, quarenta por cento da população ostentam diagnóstico de excesso de peso. A maior incidência está entre os adultos, e, entre estes, as mulheres. As maiores causas apontadas: sedentarismo, ingestão de alimentos em demasia e estresse; em menor escala, estão os distúrbios orgânicos que levam, involuntariamente, à pronta elevação de peso. Hoje, a sociedade sugere como modelo idealizado um indivíduo de físico magro e de pouco peso, isto é, de peso não proporcional à altura e à ossatura da pessoa, o que acaba colocando essa população de quarenta por cento numa condição marginal aos padrões oficiais vigentes. A verdade é que os profissionais não levam em consideração a subjetividade do obeso. O que lhes importa de fato é conhecer a massificação da doença, esquecendo-se quase sempre do que se passa no íntimo dessa criatura. A negligência de questionamento sobre o indivíduo, a falta de percepção para saber se ele se sente bem na condição em que se encontra, tudo isso faz com que a OMS esqueça esse sujeito desejante. Rotulados como doentes tais indivíduos hão de apresentar dificuldades que fazem parte desse conjunto de transtornos que agrava a obesidade, de modo a complicar cada vez mais o quadro, por meio da baixa autoestima, da distorção da imagem, da depressão, da ansiedade, dentre outras 17 possibilidades. Ora, diante desse cenário, o obeso passa a se isolar em casa, o que dificultará seu envolvimento social. Sua autoestima fica cada vez mais comprometida, esquecendo-se de si mesmo, não mais se reconhecendo como realmente é. Nesse instante, já não é possível um comparativo desse indivíduo com a própria imagem e ele mesmo já não reconhece no próprio corpo tanta adiposidade, já não o enxerga tão grande. Agora, sua imagem apresenta-se distorcida. Para a maioria das pessoas concebidas como tal, a obesidade é o problema e elas próprias acreditam que após o emagrecimento se tornarão outra pessoa. Mas, como saber? De fato, o emagrecimento melhora muito a autoestima antes tão prejudicada. Melhora também a imagem corporal, que começa a ser percebida de maneira diferente, de forma mais real. Esse emagrecimento pode ser alcançado de diversas maneiras: ingerindo remédio para emagrecer, seguindo dietas, fazendo exercícios físicos, etc. 2.1 ABORDAGEM HISTÓRICA DA OBESIDADE COMO DOENÇA Revela a história que a obesidade é a mais comum e, há um tempo, a mais antiga doença metabólica humana registrada, embora nem sempre ela tenha sido vista como doença. Desde os tempos pré-históricos, a obesidade assumiu um papel preponderante na vida dos seres humanos, não raro sendo referida como símbolo de beleza e fertilidade. No Período Neolítico (cerca de 20.000 a 30.000 anos a.C.), como mostra o Fitness Performance Journal (2006), por exemplo, o culto à fertilidade era praticado por meio de rituais místico-religiosos. Em decorrência, várias foram as deusas e inúmeras as figuras míticas, representantes da fertilidade e da agricultura, que continuaram a ser cultuadas na Antiguidade, admiradas por seus seios avantajados, quadris e membros inferiores corpulentos, coxas volumosas. A Vênus de Willendorf, estatueta que representa uma figura feminina obesa, era símbolo de fertilidade, insígnia da maternidade. Na Grécia, observam-se representações dessas figuras em esculturas não só gregas, mas 18 também romanas. E, mais recentemente, na América pré-colombiana, podem ser admiradas representações maias, astecas e incas, esculpidas em vasos de variados tamanhos. Contudo, foi na Idade da Pedra que se encontraram os primeiros indícios de tipos de obesidade: a obesidade glútea e a obesidade abdominal ou visceral. (REPETTO, 1998, p.3). A obesidade glútea, também representada artisticamente na Idade da Pedra – principalmente na França, na Espanha, em Creta, na Iugoslávia, na Checoslováquia e na Ucrânia – é um tipo de obesidade que, dizia-se, estaria mais ligada ao armazenamento de energia, para garantir a sobrevivência do indivíduo e da espécie, e não parecia estar relacionada a enfermidades. Já a obesidade visceral, ao que tudo indica, predominava entre os povos mais pródigos, os que gozavam de fartura de alimentos e que tinham uma vida mais sedentária. Essa espécie de obesidade estaria associada às enfermidades. (idem, ibidem, loc.cit.). Segundo Repetto (ibidem, p.5) há aproximadamente 2.500 anos, Hipócrates, célebre médico da Grécia antiga (460 a.C. – 377 a.C.), já chamava a atenção para os perigos da obesidade, por perceber a existência de um índice de mortalidade mais elevado em indivíduos gordos do que em pessoas magras. Tal como Hipócrates, também seu discípulo Galeno dedicou-se a estudar a obesidade, dividindo-a em natural (moderada) e mórbida (exagerada). Galeno referia que a falta de disciplina do indivíduo tinha como principal consequência a obesidade, daí preconizar como tratamento comida moderada, massagens, banho, descanso ou algum lazer; caso se fizessem refeições muito fartas, que os alimentos fossem de baixo teor calórico. Em que pese a tal circunstância, Cunha; Neto & Junior (2006) lembram que no: “período do Império Romano, os padrões de beleza alteraramse e as mulheres foram “obrigadas” a fazer prolongados jejuns, pois os corpos esbeltos e magros eram os mais apreciados. Todavia, a classe social alta poderia manter livremente os seus hábitos alimentares mais excêntricos”. (idem, ibidem, p.145146). No Talmude, estudo enciclopédico da lei judaica, encontram-se diversas citações acerca de obesos e da obesidade, dentre as quais vale observar o 19 relato de uma cirurgia a que foi submetido o rabino Eleazar. Assim é descrita essa ocorrência: “Seu abdome foi aberto e de dentro foram retiradas cestas de gordura. Não se sabe quem realizou a cirurgia ou se o rabino se recuperou ou não. Em outra citação, o rabino Eleazar Ben Simeon e seu pai vivem escondidos, por treze anos, das autoridades romanas da Galileia. Apesar de comerem somente tâmara e poucas frutas, eles se tornaram obesos. Essa referência nos leva à genética da obesidade, ou seja, mesmo sem grande excesso alimentar, uma pessoa pode tornar-se obesa”. (REPETTO, 1998, p.05). Como se pode observar, a preocupação com a obesidade teve início em tempos remotos. É datada do século XVII a primeira monografia escrita sobre essa enfermidade, nela a alteração biológica é relatada como uma mistura de doença com distúrbio do caráter (idem, ibidem, p.7). O médico inglês Thomas Sydcnham (1624-1689), considerado o grande clínico do século XVIII, aclamado como o "Hipócrates moderno", foi quem primeiro começou a catalogar os sinais e os sintomas manifestados pelas pessoas enfermas. No início deste século, publicou o Grande Catálogo Clínico das Doenças, em que já figurava o problema da obesidade. No decorrer do século XVIII, verificaram-se diversas descrições sobre a moléstia. Com o início da medicina clínica (1800-1850), começaram a aparecer citações mais frequentes sobre o assunto e descrições da própria obesidade. É curioso lembrar que o médico francês René-Théophile-Hyacinthe Laennec (17811826), inventor do estetoscópio, quando de sua primeira descrição do instrumento em 1816, relatou que a ideia de criar um aparelho que pudesse detectar ruídos no organismo surgiu da dificuldade de se fazer ausculta do tórax em uma jovem muito obesa, com mamas volumosas. (idem, ibidem, p.7). Em verdade, sabe-se que durante o século XIX, nenhuma farmácia era considerada completa sem o seu vidro de sanguessugas vivas, usadas para tratar muitas enfermidades, entre elas obesidade. No ano de 1863, o prêmio Nobel de Medicina, o canadense Frederick Bantig (1891-1941), escreveu o que certamente seria o primeiro livro de dietas. Trata-se do panfleto intitulado ‘Unia carta dirigida ao público sobre a corpulência’, em que ele falava sobre o 20 método pelo qual ele próprio conseguira perder peso. (CUNHA; NETO & JUNIOR, 2006, p.146-154). No decorrer da história, a obesidade foi vista sob diferentes aspectos. Em algumas civilizações da Antiguidade, por exemplo, ser gordo queria significar ser bem sucedido, era signo de sucesso. Em outras culturas, como a do Japão medieval, ser obeso refletia um deslize moral cometido pelo indivíduo. Já na Europa, o estigma da obesidade era fundamentado pela Igreja Católica, por meio do pecado capital da gula. Como se vê, embora de diferentes formas, a obesidade foi sempre estigmatizada pela sociedade. Com exceção dos países africanos, onde a obesidade nos homens é sinal de domínio e poder, e a das mulheres, que simboliza maior fertilidade, percebe-se, na atualidade, a existência de uma predisposição maior a manifestar um sentimento desfavorável, formado, a priori, em relação ao obeso. Todavia, com os avanços das pesquisas ocorridos nas últimas décadas, chegou-se à conclusão de que a obesidade é uma doença multifatorial e que não se vincula, portanto, a um único aspecto individual. Já em começos do século XX, a Organização Mundial da Saúde (OMS) chamava a atenção para o fato de haver no mundo mais de um bilhão de adultos com sobrepeso e, aproximadamente, trezentos milhões de adultos obesos. Ainda segundo a OMS, num futuro próximo, cerca de 60% da população mundial hão de apresentar algum problema de saúde relacionado à obesidade. Ao final da primeira década do século vigente, resultados de pesquisas no mundo consideraram a obesidade uma doença epidêmica global – a doença do século 21 – que precisa ser encarada mais efetivamente, tendo em vista o alto índice desse distúrbio na população infantil e as evidentes consequências na saúde integral da pessoa obesa. A obesidade favorece em grande escala o risco de aparecimento e agravamento de doenças crônicas e de sofrimentos psicossociais. No mundo inteiro, há mobilizações científicas e políticas focadas para esse problema. E isso ocorre de tal modo, que, em fevereiro de 2011, com a presença da direção da OMS, Ministros da Saúde de países do continente americano, reunidos no México, durante a Consulta Regional de Alto Nível das Américas Contra as Enfermidades Crônicas não Transmissíveis (ECNT), assinaram uma 21 declaração em que propunham a criação de políticas públicas, com o fim de combater a obesidade nas respectivas nações. Tal como se encontra prescrito na Carta Europeia de Luta contra a Obesidade, essa declaração reconhece a liderança da área da saúde nessa peleja contra a doença e seus agravos, mas coloca ênfase no caráter intersetorial das ações, propondo o engajamento dos setores de educação, cultura, comércio e mídia. Na Europa, a epidemia da obesidade é considerada um dos maiores desafios para a saúde pública. Além de acarretar mudança rápida em determinantes sociais, econômicos e ambientais, ela estabelece também alteração no estilo de vida das pessoas. No Brasil, consoante o Ministério da Saúde, a parcela da população cujo Índice de Massa Corporal (IMC) é igual ou superior a 30, portanto, consideradas obesas, passou de 11,4% para 13,9% em apenas três anos, entre 2006 e 2009. E a tendência é aumentar. Estima-se, ainda, que quatro milhões de brasileiros tenham atingido o estágio de obesidade mórbida, quando o IMC chega a quarenta. A OMS classifica como situação de obesidade quando o IMC (peso em kilograma dividido pelo quadrado da altura em metro) encontra-se acima de 30 kg/m². Quanto à gravidade, a OMS propõe a seguinte classificação: obesidade grau I, quando o IMC está entre 30 e 34,9 kg/m²; obesidade grau II, quando o IMC está entre 35 e 39,9 kg/m²; e obesidade grau III, quando o IMC ultrapassa 40 kg/m². O crescimento do número de pessoas obesas está sendo considerado um problema de saúde pública, principalmente porque esses casos estão sobrecarregando o sistema público de saúde no tratamento de excesso de peso e de doenças associadas ao problema. A questão é que a obesidade é uma doença multifatorial, relacionada a diversos aspectos, desde aqueles de ordem genética, até os de ordem socioambiental, podendo-se depreender que 95% ou mais dos casos estão intimamente ligados ao estilo de vida. No decorrer da história, conforme se evidenciou anteriormente, a obesidade não tinha esse caráter de doença que lhe é atribuído nos tempos atuais pela OMS. Ao contrário, tratava-se de uma expressão de forma de vida, de fertilidade, de produção artística, de poder e de respeito pelo desejo do outro. Hoje, não são levadas em consideração as repercussões psicológicas, que, se não forem trabalhadas ou percebidas, podem trazer graves danos ao 22 indivíduo, levando o paciente à morte tanto biológica quanto psíquica, pois não se sabe o que essa obesidade pode significar para esse sujeito. Cintra & cols. (2006) esclarecem que: “ao lembrarmos a evolução feminina, observamos que a obesidade também era valorizada e representada nas artes; os corpos grandes e arredondados eram considerados sinais de opulência e poder, ao contrário do que social e culturalmente preconiza-se. Ocorria uma valorização positiva, em contraste com a valorização e cobrança que marcaram as últimas décadas, tendentes a valorizar corpos esbeltos e esguios, considerando a magreza como uma situação ideal de aceitação e êxito”. (idem, ibidem, p. 292-296). Ainda de acordo com alguns estudiosos: “esses fatores podem predispor a pessoa obesa a desenvolver um transtorno da imagem corporal, a qual pode ser influenciada por uma série de ocorrências, como a idade no início da obesidade, presença de algum transtorno emocional, influência social através da avaliação negativa ou depreciativa do outro, entre outros fatores”. (LANCHA, FRANCISCHI & cols., 2000, p. 17-28). O ato de comer e a noção de imagem corporal interferem de maneira prejudicial na vida do obeso, fazendo surgir um sentimento de impotência e de falta de controle em seus relacionamentos. Na maioria das vezes, os obesos graves respondem de forma insatisfatória ao tratamento convencional medicamentoso, associado à dieta hipocalórica e à atividade física controlada. Enfrentam tentativas frustradas de perda de peso e/ou de sua manutenção, ao procurar serviços médicos ou alternativos, pois emagrecem e recuperam pelo menos duas vezes mais o peso anterior, o que torna esses serviços um dos grandes temores do paciente. Dessa forma, o paciente sente que seus esforços não foram recompensados e que a perda de peso é praticamente impossível. Assim, manifesta-se a obesidade mórbida, que se caracteriza por uma ingestão de alimentos em excesso, por um comer mal e rápido demais, associado à falta de exercício, a uma predisposição genética e a fatores psicológicos e sociais. 23 O corpo do obeso mórbido é excessivamente gordo, volumoso. O paciente encontra-se muito acima de seu peso, basicamente à custa de gorduras que parecem não ceder às orientações dietéticas ou à reeducação alimentar. Trata-se de condições de obesidade, condições essas que aumentam muito as chances de aquisição de sérios problemas de saúde, as chamadas ‘comorbidades’3. Como o próprio nome indica, o vocábulo ‘mórbido’ guarda o sentido de aquele que traz consigo as doenças, ou o que corre um alto risco de adquiri-las, em decorrência do excesso de peso. Comorbidades são doenças secundárias que podem levar à morte, ocasionadas pela obesidade, dentre as quais se podem citar: diabetes, hipertensão arterial, problemas articulares, dificuldade de locomoção, colesterol elevado, apneia do sono, trombose, etc. Considerada problema de saúde pública, sobretudo em países desenvolvidos, o estudo da obesidade mórbida vem sendo realizado também em outras áreas, além do campo médico. Além disso, há de se observar a importância que a estética adquiriu na sociedade pós-moderna. Neste caso, está-se referindo ao culto à estética do corpo esbelto, longilíneo, considerado o corpo ideal, o corpo perfeito. Em decorrência disso, o obeso acaba por experimentar sentimentos de rejeição e, não raro, de segregação em relação a sua imagem. Tal tirania do corpo, imposta pela sociedade em geral, parece ser a principal responsável pela frustração daqueles que, por um motivo ou por outro, não conseguem ou não são capazes de fazer chegar o próprio corpo físico a esse ideal de perfeição, ou, pelo menos, dele se aproximar. Daí optarem por um novo estilo de vida, assumindo uma rotina sedentária, uma nutrição cada vez mais excessiva, cujo desenlace não pode ser outro, senão um balanço energético alto, desencadeador da obesidade. Os programas de atenção à saúde têm apresentado estratégias de promoção que tentam estimular o interesse das pessoas por práticas saudáveis. Paralelo a isso, também tem sido incrementado tratamento para pessoas que sofrem de obesidade mórbida, visando a prevenir diversos agravamentos dessa disfunção orgânica e suas complicações. 3 Do latim morbus, i ', isto é, doença, enfermidade, moléstia', de que derivou morbìdus, a, um, com o sentido de 'enfermo, doente; insalubre, mórbido'. 24 Apesar das várias intervenções para combater a obesidade, observa-se também um aumento de sua gravidade em razão da utilização de métodos inadequados por parte de pessoas obesas. Tais métodos, além de comprometerem o metabolismo, são normalmente ineficazes e facilitam a recuperação do peso perdido, o que torna o tratamento ainda mais difícil. A principal questão é a complexidade que envolve a situação de ser obeso. Por ser a obesidade um fenômeno bastante centrado no aspecto comportamental, a meta de atingir um peso saudável passou a exigir mudanças nos hábitos alimentares, na prática do condicionamento físico e na atenção à saúde psíquica. Para o obeso mórbido essa meta é ainda mais difícil de ser alcançada e, muitas vezes, até mesmo impossível, a depender do tipo de obesidade e de sua gravidade. Com frequência, aliás, alguns tipos de obesidade exigem medidas mais drásticas de tratamento. Atualmente, existem diversas modalidades de tratamento para a perda de peso, dentre os quais se destacam a variedade de dietas, as psicoterapias, os medicamentos e os programas de atividades físicas. Porém, a maioria dos obesos mórbidos não obtém sucesso ao optar por qualquer desses recursos. Com isso, outros problemas surgem além daqueles associados ao ganho de peso, como, por exemplo, a frustração e a ansiedade constantes, o estresse e a depressão, problemas esses que influenciam ainda mais o comportamento alimentar inadequado e o agravamento da comorbidade. O tratamento conservador da obesidade – por meio de mudanças no hábito alimentar e/ou no comportamento, ou por meio de exercícios físicos e medicamentos – tem seu lugar, sim. Porém, torna-se ineficaz quando se trata de obesidade mórbida - Índice de Massa Corporal maior que quarenta. Vários estudos demonstram que, mesmo com emprego de novos medicamentos emagrecedores, como a sibutramina, a cada cem pacientes tratados, apenas trinta e quatro conseguem perda ponderal de dez por cento ao final de doze meses. Contudo, essa perda é considerada muito pequena em se tratando de obeso mórbido. Além desses maus resultados na redução ponderal, com o passar do tempo, o tratamento conservador falha na manutenção do emagrecimento e a quase totalidade dos pacientes recupera tudo o que havia perdido em relação ao peso. E mais, não é incomum o indivíduo ultrapassar o que perdera após 25 cinco anos de acompanhamento. Dessa forma, no consenso mundial sobre tratamento da obesidade, organizado pelo Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos, em 1991, ficou estabelecido que o único tratamento eficaz para a perda e manutenção ponderal do obeso mórbido é a cirurgia bariátrica, atualmente considerada a mais bem-sucedida medida terapêutica em tais casos, pelo fato de a obesidade trazer ameaça à vida do indivíduo. (NASSER & ELIAS, 2004, p.45). 2.2 A INTERVENÇÃO CIRÚRGICA Para iniciar este subcapítulo, há de se lançar mão de algumas citações retiradas do livro de Novaes (2006), a respeito da esperança que os pacientes apresentam em relação à cirurgia bariátrica. “Costumo dizer que não sei como sou. Não conheço o formato real do meu corpo, só conheço a deformação da obesidade. Espero logo poder saber sobre meus contornos e curvas e que eles sejam interessantes”. (idem, ibidem, p. 189). Outra fala: “É uma cirurgia de restauração da qualidade de vida e da possibilidade de voltar a ter prazer em outros âmbitos que não seja só através da comida. No que os pacientes já operados reforçavam em coro uníssono: é um renascimento, o Dr. X é maravilhoso, com ele voltamos a ter prazer!” (idem, ibidem, p. 187). A avaliação do cenário da obesidade na população e das dificuldades das pessoas seguirem o tratamento habitual e terem sucesso com ele, estimulou a ciência médica a desenvolver um tratamento via intervenção cirúrgica. Desde a década de setenta do século passado, as pessoas que sofrem de obesidade mórbida podem contar com outro tipo de tratamento: a cirurgia bariátrica. Apesar de terem sido desenvolvidos poucos estudos com a população que se submeteu a esse tratamento – especialmente de caráter qualitativo, segundo a avaliação de médicos que atendem a essa população –, 26 a cirurgia tem se mostrado um tratamento que traz novas perspectivas aos indivíduos obesos. A cirurgia bariátrica, também conhecida como gastroplastia ou cirurgia de redução de estômago, representa uma opção para pessoas com obesidade mórbida que não conseguem perder peso pelos métodos tradicionais, ou para quem sofre de problemas crônicos de saúde, relacionados a essa doença. Atualmente, há três procedimentos cirúrgicos para tais casos, a saber: “os que limitam a capacidade do reservatório gástrico, denominado restritivo; os que interferem na digestão, chamados de mal-absortivos e uma combinação de ambos” (OLIVEIRA, LINARDI & AZEVEDO, 2004, p.199-201). Apesar de sua natureza invasiva, “a cirurgia bariátrica tem mostrado taxa de sucesso consistente, promovendo, em média, uma redução de 50% no peso, com manutenção dessa redução a longo prazo. A indicação dessa intervenção vem crescendo nos dias atuais e baseia-se numa análise abrangente de múltiplos aspectos do paciente”. (FANDIÑO et. al., 2004, p.47-51). A cirúrgica bariátrica também tem sido utilizada para tratamento de pessoas obesas, portadoras de Diabetes Mellitus tipo II, pois, ao induzir significante perda ponderal nesses indivíduos, a resistência à insulina diminui e, consequentemente, também os fatores de risco de virem a sofrer problemas cardiovasculares. A intervenção reduz o estômago em cerca de vinte centímetros cúbicos, ou seja, o estômago reduzido perde até noventa por cento de sua capacidade de absorção. Devido a essa redução, diminui a capacidade de o estômago suportar a quantidade habitual de alimentos ingeridos. Com isso, o estômago enche-se rapidamente e a mensagem de saciedade é transmitida ao cérebro, fazendo com que a pessoa consuma bem menos alimentos do que costumava fazer antes. No entender de Garrido Júnior (2002), na indicação cirúrgica, adotam-se padrões recomendados pelo National Institutes of Health Consensus Development Conference Panel (1991). Basicamente, as indicações podem ser resumidas da seguinte forma: presença de morbidade, resultante da obesidade ou agravada por ela; persistência do excesso de peso de, no mínimo, cinco anos; IMC acima de 40 kg/m² ou acima de 35 kg/m², na presença de doenças 27 associadas; fracasso de métodos tradicionais de emagrecimento; ausência de causas endócrinas de obesidade e avaliação favorável das possibilidades psíquicas do indivíduo em suportar as transformações radicais de comportamento impostas pela cirurgia. Já em relação aos critérios psicológicos ou psiquiátricos de exclusão dos pacientes à cirurgia, Segal & Fandiño (2002) acreditam não haver um consenso na literatura, dependendo muito, portanto, da equipe multidisciplinar. Contudo, eles lembram que os transtornos psiquiátricos, especialmente os de humor, ansiosos e psicóticos, são comumente considerados como contraindicações. Em 17 de fevereiro de 2011, foi aprovada no Brasil uma nova regulamentação que autoriza a utilização da banda gástrica no tratamento da obesidade moderada, de maneira que indivíduos com índice de massa corpórea (IMC) a partir de 30kg/m² e que sofram de alguma doença associada à obesidade, como diabetes, hipertensão arterial e apneia do sono, estão aptos para o tratamento cirúrgico. A literatura destaca, ainda, que procedimentos drásticos só devem ser adotados quando a obesidade estiver ameaçando a vida e os tratamentos convencionais não fizerem efeito. A indicação da cirurgia, por conseguinte, somente será adotada após minuciosa análise dos múltiplos aspectos clínicos da pessoa obesa, o que exige atenção de uma equipe multidisciplinar. Somente após essa equipe comprovar que tudo se encontra esclarecido a respeito de todos os detalhes referentes ao diagnóstico, aos benefícios e aos riscos da cirurgia, assim como às repercussões e às necessidades de tratamento posterior é que a intervenção poderá ser realizada. Sem dúvida que se o “Termo de Consentimento Informado”, prescrito pela Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM), for aplicado de acordo com os princípios éticos, somente assinará o Termo para se submeter à cirurgia aquela pessoa obesa com extrema necessidade de tratamento cirúrgico. Os resultados esperados após a cirurgia bariátrica incluem perda de peso, melhora das comorbidades relacionadas e melhora da qualidade de vida em geral. Estudos clínicos revelam que após a cirurgia muitos indivíduos perdem peso rapidamente e continuam a perdê-lo até dezoito (às vezes até vinte e quatro) meses após o procedimento, podendo manter 50 a 60% da perda do 28 excesso de peso de dez a quatorze anos após a cirurgia. Quanto às repercussões não satisfatórias, a princípio, estão as intercorrências advindas do próprio ato cirúrgico, como qualquer procedimento invasivo com anestesia geral, como risco de infecção e possibilidade, mesmo que remota, de embolia pulmonar. Pode haver, também, complicações decorrentes do excesso de peso ou por agravamento de doenças associadas, como as cardiovasculares e o diabetes. O risco total de complicações varia entre 10 e 15%, e a mortalidade está em torno de 0,3 a 1,6%, sendo mais frequente em indivíduos com muitos fatores de risco associados à obesidade. A atenção aos riscos cirúrgicos e ao tratamento posterior muito prolongado torna-se mais importante, frente à evidência do alto número de gastroplastias no contexto brasileiro. Sabe-se que a tendência de tal fato é aumentar nos próximos anos, em função da divulgação dos casos de sucesso e da diminuição dos riscos cirúrgicos e, também, pelo fato de este tratamento estar inserido em planos particulares de saúde e no Sistema Único de Saúde (SUS). No Brasil, a cirurgia bariátrica começou a ser realizada em maior escala a partir do ano 2000, quando alguns planos de saúde particulares e a rede pública passaram a assumir os custos do procedimento. Esse tratamento foi regulamentado no SUS pela Portaria nº 628/GM, de 26 de abril de 2001, cujo protocolo foi aperfeiçoado em 2005. Desde então, o usuário do SUS com obesidade mórbida passou a realizar essa cirurgia em algumas instituições governamentais do país. A procura por tais entidades tem sido muito grande e a demanda do serviço público ainda não consegue ser atendida como esperado, gerando longas filas de espera. Dados da Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica (SBCBM) apontam que em 2010 foram realizadas 64,4 mil cirurgias no país, o que representa uma alta de 275% em relação a 2003, ano em que os primeiros registros foram coletados, e de 33% em relação a 2009. Pelo SUS, o número de cirurgias aumentou 23,7% entre 2007 e 2009, chegando a 3.681 intervenções, mesmo com filas de espera de até oito anos. Em hospitais vinculados ao SUS, o número de cirurgias aumentou quase 800%, entre 2001 e 2010. Em unidades particulares, o crescimento registrado na última década é menor, cerca de 300%. Os números fazem do Brasil o segundo colocado no 29 ranking de cirurgias bariátricas, atrás apenas dos Estados Unidos, com 300 mil procedimentos em 2010. Chama-se a atenção para o fato de que construir uma vida mais saudável, resultado esperado pela população que se submete a esse tipo de cirurgia, é um processo muito complexo, pois envolve a interligação dos aspectos físico, psíquico e social e varia de indivíduo para indivíduo. Nesse sentido, existe a recomendação do Ministério da Saúde para que haja um acompanhamento multiprofissional e sistemático aos indivíduos que se submeteram a tratamento cirúrgico. Observa-se também uma preocupação comum entre os profissionais com os sintomas psicológicos e os quadros psiquiátricos apresentados pela população obesa em tratamento e por aqueles que se candidatam à cirurgia, pois se entende que se não forem adequadamente tratados, podem comprometer o prognóstico. A realização correta e eficaz da intervenção cirúrgica indicada não impede futuro ganho de peso, caso não haja o devido acompanhamento e a devida disciplina no tratamento. A transformação, no entanto, não se restringe ao corpo. Aspecto pouco mencionado, ou até mesmo ignorado por boa parte das pessoas, são as mudanças psicológicas, determinantes para o sucesso de uma nova jornada. O fato é que nem sempre os pacientes estão preparados para uma mudança tão radical. Normalmente, quem sofre de obesidade mórbida também sofre de compulsão alimentar e, após a cirurgia, há o risco dessa compulsão se manifestar de outras formas. Assim, álcool e sexo constituem duas das compensações mais comuns para as drásticas reduções no cardápio. O exagero, portanto, continuará presente na vida dessas pessoas e para contê-lo, ou numa possibilidade ideal, para impedir que ele surja, torna-se muito importante manter um acompanhamento psicológico depois de se realizar a operação. A terapia, aliás, tem de começar um pouco antes da cirurgia. A ideia é conferir se a transformação não vai causar no paciente um impacto emocional difícil de ser administrado. A reforçar tais aspectos, há de se lembrar das ideias de Pinto (2004), quando ela esclarece que: “o Conselho Federal de Medicina baixou uma resolução que exige do médico a avaliação geral do paciente antes de realizar 30 uma operação definitiva, como é o caso das cirurgias de redução do estômago. A solicitação de pareceres e laudos psicológicos é indispensável. O laudo é necessário também para autorizar a operação, inclusive em hospitais públicos”. (PINTO, 2004, p.141). Segundo essa psicóloga, o laudo é importante por dois aspectos: primeiro, por avaliar a estrutura emocional do indivíduo para lidar com as mudanças trazidas pela cirurgia; e, segundo, para verificar se o acompanhamento e a avaliação psicológica teriam conseguido diagnosticar o aparecimento de outro comportamento não adaptativo após a cirurgia, conforme já ocorreu em alguns casos, como compulsividade por drogas, álcool, jogos, trabalho ou sexo. Ou seja, torna-se passível ao paciente migrar para outras escolhas. Nesse sentido, o laudo do profissional é fundamental, pois ele pode restringir a cirurgia, ou mesmo adiá-la, e propor um trabalho psicoterápico adequado. Silva (2000, p.32-39) também reforça essa ideia sobre a avaliação psicológica. Ele evidencia a importância da avaliação psicológica em pacientes obesos mórbidos, quando da preparação para cirurgia, a fim de diagnosticar e prognosticar a adaptação das novas condições impostas pela alimentação, pelas alterações no corpo e pelas dificuldades no próprio seguimento do tratamento. Com base nessa apreciação do profissional, a equipe médica tem condição de decidir mais objetivamente o momento ideal de realizar a cirurgia. Segundo Carlos (2005), o obeso quase sempre costuma apresentar um comportamento muito dócil, muito amigável. Trata-se, quase sempre, de uma anulação de si próprio em relação ao outro, como se ele precisasse agir assim para ser aceito. Em contrapartida, o oposto disso pode aparecer após a cirurgia, emergindo uma agressividade exagerada, daí a importância do acompanhamento psicológico. Assim, cabe ao paciente dar sequência a essa nova fase, percebendo que, a partir de então, ele pertence a um mundo de dimensões reduzidas. (idem, ibidem, p.30-34). Vale registrar aqui, a frase da filha de uma paciente, publicada em um documentário sobre obesidade na Geografic Magazine4, frase essa que traduz 4 Documentário sobre obesidade apresentado no canal de TV NetGeo. 31 bem aquilo que o obeso faz com seus sentimentos mais intensos. No entender dessa menina: “Ela come a sua emoção” 2.3 ABORDAGEM PSICANALÍTICA E A OBESIDADE “A psicanálise é o nome de um procedimento para a investigação de processos mentais que são quase inacessíveis por outro modo”. (FREUD, 1923, p.107). É interessante refletir a obesidade levando em consideração que os obesos podem possuir inúmeras maneiras de refletir sobre o alimento. Entender a dinâmica de preenchimento a que os obesos estão ligados; ou considerar a ingestão de alimentos como forma de ficar constantemente preenchendo algo; ou ter de comer para tentar preencher um “espaço vazio”; ou saber comer como forma de prazer; ou, ainda, comer para diminuir a ansiedade, eis os caminhos que se podem percorrer para chegar a esse entendimento oferecido pela psicanálise. Levando em consideração que com isso vêm os conflitos inconscientes, arraigados a partir da infância, já que quando se é tão-somente um bebê ou até mesmo quando se tem poucos anos de idade, ser “gordinho” significa ser bonitinho, é “sinal de saúde” e, de repente, deixa-se de ser. Com isso vêm os regimes, a briga com a balança, os remédios para inibir o apetite e a cirurgia bariátrica. Exemplo prático desses aspectos é quando se faz uma cirurgia para redução de estômago – o indivíduo sai da condição de obeso e entra na categoria de magro. Onde ficou então aquela vontade de comer? Pergunta-se, uma vez que tal comportamento precisa ser entendido e não simplesmente removido. Uma vez que comer constitui a principal fonte de prazer e se essa fonte é inibida, deixando uma lacuna, um vácuo, isso pode resultar em inexplicáveis transtornos, como a depressão e a ansiedade. É nessa ausência, ou falta, ou lacuna, ou qualquer outro nome que se lhe dê, é nesse espaço, dizia-se, que a psicanálise pode ter um papel fundamental, ajudando o indivíduo na elaboração da ideia de si mesmo frente à nova forma física adquirida, tentando impedir, ademais, que outros transtornos venham a se manifestar. 32 Dessa forma, observa-se que, ao mesmo tempo em que o desempenho encoraja as práticas de alteração do corpo, cria-se um problema no cerne da estruturação do sujeito. Parece que o corpo, principalmente da pessoa obesa, foi criado para causar uma enorme satisfação no sujeito, porém, uma satisfação solitária, em que o sujeito sequer olha o próprio corpo no espelho, por não aceitá-lo como parte de seu ser, como se ele, o corpo, estivesse escondido de si próprio, não reconhecendo nele sua imagem física, corporal. Em verdade, o sujeito cria outro corpo para si, idealizado, investido narcisicamente, embora escamoteando a si próprio, colocando-se muito além de sua possibilidade de percepção. Daí o obeso não perceber esse corpo, que se esconde através de uma camada de gordura e de sua impossibilidade de lidar com as próprias frustrações e ansiedades. Como se vê, em relação à obesidade, a teoria psicanalítica não se prende ao ponto de vista estético, físico ou patológico, mas, sim, aos aspectos simbólicos da obesidade e aos fatores psicoemocionais que a ela levam. Na psicanálise, o obeso é que deverá elaborar o peso que sua condição pulsional lhe ofereceu em parceria com o desejo e com o corpo. A esse respeito, vale a pena trazer à memória as palavras de Moraes (2009): “Diferentemente dos preceitos sociais, a Psicanálise não classifica padrões e nem julga modelos, ela busca fazer com que o sujeito tome contato, identifique-se e harmonize-se com seus próprios desejos, nesse caso, sejam eles: “gordo ou magro”. (idem, ibidem, p. 2). Nessa busca de que fala Moraes (ibidem), a psicanálise estabelece algumas respostas sobre a obesidade: 1. autopunição, usar o próprio corpo como forma de castigar-se inconscientemente por algo; 2. tentativa de saciar uma fome não orgânica, mas emocional. Assim, utilizando a teoria psicanalítica para refletir a obesidade, torna-se importante falar de dois de seus conceitos que vão nortear essa caminhada, na perspectiva de melhor se entender o ato de comer para o obeso e, consequentemente, a obesidade em si mesma, que é a pulsão e a compulsão à repetição. 33 Pulsão, do alemão Trieb (impulso, inclinação), em psicanálise significa força germinativa. Impulso, ou impulsão, ou propulsão, constitui a forma original do querer. Para melhor entender esse ponto de vista, é importante considerá-lo como um conceito-limite entre o somático e o psíquico, conforme Freud (1915) o considerava. É essa situação de fronteira que, sem dúvida, explica o fato do pai da Psicanálise ter recorrido à noção de representante psíquico, ou seja: uma espécie de delegação do somático no psíquico, ou diretamente do psíquico inconsciente (id) para o consciente. Contudo, vale lembrar que a pulsão conhece um destino final essencialmente psíquico. Para Freud (ibidem): “a pulsão se originaria de um funcionamento corporal do ser vivo, de onde partiria de uma borda corporal, as chamadas “zonas erógenas”; contornaria um objeto (o mais variado possível) e retornaria à fonte, ao próprio corpo, fechando, assim, seu circuito. O alvo da pulsão seria seu trajeto de ir e vir em busca da satisfação que nunca é alcançada plenamente, pois sempre deixa um resto. Dessa forma, como dito anteriormente, entenderíamos o fato de a pulsão estar situada na fronteira entre o psíquico e o somático, um representante psíquico dos estímulos que se origina dentro do organismo e alcança a mente, e que só é conhecida por meio de seus representantes”. (idem, ibidem, p.127-130). Essas palavras de Freud (ibidem) deixam claro que a pulsão é definida através de quatro referências, tomadas sempre em conjunto: sua força ou pressão, sua fonte, seu objeto e sua finalidade. Em artigo publicado em 1915, intitulado Trieb und trieb shiksal (Os instintos e suas vicissitudes), Freud lembra que se devem destacar quatro momentos da pulsão, a saber: 1º) o impulso (Drang); 2º) a pressão de uma pulsão, entende-se, seu aspecto motor; 3º) a soma de força ou a medida de exigência de trabalho que ele representa, e, 4º) o caráter pressionante que é uma propriedade universal das pulsões, até sua essência. Freud (1915) fala, ainda, que toda pulsão representa um fragmento de atividade. Na verdade, a pulsão refere-se a um fator energético quantitativo, econômico, uma exigência de trabalho emocional que é imposta ao aparelho psíquico. É força constante que tem sentido em sua relação com a fonte (Quelle) que inscreve, na economia da pulsão, sua estrutura de borda, estrutura essa que pode ser orgânica, psíquica ou ambas as coisas. Trata-se daquele processo somático em um órgão ou em parte do corpo, cujo estímulo 34 na vida psíquica é representado pela pulsão. Ignora-se, no entanto, se esse processo é de natureza regularmente química ou se pode corresponder à liberação de outras forças, por exemplo, de forças mecânicas. Apesar de a proveniência de fontes somáticas ser o fator decisivo para a pulsão, é sabido também que a pulsão só se apresenta na vida psíquica através de suas metas. O conhecimento mais preciso das fontes pulsionais não é indispensável para os objetivos da pesquisa psicológica. Algumas vezes, a partir da finalidade da pulsão, é seguro concluir qual é sua fonte. O objeto (Objekt) indeterminado, o objeto da pulsão, é certamente aquele em que, ou através do qual, a pulsão pode alcançar sua finalidade. Ele é o mais variável na pulsão, o não ligado a ela originalmente, mas, sim, unido apenas em consequência de sua aptidão para possibilitar a satisfação. Não é necessário que seja um objeto estranho, porquanto também pode ser uma parte do próprio corpo. No decurso do destino vital da pulsão, ele, o objeto, pode ser frequentemente trocado de maneira fortuita. E esse deslocamento da pulsão desempenha os mais importantes papéis. Ademais, é possível ocorrer que o mesmo objeto sirva simultaneamente à satisfação de várias pulsões. Diz respeito a algo substantivo que permite ao Ego cumprir a meta da Pulsão. Pode ser uma coisa material, pode ser uma pessoa ou um sistema, como religião, vida social, etc. A meta de uma pulsão é sempre a satisfação, que somente pode ser alcançada através da supressão do estado do estímulo na fonte da própria pulsão. Mas, mesmo se essa finalidade última permanecer invariável para toda pulsão, diversos caminhos hão de conduzir para ela (pulsão) e isso ocorrerá de tal modo que podem surgir várias metas próximas ou intermediárias para uma pulsão, metas tais que se combinam entre si ou que se permutam. O destino é o que gera a satisfação (descarga energética), restabelecendo o equilíbrio perdido (homeostase) orgânico e/ou psíquico, social ou sexual. Dessa forma, são as representações da pulsão no inconsciente que indicam as demandas do sujeito ao Outro, como também indicam as demandas do Outro ao sujeito, presenciadas nas modalidades da pulsão. A pulsão é um impulso, inerente à vida orgânica, que visa a restaurar um estado anterior de coisas, que leva a um retorno, ao estado inorgânico. Freud 35 (1920) dedica boa parte do capítulo V do livro Além do princípio de prazer, para analisar as pulsões, chegando à conclusão de que “a pulsão, somente na aparência, é uma força que impele à mudança; na realidade, sua natureza é essencialmente conservadora; seu objetivo é voltar a um estado antigo de coisas, a “um estado inicial de que a entidade viva [...] se afastou e ao qual se esforça por retornar”. (idem, ibidem, p. 49). Com base nesse fragmento, pode-se concluir que o objeto pulsional na obesidade mórbida está sempre se vinculando ao alimento, como forma de satisfação primordial de todas as necessidades do indivíduo. E em qualquer vestígio de frustração, esse indivíduo fixado no objeto simbólico, que é o alimento, há de recorrer sempre ao ato de comer. Assim, o sujeito transforma a comida no objeto que o liberta do sentimento da falta e do vazio, e, consequentemente, da frustração e de sua ansiedade. Ainda seguindo essa linha de pensamento, pode-se dizer que o objeto mesmo da pulsão não existe, porque o obeso lida sempre com objetos substitutos, que é a própria comida. Dessa forma, percebe-se que o aparelho psíquico do obeso é marcado a partir de um movimento originário da pulsão, movimento esse que vai de encontro ao Outro e retorna só após ter encontrado um objeto com o qual retém uma satisfação possível, ainda que parcial. É como se para esse indivíduo, a comida fizesse parte dele, daí a necessidade de sempre reincorporar esse objeto. Conforme ensina Fonsêca (2009), “na obesidade, o que se percebe é que não se come apenas por necessidade fisiológica, mas sim por uma espécie de desejo, desejo esse que nunca está satisfeito”. (idem, ibidem, p.5). Voltando a Freud, há de se lembrar de que, para ele, a pulsão é ainda um impulso traduzido em desejo e que a satisfação total por ela almejada já foi um dia obtida na história de cada sujeito, por ocasião da primeira mamada. Sendo assim, ao longo da vida, o sujeito tentará reencontrar essa experiência, vivenciada apenas miticamente. Na verdade, tem-se unicamente a imaginação dessa experiência, pois ela nunca existiu. Daí poder-se considerar como momento mítico esse instante. 36 A verdade é que esse caráter repetitivo que a experiência de satisfação imprime ao funcionamento do aparelho psíquico coloca o sujeito em uma busca permanente pelo objeto que ele acredita ter alcançado, mas que está, desde sempre e para sempre, perdido. É nesse momento mítico que, para Freud, desencadeia-se a repetição, à medida que a experiência de satisfação deixa facilitações do tipo compulsivo. Sobre tal busca incessante de preenchimento da satisfação primeira, apresentada para refletir a obesidade, Recalcati (2002 apud SEIXAS, 2009) esclarece que: “a dinâmica que acontece na obesidade, de comer em excesso, fornece ao sujeito recursos simbólicos para lidar com a frustração resultante da impossibilidade de preenchimento e satisfação da demanda. Assim, o corpo obeso e a própria fome parecem manifestar a pulsão, no ponto em que não há a captura pela linguagem, evidenciando a estreita relação entre o corpo somático e o corpo pulsional da psicanálise”. (idem, ibidem, 93). Logo, para Recalcati (2002), o indivíduo, privado de recursos simbólicos para lidar com o desejo, traduz o conflito psíquico em compulsão, como se o corpo neutralizasse o encontro traumático. Isto é, separando-se do sujeito e destacando-se como um objeto, daí a dificuldade de reconhecimento daquele corpo obeso como próprio e, por consequência, como sua imagem. A obesidade pode, então, apresentar-se para o sujeito como impossibilidade de recusar a demanda do outro (corpo obeso) e se tornar fixa nesse objeto que aqui se determinou chamar de comida; assim, resta ao sujeito a compensação no consumo do objeto-alimento. Aqui, a obesidade aparece como consequência do transtorno do comer compulsivamente, em que se obtém ganho de peso como método compensatório. Essa conduta compulsiva de ingerir alimento é acompanhada pela sensação de falta de controle sobre o próprio ato e também dos sentimentos de culpa e vergonha. Neste ponto, já se está referindo àquele outro conceito da teoria psicanalítica que vai contribuir para o entendimento da obesidade mórbida, isto é, o conceito de compulsão. Segundo Gondar (2001), Freud teorizou dois modos principais com que a compulsão se apresenta. Por um lado, a compulsão (Zwang, em alemão) que remete diretamente à neurose obsessiva (Zwangneurose), ainda que, no 37 interior desse quadro, ela apresente nuances. Por outro lado, a compulsão à repetição (Wiederholungszwang). Alguns autores da psicanálise estudam a obesidade por meio de dois pontos de vista: um, pelo conceito de sintoma compulsivo que diz respeito à neurose obsessiva; outro, refere-se ao conceito da compulsão à repetição, que se relaciona com o ato compulsivo. Esta investigação há de se basear no segundo ponto de vista, isto é, na compulsão à repetição, que representa a forma pela qual o obeso se mostra mais exposto, e é também o ponto em que se pode observar a distorção da própria imagem corporal. Buscando um entendimento que possa oferecer uma visão mais clara desse conceito da psicanálise, utilizar-se-á o enfoque que Brito (2009) expõe sobre a compulsão à repetição. Segundo o autor, “(...) na condição de uma compulsão à repetição, a necessidade compulsiva recai sobre o ato em si, como repetição movida pela pulsão de morte, e não, como seria o caso, de uma compulsão decorrente de um modelo conflitivo em que pode existir até mesmo um simbolismo na conduta compulsiva”. (idem, ibidem, p.26). A partir desse comentário, pode-se pensar que é a repetição pulsional que faz com que haja uma movimentação, permitindo com isso entender as compulsões contemporâneas a partir da compulsão à repetição. Para tanto, utilizar-se-ão os estudos de Gondar (2001), os quais esclarecem o sentido da compulsão utilizado por Freud. Diz ela: “Zwang alude também ao que há de mais radical na pulsão, isto é, sua irrefreável repetição. Mas, diferentemente dos atos compulsivos do neurótico obsessivo, a compulsão à repetição (Wiederholungszwang) não poderia ser encarada como o resultado de um conflito, motivo pelo qual não é necessariamente experienciada por quem a sofre, como expressão de uma luta íntima. Trata-se, na verdade, de uma característica fundamental da própria pulsão, logicamente anterior ao estabelecimento de um conflito pulsional, ainda que essa anterioridade a torne o motor de todo conflito e de toda formação psíquica. Grosso modo, poderíamos caracterizar a compulsão à repetição como um impulso avassalador ao qual sucumbe o sujeito, que passa então a justificá-lo por contingências da atualidade: é como se ele tentasse organizar 38 o impulso cego, segundo os ditames de uma "cena", buscando conteúdos capazes de preencher uma forma vazia, autônoma e, em última instância, irredutível aos seus próprios conflitos”. (GONDAR, 2001, p.3). Como se vê, Gondar (ibidem) estabelece a diferença entre a neurose obsessiva e a compulsão à repetição. A partir dessa diversidade, há de se retornar à obra de Freud (1920), em que ele esclarece a questão da compulsão à repetição. Foi observando e estudando casualmente as brincadeiras das crianças, a transferência e as neuroses traumáticas, que o autor percebeu que a compulsão à repetição apresenta-se em atividades normais. Nas brincadeiras infantis, a criança simboliza a experiência de separação da mãe, no simples gesto repetido de jogar longe de si um brinquedo. Diz Freud (ibidem): “A partida dela tinha de ser encenada como preliminar necessária a seu alegre retorno, e (...) neste último residia o verdadeiro propósito do jogo. A criança, inicialmente dominada pela experiência de ser abandonada pela mãe, ao repeti-la na sua brincadeira, assume um papel ativo, como se quisesse controlá-la”. (idem, ibidem, p.26). Com isso, Freud (ibidem) compreendeu que a compulsão à repetição já estava presente desde o início da vida do sujeito, conforme ele descreve no fragmento acima, quando ele se refere ao jogo Fort-Da que a criança realiza para diminuir a ansiedade, ao perceber que dela a mãe se afasta. Aliás, em outro texto, ele reconhece novos aspectos poderosos que a compulsão à repetição apresenta. E esclarece que: “(...) é possível reconhecer, na mente inconsciente, a predominância de uma compulsão à repetição, procedente dos impulsos instituais e, provavelmente, inerente à própria natureza dos instintos – uma compulsão poderosa o bastante para prevalecer sobre o princípio de prazer, emprestando a determinados aspectos da mente o seu caráter demoníaco e ainda muito claramente expresso nos impulsos das crianças pequenas; uma compulsão que é responsável, também, por uma parte do rumo tomado pelas análises de pacientes neuróticos”. (FREUD, 1919, p. 297-298) No entanto, é sabido que em algumas circunstâncias, a repetição não tem como objeto experiências prazerosas e, sim, experiências dolorosas. É 39 então que Freud (1920) constata que, nessas experiências, conteúdos recalcados esforçam-se para se expressar. A primeira experiência a que o autor se refere é aquela ligada aos sonhos relacionados às neuroses traumáticas. Esclarece ele que “os sonhos que ocorrem nas neuroses traumáticas possuem a característica de repetidamente trazer o paciente de volta à situação de seu acidente, uma experiência, portanto, nada agradável”. (idem, ibidem, p.24). Freud (1914a) também chama atenção sobre outro aspecto em que a compulsão a repetição aparece, que é na transferência, ele a definiu como sendo uma manifestação da repetição, diz ele: “As transferências são reedições, reproduções das moções e fantasias que, durante o avanço da análise, soem despertar-se e tornar-se conscientes, mas com a característica de substituir uma pessoa anterior pela pessoa do médico”. (idem, ibidem, p.111). Em outro momento Freud (ibidem) fala que a transferência tem uma relação direta com a repetição, pois a transferência é “uma transferência do passado esquecido, não apenas para o médico, mas também para todos os outros aspectos da situação atual” (idem, ibidem, p.166). Então, a transferência é um acontecimento atual vivido com o analista, e não apenas uma transposição do passado para o presente. Ela é repetição não só porque são reproduzidos fatos vividos pela pessoa, mas porque estes fatos são atualizados e tomam sentido na presença do analista. Com esta perspectiva o autor nos coloca que: “Nós a admitimos [compulsão a repetição] na transferência, como numa arena em que lhe é facultado se desenvolver em quase completa liberdade, e onde é obrigada a nos apresentar tudo o que, em matéria de instintos patogênicos, se ocultou na vida psíquica do analisando. Quando o paciente se mostra solícito a ponto de respeitar as condições básicas do tratamento, conseguimos normalmente dar um novo significado de transferência a todos os sintomas da doença, substituindo sua neurose ordinária por uma neurose de transferência, da qual ele pode ser curado pelo trabalho terapêutico. Assim a transferência cria uma zona intermediária entre doença e vida, 40 através da qual se efetua a transição de uma para a outra”. (FREUD, 1914a, p. 206). Então como já foi descrito a compulsão a repetição se apresenta no tratamento como uma força que atualiza conteúdos psíquicos que antes não pediam ser recordados. Ela converge fatos que são observados fora do tratamento, com os relacionados à sua transferência com analista. Já em outro texto intitulado Além do princípio do prazer, Freud (1920) demonstra que a compulsão à repetição é um processo incontrolável e de origem inconsciente. No seu entender, nessa ação continuada, o indivíduo coloca-se ativamente em situações penosas, a repetir experiências antigas, sem, contudo, se recordar do protótipo. Ao contrário, ele transmite uma impressão muito viva de que se trata de algo plenamente motivado a partir da atualidade. Nesse caso, Freud (ibidem) esclarece: “os traços de memória reprimidos de suas experiências primevas não se encontram presentes em estado de sujeição, mostrando-se incapazes de obedecer ao processo secundário, que os reprimiria, por serem traços de memórias de desprazer. A compulsão à repetição tem, portanto, um traço eminentemente da pulsão e, nesse sentido, é uma força pulsional “livre”. (idem, ibidem, p. 47). Freud (ibidem) chamou de compulsão à repetição o processo de reviver interminavelmente determinada neurose. Assim, quando alguém repetir um relacionamento ou acontecimento frustrado, isso representará uma tentativa de descarregar a energia acumulada ou represada até alcançar êxito naquela missão. Para Freud (1914a), o paciente não se lembra de nada do que esqueceu e/ou recalcou, mas ele atua, ele age como se estivesse revivendo ou relembrando algo. Reproduz o fato, não como memória, mas por meio de uma ação. Repete, inconscientemente, sem saber, é claro, que está repetindo algo que há muito já vivenciara. Em outro estudo, Freud (1933[1932]) trabalha a compulsão à repetição, não se referindo a um conflito, mas a uma característica fundamental da pulsão que precede, logicamente, à instalação do conflito pulsional e impõe ao sujeito a organização dos impulsos. É a partir daí que ele se refere ao momento em que se instaura a repetição. Diz ele: 41 “Podemos supor que, desde o momento em que uma situação, tendo sido uma vez alcançada, é desfeita, surge uma pulsão para criá-la novamente, e ocasiona fenômenos que podemos descrever como uma compulsão à repetição”. (FREUD, 1933[1932], p. 132). Com isso, torna-se possível pensar que o acesso à pulsão se dá na experiência decorrida da repetição, e que, nessa prática, a compulsão à repetição aponta para um determinado prazer – falando, nesse caso, em relação à obesidade mórbida. Assim, pensando na obesidade mórbida, pode-se afirmar que essa forte tonalidade destrutiva remete à pulsão de morte. Além de ser caracterizada pela agressividade e pela ansiedade, ela traz a marca da compulsão à repetição, do movimento de retorno à inércia pela morte. Mas como a pulsão de morte se apresenta? Eis um questionamento que não poderia deixar de ser colocado aqui. Freud (1920) começa sua reflexão sobre a pulsão de morte a partir do fenômeno da transferência e dos demais fenômenos marcados pela repetição (jogos infantis, sonhos traumáticos). Ele entendeu que o aparelho psíquico não apenas descarrega a libido, mas que a libido está relacionada a situações desagradáveis. Tal observação levou Freud (ibidem) à percepção do caráter regressivo da pulsão, situação essa que o ajudou a elaborar o conceito de pulsão de morte. Com isso, ele relacionou a pulsão de morte a tipos de pulsões que tendem a voltar a um estado antigo de coisas, pela ausência de tensões, isto é, retorna-se a um estado inicial, a um estado de repouso absoluto. Voltada inicialmente para o interior e tendendo à autodestruição, a pulsão de morte seria secundariamente dirigida para o exterior, manifestandose, então, sob a forma de pulsão de agressão ou de destruição. Para Freud (ibidem), portanto, tudo o que vive tende a morrer por razões internas, tende a tornar-se novamente inorgânico, logo, o objetivo de toda vida é a morte. Esse entendimento levou-o a afirmar, paradoxalmente, que a ‘pulsão de autoconservação’ tende apenas a fazer com que o organismo morra de sua própria maneira. Daí ele incluir a ‘pulsão de morte’ nessa categoria. Além disso, há de se destacar que a pulsão de morte constitui um aspecto valioso de interação dos processos psíquicos. 42 Retornando à compulsão à repetição, pode-se dizer que para o obeso mórbido, tal tipo de compulsão demonstra a impossibilidade de preenchimento de um vazio, expressa uma falta, remetendo sempre a um novo movimento de satisfação que só será alcançado com uma garfada a mais, com um semnúmero de ‘beliscadinhas’ durante todo o dia, advindo daí uma imagem corporal não reconhecida, tornando-se o corpo, por sua vez, algo estranho ao próprio sujeito. O obeso mórbido diz existir um vazio dentro dele, um espaço que ele tenta ocupar com o repasto, e que só consegue parar de ingerir algo quando se sente farto, o que só acontece após uma ‘farra’ compulsiva de alimentos, deixando-o desconfortável e cheio. Esse vazio, se preenchido, é por pouco tempo, pois logo o indivíduo se vê buscando compulsivamente mais o que comer. Nesse caso, também se pode dizer que lhe falta afeto, isto é, que todas as expectativas de emoções estão sendo devoradas junto com os alimentos, restando apenas uma enorme vontade de ser visto, de ser notado e de ser reconhecido pelo outro. Contudo, sabe-se que apesar de toda aquela grandeza física, torna-se difícil passar despercebido, torna-se quase impossível não ser visto, não ser notado pelo outro. Nesse caso, o que acontece mesmo é a falta de reconhecimento da própria imagem corporal, posto que, para o obeso, de fato há uma distorção em sua imagem, a causar-lhe cada vez mais angústia e ansiedade. Desse modo, como consequência da compulsão à repetição, a obesidade mórbida evidencia uma distância de si para si mesma elevada à última potência, visto que, ao comer, o indivíduo já não tem controle sobre si mesmo. O obeso mórbido estagna-se aos poucos, até alcançar a imobilidade quase absoluta. Porém, não se trata de entender essa paralisação como movimento de resistência às cobranças contemporâneas, mas, sim, como uma forma de escravidão, quando a liberdade oscila no corpo e na imagem corporal do sujeito. Portanto, a obesidade mórbida está inserida nesse contexto, a causar extremo sofrimento ao sujeito, ao qual não restam outros modos de protestar, a não ser adoecendo por culpa do excesso de comida, que, em princípio, constitui seu único prazer. 43 Para entender esse prazer que o obeso sente ao comer, é importante diferenciar o desejo do gozo, o que será trabalhado no próximo subcapítulo. 2.4 DESEJO E GOZO Em todo desenvolvimento da obesidade mórbida, o sujeito obeso se depara com dois conceitos trabalhados pela psicanálise: o desejo e o gozo. Em se tratando de desejo, é importante destacar que, com a busca da realização do desejo e por exigência da pulsão em satisfazer-se, o obeso mórbido se depara com toda sorte de obstáculos representados. Ele teme conhecer seu desejo, teme aquilo que quer, chegando até mesmo a não querer desejar. O desejo vem conceder predicados à existência, ao mesmo tempo em que ele é pago com a castração, questão essa que, por vezes, não se quer aceitar e tampouco responder. Porém, se não houver a renúncia ao gozo, o processo sai muito mais caro, dado incidir diretamente no aumento de peso, no engordar, isto é, traz como consequência um físico mais volumoso. Em compensação, ao ceder às mazelas do gozo, o obeso pode desenvolver baixa estima, ou pela própria imagem distorcida e/ou pela autorrecriminação do eu. Mas que desejo é esse de que se está falando? Segundo Freud (1900) o desejo inconsciente nunca é satisfeito. Para ele, o desejo é uma representação, mas uma representação com conteúdo pulsional. Porém, como representação pulsional, todo desejo quer se realizar, motivo pelo qual considera-se que o desejo é falta. Consoante o que diz Garcia Roza (2002): “(...) o que caracteriza o desejo para Freud é esse impulso para reproduzir alucinatoriamente uma satisfação original, isto é, um retorno a algo que já não é mais, a um objeto perdido cuja presença é marcada pela falta”. (idem, ibidem, p. 145). Para a psicanálise, portanto, a falta é constituinte do nosso ser. O que caracteriza essa falta é o fato de o desejo nunca ser satisfeito. O desejo, por sua vez, pode realizar-se em objetos, mas não se satisfaz com esses objetos. 44 Aliás, essa é uma das características do desejo, que remete sempre à falta. Pode-se, com isso, remeter essa falta ao comportamento do obeso mórbido, que nunca se satisfaz com o que come, que está sempre buscando mais e mais para ingerir, ainda que colocando em risco a própria vida. A fim de se obter maior esclarecimento sobre esse conceito de falta, há de se lembrar o que Quinet (2011) fala sobre o desejo: “A partir do desejo do Outro, abre-se para o sujeito a dimensão do seu desejo. O sujeito vai constituir, então, as suas respostas sobre o que é o desejo do Outro. Trata-se de saber qual é o desejo do Outro em relação a ele: será que o Outro me quer, não me quer? Quer ele a minha morte, quer a minha vida? Será que o Outro me quer do sexo que eu sou ou gostaria que eu fosse do outro sexo? É a partir daí que o sujeito vai constituir o seu desejo, ou seja, a partir do desejo do Outrocomo “que queres?”. (idem, ibidem, p.101). Partindo desse fragmento, em que Quinet (ibidem) fala do desejo e da importância do Outro na constituição desse desejo é que se amolda o conceito do comer exagerado ao obeso. Contudo, tal atitude conduz a outra questão, pois entende-se que o ato de comer não mais representa o desejo, mas a única forma de gozo que o obeso reconhece. Assim, torna-se também importante o conceito do gozo, que auxilia a pensar esse sujeito com obesidade mórbida. Portanto, a primeira definição de gozo que se impõe é a de gozo como satisfação da pulsão. Segundo Freud (1914b) a pulsão é aquilo que leva uma fonte a procurar um objeto com o propósito de alcançar a satisfação. O encontro do sujeito com o objeto significa não haver falta é como se o sujeito estivesse no gozo do seu objeto, o que, aliás, é a tendência da pulsão: encontrar o objeto e a satisfação da própria pulsão, o gozo. Lacan (1972-1973) diz que: “o gozo é o único real da clínica, o gozo é real, é fenomênico, o gozo existe, mesmo que proibido. O gozo é um real e como tal zomba das palavras e dos pensamentos; sua localização se faz por determinações simbólicas e imaginárias. É assim que encontramos o gozo na função fálica, no sintoma, na fantasia, no objeto ‘a’, no gozo feminino”. (LACAN, 1972-1973, p.180). 45 De acordo com o modelo teórico da psicanálise, isso é interditado ao falante. O gozo é proibido ao falante porque o objeto é perdido. Na fala, o sujeito busca se completar com uma coisa que não mais está ali, daí o sujeito não parar de falar, por isso a pulsão não se satisfaz. O termo gozo condensa tudo isso. A falta e a ilusão da possibilidade da completude, que é essa busca interminável do sujeito. O gozo refere-se a uma coisa a mais que pode ser comparada com o Além do princípio do prazer de Freud (1920), aliás, é esse o nome do gozo em Freud. Freud (ibidem) descobriu que a pessoa quer outra coisa, pois o retorno às catexias anteriores, que constitui o princípio do prazer para o autor, não é aquilo que a pessoa deseja, mas ‘algo mais’. E a esse ‘algo mais’ ele chama de além do princípio do prazer. Pode-se dizer a mesma coisa para o gozo, porque não se trata necessariamente de prazer. É como se fosse a busca de um prazer que não se torna prazer, mas sofrimento, pela impossibilidade de realização. O gozo é a busca da completude, no entatanto essa busca não é necessariamente prazerosa, como tampouco o é a completude fugaz e imaginária. Há uma busca da repetição de um modelo, independentemente do efeito que ela possa produzir. Já o conceito de gozo criado por Lacan (1959-1960) diz respeito a um prazer inconsciente e, ao mesmo tempo, a um desprazer na consciência. Segundo Julien (1996): “no bom uso dos prazeres, fraquejamos sistematicamente quanto ao gozo. Aí está a compulsão à repetição e é o gozo que a assegura. O inconsciente é o saber da repetição que não para de se exteriorizar em atos, palavras e, nesse trabalho, o inconsciente goza, ou seja, ao garantir a repetição”. (idem, ibidem, p.43). O gozo em Lacan (1959-1960) é um conceito complexo que se situa na relação da linguagem com o desejo, sendo marcado pela falta e não pela plenitude. Contudo, é importante enfatizar que se trata de um conceito que teve diferentes conotações quando da divulgação dos preceitos lacanianos. Somente a partir da década de setenta, mediante pesquisas em prol das modalidades do gozo, é que esse campo do gozo foi aprofundado e trabalhado, mostrando sua verdadeira importância. 46 Em O Seminário, livro 20: mais, ainda, Lacan (1972-1973) fala de diferentes formas de gozo. Para ele, existe o gozo místico, o gozo fálico, o objeto a, como mais-de-gozar, o gozo do Outro A e há também o gozo da mulher, ao qual ele chama de gozo suplementar, ou de Outro gozo. Segundo ele, o gozo se define como aquilo que se opõe ao útil. Ou seja: “aquilo que não serve para nada. O gozo se coloca, assim, como uma instância negativa que não se deixa reduzir nem às leis do princípio do prazer, nem ao cuidado da autopreservação, nem à necessidade de descarregar a excitação”. (idem, ibidem, p.11). Partindo das investigações de Lacan (1969-1970) sobre o gozo, observou-se que seus estudos sobre o mais-gozar oferecem outros subsídios para pensar a obesidade. Pode-se pensar no mais gozar para falar da obesidade, pois entende que existem aspectos nessa modalidade de gozo lacaniano que podem apontar, de forma mais consistente, para o objeto primeiro desta investigação. Destaca-se que a partir de O Seminário, livro 16: de um Outro ao outro, o conceito de objeto a, foi formalizado por Lacan (1968-1969) como maisgozar. Esse objeto corresponderia ao gozo que, em contrapartida, permanece retido no interior do sistema psíquico e cuja saída é impedida pelo falo, pois é o falo que abre ou que barra o acesso à descarga. Já o advérbio mais indica que a parcela de energia não descarrega, que o gozo residual é um excedente a aumentar constantemente a intensidade da tensão interna. Esse gozo residual permanece ancorado nas zonas erógenas e nos orifícios do corpo - boca, ânus, vagina, canal peniano, etc. O impulso do desejo nasce nas zonas erógenas e o mais-gozar estimula constantemente essas zonas, mantendo-as em estado permanente de excitação. Como exemplo, pode-se destacar a excitação que o obeso mórbido sente através da boca, com os alimentos. Assim, na obesidade mórbida, o mais-gozar pode se apresentar como compulsão à repetição do ato de comer sem estabelecer qualquer limite. Logo, pode-se entender que o sintoma é o modo pelo qual cada um sofre em sua relação com o gozo e que esse gozo só se insere através do mais-gozar (objeto a). 47 A Psicanálise não dispensa tanta importância ao sintoma, mas, sim, ao gozo que se encontra por trás dele. Esse gozo que faz com que o sujeito se fixe no sintoma. Porque ali, no ponto em que o sujeito sofre e se repete, existe um gozo. E o que a Psicanálise vai trabalhar é a descoberta desse gozo que se esconde atrás das atitudes do sujeito e de seu sofrimento, para que ele possa deixar de sofrer com o sintoma e não se deixe repetir. Quando não é oferecida a devida atenção ao gozo que se encontra por trás do sintoma, o sintoma retorna de outra forma. Eis a reclamação frequente de Freud (1913) quanto aos tratamentos psíquicos que levam em consideração apenas a consciência, que dá importância apenas ao que é consciente, ao que é percebido, isto é, ao sintoma em si mesmo, deixando de lado o inconsciente e o gozo. Ora, eliminar o sintoma não equivale curar a doença. O sujeito passa a vida em atividade, de acordo com os pontos de condensação de seu gozo, o que lhe fornece, digamos, algo similar a uma identidade. Daí a dificuldade de abrir mão desse momento, desse modo de gozar. É essa a dificuldade que o obeso mórbido evidencia a todo instante. Tais pontos enigmáticos de condensação retornam continuamente na compulsão que o caracteriza. É possível afirmar, portanto, que seu meio de gozo encontra-se na repetição. O obeso mórbido não deixa sobras do que comeu. Ao contrário, ele come até a última migalha e, ainda assim, continua voraz e insatisfeito. Pensando na ligação do obeso mórbido com a comida, esta parece estar mais para objeto condensador de gozo do que para objeto causa de desejo. Talvez com isso se possa dizer que o obeso mórbido é, de fato, aniquilado e devorado pela comida. Assim, é aceitável pensar o sujeito com obesidade mórbida como um corpo constituído apenas de matéria orgânica, como se fora um somatório de órgãos; e, em contrapartida, pode-se também pensar esse corpo diferente como um objeto de gozo. O gozo é sempre corporal e haverá sempre o aspecto dele ser sentido, tal qual um sofrimento. Porém, sabe-se que existem gozos que não têm sua fonte no corpo. Freud (1920), através dos exemplos de gozo que nos ofereceu 48 – o Fort-Da5, a transferência e o sonho traumático – evidencia que a fonte do gozo está na relação da pessoa com os significantes. Quando a linguagem não consegue uma sintonia com o corpo e dele estabelece um distanciamento, haverá sempre um resultado nesse corpo. As reflexões de Lacan (1972-1973) falam de um corpo que, mais que unidade corporal e semblante, é substância gozante. Assim, ele admite que o gozo não constitui uma energia, por ser, antes, uma 'substância gozante'. “Não é lá que se supõe propriamente a experiência psicanalítica? - a substância do corpo, com a condição de que ela se defina apenas como aquilo de que se goza... um corpo, isso se goza”. (idem, ibidem, p.35). Ao refletir sobre os momentos de tensão, quando o obeso mórbido compulsivamente come sem parar. Momento esse, inclusive, em que não há um corpo, seja gordo ou magro, não há um obeso mórbido, não há um sujeito, não há nada senão aquele estranho prazer de devorar sabe-se lá o quê. Dir-seia que esse corpo obeso mórbido toma a cena apenas em um segundo momento, pois o que está importando nesse instante é tão-somente o prazer de devorar, devorar, devorar o mais que puder. Os obesos sentem-se cada vez mais colados, grudados mesmo a esse laço mortífero com a comida, sentemse engolidos por esse gozo voraz. Na obesidade mórbida, além do sofrimento que não se pode negar, percebe-se também a dimensão de gozo. Aliás, na obesidade mórbida, o comer compulsivo coloca-se ao lado da pulsão de morte, que se refere ao horror de um gozo por ele, o obeso, ignorado. O gozo absoluto que representa a morte. Existe conteúdo desse gozo que precisa ser repensado por esse sujeito, pois a obesidade mórbida caracteriza-se por uma forma inflexível de gozar. Aliás, é um modo particular de gozar, uma vez que o obeso mórbido goza e o faz principalmente de um único modo, caracterizado pelo comer compulsivo que o distingue. 5 Do alemão, ‘Fort’ significa ‘ausente’; ‘Da’ significa ‘aqui’, ‘cá’. Traduzindo literalmente, “Fort-Da” seria “ausente-aqui”. Trata-se de um jogo de ausência e presença. 49 Considerando a fantasia que acompanha esse sujeito e o gozo que com isso vem, há de se reportar a uma tentativa dessa pessoa de ser incluído no campo do outro. Mas que outro é esse? Pode-se dizer que seria o outro barrado de Lacan, que vai determinar a inserção dessa pessoa na castração, pois a cada encontro com esse outro se mostra a angústia que se produz a cada aproximação da imagem do semelhante. No caso do obeso mórbido, o encontro com o outro semelhante é que parece evidenciar tal angústia. 2.5 UMA NOVA SINTOMATOLOGIA Para falar de uma nova sintomatologia em Psicanálise e se ela existe de fato ou se é aquela mesma que Freud estudou, mas agora com outra roupagem, é preciso buscar no pai da Psicanálise o conceito de sintoma. Segundo Freud (1926[1925]) o sintoma se define como uma formação de compromisso entre as representações recalcadas do desejo inconsciente e as exigências defensivas. O sintoma é a solução encontrada pelo sujeito ao conflito entre os elementos, cuja satisfação é censurada, e a defesa, que visa manter a integridade do indivíduo diante do perigo do desejo proibido. Segundo Ocariz (2000), o sintoma para Freud é a manifestação de uma satisfação pulsional substitutiva que permaneceu jacente, podendo ser considerada consequência de um recalque processado pelo Eu. O sintoma tem em seu fundamento um desejo inconsciente que pode não ser suportável à consciência. O sujeito tenta se defender de tais pulsões, desejos e ideias através do recalcamento. Os sintomas são substitutos de uma representação inconsciente que transpõe a barreira do recalcamento, utilizando-se, para tanto, de mecanismos de condensação e deslocamento. (idem, ibidem, p.5-8). Todavia de que nova sintomatologia está-se falando? Partindo da dificuldade de reconhecimento e de posicionamento a respeito do sujeito obeso, é possível questionar se a obesidade mórbida se encaixaria nas supostas novas sintomatologias. Contudo, ao falar dessa suposta “nova” sintomatologia, não se deve considerá-la mais uma manifestação do inconsciente. Mesmo porque, segundo Gondar (2001), “dificilmente se poderia pensar que esse ato estaria 50 representando um sujeito, ou dizendo algo sobre um desejo inconsciente” (idem, ibidem, p.5). Em verdade, essa “nova” sintomatologia não se constrói com conteúdos do inconsciente, mas, sim, com algo, no qual a satisfação pulsional se mostre com forte tonalidade destrutiva. Com isso, é possível instituir um paralelo entre a pulsão de morte e a pulsão de um gozo destrutivo. Para Gondar (2001), “em seu sentido clássico, um sintoma é uma formação de compromisso entre uma instância recalcada e uma instância recalcante, por meio da qual o inconsciente se expressa. O que significa dizer que esse sintoma fala, representando um sujeito e revelando algo sobre o seu desejo. Na situação analítica clássica, o paciente chegaria à análise queixando-se de seu sintoma; a partir disso, poderia construir uma questão sobre si mesmo, endereçando-a ao analista. Com base nesta questão e neste endereçamento, seria possível formular-se, no campo transferencial, uma interpretação, produzindo-se uma verdade a respeito do desejo”. (idem, ibidem, p.4). Na Psicanálise, a construção do sintoma refere-se à implicação do sujeito com aquilo que se passa com seu ser, em que a queixa deixa de ser algo alheio ao sujeito para se transformar em demanda. Demanda essa que o obeso mórbido busca sanar no gozo do comer sem limite. Atualmente, porém, diferentes demandas vêm aparecendo, apoiadas na angústia da informação sobre o tempo contemporâneo, sobre um sujeito cada vez menos percebido e inseguro em relação si mesmo. A partir de tais demandas, vêm os sintomas que, a princípio, podem parecer novos, mas que em realidade são os mesmos, apenas com uma representação diferente. O sintoma remete a uma articulação limite entre o passado e o presente. Se por um lado ele é atual, porque é atualizado de acordo com sua época, seguindo o espírito do tempo, por outro, trata-se de um velho conhecido do sujeito, à medida que esse sujeito convive por muito tempo com tal sintoma. Afinal, os sintomas são atuais ou são de fato novos? Pode-se dizer que o sintoma é atual por ser construído em análise. E nesse sentido ele só poderá ser atual, porque aquilo que se atualiza na análise é que vai servir para ser analisado. Contudo, diferentemente das novas tecnologias, o sintoma não perde suas características, embora assuma uma nova forma ou configuração para acompanhar a sua época. 51 Há sintomatologia que aparece como nova, porém, é importante destacar que como o sintoma se adéqua ao seu tempo, conforme já se disse, pode-se pensar que a obesidade mórbida surge para mascarar situações que, em épocas anteriores, poderiam ser consideradas como comportamento histérico ou compulsivo. Como diz Quinet (2011), “os rebotalhos do discurso médico constituem, para o analista, novas formas do sintoma, que, ao serem observadas de perto, são tão velhas quanto as roupas do rei quando ele está nu” (idem, ibidem, p.156). Pode-se dizer, então, que o adoecimento psíquico não é novo, mas que suas configurações atuais são inéditas, por se relacionarem a sintomas com diferentes cruzamentos e atravessamentos dos aspectos civilizatórios contemporâneos. Já o sujeito contemporâneo caracteriza-se pela manifestação somática e pelo poder de transformar desejo em aparência ou em pura virtualidade, o que pode ser entendido como ‘tirania do prazer’. Observa-se que cada vez mais há uma exigência de desempenho do próprio corpo, como se ele, o corpo, estivesse superprotegido e abandonado a si próprio. Por trás desse suposto abandono, o prazer sem limite surge para assumir essa falta, embora trazendo consequências para esse sujeito. Com a obesidade mórbida não é diferente. Ela traz exatamente o oposto desse prazer sem limite: ela traz um corpo excessivamente grande, adiposo, obeso, acompanhado de um não reconhecimento da própria imagem física, que passa a conviver com uma baixa estima, enfim, com uma total falta de libido. Tais aspectos desafiam o prazer imposto que, não encontrando suporte para se manter como elemento principal, utiliza artifícios para discriminar os considerados diferentes, entre os quais se encontra o obeso. Em outras palavras: essa discriminação aponta para o obeso, que traz as marcas no seu corpo, como pode ser observado na imagem física que muitas vezes aparece distorcida, matéria essa que será abordada no capítulo a seguir, por remeter a uma questão muito importante para a obesidade. 52 3. Imagem corporal na contemporaneidade “Este é o meu conselho se você insiste em emagrecer: coma quanto quiser, mas não engula6”. (SECOMBE, 1962). “A saúde de todo o corpo provém da oficina do estômago”. “Almoça pouco e janta menos, porque a saúde do corpo se forja na oficina do estômago7”. (CERVANTES, 1605). Dizem que uma imagem vale mais que mil palavras. Partindo desse princípio, pode-se dizer que a imagem dá espaço à interpretação, embora essa interpretação se estruture de acordo com os conhecimentos e as experiências que o ser humano traz do seu passado. Também o caráter e a personalidade podem influenciar a maneira como se enxerga e se avalia uma imagem. Com isso, torna-se evidente que uma imagem jamais desperta o mesmo sentimento em duas pessoas diferentes, porque cada qual terá uma percepção distinta, de acordo com bagagem sociocultural que carrega. Segundo Michel Foucault (1970) apud Duarte (2007), “o que mais nos atrai entre uma imagem e um texto é a imagem. Ela serve como representação de milhares de coisas e para cada pessoa, a definição é uma. A imagem pode ser enganadora, pois pode mostrar uma realidade falha e, muitas vezes, oposta à realidade do sujeito em questão. O mesmo é moldado de acordo com a sua realidade e aprende a suprir suas necessidades. Por esse motivo, o ser humano encontra, em imagens e palavras, complementos para o seu vazio. As interpretações dadas são respostas apaziguadoras que facilitam o nosso entendimento em relação ao mundo e à nossa existência. O significado de uma figura se modifica de acordo com o momento de vida em que o sujeito se encontra, seu estado emocional e psicológico, e até mesmo de experiências recentes. O significado muda invariavelmente, porém, todas as tentativas de dar significado, interpretação ou vida para algo são maneiras de nos confortarmos”. (idem, ibidem, p.01). O mundo atual parece apresentar uma nova organização do aparelho psíquico, impondo a esse aparelho o ato de assumir uma quantidade 6 Tradução do autor: “My advice if you insist on slimming: Eat as much as you like – just don’t swallow it”. Do ator e cantor gales Harry Secombe (1921-2001). In: http://www.arqtodescadois.blogspot.com.br/2010/05/obesidade.html 7 In: CERVANTES, M. Dom Quixote de La mancha. Madrid, 1605. 53 exagerada de excitações, informações e sensações. As mudanças ocorridas no mundo desencadearam a postura dessa atual sociedade caracterizada como pós-moderna; impulsionaram o homem a um novo estilo de vida e, sobretudo, a uma valorização excessiva da imagem. Socialmente falando, há uma preocupação excessiva em relação ao peso e à imagem corporal, o que leva os sujeitos a adquirirem hábitos alimentares inadequados em busca do “corpo perfeito”. Ao mesmo tempo, isso conduz o indivíduo a uma vida sedentária, compartilhada com uma nutrição excessiva, o que constitui um dos fatores desencadeantes da obesidade, a provocar no obeso um desconhecimento da própria imagem corporal. O conceito de corpo, que se verá a seguir, há de auxiliar a entender de forma mais integrada a questão da imagem corporal, pois ele nos permite vivenciar essa imagem, além de exercer um papel fundamental na elaboração do que se pretende explanar nesta investigação. 3.1 O CORPO Falar de corpo é ter em mente que ele pode apresentar várias facetas e que não se trata de um conceito análogo às diferenças, pois essas diferenças aparecem, sobretudo, quando são enfocadas em distintos campos do saber. Assim, o corpo será tratado aqui tal qual ele se apresenta para a psicanálise, utilizando textos de Freud e Lacan, entre outros, para um melhor entendimento desse conceito. Na psicanálise, o corpo é atravessado pela palavra. Nesse sentido, ele é falado pelo sujeito, pelo outro sujeito social da cultura e escutado por um outro. O corpo fala não só quando é acometido de tremor, temperatura e rubor, mas também fala quando apanhado em sua rigidez, quando procura ocultar os próprios sentimentos. Esses aspectos do corpo que atravessam a psicanálise, Freud soube observá-los em sua prática clínica, principalmente ao lidar com as histéricas. O corpo entra em cena na Psicanálise ao ser relacionado com o sintoma. Entretanto, pelo menos em Freud, não se conhece um conceito formal de corpo. Aliás, referindo-se ao corpo, ele nunca o fazia diretamente, mas por 54 meio de outros conceitos que remetiam ao entendimento desse físico, pois o corpo, para ele, é, ao mesmo tempo, origem e sede dos conflitos pulsionais que são experimentados psiquicamente como sensações. Ao articular sua teoria da sexualidade, Freud (1905) deu início a uma verdadeira revolução na concepção de corpo, revolução essa que, ao se estruturar a partir do corpo Soma, do corpo biológico, do corpo da pura necessidade, foi desembocar na noção de corpo erógeno, inserido na linguagem, na memória, na significação e na representação, ou seja, no corpo próprio da Psicanálise. Toda a reflexão freudiana se estabelece a partir da ideia de um psiquismo encarnado e de um corpo erotizado, quer dizer, de um corpo como ‘ser’ de linguagem. Vale lembrar a observação de Freud (1923) em O ego e o id, quando, refletindo sobre a formação do eu, ele a articula ao corpo: “Um outro fator (...) parece ter desempenhado papel em ocasionar a formação do ego e sua diferenciação a partir do id. O próprio corpo de uma pessoa e, acima de tudo, a sua superfície, constitui um lugar de onde podem originar-se sensações, tanto externas quanto internas. Ele é visto como qualquer outro objeto, mas, ao tato, produz duas espécies de sensações, uma das quais pode ser equivalente a uma percepção interna. A psicofisiologia examinou plenamente a maneira pela qual o próprio corpo de uma pessoa chega à sua posição especial entre outros objetos no mundo da percepção”. (idem, ibidem, p.39). Mais adiante, nessa mesma obra, Freud (ibidem) considera que “o ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície”. (idem, ibidem, p.40). Esse entendimento a que chegou Freud (ibidem) permite dizer que o corpo já não pode ser definido somente pelo conceito de organismo e tampouco pelo conceito puro de somático. No entanto talvez se possa afirmar, não que o sujeito tem um corpo, mas que o sujeito é um corpo, pois se está falando de algo que é uno na subjetividade e na corporeidade, isto é, está-se falando de algo que constitui uma articulação singular. Segundo Fernandes (2002), 55 “O corpo psicanalítico se apresenta, ao mesmo tempo, como o palco onde se desenrola o jogo das relações entre o psíquico e o somático e como personagem integrante da trama das relações, enfatizando que essa dupla inscrição se evidencia no conceito de pulsão, ao colocar o corpo ao mesmo tempo como fonte de pulsão e como finalidade”. (FERNANDES, 2002, p. 5164). Logo, a teoria freudiana permite colocar em destaque que o somático habita um corpo que é também lugar de realização de um desejo inconsciente. Esse corpo é regido segundo uma dupla racionalidade: a racionalidade do que é somático e a racionalidade do que é psíquico. No entender de Lazzarini & Viana (2006), “o corpo é, portanto, lugar da passagem do outro, lugar de onde nasce o sujeito. Sendo assim, a grande inovação freudiana foi, precisamente, considerar essa dupla racionalidade como articulada pelo desejo inconsciente, mas cuja leitura se dá no corpo”. (idem, ibidem, p.248). Com isso, é possível dizer que o ‘outro’ representa o polo investidor que vai transformar o corpo biológico em um corpo erógeno. Esse ‘outro’ seria a condição para que o corpo se tornasse um corpo próprio, habitado pela linguagem. Isso equivale a pensar que é o investimento libidinal no corpo da criança, realizado por esse outro investimento maternal que, ao torná-lo erógeno, permite-lhe o acesso à simbolização. Seria, portanto, a erogeneidade aquilo que aponta ao corpo sua qualidade de corpo próprio. Esta investigação entra em sintonia com o psicanalista francês Paul-Laurent Assoun (1995), quando ele afirma: “Ter um corpo, ser-em-um corpo é ser ‘ordenado’ a um regime libidinal que, a partir da dependência originária e da articulação da necessidade com a demanda, constitui o sujeito encarnado em relação de necessidade com o outro”. (idem, ibidem, p.47). Esses aspectos em que o outro determina o corpo do sujeito são observados na clínica, por ser bem visível o modo como o sintoma se apropria desse corpo. Os fenômenos apresentados no corpo biológico, os sintomas histéricos e obsessivos ficam subordinados à estrutura da linguagem. Trata-se de símbolos inscritos na carne e articulados à sexualidade. Dizendo de outra 56 maneira: a conversão histérica é um sintoma suportado por um enigma a ser decifrado pelo sujeito, através da fala endereçada ao outro e interpretada por esse mesmo outro, através da escuta dos significantes em jogo nessa fala. Tais significantes se inscrevem e delimitam as zonas erógenas do corpo, então, um corpo libidinal, em que um gozo está em questão. Como diz Assoun (1995): “Dizer que o sintoma toma corpo é, portanto, dizer que o sujeito endereça a si mesmo a mensagem que lhe veio do Outro. O corpo é, portanto, o instrumento vivo por meio do qual a mensagem do Outro se encontra literalmente incorporada”. (idem, ibidem, p.165). Com esse esclarecimento, pode-se dizer que o corpo, em Psicanálise, obedece às leis do desejo inconsciente, constituindo um todo em funcionamento, coerente com a história do sujeito. É, assim, um corpo atravessado pela linguagem, o corpo das trocas, das negociações, um corpo que movimenta várias economias, em torno do qual se contam as histórias. Sendo o corpo perpassado pela linguagem, pode-se concluir que é a linguagem que ajuda esse corpo a ser identificado e, muitas vezes, aceito. Logo, a linguagem tem papel fundamental para esse corpo, como tão bem evidencia Pollo (2012): “Presa da linguagem, o homem tem seu corpo recortado pela insistência da pulsão, que se obstina em volta de alguns objetos convocados a partir dos orifícios corporais. O corpo é, então, ordenado nos dois sentidos desse verbo, que tanto significa dar uma ordem quanto pôr em ordem. Sensível à ressonância, à sonoridade mesma do significante, a pulsão, que Freud definiria como “estímulo aplicado à mente” (1915:124) ou exigência de trabalho que resulta da imbricação mente-corpo, será redefinida por Lacan como “eco de um dizer no corpo” (1975/1976:18) uma vez que, na emissão da voz, o sujeito ouve a si mesmo como um outro”. (idem, ibidem, p.32). Com esse fragmento, é válido considerar que o corpo remete para a Psicanálise a questão do limite entre o psíquico e o biológico, em que se encontra aquilo que Freud (1915) denominou pulsão. Essa fonte encontra-se presente no inconsciente através de sua representação psíquica, sob a forma de um significante. É constituída a partir da fala do Outro. Ou seja, o que é 57 psíquico da pulsão é o que dela é linguagem, aquilo que pode ser formulado em termos de significante. Então, tem-se um corpo de significantes, um corpo simbólico, um corpo inscrito no registro do simbólico. Já que se está falando do corpo inscrito no registro, é interessante destacar que, além do registro do simbólico, existem ainda mais dois registros, o imaginário e o real, estudados por Lacan (1974-1975). A partir daí, há de se pensar o corpo nos três registros que se encontram no campo da Psicanálise. Com isso, para fazer um corpo, é necessário um organismo, uma imagem e a linguagem. Falando de outra maneira, pode-se dizer que o organismo seria o real, a imagem seria o imaginário e a linguagem seria o simbólico. Para melhor entender tais conceitos, há de se remeter à Topologia dos nós, de Lacan (ibidem), que possibilita pensar o corpo nesses três registros, sob a forma de três anéis que estruturam um tipo de nó: o nó de Borromeu. Cuja característica em relação ao entrelaçamento dos anéis é a seguinte: se o imaginário se desamarra, os outros dois registros – o simbólico e o real – automaticamente se desenlaçam, desamarram-se, independente do número de anéis entrelaçados. O nó mínimo é o nó de três anéis, conforme mostra Beneti (2005): I - Imaginário: uma imagem toda, una, inteira, sem furos ou defeitos. S - Simbólico: significantes. Estrutura da linguagem. R - Real: o impossível. Enquanto inscrito numa arquitetura significante (S) ou formal (I). Entendendo como estão estruturados esses registros, é necessário destacar que a Psicanálise encontra-se delimitada pela articulação do imaginário, do simbólico e do real, que nunca se apresentam isoladamente, por 58 estarem atravessados uns pelos outros. A partir de tal esclarecimento, é preciso compreender, portanto, como eles se apresentam no corpo, para esse sujeito. O corpo, no registro do imaginário, representa a imagem externa que desperta o sentido em um indivíduo. O registro do imaginário aponta para a dimensão da harmonia, do encontro, do bem-estar. Esse registro pode ser entendido como corpo da medicina, da estética médica, do bem-estar, enfim, do bom funcionamento da máquina corporal. No registro do simbólico, o corpo constitui o conjunto, ou representa o corpo de significantes que insere o indivíduo numa ordem simbólica préestabelecida e veiculada pela linguagem. As leis da cultura e da linguagem em que o indivíduo se insere são designadas pela ordem simbólica. Nesse sentido, o simbólico é a cultura, que é anterior ao indivíduo. Ele constitui o corpo das zonas erógenas atravessadas pelo significante, delimitadas pelos mesmos significantes que, articulados à pulsão (oral, anal, genital), falam do corpo erógeno – um corpo esbelto, magro, gordo, musculoso, malhado, tratado, etc. Ora, talvez dessa forma, pela articulação do imaginário e do simbólico se possa explicar o porquê do obeso sentir o próprio corpo leve, magro, bonito. No registro do real, o corpo é o lugar do gozo. Em Psicanálise, gozo significa dor, desgaste, exigência, gasto. Esse registro, aliás, é também sinônimo de gozo. Ele é corpo do gozo sexual, que aponta para a impossibilidade do bem-estar, da harmonia do encontro. Logo, é o corpo do desencontro, do mal-estar, marcado por um menos, atravessado pela castração que detona o ideal narcísico. Uma vez que se tem conhecimento de como esses registros se apresentam no corpo do sujeito, pode-se dizer que a psicanálise trabalha com o corpo que se apresenta, com o corpo que somos. Esse corpo carnal, que não é apenas um instrumento, mas que também é um lugar, isto é, que representa aquilo que cada um de nós somos. O corpo registra e assimila vivência, assim como sofre as marcas do tempo. Muitas vezes, a representação interna de nosso corpo, a nossa imagem corporal e a imagem fornecida pelo espelho não coincidem, assim como a imagem nossa falada pelo outro. O corpo pode ser objeto de prazer, sim, de prazer de ver, mas também pode sê-lo de angústia, de sofrimento, de 59 satisfação autoerótica, ou mesmo de vergonha. O desejo em relação ao corpo está sempre presente no desejo de se ver e de ser visto. No prazer de ser reconhecido e de despertar o interesse do outro. Não se trata de um corpo que pede reposição, mas de um corpo que solicita uma significação e um sentido. É um corpo que habita a linguagem, que habita o desejo e o gozo. Voltando à questão da imagem corporal, constatar-se-á nela aspectos importantes que hão de auxiliar o entendimento da obesidade. 3.2 IMAGEM CORPORAL Na contemporaneidade, a moda e a beleza física assumiram valores da maior importância para a sociedade em geral. O modo de se vestir, a maneira como usam adornos e a busca do embelezamento por meio da maquiagem expressam as imagens psíquicas no corpo, assim como as imagens do corpo se expressam na psique, a conduzir essas imagens para além da esfera do ego. Os ideais de beleza física impostos culturalmente atuam de forma repressiva na construção da imagem corporal, levando o indivíduo a se conscientizar do corpo que tem, o que quase sempre acaba abalando a autoestima. Tais aspectos revelam-se como importantes indicadores para a compreensão e o tratamento da imagem corporal para o obeso, o que será abordado mais adiante. Para fundamentar tal reflexão sobre imagem corporal, buscar-se-á na teoria psicanalítica o conceito de narcisismo, que constitui um modo particular de encantamento com o corpo e com a própria imagem. Antes, porém, há de se pensar o mito de Narciso, na versão do mitólogo Junito Brandão (1989, p. 173-251), com vistas a um melhor entendimento sobre a teoria narcísica de Freud. Acredita-se que o mito de Narciso ajudará a entender alguns aspectos do sujeito e sua imagem, posto que a fascinação pela própria imagem acabou por destruir o pobre Narciso. Segundo o relato do mito, Narciso era um belo rapaz indiferente ao amor, filho de Céfiso, deus do rio, e da ninfa Liríope. Por ocasião de seu nascimento, os pais consultaram o adivinho Tirésias para saber o destino do menino, pois era uma criança de rara beleza, de uma beleza jamais vista e isso 60 os deixava muito assustados e preocupados. Como resposta, o adivinho lhes disse que o filho poderia ter uma vida longa, desde que não olhasse a própria face. Ao chegar à idade adulta, foram muitas as moças e ninfas que se apaixonaram por Narciso, mas o belo jovem jamais se interessou por alguma delas. Consta, inclusive, que a ninfa Eco, uma de suas apaixonadas, não se conformando com a indiferença do pobre rapaz, isolou-se, amargurada, em um lugar deserto e ali foi definhando até a morte. As moças desprezadas pediram aos deuses que as vingassem. Nêmesis, conhecida como deusa da vingança, ficou com piedade delas. Assim, após retornar de uma caçada em um dia muito quente, ela induziu Narciso a se debruçar na fonte de Téspias para beber água. Nessa posição ele viu seu rosto refletido na água e se apaixonou pela própria imagem. Descuidando-se de tudo o mais, ele permaneceu imóvel na contemplação ininterrupta da própria face refletida e assim pereceu. No local, surgiu uma flor dotada também de uma beleza singular, porém narcótica e estéril, que recebeu o nome de Narciso. Estudando esse mito, Freud (1914b) passou a entender determinados aspectos do comportamento humano que seriam por ele utilizados em suas investigações. Ao comparar a história desse mito com a de um obeso mórbido, torna-se interessante observar que a obesidade faz com que o sujeito esqueça de si próprio e, principalmente, de se olhar, passando a reconhecer-se por uma imagem que não é real. Ele fica paralisado, inerte em relação a seus sentimentos e a tudo que se faz necessário para seu crescimento como sujeito, morrendo para vida social e para os demais relacionamentos, não enfrentando quaisquer desafios. Ora, não foi esse o comportamento apresentado pelo pobre Narciso, ao se olhar no espelho d’água? Também ele não se esqueceu de tudo a seu redor, para se contemplar até a morte? Logo, pode-se dizer que, como Narciso, o obeso só vive se não se olhar, se não vir a própria imagem refletida. Isso, de fato, é muito comentado por eles na clínica: “eu não me olho no espelho”. Uma diferença, porém, se impõe entre o mito referido e a realidade do obeso. O obeso não se apaixona pela própria imagem, ao contrário, ele sente desprezo por ela. O espelho, para o obeso, revelará sempre uma imagem distorcida, uma imagem contrária ao ideal preconizado, logo, ele nunca refletirá 61 uma bela imagem. A vingança, portanto, volta-se contra o próprio indivíduo, por meio de um sentimento de ódio e inveja, inconscientemente destinado ao outro, mas voltado contra si próprio. Referente à questão do narcisismo em Psicanálise, em 1914b, Freud lançou o artigo intitulado Sobre o narcisismo: uma introdução. Nesse texto, ele mostra a existência de uma nova operação psíquica precedida pelo autoerotismo e anterior à escolha do objeto. Assim, o narcisismo pode ser compreendido como um destino possível para a libido, uma etapa normal do desenvolvimento, algo que se passou na infância de cada pessoa. Freud (ibidem) considera essencialmente os investimentos libidinais no próprio corpo, como se fossem a base do narcisismo. Aqui, o narcisismo será visto como fator constituinte na construção da subjetividade. O modo como esse narcisismo é vivenciado por cada sujeito implicará não só a estruturação egoica, como também a formação dos sintomas corpóreos. Para Freud (1914b), a finalidade e a satisfação em uma escolha objetal narcisista consistem em que o indivíduo seja amado. Portanto, o fato de não ser amado reduz os sentimentos de autoestima, enquanto o de ser amado os aumenta. No entender do autor, a autoestima depende intimamente da libido narcísica. As definições de Freud (ibidem) nesse texto corresponderiam ao chamado narcisismo primário e secundário. O narcisismo primário seria o momento em que a criança toma a si mesma como objeto de amor, antes mesmo de escolher objetos exteriores. A criança ultrapassa a posição do narcisismo primário quando se vê confrontada com um ideal com o qual tem de se comparar. Dizendo de outra maneira: ela tem que se confrontar com esse novo ideal que se formou fora dela e que lhe é imposto de fora, apresentando-se-lhe impossível de ser concretizado. Tal é o jogo de espelhos, em que o eu ideal encontra-se na imagem do espelho e não na criança real, exis tindo, por consequência, uma distância entre a criança e os ideais dos pais. O narcisismo secundário resulta de um retorno ao eu do investimento feito sobre os objetos externos. A libido, que anteriormente investia no eu (narcisismo primário), passa a investir em objetos externos e , posteriormente, 62 volta a tomar o eu como objeto, conforme se pode observar nas seguintes palavras de Freud (1914b), quando ele diz haver “uma concentração de libido dentro do eu. Posteriormente, na vida do sujeito, quando a libido, antes dirigida para os objetos externos, se retrai para o ego, então já constituído, fala-se em narcisismo secundário”. (idem, ibidem, p.85-89). Dessa forma, Freud (ibidem) ensina que tanto o narcisismo primário como o narcisismo secundário se caracterizam por um investimento do eu, havendo, em contrapartida, um investimento da libido em objetos externos ao eu. Com base nessa formulação, Moura (2009) afirma que o narcisismo é “um protetor do psiquismo e um integrador da imagem corporal, ele investe o corpo e lhe dá dimensões, proporções e a possibilidade de uma identidade, de um Eu. O narcisismo ultrapassa o autoerotismo e fornece a integração de uma figura positiva e diferenciada do outro. É definido como o complemento libidinal do egoísmo da pulsão de autoconservação, ou seja, essa pulsão recebe um quantum a mais, advindo da pulsão sexual, tendo esta última, então, o ‘eu’ do sujeito como objeto”. (idem, ibidem, p.2). Depois das descrições de Moura (ibidem) a respeito do narcisismo, pode-se afirmar que, segundo a Psicanálise, todo narcisismo é dirigido para o objeto do desejo do outro, isto é, o narcisismo da criança deriva do narcisismo dos pais. A criança ama em si aquilo que nela é desejado pelos pais. Assim, a captação da imagem só se dá, em sua plenitude, quando o outro investe nessa imagem. Tal situação corresponderia à crença da criança na onipotência de seus pensamentos. Equivaleria ao momento em que a criança se sente em plena relação com a mãe, complementando-a e não precisando de mais nada. Essa formação particular, cuja imagem apresenta-se guarnecida de todas as perfeições, é que recebeu de Freud (1914 b) o nome de euideal, o qual se refere ao narcisismo primário, em que se terá o primeiro investimento sexual em uma unidade . Podemos pensar essa unidade como a percepção do corpo para além do orgânico. Para Freud (1914b), o eu ideal diz respeito ao efeito do discurso dos pais, de um discurso apaixonado que abandona qualquer forma de consciência crítica para produzir uma imagem idealizada. Essa imagem aparece de forma 63 irredutível na problemática narcísica do eu, pois o eu ideal só pode assumir essa posição por meio do olhar do outro. Lacan (1949), relendo Freud (1914b), chama esse tipo de relação imaginária de relação dual, em que o eu e o tu se confundem. É uma relação que se esgota nesse jogo especular. Trata-se de uma dimensão imaginária, limitada e idealizada, relacionada ao narcisismo dos pais e que confere ao sujeito uma sensação de onipotência. Assim, esse eu seria resultado dos investimentos narcísicos dos cuidadores sobre o bebê. O efeito de tais investimentos na imagem do sujeito faz com que ele mesmo se identifique com a própria imagem, passando a investir nela também. Em outras palavras, esse investimento permite que o sujeito ame a si mesmo, numa dimensão narcísica. Lacan (1949) relacionou a experiência narcísica fundamental ao momento inicial de formação do ego, quando designou a fase do espelho. Essa experiência permitiria à criança, que ainda não tem constituída uma unidade corporal, associar a própria imagem visualizada ao corpo imaginário dos sonhos e das alucinações. Segundo Lacan (ibidem), o estádio do espelho poderia ser compreendido "como uma identificação (...), ou seja, poder-se-ía entendê-la como a transformação produzida no sujeito, quando ele assume uma imagem". (idem, ibidem, p.97). Em O Estádio do espelho como formador da função do eu, Lacan (ibidem) registra a fase da constituição do ser humano, que se situa entre os seis e os dezoito meses. Segundo ele, a criança encontra-se ainda em um estado de impotência e de incoordenação motora profunda, em que a imagem unificada fornece a primeira matriz do jogo de suas relações libidinais, antecipa imaginariamente a apreensão e o domínio da sua unidade corporal. A imagem de si mesmo é então atingida na relação com o outro e como outro, em seu aspecto idealizado. Nesse primeiro momento de estruturação, a criança, com suas fantasias de corpo fragmentado e por conta da própria prematuridade neurofisiológica, antecipa-se numa unidade corporal a partir da imagem do outro. Ou seja, a partir da imagem do próprio corpo encontrada no espelho e na qual ela vai se alienar virtualmente. 64 Pela primeira vez, a visão do corpo inteiro, ou à vista da imagem do semelhante no espelho, desperta manifestações de júbilo na criança, que, imediatamente, olha para o adulto para encontrar, no olhar do outro, a confirmação daquilo que vê no espelho. Essa experiência primordial está na base do caráter imaginário do ego, que passa a ser admirado pela criança como seu eu ideal. Esse fato de que o eu se constitui como um outro revelará toda a dimensão da linguagem como sendo o registro por meio do qual o outro comparece para intervir e dar valor de existência à constituição da imagem do eu. O estádio do espelho representa a estrutura da dinâmica narcísica, constitui as leis de funcionamento do eu, não sendo, portanto, uma fase ultrapassável. Sua estrutura consiste, antes, na ideia de uma simultaneidade da constituição do eu e da perda que aí se instaura. Essa perda se revela pela discordância e pela distância fundamental do eu com sua imagem. No espelho, o nascimento do eu se confunde com a constituição da imagem do corpo físico, ao mesmo tempo em que a visão observada no espelho é apreendida como objeto. Nessa relação inaugural com o Outro, o homem investe o objeto por meio de sua imagem especular e essa miragem de totalidade dá uma forma ortopédica a esse corpo, numa espécie de precipitação da forma do corpo que se adianta à sua prematuração biológica. Lacan (1949) define o Estádio do Espelho como: “(...) um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação - e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos de ortopédica - e para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental”. (idem, ibidem, p.97-100) Para Lacan (ibidem), no estádio do espelho há uma tentativa, por parte do sujeito, de resgatar e refazer o vínculo perdido, apartado pelo nascimento e presentificado no desmame. Segundo ele, a primeira experiência objetiva que a criança teve do próprio corpo foi apenas visual e aquele corpo identificado no espelho seria homólogo ao corpo fantasma do qual se teve a prefiguração desde o nascimento. 65 Como se vê, a importância do desenvolvimento do conceito de narcisismo pela psicanálise contribui, de forma bastante consistente, para o entendimento da imagem corporal em todos os seus aspectos. A ideia de imagem corporal foi elaborada por Schilder (1994) no seu esforço de integrar o pensamento biológico e o psicanalítico. Ele define a imagem corporal como “a imagem que formamos mentalmente do nosso corpo, o modo como o vemos” (idem, ibidem, p.11). Segundo ele, “há sensações que nos são dadas, vemos parte da superfície do corpo, temos impressões táteis, térmicas e de dor. [...] as sensações provenientes do interior do corpo não têm significado intrínseco antes de serem conectadas à imagem corporal. Todos nós temos uma imagem mental de nossa própria aparência que é algo mais que uma imagem no espelho e pode ou não se aproximar muito da nossa aparência real. A imagem do corpo abrange a visão que temos de nós mesmos, não só fisicamente, mas também fisiológica, sociológica e psicologicamente. De posse da configuração adulta, o ser humano continua a lidar com a questão da autoimagem, seu corpo como símbolo, tanto no contexto individual quanto no social. Todas as facetas da adaptação social e da personalidade estão afetadas pela configuração e pelo funcionamento do corpo, ligadas à impressão causada nos outros e em si mesmo”. (idem, ibidem, p.7) Conforme esse esclarecimento de Schilder (ibidem), a imagem corporal inclui representações psíquicas conscientes e inconscientes e a forma como se estrutura essa imagem é de vital significação na localização e na manutenção dos sintomas corpóreos. Com isso, pode-se entender que a linguagem corporal é como a linguagem do sonho. Anuncia e denuncia algum aspecto do sujeito, fornecendo símbolos à consciência, fazendo pensar que é também através do corpo que o inconsciente é experienciado. Logo, é possível pensar que a imagem do corpo é eminentemente inconsciente, tornando-se em parte consciente, quando associada à linguagem consciente. A se acreditar na necessidade de mais explicação sobre a imagem corporal, há de se lembrar das várias investigações de Françoise Dolto (2010) nessa área, o que muito auxiliará essa caminhada. Em um de seus estudos, Dolto (2010) evidencia a distinção entre esquema corporal e imagem do corpo. Para ela, o esquema corporal 66 caracteriza a pessoa como representante da espécie, quaisquer que sejam o lugar, a época ou as condições em que viva. Daí considerar que “é ele, o esquema corporal, que será o intérprete ativo ou passivo da imagem do corpo, no sentido de que permite a objetivação de uma intersubjetividade, de uma relação libidinal linguageira com os outros que, sem ele, sem o suporte que ele representa, permaneceria para sempre um fantasma não comunicável”. (DOLTO, 2010, p.14 ) Ora, se o esquema corporal é, em princípio, conforme quer Dolto (ibidem), o mesmo para todas as pessoas, a imagem corporal, em contrapartida, é própria a cada um, está ligada à pessoa e à sua história. Ela se representa nas experiências emocionais inter-humanas, vividas de maneira repetida, através das sensações erógenas primitivas ou atuais. A imagem do corpo é, pois, a cada momento, memória inconsciente das relações vivenciadas e, ao mesmo tempo, ela é, simultaneamente narcísica e interrelacional. Ainda, na perspectiva de Dolto (ibidem), “é graças à nossa imagem do corpo sustentada pelo nosso esquema corporal que podemos entrar em contato com o outro. Todo o contato com o outro, quer o contato seja de comunicação ou para evitá-la, é subentendido pela imagem do corpo; pois é na imagem do corpo, suporte do narcisismo, que o tempo se cruza com o espaço, e que o passado inconsciente ressoa na relação presente. No tempo atual, sempre se repete em filigrana algo de uma relação atual, mas pode encontrar-se ali, desperta, re-suscitada, uma imagem relacional arcaica, que permanecera recalcada e que retorna, então”. (idem, ibidem, p. 15). Assim, no entender de Dolto (ibidem), “a imagem do corpo se estrutura pela comunicação entre sujeitos e o vestígio, no dia a dia, memorizado, do gozar frustrado, reprimido ou proibido”. (idem, ibidem, p.15). Para ela, portanto, existem três aspectos dinâmicos da imagem corporal que são: a imagem de base, a imagem funcional e a imagem erógena. A imagem de base é o que permite à criança sentir-se em uma mesmice de ser. Ou seja, possibilita à criatura permanecer em uma continuidade narcísica no espaço-tempo, desde o nascimento, resistindo às mudanças do 67 corpo e aos processos evolutivos. “É dessa mesmice que vem a sensação de existência”, ensina Dolto (2010, p.38). A imagem de base vai sendo constituída de acordo com a importância dada às diversas zonas do corpo, desde seu nascimento. Num primeiro momento, essa imagem de base é respiratório-olfativa-auditiva. A seguir, temse uma imagem de base oral, que compreende a primeira e acrescenta a percepção da zona bucal faringo-laringe. A próxima será a imagem de base anal, que acrescenta às duas primeiras a percepção da retenção ou da expulsão do conteúdo da região inferior do tubo digestivo. Aliás, não se deve esquecer de que a pele e os orifícios também têm grande importância na constituição da imagem de base, dada sua capacidade erógena. Diferente da imagem de base que tem em si um componente estático, a Imagem Funcional é a responsável pela realização do desejo. Graças a ela, as demandas provenientes do esquema corporal têm como propósito atingir a satisfação. A elaboração da imagem funcional enriquece as possibilidades de relação com o outro, pois estimula o corpo a servir ao objetivo de satisfazer o desejo, em grande parte pela via da comunicação. Já a Imagem Erógena associa-se à imagem funcional do corpo, local em que se vivencia o prazer ou o desprazer na relação com o outro e abre caminho para o prazer partilhado, humanizante no tocante ao valor simbólico e que pode ser expresso pelo gesto e pela palavra (no início, a palavra vinda do outro, mais tarde, a própria palavra). Então, para Dolto (ibidem), a imagem do corpo representa a síntese viva dessas três possibilidades, atualizadas constantemente naquilo que ela denomina Imagem Dinâmica, que corresponde ao “desejo de ser e de preservar um advir” (idem, ibidem, p.45). A imagem dinâmica não tem uma representação própria, mas corresponde a uma intensidade da expectativa de atingir o objeto, é o “trajeto do desejo dotado de sentido, indo em direção a um objetivo” (idem, ibidem, loc.cit.). Para Dolto (ibidem), portanto, “a imagem do corpo é a síntese viva de nossas experiências emocionais: inter-humanas, repetitivamente vividas através das sensações efetivas, arcaicas e atuais. Ela pode ser considerada como a encarnação simbólica inconsciente do sujeito desejante”. (idem, ibidem, p.14). 68 Com isso, Dolto (ibidem) revela que a imagem corporal representa uma história que carregamos por toda a vida. Uma história que nos permite transitar por caminhos do nosso corpo. Em outras palavras: a imagem corporal é o retrato mental que a pessoa faz da própria aparência física e das atitudes e sentimentos em relação a essa mesma aparência, que é atualizada pela palavra, pelo gesto, pelo movimento, pela música, pelo desenho, pela modelagem, etc. A partir de tal entendimento, é possível considerar que a imagem corporal é instável e mutável, constrói-se e desconstrói-se constantemente, podendo encolher, expandir, dar partes suas ao mundo e tomar para si partes do mundo. Essa mobilidade da imagem corporal chama a atenção e aparece de forma mais clara no movimento, por se tratar de um modo de flexibilizar a imagem corporal, pois durante o movimento ocorre uma adaptação imediata e constante do modelo postural do corpo, modelo esse que lança mão de reflexos posturais normalmente indisponíveis à consciência. Como consequência, tem-se a alteração da percepção de peso do corpo, de volume, do nível de tensão muscular, o que, por sua vez, conduz a alterações psíquicas e a mudanças no estado emocional. A construção da imagem corporal é continuamente reelaborada, por meio das vivências de cada pessoa, de forma que traz em si sinais característicos de toda a sua vida. Entendido como a imagem corporal se apresenta na contemporaneidade e como ela se desenvolve, é hora de falar como ela se expressa ou como ela se apresenta distorcida para a obesidade. 3.3 IMAGEM CORPORAL E OBESIDADE Na sociedade contemporânea, o homem, exaurido de suas vontades, obedece aos ditames de sua época, cujo clamor mais contundente é o prazer sem limite! Nestes tempos de performa mais elaborada, a combinação de um foco na iniciativa pessoal com uma liberação dos costumes e com uma pulverização das referências levou ao surgimento de uma individualidade que age por ela mesma. Diante desse cenário e frente a essa performance exigida 69 pelo contexto atual, encontra-se um indivíduo marcado pela insuficiência, cuja válvula de escape para suportá-la tem sido a obesidade. O obeso mórbido parece encontrar em sua condição de indivíduo adiposo e no impulso incontrolável de comer, uma via para a resolução de seus problemas, como se fora o único meio de efetuar trocas ou substituições afetivas e tolerar frustrações na vida. O comportamento habitual de estar sempre a ingerir algo e a noção da imagem corporal interferem de maneira danosa na vida do obeso, fazendo surgir um sentimento de impotência e de falta de controle nos próprios relacionamentos. Pode-se pensar, então, que a obesidade como doença é um fenômeno contemporâneo, pois numa sociedade em que as idealizações do corpo e do prazer da comida passam pela repressão alimentar, os desejos circulam em torno do objeto interditado. Nesse panorama, o obeso apresenta-se como um exemplo perfeito dessa conjuntura, em que a imagem perde o vínculo com a própria realidade, com a própria referência. Nesse caso, porém, a situação torna-se mais terrível ainda, uma vez que a referência que se perde é a do próprio corpo. Com isso, não seria absurdo dizer que o desenvolvimento do esquema corporal dos indivíduos obesos poderá intervir na capacidade de percepção do próprio corpo e também em sua noção espacial. Tal acontece por haver o não reconhecimento da dimensão física do corpo, aliado a aspectos emocionais inerentes à constituição da imagem corporal. E tais aspectos são captados claramente quando se induz o sujeito obeso a uma reflexão sobre o momento da vida em que eles se perceberam obesos. Observa-se com isso uma característica importante e muito comum entre os obesos: quase sempre eles apresentam sentimentos conflituosos em relação ao próprio corpo. Tais sentimentos se manifestam mais claramente na forma de um receio explícito de se olharem no espelho, devido à insatisfação corporal. A esse respeito, Manguel (2001) apresenta um conceito de imagem, em que aborda um sentimento com o qual o obeso vem se defrontando na contemporaneidade. Diz ele: “As imagens que formam nosso mundo são símbolos, sinais, mensagens e alegorias. Ou, talvez, sejam apenas presenças vazias que completamos com o nosso desejo, experiência, questionamento e remorso. “Qualquer que seja o caso, as 70 imagens, assim como as palavras, são a matéria de que somos feitos”. (MANGUEL, 2001, p.21). Tal fragmento leva a pensar a imagem como forte registro na constituição do sujeito. No entanto, como se está falando do obeso, essa imagem assume um papel muito importante em sua estruturação. Porém, como ela se apresenta? Para responder a tal questionamento, poder-se-ia pensar nessa nova mentalidade de conceber o corpo como uma das modalidades do belo. Contudo, como tal concepção se encontra sob a tutela das artimanhas de uma sociedade de consumo, valeria tentar uma explicação pela teoria psicanalítica. Assim, pode-se dizer que o narcisismo incide sobre a imagem de um corpo ideal, de um corpo que não sofre e, com isso, essa imagem corporal fica desconectada do corpo real. Dessa forma, o obeso não se vê tão gordo quanto aparenta, embora seu peso aumente cada vez mais e a identidade, que representa um aspecto importante no desenvolvimento do obeso, constitui-se a partir de um corpo ausente, de uma imagem distorcida. E quando a distorção tem início na infância, a pessoa pode mesmo acreditar que seu corpo é grotesco, que os demais a olham com desprezo ou hostilidade e quem dela se aproxima, não o faz por prazer, mas por pena ou por se considerar igualmente monstruoso. Já na adolescência, é possível aparecer um medo mórbido de engordar, devido às cobranças que os jovens acabam sofrendo da indústria da beleza. A criança ou o adolescente vão aprendendo que um corpo volumoso, que um físico gordo é feio e desagradável ao olhar, o que os faz tornarem-se cada vez mais inimigos de tal corpo, a fim de não se considerarem malvistos e não amados. Porém, quando essa distorção chega à fase adulta, constata-se, então, que o obeso deixa de perceber sua estrutura física. Daí Franques (2002), considerar que “a imagem corporal que o obeso tem de si é distorcida, e essa distorção é tanto maior quanto mais antiga for a sua obesidade” (idem, ibidem, p.74-79). Muito embora o indivíduo tenha consciência de que está com excesso de peso, o que acaba incomodando mesmo é a dificuldade em lidar com o próprio corpo e não o tamanho do corpo propriamente dito. Tal ocorre porque o 71 obeso não mais consegue se abaixar, ele já não pode cruzar as pernas, as mulheres não conseguem calçar sapatos de salto alto e tampouco caminhar com desenvoltura. Enfim, tudo se torna um transtorno. Isso leva o sujeito a perder a autoestima e a percepção da dimensão do próprio corpo. Com isso, talvez num processo inconsciente, eles passam a escamotear esse corpo e acabam tendo mesmo dificuldade de reconhecê-lo da forma como ele se lhes apresenta. Daí tornar-se uma imagem não percebida. Logo, diante de tanta inquietação e de tantos obstáculos, o sujeito acaba “esquecendo” de se ver. Todavia, será que apenas esses aspectos podem levar a tanta dificuldade? Para tentar esclarecer tal pergunta, é conveniente pensar em todas as vicissitudes por que passa uma pessoa com obesidade e avaliar também as reclamações que surgem quando algum deles necessita consultar um profissional de saúde. Logo de início, há a dificuldade em chegar ao local do atendimento médico, pois o obeso não consegue caminhar por muito tempo, posto que as juntas começam a doer. Depois, há a reclamação do espaço para sentar, porquanto as cadeiras não comportam a estrutura física do obeso. Por outro lado, há os que sofrem de pressão alta, outros, padecem de diabetes. Enfim, cada qual reclama das dificuldades que vivenciam para visualizar o próprio corpo, uma vez que muitos só conseguem divisar o próprio rosto, e olhe lá! Reclamam, ademais, que sentem vergonha de se olharem e muito mais quando alguém comenta que têm um rosto tão bonito, fixando bem que só o rosto é belo, sem mencionar as outras partes do corpo. Nesse momento, é comum ouvir reclamações ou justificativas de que o ganho de peso começou logo depois da gravidez, ou que teve início após uma perda emocional (luto, separação), ou em seguida a uma demissão, ou, até mesmo, que a pessoa sempre fez dietas por conta própria, emagreceu, mas não foi capaz de manter o peso, por não ter mudado os hábitos alimentares e tampouco prestou atenção aos aspectos emocionais, voltando a engordar e a caracterizar aquilo que ficou conhecido como efeito sanfona. É importante salientar que o corpo obeso perde a noção de sua imagem corporal durante o tempo em que aumenta e diminui de peso várias vezes, durante tentativas de emagrecimento fracassadas. (SCHILDER, 1994, p.190). O aumento de peso pode ser gradual, ocorrendo ao longo do tempo, 72 silenciosamente, sem ser notado, pois as roupas vão se adaptando à silhueta: peças com numeração maior, calças com elástico na cintura, blusas mais largas e assim por diante. Com tais atitudes que passam despercebidas, podese entender que de fato existe dificuldade em distinguir essa imagem, quando a pessoa obesa não tem consciência do excesso de peso que adquiriu, ou seja, ela não se percebe gorda, mesmo ao se olhar no espelho. A verdade é que, ao avistar no espelho, ela não vê o que ali se lhe revela, mas, sim, um reflexo que faz par com seus conteúdos psíquicos do momento, podendo, dessa forma, distorcer aquela imagem perceptível e torná-la diferente daquilo que ali se lhe mostra. Ora, por maioria de razão, sabe-se que as pessoas com esse comportamento evitam espelhos de corpo inteiro, ao contrário das anoréxicas, que os buscam obsessivamente. O insight dá-se, em geral, quando a pessoa se defronta com uma fotografia sua de corpo inteiro, ou quando desenvolve problemas de saúde, decorrentes do excesso de peso, como pressão alta e diabetes. Nesse caso, ela procura o médico, precisa se pesar e é então que ela tem de enfrentar a realidade. Tais aspectos, segundo Sara Bird (2010), podem ser denominados como “Fatorexia”, conforme ela denominou em seu livro: What Do You See When You Look In The Mirror? O título de seu livro, em uma tradução literal, seria: Gordorexia: O que você vê quando se olha no espelho? Contudo, essa denominação – gordorexia –, ainda de acordo com a autora, não é reconhecida como doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS), quer dizer, ainda não possui critérios diagnósticos e não tem respaldo científico. Mesmo sem esse reconhecimento, observa-se uma certa dificuldade de aceitação da própria imagem por parte dos obesos, pois eles nunca se veem como realmente são. Ao se olharem no espelho, os obesos veem-se mais magros do que na realidade são. Isso pode levar o portador dessa distorção a não tomar o devido cuidado para não contrair as doenças que a obesidade pode ocasionar. Portanto, esse comportamento de não querer, ou de não conseguir se enxergar como realmente se está, piora o quadro do obeso pela possibilidade da pessoa se descuidar e cometer excessos, sem preocupação com as consequências. O que ocorre de fato é uma dificuldade de reconhecimento da 73 imagem física, visível. Por outro lado, sabe-se que, atualmente, a pessoa só pode contar com os protocolos de tratamento desenvolvidos para os casos de obesidade mórbida. Segundo especialistas, é importante que pessoas com essa dificuldade realizem um tratamento multidisciplinar. Então, nesse momento, há de se pensar essa distorção de imagem com a psicanálise, cujo caminho a seguir pode ser o do narcisismo, embora não como forma de se identificar com a própria imagem, mas, ao contrário, para entender o porquê do não reconhecimento, da não percepção da própria imagem e também para compreender aquele reconhecimento distorcido, a fim de poder perceber as dificuldades de lidar com os próprios aspectos internos. Como se vê, a distorção da imagem já vem se mostrando como um comportamento que afeta diretamente a obesidade ou vice-versa. Logo, é possível afirmar que, em muitos casos de obesidade, a distorção da imagem corporal apresenta-se como mais um agravante que esse sujeito tem de lidar. 74 4. Já não sou a mesma: posso ver-me “Enfim, magro”. (SOARES apud DUAILIB, 2000). Este capítulo se iniciará com frases de pacientes obesos, proferidas durante acompanhamento psicológico no Núcleo de Índice de Massa Corporal (NIMC), para realização da cirurgia bariátrica. Há de se observar que elas revelam tudo o que essas pessoas captam do mundo que as cerca, a demonstrar toda angústia e preconceito que dele emana em relação à obesidade e cuja máscara a sociedade não consegue ocultar. A seguir, algumas delas: - “Gordas são feias, sofrem preconceitos”. - “As pessoas consideram as gordas relaxadas”. - “Ninguém gosta de ter amiga gorda”. - “Gorda tem assaduras no meio das pernas”. - “Gorda é constantemente confundida com grávida”. - “Gordas têm dificuldades para comprar roupas”. - “Homens não se interessam por mulheres gordas”. - “Magra fica bem de calça, short, vestido social, terninho... tudo”. - “Magra pode comer em locais públicos, sem chamar a atenção”. - “Magra pode ir à piscina sem fazer o papel de ridícula”. - “Magras são invejadas pelas outras mulheres”. - “Magras são mais felizes”. Eis a forma que o obeso tem de se olhar. Após estudo da distorção da imagem, no capítulo anterior, que evidenciou o modo como o obeso perde a noção do próprio corpo, tratar-se-á agora da cirurgia bariátrica, com vistas a elucidar a tentativa de resgate da imagem corporal que ocorre após o obeso sofrer a cirurgia que o levará a perder peso. Segundo eles próprios, essa intervenção é como uma ressurreição, representa uma nova vida: “É uma nova chance que estamos nos dando. Sabemos que essa chance para dar certo só depende de nós. Temos que acreditar que somos importantes e que podemos 75 mudar para conquistar algo melhor nas nossas vidas. A cirurgia não faz milagre, é a gente que tem que fazer a nossa parte”8. (sic) 4.1 O CORPO QUE VOLTO A HABITAR Para começar, é importante destacar que o sentido desta parte do trabalho é mostrar como o corpo é entendido pelo obeso antes e depois da cirurgia bariátrica. Em verdade, o corpo que o obeso transporta não é reconhecido por ele próprio tal como ele se apresenta na realidade. O que o obeso enxerga é uma imagem distorcida, conforme se falou no capítulo anterior. Talvez porque o corpo que se lhe manifesta também não seja o desejado, o que faz muita diferença em relação a sua imagem. E, em última instância, também por se tratar de um corpo passível de abrigar várias doenças. Assim, esse corpo torna-se motivo de vergonha, de insulto, de brigas. O suor em excesso, as dificuldades motoras, a lentidão, a baixa resistência para acompanhar as brincadeiras, o fato de, não raro, ser alvo de piadinhas, tudo isso leva o obeso a tratar o corpo como algo externo a ele, como algo que ele apenas tem de carregar, mas que não traduz qualquer relação com o que ele come ou faz no seu dia a dia. Trata-se de algo que se encontra fora do controle e da percepção da pessoa. Desse modo, o corpo para o obeso está situado na esfera de uma camada de proteção – essa mesma proteção, para a psicanálise, manifesta-se para recalcar a sexualidade. É uma forma de não permitir a erotização do corpo, não permitindo que seja desejado, como podemos observar na permissividade, na passividade que cercam os obesos. O corpo apresenta-se sem limites, sem condições de se mostrar para o outro. uma coisa diferente que não quer ser vivenciada nem percebida. Esse é o cenário corporal que se apresenta para o obeso antes da cirurgia. Após a realização da cirurgia, o obeso começa a se reconhecer no corpo que possui. Passa a tocar nele, inicia um reconhecimento de suas várias partes - coxas, pés, órgãos genitais - que há muito eram escondidos. Com o passar do tempo, após a intervenção cirúrgica, ele começa a se interessar por outras atividades como exercícios físicos, por exemplo. Começa, também, a perceber 8 Fala de um paciente. 76 que sente mais frio, que o suor já não aparece como antes e que os movimentos ficaram mais fáceis de serem realizados. O cruzar das pernas, então, tem um destaque especial para todos, pois evidencia uma conquista. Contudo, nem tudo é só alegria, como eles falam. Existem coisas a que não estão acostumados e essa é a parte mais difícil, pois depende do outro, como, por exemplo, o desejo de ter uma ligação amorosa mais profunda, de fazer sexo, ou a vontade de comprar roupas de tamanho menor, de ter seus horários. Já em relação ao corpo recém-adquirido, há uma reclamação de que tudo fica flácido, daí o questionamento se as partes do organismo passarão a ter medidas harmônicas com o todo, se vai melhorar a aparência, pois se antes os peitos eram grandes, agora ficaram “muxibentos”, e as nádegas não estão lá grandes coisas, porquanto também ficaram flácidas. Quanto ao abdômen, as peles caídas aumentaram muito, mas “a gente disfarça colocando uma calça apertada”... Tais queixas, aos poucos, começam a chamar a atenção, pois vêm com um tom de protesto, com um matiz de reivindicação, afinal “fiz a cirurgia para melhorar, mas me deparo, outra vez, com vergonha desse corpo”. Tem-se observado, com a expectativa de melhora do corpo e do organismo em geral, que ocorre após a cirurgia, essas pessoas começam a interagir de novo com a sociedade e, com isso, surgem também as cobranças que antes eram disfarçadas, ou melhor, recalcadas, para não causar mais sofrimento. Agora, com o novo corpo sem gordura ou, pelo menos, com menos gordura e com a autoestima elevada, esse corpo precisa ser mostrado, é necessário exibi-lo. Porém, como pode isso acontecer se tudo está flácido? Costumam dizer que a cirurgia foi a melhor coisa que fizeram. Quanto às peles caídas, “depois se faz uma cirurgia reparadora, caso precise”, dizem. Ademais, são indicados exercícios físicos, que muitas vezes resolvem para alguns. Assim, eles começam a ter acesso ao corpo, dizendo: “hoje eu vejo meu corpo por inteiro, não só o rosto; descobri que ainda tenho coisas que estavam há muito tempo esquecidas; eu tenho pescoço outra vez!“. Isso faz com que se sintam orgulhosos de si mesmos. Observa-se, também, que essas mudanças no corpo fazem com que eles se permitam falar desse novo físico e não só senti-lo. E falar não só com 77 palavras, mas com gestos, coisa que não havia possibilidade de se manifestar com a obesidade, pois a gordura os impedia. Assim, a fala emerge para os ex-obesos como forma de conquista e de reconhecimento, pois agora eles são ouvidos e percebidos através do novo corpo, que fala. Por conseguinte, torna-se importante destacar que com o resgate do corpo, por eles e pela sociedade, as pessoas em geral começam a participar de suas vidas e a perceberem sua importância. Isso impõe responsabilidade, uma vez que as decisões que serão tomadas daí por diante só dependerão deles. A cirurgia e os acompanhamentos médico-psicológicos da equipe só foram um empurrão, porque a decisão de continuarem ou não nessa busca, que será constante, só depende deles. Com isso, cabe lembrar das palavras de Soler (2005), quando diz que, “o cuidado com o corpo no nível das necessidades vitais é fundamental, porém isso não pode passar pelo silêncio dos hábitos regularizados, ainda que suas marcas não deixem de ter influência. É preciso haver a linguagem, em que a demanda se articula para que esse corpo seja “corporalizado de maneira significante” (idem, ibidem, p. 92). O que se observa nos ex-obesos não é outra coisa, senão o resgate dessa linguagem pelo emagrecimento do corpo e pela forma de se perceber. Daí a preciosidade da linguagem, conforme esclarece Soler (ibidem), ao explorar a corporalização do físico do indivíduo ex-obeso. Tais mudanças por que passa o ex-obeso levam a uma nova percepção da própria imagem corporal, o que será tratado a seguir. 4.2 NOVA PERCEPÇÃO DA IMAGEM CORPORAL Tem-se observado que, após a cirurgia, o obeso começa a se identificar com o corpo. A partir daí, ele já percebe seu tamanho, não mais o considera ‘só gordinho’. Nesse instante, admite, havia de fato um acúmulo enorme de gordura em seu corpo. Constata-se, também, que os ex-obesos não mais se referem àquele outro corpo anterior à cirurgia, e, sim, ao corpo atual, pois agora eles já reconhecem a nova imagem física adquirida. Já não a percebem 78 distorcida como outrora. Claro que se está falando de um processo que vai ocorrendo à medida que acontece a perda de peso. No entanto, mesmo com tal reconhecimento, há momentos em que eles se inquietam em saber se de fato estão emagrecendo, a evidenciar uma preocupação em voltará a engordar, conforme se tem observado em pacientes que já passaram por esse procedimento há mais tempo. Agora, comprar roupa, pegar ônibus, sentar-se despreocupadamente, sem medo, em quaisquer cadeiras, comprar sapatos, ir à academia, etc., tornam-se coisas normais para os ex-obesos e fazem com que eles não se sintam mais discriminados pela sociedade. Veem-se como sendo parte desse aparato social, que não os enxerga mais como algo diferente e grotesco. A partir do momento em que a imagem corporal não mais se apresenta distorcida para eles, alguns aspectos começam a mudar em suas vidas: olham-se mais vezes no espelho; arrumam-se melhor; a autoestima fica mais elevada; o apetite sexual retorna; tiram mais fotografias. Enfim, apresenta-se-lhes uma nova vida. Com tal mudança, o sujeito começa a se interessar por essa recémchegada vida e passa a se ver como os demais, a se considerar igual aos demais. É importante destacar que esse processo de inserção na sociedade e esses comportamentos que o obeso começa a assumir em relação a si e aos outros não aparecem logo após a cirurgia, ou melhor, não surgem logo no início do emagrecimento, mas, sim, ao longo de um processo que o ex-obeso passa a vivenciar. E tal processo faz com que ele perceba e entenda as mudanças que vão acontecendo ao longo desse período, conscientizando-se de que terá sempre a ajuda dos profissionais da equipe. Essa ajuda amenizará os conflitos que irão surgir, embora não vá resolvê-los, pois a pessoa que está vivenciando a situação é que terá de tomar as decisões, as quais, muitas vezes, não se lhes apresentam tão fáceis como podem parecer. Quanto à questão da distorção da imagem, não raro o ex-obeso necessita de um bom tempo para se perceber magro, pois se sente confuso em relação ao modo de agir. Quando vai comprar roupas, por exemplo, ele ainda pede tamanho GG, mesmo que a vendedora lhe diga que o número de seu manequim é outro. É como se até então ele não tivesse introjetado o novo corpo, dando a impressão de que a imagem que se lhe apresenta não condiz 79 com essa outra preservada em sua mente ou que ele ainda não deixou de perceber, mesmo com dificuldade. Trata-se, na verdade, de uma descoberta atrás da outra em relação a esse recém-adquirido aspecto corporal. Os limites concernentes ao corpo têm de ser repensados. Agora, já não há aquela circunferência tão desproporcional. Nesse instante, o corpo já cabe em determinados espaços, antes incompatíveis com a estrutura física anterior. Contudo, paira ainda certa insegurança em se expor. Com o passar do tempo, porém, o ex-obeso começa a não mais se incomodar com a atual imagem corporal, assume a nova estrutura física e, socialmente, é tratado de igual para igual. Tem início seu comprometimento com a vida e com as mudanças que ela lhe há de proporcionar. É importante ressaltar a existência daqueles que não conseguem se reconhecer no novo corpo, por não acreditarem que o esforço para alcançarem o objetivo final tem de ser deles mesmos e não da cirurgia. Afinal, a cirurgia representa apenas um pequeno passo, visto que os passos maiores são da competência do paciente, pois será ele que os terá de efetuar, que os terá de assumir. E ainda que toda a equipe lhe ofereça o suporte necessário para esse fim, ele não pode deixar de comparecer para o acompanhamento dos profissionais competentes. Por outro lado, o ex-obeso não deve ficar à mercê de informações não científicas e do senso comum, que podem até dar certo, mas por um caminho muito duvidoso. Há também os que passam pelo processo de emagrecimento, sabem que estão magros, mas continuam falando, pensando como se ainda fossem gordos e isso faz com que se vejam de fato gordos e preocupados, com medo de voltarem a engordar. Diante de tais condutas, constata-se que ao longo do processo de emagrecimento a visão da imagem corporal vai se mostrando de outra maneira, de uma forma diversa, diferente, isto é, ela vai sendo percebida, sim, mas com receio do encontro com o outro. Entretanto, há de se destacar que a ajuda dos profissionais da área contribui bastante para o entendimento dessa dificuldade por parte do ex-obeso e a melhoria dessa distorção. Conforme Kahtalian (1992) observa, há: 80 “a necessidade de se introduzir, na realidade psíquica desses pacientes, após o tratamento de emagrecimento, a nova imagem adquirida, já que a força inconsciente faz restaurar a imagem corporal introjetada na infância”. (KAHTALIAN, 1992, p. 276). Na experiência clínica, a imagem corporal começa a mostrar-se de forma diferente. Evidencia-se de acordo com a maneira como o ex-obeso se vê, quando passa a relacionar-se com o corpo de forma mais erotizada, reconhecendo suas partes, agora não mais separadas, mas como um todo. Com esses ganhos, pode-se dizer que a libido, antes petrificada, começa a fluir no corpo do ex-obeso, em todos os aspectos – processo que ele foi conquistando a cada perda de peso e a cada reconhecimento de si próprio. Agora, há de se averiguar como a libido é vivenciada pelo recém-magro, essa mesma libido que Freud (1905) destaca em seu texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, como sendo “uma força quantitativamente variável que poderia medir os processos e transformações ocorrentes no âmbito da excitação sexual. Diferenciamos essa libido, no tocante a sua origem particular, da energia que se supõe subjacente aos processos anímicos em geral, e assim lhe conferimos também um caráter qualitativo”. (idem, ibidem, p.132-133). Freud (1900) defendia que a libido sofre os efeitos da troca do objeto, e argumentava que os homens são polimorficamente perversos. Com isso ele queria dizer que existe uma enorme variedade de objetos que podem tornar-se uma fonte de prazer. Ao mesmo tempo em que as pessoas se desenvolvem, elas também se fixam em diferentes objetos, de acordo com a etapa de seu desenvolvimento, o que não acontecia com os ex-obesos, porque com eles não existia essa troca. Quando se fez referência à catexia, no primeiro capítulo, mostrou-se que Freud (ibidem), ao estudar e definir o conceito de libido, também caracterizou a catexia como o processo por meio do qual a energia libidinal contida na psique se relaciona ou se aplica na representação mental de um indivíduo, de uma coisa ou de uma ideia. Com isso, ele demonstrou que uma libido catexizada perde a mobilidade original, não podendo mais se mover em direção a novos 81 objetos, uma vez que fica enraizada na parte da psique que a atraiu e a sustentou. Assim, para o obeso, essa força é recalcada ao longo de sua vida, não sendo permitido manifestar-se, daí desenvolver uma vida de “comilança”, afastar-se da vida social e distorcer a própria imagem corporal. Vale lembrar que, embora a libido tenha enorme resistência para abandonar posições prazerosas já experimentadas, a ausência do objeto impõe, aos poucos, o doloroso desligamento, até que o ego se veja novamente livre e desinibido, pronto para novos investimentos. Pronto para voltar a viver. 4.3 CLÍNICA DA OBESIDADE: FRAGMENTOS DE CASOS A fim de ilustrar este estudo, alguns casos referentes à distorção de imagem pelos obesos serão aqui apresentados. Não se pretende fazer uma análise clínica detalhada dos atendimentos e tampouco do tratamento como um todo. Os casos são inspiradores de questões fundamentais sobre a clínica na obesidade, em que a distorção de imagem se apresenta como um fator desestruturante desses pacientes conforme se viu nos capítulos anteriores. Importa destacar, porém, que os nomes que constam nos depoimentos são fictícios para preservar o paciente e conduzir de forma ética esta investigação. CASO 01 Juju é uma paciente com 26 anos e pesa 112 kg. Chega à consulta muito falante, expansiva e alegre, dizendo ser casada e ter um filho pequeno. Porém, reconhece que não aguenta brincar com a criança, pois além de lhe doerem as pernas, não consegue correr e fica muito ofegante, parecendo faltar-lhe o ar. Essa paciente está fazendo exames para se submeter à cirurgia bariátrica. Já passou pela nutricionista, mas acha difícil seguir o que ela prescreveu (reeducação alimentar). Também está fazendo fisioterapia para melhorar a respiração. Nessa primeira consulta, comentou não mais aguentar ser obesa, pois todos lhe dizem gracinhas e, além do mais, não quer chegar a uma idade mais adiantada cheia de problemas e com doenças graves. 82 Na segunda consulta, anunciou que a mãe não quer que ela faça a cirurgia, mas não informou o motivo, dizendo apenas que “bate boca” com a mãe sobre o que precisa fazer, pois está com dificuldades de realizar suas atividades diárias. Reconhece que tem vergonha de tirar a roupa diante do marido e diz não sentir muito prazer em suas relações com ele, razão pela qual pouco o procura. E quando o marido toma a iniciativa, é sempre com a luz apagada. Em contrapartida, explica que o marido é um tanto ciumento e sentese inseguro, pensando que após a cirurgia ela poderia deixá-lo. Por outro lado, também não se olha ao espelho. Constata que está gorda pela roupa que usa (blusa larga e calça legging), mas continua a ingerir vários alimentos que a ajudam a manter a obesidade. Assim, comenta que engordou 4 kg, “não que apareça”, diz, tentando convencer-se e culpabilizar a ansiedade pela espera da cirurgia. Em alguns momentos de sessão, declara que não se percebe tão gorda, que só se dá conta de que realmente está muito acima do peso anterior pela roupa que não lhe cabe mais. Todavia revela que se sente bem e que continua comendo sem dificuldade. Em que pese tais fatos, relembra de uma ocorrência – talvez um tanto decepcionada, ou desapontada mesmo: estava no banco quando encontrou um amigo que há tempo não via. Foi então que ele lhe perguntou quantos meses tinha sua gravidez, dando-lhe parabéns e ao marido, que não estava entendendo nada. Também ela nada falou para desmentir, apenas esboçou um sorriso sem graça, despediu-se e foi para casa, onde se pôs a chorar. Foi ai que teve consciência. Mesmo assim, repetiu que estava gorda, sim, embora não se visse da forma como a viam. Disse, então, acreditar que precisava emagrecer para se reconhecer como pessoa e como mulher. Na terceira sessão, Juju revelou encontrar dificuldades para obter o laudo do endocrinologista, pois estava com hormônio baixo. Reclamou que a médica não lhe receitara remédio para aumentar a dosagem hormonal, e, com isso, já fizera três exames de sangue e não obtivera resultado satisfatório, daí declarar que iria mudar de médico. Reclamou, ademais, das pessoas que a aconselhavam a não realizar a cirurgia. Nesse momento, admitiu sua dor: “Elas não sabem o quanto eu sofro, só fico em casa; já tomei remédio que ficava “grogue”; agora que posso me ver, tenho mais é que aproveitar; meu marido que se cuide, porque vou ficar bem bonita, ‘um filé”. 83 Na quarta sessão, chegou falando que fora a outro médico, e que ele a liberou para fazer a cirurgia. Disse, então, que sua mãe não concordava com a intervenção, mas que iria cuidar da criança durante o período em que estivesse hospitalizada, e enquanto estivesse se recuperando. Por fim, confessou que não se deixava fotografar há muito tempo e que lhe faltava vontade para fazer o que quer que seja. Comentário: Quando se diz que é através do corpo que o homem se relaciona com o mundo, o obeso não escapa a essa regra. Contudo, percebe-se existir um desencontro entre o mundo real e o imaginário nessa paciente. Observa-se, nesse depoimento, uma total depreciação do próprio corpo, uma imagem corporal distorcida, uma vez que o corpo não corresponde ao ideal de ego da paciente e tampouco ao da sociedade. Assim, para o obeso em geral e para essa paciente, em particular, nem sempre estar diante do espelho é vivenciado como um momento prazeroso, pois, a seu ver, quando ela entra em contato com o próprio eu, através da imagem refletida no espelho, lhe desagrada o que vê. CASO 02 Pérola é uma paciente de 23 anos. Pesava cem quilos, quando iniciou acompanhamento para a realização da cirurgia. Como os demais que se encontram em condição igual a sua, acreditava não estar tão gorda, pois as raras vezes que precisava utilizar o espelho, não conseguia se ver daquele tamanho. A família apoiava a cirurgia, pois queria seu bem. Ela reclamava que não saia mais, que não tinha mais amigos e que os rapazes não se interessam por ela, daí ficar só em casa. Em contrapartida, toma alguns remédios para controle da pressão e também para a depressão. Iniciado o acompanhamento para cirurgia, ela começou a se expressar mais, colocando-se melhor no contexto social, enfim, conseguia expressar sua opinião com maior tranquilidade. O receio de a cirurgia não dar certo e ela voltar a engordar levaram-na a agir de acordo com todas as prescrições que lhe foram passadas pelos profissionais. Quando questionada como ela se via, não respondia, dizia apenas que as pessoas consideravam-na bonita, porém só o rosto, assegurava ela: “Você 84 tem um rosto tão bonito...”. Em vista disso, alegava que para evitar tais comentários, preferia ficar em casa. Não achava que tinha engordado muito e que não se via assim tão avantajada como diziam. O que ocorria, na verdade, é que não havia uma constatação desse ‘avantajamento’ por meio da visão, mas, sim, pelas roupas. Então, dizia, deixa pra lá. Dois meses depois, submeteu-se à cirurgia bariátrica. Passou de 98 para 70 kg de peso. Nesse caso, notou-se uma inversão daquela percepção anterior da própria imagem. Mesmo com a perda de 28 kg, ela falava que não se via mais magra, embora soubesse que perdera peso pelas roupas e pelo manequim que passara de 54 para 46; além do mais, também as colegas lhe falavam: “Chega de emagrecer!”. Sua vida sofreu mudança, é claro. Hoje, admite que sai mais com as colegas e que já tem muitos pretendentes, o que não acontecia antes de seu emagrecimento. Reconhece que nesse período houve uma fase de elevada autoestima, querendo sair com todos os rapazes que encontrava. Contudo, esse momento passou, observa ela. Acredita estar mais centrada, saindo só para bater papo e curtir os amigos. Não obstante, confessa que faz muitas coisas que antes não fazia como ir a baladas, sair com amigos, assumindo, inclusive, que voltará a estudar e a trabalhar. Comentário: Por certo que tudo o que lhe estava ocorrendo era exatamente o que sua mente ansiava. Antes, para evitar o sofrimento, por acreditar que não tinha condições de encarar os problemas de frente, ela aceitava sua condição de obesa, mas não conseguia e não queria se enxergar como tal. Então, o cérebro, entendendo isso, passou a ativar mecanismos de defesa em prol de um possível bem-estar. Daí ela não conseguir se enxergar naquela realidade que lhe era imposta, minimizar o que estava sendo estampado a sua frente (os quilos a mais), a fim de poder prosseguir a vida, ainda que se enganando, porém, sem sofrer. Hoje, depois da cirurgia e com muitos quilos a menos, evidenciados na balança, o parâmetro já não pode ser o peso que tinha antes da intervenção (por mais que esteja feliz e não esqueça jamais o que conseguira). Também não pode ser o espelho, não pode ser o olhar do outro. Esse novo parâmetro haverá de ser construído a partir das experiências que ela passará a vivenciar externamente e, principalmente, no interior de si 85 mesma. Mas, observa-se, trata-se de um processo pelo qual ela está passando com esse novo corpo em relação a seu diâmetro e limites a menos. CASO 03 Lê é uma paciente de 22 anos. Pesava 122 kg quando solicitou acompanhamento, falando que precisava fazer algo por ela mesma, pois já não aguentava continuar do jeito que se encontrava. Perguntou-se-lhe, então, que jeito era esse, a que ela respondeu: “esse jeito de não mais conseguir subir no ônibus, de não poder cruzar as pernas, de estar sempre controlando pressão alta e sentir um medo permanente de ficar diabética”. Segundo ela, tudo isso a levou a não desejar mais sair com o marido, pois, além de todas essas ocorrências, já não havia roupa que lhe coubesse e sentia vergonha das pessoas. Em contrapartida, declarou que mesmo diante de todos esses motivos, ao se olhar no espelho, não se via tão gorda assim. O que a incomodava mesmo é que as pessoas lhe falavam que ela estava enorme, mas ela não se percebia assim tão obesa, motivo pelo qual preferia não sair e ficar em casa. O marido até a chamava, mas ela sempre se recusava a atendê-lo. Ele, porém, defendia ela, não reclamava de nada, mostrava-se sempre muito amigo, muito companheiro, de acordo com o que ela dissesse. Há quatro meses realizou a cirurgia bariátrica. Encontra-se agora com 79 kg de peso, e, mesmo assim, relata que não se vê mais magra, embora saiba que perdeu muito peso, pois seus familiares lhe dizem isso e as roupas encontram-se largas, não lhe servindo mais. Começou a praticar esporte, visando a modelar o corpo. Tem consciência de que a autoestima ficou muito mais elevada, o que acabou interferindo no relacionamento do casal, chegando ao ponto de o marido pedir a separação, por ciúmes. Afirma que continuam amigos, embora sem possibilidade de ficarem juntos, pois ele fica muito desconfiado. Informa que está fazendo coisas que há muito tempo não fazia, como dançar: “agora eu posso dançar e não passo vergonha por culpa do salto, que antes se quebrava com o peso. Coloco roupas que há muito tempo não colocava, saio com os colegas do trabalho e só tenho coisas boas acontecendo”. Hoje, ela já se vê no espelho com outros olhos, percebe-se como realmente se encontra e gosta do que vê. Está trabalhando e conta que tudo 86 lhe parece novo, pois não sente limitações em desenvolver suas atividades como professora coisa que tempos atrás acontecia. Acredita ter feito a coisa certa para sua vida; por isso, não se arrepende em momento algum e faria tudo de novo, se preciso fosse. Comentário: Nessa paciente, observa-se que a obesidade servia para reforçar sua baixa estima, o que a levou muitas vezes a uma condição emocional de ansiedade e tristeza. Tais conjunturas aumentavam sua obesidade, e, por consequência, conduziam-na a um afastamento social. O resgate da imagem corporal após a cirurgia fez com que ela se percebesse de forma diferente, a possibilitar que se destacasse na vida pessoal e social, demonstrando seu querer e suas vontades. CASO 04 Charles é uma paciente de 32 anos de idade. Pesa 110 kg e vem tendo acompanhamento psicológico, ocasião em que declarou estar sofrendo de algumas enfermidades. Indo ao médico, ele lhe teria dito que precisava emagrecer. Como os demais obesos, também ela não se achava “tão gorda assim”, porque “tem gente mais gorda que eu, que não tem nada disso que eu estou sentindo”, argumentou. Por outro lado, reclamou que os amiguinhos do filho já estavam “caçoando dele”, dizendo que a mãe era como uma bola. Mesmo com toda essa demonstração de repúdio por sua aparência, ainda assim ela acreditava não estar muito gorda... Contudo, não gostava de tirar fotos, tal como seus pares, e, quando se tornava inevitável, ela só admitia que fosse fotografada a face. Lembra que sempre foi gordinha quando criança. Agora, fazia acompanhamento com a nutricionista, visando a uma reeducação alimentar, pois, segundo ela, não dispunha de tempo para comer de três em três horas e tampouco para mastigar muito. Com relação ao fisioterapeuta, manifesta ter dificuldade de respirar e conta que ronca muito à noite, não sabendo dizer se sofre de apneia pela falta de ar que sente. Esclarece, ainda, que a família lhe dá apoio incondicional no que diz respeito à cirurgia, mas que sente receio de que algo saia errado, ainda que acredite na necessidade de fazer algo por si própria. A propósito afirma que quase não sente prazer com seu parceiro e que sempre fica impaciente, na 87 perspectiva de que tudo acabe logo. Declara, ademais, que a relação com o marido acontece só no escuro e nunca por cima. Comemora que o parceiro não reclama de seu físico. Ao contrário, diz que ela está bem assim mesmo e pede que não fique muito magra depois da cirurgia. Explica, além disso, que o parceiro não tem ciúme dela. Revela gostar de fazer piada, não se importando, inclusive, em contar algumas sobre ela mesma. Em contrapartida, diz ter medo de voltar a engordar depois que fizer a cirurgia, ou de ficar com vontade de comer, tentar fazê-lo e passar mal. A verdade é que ela tem se mostrado muito interessada no acompanhamento psicológico, embora apresente comportamento ainda sem qualquer comprometimento com os procedimentos necessários ao pósoperatório. Durante as sessões, sempre reafirma que não se vê tão gorda como os demais a veem, embora algo lhe diga que de fato está, porque todos falam a mesma coisa. Aliás, diz ela, “parece uma coisa, porque quando vou ao médico, ele fala que tenho que emagrecer, pois grande parte dos problemas relacionados às doenças vão desaparecer e também vão diminuir meus remédios”. Com isso, demonstra querer fazer de imediato a cirurgia para melhorar logo. A despeito de seu interesse em resolver tudo rapidamente, ainda não está marcada a data da intervenção, pois os procedimentos pré-operatórios não estão concluídos. Daí continuar vindo fazer acompanhamento psicológico. Tem conseguido alguma melhora em relação à percepção de si mesma e ao comprometimento com os novos procedimentos a serem assimilados em sua vida. Assim, reclama de sua situação em relação ao corpo, por não conseguir fazer muitas coisas. Ademais, acredita ter engordado mais. Os profissionais da equipe trabalham para que no momento da cirurgia ela esteja com menos peso, a fim de diminuírem os riscos e possibilitar uma boa recuperação. Comentário: Essa postura de buscar a cirurgia como tábua de salvação requer muitas reflexões sobre essa paciente. Ela não percebe que a responsabilidade de mudanças em sua vida ou mesmo de a cirurgia dar certo só depende dela. Sua imagem corporal se lhe apresenta distorcida como forma de defesa. A realidade não se integra a seu corpo, que permanece distanciado dessa percepção. 88 CASO 05 Gigi é uma paciente que vem para o acompanhamento para realizar a cirurgia, trazida pela mãe, que já realizou a cirurgia bariátrica. Quando procurou apoio profissional pela primeira vez, tinha 16 para 17 anos e estava com 117 kg. Não gostava de ir ao colégio, por isso só ficava na internet. Reclamava que a mãe não lhe dava atenção e quando o fazia sua voz vinha sempre acompanhada de choro. Mas, em seguida, falava que ela era assim mesmo. Depois de algum tempo, não mais retornou aos acompanhamentos, talvez por saber que o plano de saúde não iria autorizar sua cirurgia, por ser muito jovem. Passado um ano e meio, voltou, na companhia da mãe, na perspectiva de novamente participar dos acompanhamentos. Informou que deixara de estudar e que praticamente não saía mais de casa. Pesava agora 122 kg e estava comendo muito. Revelou não ter nenhuma preocupação com a própria imagem, embora acreditasse não estar tão gorda ao se olhar no espelho. Só quando precisava se vestir, é que ela percebia que ganhara mais peso, pois das poucas peças que ainda lhe restavam, muitas já não lhe serviam. Declarou que as vezes que saía com as amigas, agia normalmente, não deixando nada por fazer e importando-se pouco com as críticas. Contudo, mostrou certa preocupação com as doenças, confessando que era o que a incomodava mais, por já começarem a se apresentar, como pressão alta e diabetes. Ainda assim, foi categórica, dizendo que não estava tão gorda quanto pensavam os que viam. Mais uma vez, reclamou da mãe, por considerar que ela nada fazia para ajudá-la, só a recriminava. No segundo encontro, Gigi quase não falou, disse apenas que estava triste porque sua mãe a mandava fazer coisas que ela não queria, o que provocava brigas entre as duas. Afirmou não se importar muito com o que os amigos falavam a seu respeito. Na verdade, disse, “nem ligo”, admitindo ter alguns paqueras, fico com alguns, nada sério. Quanto ao fato de se olhar ao espelho, garantiu que se olhava, sim, mas, repetia que não se via tão gorda como as pessoas falavam, principalmente sua mãe. Chegou para o terceiro encontro declarando que não estava conseguindo fazer o que a nutricionista pedira e continuava comendo o que queria. Explicou que não saíra de casa nesse período, a não ser para o 89 acompanhamento. Enquanto está em casa, fica sempre se distraindo com o computador. Não fez nenhum exercício, como solicitara o médico. Aliás, reclamou de ter que comer apenas alimentos sem calorias e muitas frutas e legumes, o que não fazia por não ser de seu agrado. A bem da verdade, ela não apresentou nenhuma preocupação com o corpo. Disse não menstruar regularmente, só de vez em quando, coisa que achava normal, pois acabava não tendo preocupações naqueles dias que a deixavam mais fragilizada. Em todas essas sessões de acompanhamento, dir-se-ia que Gigi, ao falar, mostrava-se sempre muito comovida, chorando e ansiosa, a afirmar, talvez numa tentativa de convencer a si mesma e aos demais que a escutavam, que ela era “assim mesmo”. No quarto encontro, assegurou que a mãe a estava pressionando muito, impedindo-a de comer o que desejava e que também não a estava deixando “quieta no meu canto”, porque sempre determinava coisas para ela fazer. Ponderava, dizendo “tenho ficado” com o mesmo garoto, alegando que ele era “muito legal” com ela e não reclamava de nada a seu respeito. Após a cirurgia, Gigi participara de mais quatro encontros. Dos 122 Kg que pesava antes da intervenção, passou para 78 kg. Continuava a afirmar que não estava gorda, apesar de comentar que se sentia mais leve. Já começara a sair de casa, ía às baladas, fazia caminhadas. Contudo, ainda não reconhecia sua estrutura corporal atual, ainda não se enxergava no espelho como realmente se encontrava, com muitos quilos a menos. Em verdade, ela não vinha com tanta assiduidade aos encontros pós-operatórios e quando resolvia aparecer, quase não falava. Já passaram alguns meses desde a operação e ela não tem comparecido para dar prosseguimento ao acompanhamento com o psicólogo, embora não falte à consulta médica de rotina. Comentário: Pode-se observar que a obesidade no adolescente apresenta-se de forma diferente. As demandas são outras. Essa paciente, por exemplo, demonstrou que a falta de afeto pode ter causado sua obesidade. A mãe protagoniza essa relação, ao proporcionar o aparecimento da pulsão de morte, quando a paciente não mais se importa consigo mesma, deixando transparecer essa não vontade de sair daquele lugar onde supostamente a mãe a colocara. 90 A imagem corporal distorcida surge para mascarar a dificuldade de lidar com esse sentimento. Observa-se, também, um não comprometimento em relação ao próprio emagrecimento e à assistência que lhe era oferecida. Mesmo participando do grupo, isso não ajudou a entender tal procedimento. Ela não havia amadurecido o suficiente para manter o comprometimento que conseguira, em algum momento, no grupo de apoio psicológico. 91 5. Conclusão Esta investigação observou a existência de uma real distorção da própria imagem física por parte de pacientes obesos. Ao se considerar o estudo do mito de Narciso, proposto por Freud (1914b), não seria incoerente afirmar que tal fato seja decorrente de uma falha narcísica, fator que leva tais pessoas a desenvolverem um comportamento de compulsão à repetição, comportamento esse tão bem analisado pelo pai da psicanálise em sua obra. Ora, a distorção da imagem observada na obesidade emerge na perspectiva de ‘reparar’ essa falta que a maior parte dos obesos traz consigo, talvez numa tentativa de amenizá-la por meio do gozo alcançado na ingestão de alimentos. Não, ao contrário, trata-se, de um gozo que desvela toda sua incapacidade de lidar com as frustrações, que expõe toda sua inaptidão de ocupar-se com as ansiedades, logo, conclui-se que se trata da pulsão de morte que se exibe com toda aquela sua propriedade distintiva, conforme demonstrou Freud (1920), ao considerar que tudo o que existe, sem exceção, fenece, volta a ser “inorgânico” (idem, ibidem, p.49), por causas internas, por conseguinte, conclui ele, “o objetivo da vida é a morte” (idem, ibidem, loc.cit.) e tudo o que agora se manifesta inanimado, outrora já tivera vida antes de tudo o que hoje é. O obeso fica tentando matar-se o tempo todo, com o propósito de amenizar a falta que se torna evidente através de seus hábitos alimentares sem limites, a propiciar um corpo cada vez mais adiposo, cada vez mais desmedido, sem a dimensão de uma imagem corporal pelo menos previsível. Torna-se patente, com isso, que não só os aspectos psicológicos, mas também os fatores genéticos, hereditários, endócrinos e, principalmente, os socioambientais e psicodinâmicos contribuem para o aparecimento de um comportamento destrutivo nos obesos. Nesta investigação, tentou-se demonstrar a importância da cirurgia bariátrica na recuperação da autoestima do obeso, ainda que muitos dos que padecem dessa enfermidade não se assumam como tal e quase sempre se mostram convictos de que têm condição de superar o mal sem qualquer espécie de acompanhamento psicológico. Revelou-se, ademais, que só o fato dos convênios de saúde reconhecerem a obesidade como um caso patológico e, consequentemente, 92 autorizarem a realização da cirurgia bariátrica, iluminou sobremaneira a vida dessas pessoas, deu-lhes um novo alento, animou-as no sentido primeiro da palavra, isto é, seu desejo se manifestou em busca da minimização de suas patologias, e pôs-se à cata de uma solução efetiva, no caso, a intervenção cirúrgica. Tendo como suporte a teoria psicanalítica, procurou-se evidenciar o porquê das dificuldades desses indivíduos em assumir sua condição de obeso, escamoteando não aos demais, mas a si mesmos. Evidenciou-se a importância de alguns conceitos da Psicanálise no estudo da obesidade, tais como: narcisismo, gozo compulsão a repetição e outros. Apresentou-se, inclusive, uma reflexão a respeito da existência de uma nova sintomatologia, o que foi descartado de imediato, pois aquilo que é caracterizado como nova sintomatologia nada mais é do que o próprio sintoma, embora com outra roupagem. Apontou-se a maneira pela qual se interpreta, na contemporaneidade, a imagem corporal e como ela se estabelece no psiquismo mesmo do obeso, à medida que, na contemporaneidade, é constatada de fato a cobrança de uma imagem idealizada, imagem essa que passa a ser perseguida de maneira incondicional e quem não a alcança vê-se colocado à margem de um sistema cruel, o que não raro acontece com o obeso. Aliás, não se pode esquecer, como já se disse anteriormente, que, outrora, o portador de um corpo avantajado significava fertilidade, evidenciava indivíduo saudável, traduzindo até mesmo posição social. Corpo avantajado era sinônimo de saúde. Daí a máxima do poeta romano Juvenal (séc. X) assumir outras conotações, diferentes daquela que o poeta quis significar na ocasião – Mens sana in corpore sano, isto é, numa tradução livre: ‘uma mente sã num corpo são’ –, que era pedir saúde física e espiritual, quando se estivesse em oração e que hoje é usada no sentido de estabilidade, constância, equilíbrio saudável no modo de vida do indivíduo. Já o corpo muito magro, demasiado esbelto, era associado à pobreza, exprimia infertilidade ou falta de condições de procriar, de gerar filhos sadios. Será apenas no século XIX que ser magro começa a adquirir o significado de belo, ainda que muito timidamente, até tornar-se de fato ideal de charme e beleza, como se entende hoje. 93 A despeito do que se considerava antigamente, o mundo mudou e, com ele, os conceitos do que é certo e do que é errado. Do que é bom e do que é ruim ou do que é belo e do que é feio. Assim, atravessou-se o século XX e chegou-se ao XXI com uma nova cosmovisão. Se correto ou incorreto, se adequado ou inadequado, só o tempo poderá dizer. Mas o fato é que o mundo adotou um novo olhar sobre determinados conceitos antes indubitáveis. E a questão da obesidade foi um deles. Nesta investigação, portanto, indo de encontro ao que se pensava outrora, evidenciou-se que quanto maior o grau de obesidade, mais precoce sucede a doença e maiores são os seus efeitos de distorção sobre a imagem corporal e a convivência social desses indivíduos. Demonstrou-se, igualmente, que o corpo possui um lugar de apelo ao olhar do outro, pela falta de laços subjetivos que possibilitem proporcionar o surgimento do desejo no obeso. Daí reivindicar laços reais, a fim de se apoiar no outro para não desaparecer subjetivamente. Apresentou-se o conceito de imagem corporal sob a ótica de vários autores, que demonstraram a importância da percepção dessa imagem para a constituição do ser humano. Destacou-se, com isso, que a identidade é criada através de uma imagem, estabelecida no decorrer do processo de vivência existencial e individual, que, além de se caracterizar como uma construção cognitiva, como queria Schilder (1994), representa também um reflexo de desejos, de emoções e de interação com os outros. Destacou-se, além do mais, que para o obeso, a imagem corporal apresenta uma falta de percepção dessa mesma imagem, porquanto ela não proporciona uma interação do indivíduo com o próprio corpo e tampouco com o social, a posicionar o obeso numa situação cada vez mais isolada. Evidenciou-se a imagem distorcida e os aspectos que levam o obeso à não percepção real do corpo, com toda a fragilidade que esse psiquismo apresenta no campo de seu desenvolvimento. O obeso não consegue perceber a própria imagem corporal, ficando o corpo à mercê da ingestão de alimentos indiscriminadamente. Na clínica, pelos fragmentos de casos, comprovou-se que a imagem corporal dos obesos apresenta-se adulterada, e, com isso, o obeso vivencia várias dificuldades, com as quais não sabe lidar, como sensação de vazio, 94 sentimento de angústia, percepção de culpa ou mesmo distúrbios no reconhecimento do tamanho e da forma corporal. Eis porque a ingestão de qualquer coisa alimentícia é explorada por ele, como uma forma de amenizar esse complexo conjunto de disposições emocionais. Desse modo, constatou-se que a distorção de imagem corporal para o obeso emerge para substituir uma incapacidade de lidar com seus próprios desejos inconscientes. Essa distorção, porém, não pode e não deve ser vista unilateralmente, isto é, não pode ser entendida apenas por um único aspecto. Mesmo que se apresente uma possibilidade de resposta para essa dificuldade que o obeso apresenta, existem outros caminhos que podem ajudar a perceber novas maneiras de pensar esse paciente, que começa a ser mostrado de forma mais justa, com todo o respeito que lhe é devido. Por certo que se trata de um procedimento que se revela aos poucos. Falando de outra maneira, o que se quer dizer é que tal processo se refere a uma melhora de cada vez, coisa que para esse paciente não é muito estimulante, pois ele deseja algo rápido e eficaz. Isso comprova, portanto, que o obeso precisa de mais limites, ele necessita participar desse processo, de vivenciar cada passo que for dado, a questionar suas atitudes e seus modelos. Considerando que este estudo propiciou a análise da repercussão da distorção da imagem corporal na vida de pacientes obesos e ex-obesos, acredita-se que a identificação e a comprovação dessas alterações referentes à distorção da imagem corporal podem contribuir para as intervenções dos profissionais que lidam com esses pacientes, à medida que facilita a criação de ações passíveis de amenizar as complicações que tais indivíduos venham a apresentar, sejam elas de ordem psicossocial ou não, mas que podem comprometer o sucesso terapêutico esperado. 95 6. Referências Bibliográficas ASSOUN, P-L. Metapsicologia freudiana. Uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1995. BENETI, A. O Corpo na Psicanalise e na Medicina. almanaque. In: Almanaque de Psicanálise e Saúde Mental. Minas Gerais, v. 5, 2003. _____. Do discurso do analista ao nó borromeano: contra a metáfora delirante. In: Opção Lacaniana OnLine . Minas Gerais, 2005. 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INTRODUÇÃO Esse produto – que reúne estratégias de trabalho do corpo com pacientes que se submeteram a cirurgia bariátrica – destina-se ao uso dos profissionais que compõem a equipe do NIMC, cuja principal função é de acompanhar esses pacientes na busca de reconhecimento do próprio corpo, como realmente está apresentando a perda de peso, a imagem corporal e a percepção desse novo corpo inserido na sociedade. Tendo em vista que tais profissionais podem colaborar para melhorar a qualidade de vida desses exobesos, observando de uma forma mais profunda e atenta a subjetividade dessas pessoas, poderão, acredita-se que eles poderão de fato contribuir para o melhor entendimento desse corpo e de sua imagem corporal. Os profissionais do NIMC interpretam e traduzem a mensagem desses pacientes, usam uma linguagem passível de ser percebida e entendida, permitindo, desse modo, uma comunicação entre esses pacientes e seus corpos, suas imagens corporais, além de novas possibilidades de linguagem. Eles têm a função de intermediar o entendimento e a percepção do corpo e o ex-obeso. O instrumento aqui proposto tem a pretensão de colaborar para que o ex-obeso possa se perceber e compreender na complexidade de sua existência e de suas necessidades. Mais do que isso, aspira-se a que os exobesos – como sujeitos do próprio discurso – possam ampliar a capacidade de ser, agir e viver como protagonistas ativos e criativos de sua própria história. Que a percepção do corpo, mediada pelos profissionais possa desmistificar esses pacientes e alcançar outros profissionais que queiram se esforçar para compreender essas pessoas. 103 JUSTIFICATIVA Nos últimos anos, a investigação acerca do tema Obesidade e Cirurgia Bariátrica vem sendo realizada por estudiosos de diversas áreas de interesse, focalizando suas causas, consequências e implicações. No entanto, pouco se tem pesquisado sobre a relação entre a distorção da Imagem Corporal e a redução drástica de peso. A partir dessas constatações, buscou-se investigar os conceitos de corpo e de cultura, situando as percepções de corpo na contemporaneidade e a influência de modelos corporais considerados ideais, com taxas médias desejáveis de gordura, massa magra, dentre outras medidas em que pessoas obesas não se enquadram, sendo, portanto, consideradas fora do padrão. A medicina sempre estabeleceu modelos do corpo bom e do ruim; de um corpo ideal, o corpo do outro como “o corpo” que todos temos: o corpo cadáver da tradição anatômica, o corpo transparente das novas tecnologias de visualização médica ou o corpo-imagem da medicina virtual. Desse modo, procurou-se, lançar um olhar que fosse além das delimitações materiais e fisiológicas das concepções de corpo, visando a pesquisar e a estudar o contexto sócia- cultural em que esse corpo se insere e como se estabelecia a relação entre o meio e a pessoa. Para tanto, na perspectiva de nortear o grupo de estudo como auxílio e referência, foram selecionados alguns teóricos sobre o tema que nortearão o grupo de estudo nessa perspectiva: Dolto, Schilder, Freud, Lacan, Junito Brandão, Jurandir Freire Costa, entre outros. A partir de leituras referentes ao assunto e de observações no seio mesmo de instituições públicas, privadas e de consultório particular, buscou-se entender por que, na imagem corporal dos obesos existe uma distorção provocada por uma falha narcísica, a impedir que os obesos se reconheçam e se percebam como realmente se encontram. A partir daí, procurou-se demonstrar que a imagem corporal tem muita importância na relação com o desenvolvimento do sujeito obeso. Tentou-se identificar, também, que pessoa é essa, que precisa se esconder numa capa de gordura, desistindo do próprio corpo e dos prazeres que ele pode proporcionar, limitando-se apenas a comer, comer e comer. Acredita-se ainda que, à luz da psicanálise, este trabalho 104 possa contribuir para um melhor entendimento da obesidade e de suas distorções no psiquismo e no corpo mesmo do indivíduo. Com isso, tentou-se demonstrar a importância de trabalhar essa distorção que paira no psiquismo do obeso, a fim de ajudar no acompanhamento e na melhora da qualidade de vida da pessoa que tem obesidade e que já passou pela cirurgia bariátrica. OBJETIVOS Os trabalhos com o corpo e a imagem corporal serão desenvolvidos com os seguintes objetivos: Aperfeiçoar os profissionais para o trabalho direto com ex-obeso em diferentes formas de vivências, mediando o corpo com diversas possibilidades; Aprofundar conhecimentos a propósito dos fundamentos históricos e psicológicos da pessoa ex-obesa, procurando identificar suas percepções e possibilidades de entendimento da sua imagem corporal; Refletir a realidade do ex-obeso com seu novo corpo; Estimular a discussão das relações existentes entre o corpo e a imagem corporal; Compreender como o ex-obeso constrói conceitos a partir da interpretação de outro profissional: o fisioterapeuta, a nutricionista; Conhecer e aplicar as técnicas de trabalho corporal. OBSTÁCULOS PREVISTOS E CUIDADOS SUGERIDOS: Os profissionais da equipe são expostos a diferentes tipos de discurso. De certa forma, este é um processo complexo porque tais profissionais precisam dar conta de formular e organizar todas as solicitações desses pacientes. Um dos problemas que ocorrem neste processo é que muitos desses profissionais exercem a função sem estudos específicos mais profundos para atender à demanda, havendo o risco de não se afinarem com os pedidos desses pacientes, o que pode gerar conflitos em vez de minimizá-los e, consequentemente, atingir a relação destes com sua a própria qualidade de vida. 105 Diante disso, torna-se necessário que esse profissional mantenha-se atualizado em diversas questões que envolvem o sujeito obeso e o ex-obeso, principalmente no que se refere à constituição de sua subjetividade e às técnicas de trabalho corporal, para que essa imagem corporal seja incorporada e percebida por tais pacientes, e para que eles possam se tornar multiplicadores dos trabalhos, que possam preparar melhor o sujeito obeso e o ex-obeso para o alcance de uma melhor qualidade de vida. METODOLOGIA: Organização no espaço-tempo O aperfeiçoamento do profissional da equipe será realizado na própria clínica ( NIMC), por um profissional qualificado, por meio de grupo de estudo, a fim de discutir assuntos referentes à constituição da subjetividade do sujeito obeso e do ex-obeso, pois, conhecendo como eles vivenciam o próprio corpo e como percebem a própria imagem corporal, com certeza, o trabalho haverá de fluir de forma mais confiante e consistente. É necessário levar em conta o tempo disponível dos profissionais, o tempo que será dedicado a cada encontro, os temas que serão discutidos, a relevância dos estudos, a participação de todos e o incentivo para a permanência de todos no grupo de estudo. Os encontros poderão ser realizados durante seis meses, ou seja, com encontros semanais ou quinzenais, dependendo do tempo disponível dos envolvidos no projeto. O grupo de estudo será realizado em uma sala ampla, arejada e iluminada para que todos possam sentir-se confortáveis, com duração de uma a duas horas, no máximo, por encontro. Podem ser utilizados recursos como: data show, notebook, pen drive, papel A4, caneta, pincel atômico, dentre outros para exposição de textos ou realização de dinâmicas de grupo. Estratégias e Procedimentos: Este produto poderá ser desenvolvido por um profissional proficiente em imagem corporal com habilitação em Nível superior em Psicologia ou 106 Fisioterapia, com aprofundamento no estudo sobre a relação entre obesidade e imagem corporal. Proposta de educação continuada através do grupo de estudo: Atividade: grupo de estudo para equipe de cirurgia bariátrica da clinica NIMC; Público-alvo: equipe de profissionais do NIMC; Local de reuniões: sala arejada e iluminada com recursos audiovisuais; Procedimentos: encontros semanais ou quinzenais com duração de uma a duas horas, ao longo de seis meses. Estratégias: discussão de temas relacionados ao corpo e à imagem corporal, feitas por meio do grupo de estudo, de modo a fazer circular o conhecimento e as experiências entre o coordenador do curso e seus participantes. Temas que serão estudados no grupo: Histórico de corpo; O simbolismo do corpo Corpo e subjetividade; Doença do corpo; Obesidade; Cirurgia de redução; Corpo depois da cirurgia; Imagem corporal; Distorção de imagem. Benefícios esperados Criação do grupo de estudo proposto para discussão de temas relevantes em relação à imagem corporal do sujeito ex-obeso, levando em consideração a atuação do profissional da equipe do NIMC, que facilitará uma compreensão maior da complexidade que envolve essa temática. Por meio 107 desse grupo de estudo, os participantes poderão trocar ideias significativas que desseminarão positivamente nos mais diversificados ambientes de trabalho. Proporcionará, também, uma aproximação maior entre esses profissionais, que muitas vezes ficam dispersos sem opções para trocar de opiniões. Partindo deste princípio, outro benefício que poderá alcançar êxito em tal processo de interação é que todos terão oportunidade de eliminar dúvidas e partilhar suas experiências nesse papel de mediador. Apesar de existirem algumas dificuldades que os profissionais da equipe do NIMC ainda vivenciam, é possível estabelecer uma reflexão, tornando-se necessária uma conscientização de ação mútua por parte de todos os profissionais envolvidos nesse processo, pois a responsabilidade não pertence somente a uma pessoa, porquanto o sucesso ou o fracasso não no trabalho de interação pertence a todos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FERNANADA, M. Corpo. 4ª ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011. MAURI, R. A imagem Corporal e a Representação Simbólica. São Paulo: Baraúna, 2010. NAZAR, J. et. al. As novas doenças da alma. Rio de Janeiro: Cia. De Freud, 2009. 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